29 de novembro de 2024

A Jornada ao Oeste: Capítulo XXXVI

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO XXXVI:

OS NIDANAS (1) DEIXAM DE EXERCER SUA INFLUÊNCIA QUANDO O MACACO DA MENTE MUDA SEU MODO DE AGIR. A LUA BRILHA EM TODO O SEU ESPLENDOR QUANDO AS FALSAS DOUTRINAS SE DISSIPAM.

  

O Peregrino desceu das alturas e relatou ao mestre tudo o que a Bodhisattva exigira dos dois jovens, bem como a necessidade de devolver a Lao-Tzu seus tesouros. Sanzang ficou profundamente emocionado e, naquele instante, decidiu redobrar os esforços para chegar ao Oeste, pronto para enfrentar qualquer sacrifício. Cheio de esperança, montou em seu cavalo, enquanto Bajie carregava a bagagem, o Monge Sha segurava as rédeas e o Peregrino liderava a caminhada montanha abaixo com seu indestrutível bastão de ferro. Não há espaço para descrever como descansavam às margens dos rios, como comiam ao ar livre, como a geada os cobria à noite e o orvalho encharcava suas roupas ao amanhecer. 

Após uma longa jornada, depararam-se novamente com uma imensa montanha bloqueando o caminho.

— Vocês repararam como essa montanha é alta e acidentada? — perguntou Sanzang aos discípulos, elevando a voz. — Acho que devemos ficar atentos. Não tenho a menor dúvida de que ali vivem hordas de monstros ansiosos para nos destruir.

— Deixe de lado esses pensamentos  — disse o Peregrino. — Não se deixe dominar pelo pânico e evite a todo custo que sua mente vague pelos tortuosos caminhos do medo. Confie que nada de mal nos acontecerá.

— Por que é tão difícil alcançar o Paraíso Ocidental? — suspirou Sanzang. — Desde que deixei a cidade de Chang-An, tantas estações passaram... Já devem ter passado pelo menos quatro ou cinco anos. Como é possível que ainda não tenhamos alcançado nosso destino?

— Ainda é cedo para isso — respondeu o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Pode-se dizer que sequer cruzamos o portal principal da mansão de onde partimos!

— Pare de dizer tolices, por favor! — repreendeu Bajie. — No mundo não existem palácios tão grandes assim.

— Quer você acredite ou não — replicou o Peregrino —, até agora não fizemos outra coisa senão vagar de um salão para outro.

— Não fale desse jeito — suplicou o Monge Sha, tentando esconder o nervosismo com um sorriso. — Você vai acabar deixando todos nós apavorados. Além disso, é fato que não existem mansões tão extensas quanto as que você descreve. E, mesmo que existissem, certamente não teriam teto. Onde encontrariam vigas tão enormes?

— No que me diz respeito — respondeu o Peregrino —, o céu é meu teto, o sol e a lua são minhas janelas, e as cinco montanhas sagradas são as colunas que sustentam todo o edifício. Pensando bem, o Céu e a Terra não passam de um vastíssimo salão.

— Se o que você diz é verdade — suspirou Bajie, desanimado —, o melhor que podemos fazer é voltar para o lugar de onde viemos.

— É melhor pararmos com essa conversa — sugeriu o Peregrino. — Se estão com medo, a única coisa que podem fazer é fechar os olhos e me seguir.

Decidido, o Grande Sábio apoiou o bastão nos ombros e seguiu em linha reta montanha acima, com o monge Tang logo atrás. Mais tranquilo, o mestre olhou ao redor e contemplou uma paisagem realmente extraordinária. Os cumes ásperos das montanhas pareciam tocar o brilho das estrelas, e as copas das árvores, unidas como nuvens, conectavam a terra ao céu. Uma névoa azulada cobria tudo o que a vista podia alcançar. Dos vales distantes chegavam os gritos dos macacos, que não conseguiam abafar o canto das garças, fluindo como um rio de sombras esverdeadas sob os pinheiros. Nos córregos, escondiam-se espíritos que zombavam dos lenhadores com seus gritos. O mesmo faziam as almas das raposas, rindo dos caçadores a partir dos penhascos mais íngremes. Aquela era, sem dúvida, uma montanha extraordinária! Suas encostas eram incrivelmente íngremes, e seus precipícios, profundos como abismos.

Os pinheiros que ali cresciam sustentavam grandes copas verdes, sob as quais brotavam incontáveis trepadeiras e vinhedos. Onde menos se esperava, surgia um curso d’água, cuja umidade penetrava, como uma lâmina afiada, nos ossos dos viajantes. A imponência das rochas despertava em quem as contemplava um temor reverente. De tempos em tempos, o rugido de feras selvagens se misturava ao canto tranquilizante dos pássaros. Manadas de cervos cruzavam as clareiras, saltando freneticamente à procura de algo para comer. Não havia qualquer sinal de presença humana naquela região.

Nos cânions, escondiam-se monstros, enquanto matilhas de lobos percorriam os desfiladeiros. Em um mundo tão dominado por aves e feras, nem mesmo o Buda seria capaz de se concentrar e meditar. Diante de tamanha visão, o mestre começou a tremer, mas não disse uma palavra, enquanto avançava por aquele cenário de sombras e maus presságios.

Conforme seguiam adiante, porém, a melancolia começou a dominá-lo. Até que, incapaz de suportar mais, puxou as rédeas de seu cavalo e exclamou:

— Como essa peregrinação é difícil, Wukong! Ninguém me obrigou a empreendê-la. Fui eu mesmo quem, de livre e espontânea vontade, deixou para trás família e pátria. Atravessei planícies e vales cobertos de juncos, levando meu cavalo ao limite do cansaço. Para possuir o espírito de Buda e alcançar as escrituras, não hesitei em cruzar rios imensos nem em transpor montanhas altíssimas. Quando poderei, enfim, dar por encerrada esta jornada e retornar ao ponto de onde parti? Como desejo inclinar-me diante de meu augusto irmão e prestar-lhe meus respeitos!

— Não seja tão impaciente, mestre! — exclamou o Grande Sábio, soltando uma gargalhada. — Acalme-se e continue caminhando. Garanto-lhe que quando tiver acumulado méritos suficientes, o triunfo virá até você de forma totalmente natural. Cada coisa tem o seu tempo, mestre. Não se esqueça disso.

Enquanto desfrutavam da beleza da paisagem, o sol começou a se esconder no horizonte. Não havia outros viajantes à vista, mas  era reconfortante contemplar o brilho tímido das estrelas. Naquele momento, todos os barcos que navegavam pelos Oito Rios retornavam ao ponto de partida, e as portas dos sete mil vilarejos existentes sobre a terra se fechavam. Os Senhores das Seis Mansões e os Cinco Departamentos já haviam se recolhido para descansar, e os Pescadores dos Quatro Mares e Três Rios guardavam suas redes. As duas altas torres ecoavam uma contínua sinfonia de tambores e gongos, enquanto o círculo brilhante da lua preenchia o universo com sua luz.

O mestre não deixava de observar o cenário. Assim, acabou por avistar, em uma curva da montanha, um conjunto de construções de vários andares. Esperançoso, virou-se para os discípulos e disse:

— Nossa sorte é melhor do que imaginávamos. A noite está chegando, e temos diante de nós um refúgio inesperado. Ou estou muito enganado, ou esses edifícios ali à frente são um templo taoista ou um monastério budista. Acho que deveríamos descansar aqui e prosseguir a jornada amanhã. Espero que não se recusem a nos dar abrigo.

— Seu plano é excelente — comentou o Peregrino. — Contudo, é melhor não nos apressarmos. Antes de tudo, precisamos nos certificar de que este é um lugar seguro.

O Grande Sábio mal havia terminado de falar quando saltou para os ares. Após um cuidadoso reconhecimento, concluiu que, de fato, tratava-se de um monastério budista. O local possuía um muro curvo de tijolos pintados de vermelho, com portões adornados por pregos dourados. Algumas de suas dependências haviam sido escavadas diretamente na rocha. A Torre dos Dez Mil Budas (2) erguia-se diante do Salão de Tathagata, enquanto a Torre do Sol Nascente estava posicionada junto ao Portão do Grande Herói (3). As nuvens repousavam sobre a Torre da Pagoda, compondo um belo contraste com os raios de luz beatífica que emanavam dos três Budas sagrados. Em frente às dependências dos monges, erguia-se o Estrado de Manjusri, com o Salão de Maitreya logo adiante, aparentando estar conectado ao Salão da Grande Compaixão. Uma luz azulada pairava sobre o Pavilhão da Contemplação, enquanto a Torre do Vazio era envolta por nuvens de tonalidade púrpura. Os aposentos do abade e dos demais monges demonstravam um impressionante nível de limpeza e organização. Era evidente que as cerimônias realizadas ali deviam ser solenes e desprovidas de artifícios, refletindo o profundo estado meditativo de seus moradores. Nas salas de estudo, os monges exploravam o conhecimento do Zen e aprimoravam suas habilidades artísticas e musicais. Pétalas de udumbara (4) caíam incessantemente diante do Estrado da Extraordinária Profundidade, enquanto folhas viçosas de videira cresciam sob a Plataforma da Explicação da Lei.  Nunca um bosque havia protegido uma terra tão sagrada quanto aquela, devotada às Três Jóias. A montanha que abrigava o monastério era uma barreira natural extraordinária, protegendo aquele reino sânscrito puro de qualquer invasão. Das paredes pendiam incontáveis tochas, cuja fumaça aromática parecia  parecia competir em fragrância com as nuvens de incenso que subiam continuamente dos incensários.

O Grande Sábio desceu rapidamente da nuvem onde estivera sentado e relatou ao mestre:

— O senhor estava certo. Trata-se, de fato, de um monastério budista. Por isso, acredito que não haverá perigo algum em pedirmos abrigo.

Sanzang esporeou o cavalo e avançou rapidamente em direção ao portão principal.

— Sabe dizer que monastério é este? — perguntou o Peregrino.

— Como pode me fazer uma pergunta dessas? — respondeu Sanzang, irritado. — Não percebe que ainda estou nos estribos e o cavalo nem ao menos parou? É inacreditável como você pode ser tão inconveniente!

— Considerando que viveu a vida inteira como monge — defendeu-se o Peregrino —, presumo que tenha estudado os clássicos confucionistas antes de se dedicar ao aprendizado dos dharmas e dos sûtras. Além disso, apenas alguém com profundo conhecimento em literatura e filosofia poderia receber tamanhas honrarias como as concedidas a você pelo Imperador dos Tang. Então, como é possível que não consiga ler os caracteres escritos no topo do portão deste monastério?

— Que falta de respeito a sua! — exclamou Sanzang, indignado. — De cada três palavras que diz, duas são tolices. Não percebeu que o sol estava em meus olhos e me impediu de ver com clareza? Além disso, essas letras estavam cobertas de pó e eu não consegui decifrá-las com precisão. Agora entende por que não consegui ler o nome deste lugar?

Ouvindo isso, o Peregrino esticou-se ao máximo, alcançando uma altura que ultrapassava facilmente os seis metros. Com cuidado, limpou as letras cobertas de pó e declarou:

— Imagino, mestre, que agora não terá dificuldade alguma para lê-las. Poderia dar uma olhada?

As letras, grandes e chamativas, formavam sete caracteres que diziam: 

"Monastério da Gruta Sagrada, construído por ordem imperial".

Após retornar à sua altura normal, o Peregrino virou-se para o mestre e perguntou:

— Quem você deseja que entre para pedir abrigo?

— Eu mesmo o farei — respondeu Sanzang. — Receio que sua aparência seja um tanto repulsiva, sua maneira de falar pouco respeitosa e seus modos demasiadamente arrogantes. Se os monges se sentirem ofendidos de alguma forma, é provável que se recusem a nos oferecer abrigo, tornando nossos esforços em vão.

— Nesse caso, entre logo — sugeriu o Peregrino. — Não há por que perder tempo com discussões.

O monge Tang ajeitou suas vestes o melhor que pôde e atravessou o portão principal com as mãos postas em um gesto de reverência. Assim que passou pelos portões pintados de vermelho, encontrou-se com duas estátuas imponentes dos guardiões Vajra, cuja aparência era verdadeiramente aterradora. Um deles tinha um rosto de aspecto metálico e barbas tão afiadas que pareciam ser reais. O outro apresentava olhos arredondados de forma peculiar e sobrancelhas incrivelmente espessas. O guardião à esquerda exibia punhos tão fortes que davam a impressão de serem feitos de ferro sólido, enquanto as palmas das mãos do da direita eram tão rugosas que lembravam o bronze ainda em processo de fusão. As armaduras de ambos, feitas de ouro polido, brilhavam com a intensidade de corpos celestes, enquanto suas faixas de seda balançavam livremente ao sabor do vento. Diante deles, generosas oferendas estavam dispostas, exalando um aroma que se misturava ao perfume do incenso queimando em trípodes de pedra.

Ao observar a cena, Sanzang balançou a cabeça, suspirou profundamente e murmurou com certa melancolia:

— Se nas Terras do Leste houvesse pessoas capazes de esculpir bodhisattvas tão grandiosos como estes e generosas o suficiente para oferecer dádivas tão esplêndidas quanto estas, eu não precisaria viajar até o Paraíso Ocidental.

Refletindo sobre isso, Sanzang não demorou a atravessar o segundo portão. No interior, erguiam-se, imponentes, as estátuas dos quatro Devarajas: Dhrtarastra, Vaisravana, Virudhaka e Virupaksa. Cada uma ocupava o lugar que lhe correspondia, orientadas para o leste, norte, sul e oeste, respectivamente. Todas seguravam os símbolos de seus extraordinários poderes, capazes de acalmar os ventos e trazer a chuva em seu devido tempo.

Após deixar para trás o segundo portão, avistou quatro pinheiros altíssimos, cujas copas formavam um dossel de proporções magníficas. Ao erguer a cabeça, ficou surpreso ao se deparar com o Salão do Grande Herói. Dobrando as mãos com reverência, lançou-se ao chão e orou com uma devoção indescritível. Depois, levantou-se e continuou caminhando até alcançar o portão traseiro. Lá encontrou uma imagem reclinada de Guanyin, a protetora de todos os seres dos Mares do Sul. As paredes estavam decoradas com baixos-relevos de peixes, camarões, tartarugas e caranguejos, esculpidos com habilidade incomparável. Os animais pareciam ganhar vida, com cabeças e caudas fora d'água, saltando alegremente de onda em onda.

O mestre balançou a cabeça novamente e suspirou profundamente, dizendo:

— Que grande tristeza! Como é possível que os homens se recusem a aceitar a supremacia da fé, enquanto até as criaturas do mar reconhecem a grandeza de Buda sem hesitar?

Enquanto refletia, um criado do monastério surgiu pela terceira porta. Ao notar os traços gentis e serenos do rosto de Sanzang, apressou-se em sua direção e, após cumprimentá-lo respeitosamente, perguntou:

— Pode me dizer de onde vem?

— Venho das Terras do Leste — respondeu Sanzang. — Estou a caminho do Paraíso Ocidental em busca das escrituras sagradas, por ordem expressa do Grande Imperador dos Tang. Ao passar por estas terras, a noite começou a cair, e decidi vir até este lugar sagrado para pedir humildemente que me permitam passar a noite aqui.

— Não leve a mal as minhas palavras — suplicou o servo —, mas não posso assumir a responsabilidade pelo que pede. Sou apenas um humilde criado, encarregado de varrer o chão e tocar o sino. O guardião do monastério é um ancião que está lá dentro. Se permitir, vou imediatamente falar com ele e, caso aceite o seu pedido, voltarei para informá-lo. Do contrário, receio que precisará buscar outro lugar para passar a noite.

— Compreendo perfeitamente — respondeu Sanzang. — Peço desculpas por causar-lhe tanto incômodo.

O criado retirou-se apressadamente até os aposentos do abade e comunicou a chegada de Sanzang, dizendo:

— Há um homem lá fora que deseja vê-lo.

O monge levantou-se prontamente e trocou de vestes, colocando uma esplêndida túnica e pedindo que trouxessem o chapéu de Vairocana. Assim vestido, caminhou solenemente até a porta, disposto a dar as boas-vindas a tão ilustre visitante. 

No entanto, ao chegar, parou boquiaberto e perguntou, com desdém, ao servo:

— Esse é o homem de quem falou? Aquele que está encostado atrás do salão principal?

O monge Tang estava em um estado deplorável. Sua cabeça estava completamente raspada, sua túnica havia se transformado em trapos, e suas sandálias estavam molhadas e cobertas de lama. Ao vê-lo encostado na porta, o monge ficou furioso e repreendeu o servo:

— Você merece ser açoitado! Ainda não aprendeu que um monge da minha posição só recebe ricos senhores da cidade, que vêm aqui para oferecer incenso? Não movo um dedo por monges esfarrapados como esse! Como ousou me fazer acreditar que se tratava de alguém importante? Basta olhar para ele para perceber que não passa de um mendigo desprezível, que, ao ver a noite cair, se dirige à primeira casa que encontra para pedir abrigo. Não permitirei que atravesse esta porta. Se quer dormir, que se acomode como puder em um dos corredores. Não vou me dar ao trabalho de dirigir-lhe a palavra!

Virando as costas, o monge retirou-se imediatamente para os seus aposentos. Apesar da distância, o mestre não pôde evitar ouvir aquelas palavras. As lágrimas encheram seus olhos, e ele pensou, profundamente abalado:

— Que pena! Com razão diz o provérbio que "um homem afastado de sua casa não vale grande coisa". Desde muito jovem, renunciei à minha família para me tornar monge. Posso afirmar que meus poucos anos não me levaram a me embriagar com carne, enquanto fingia viver uma vida de ascetismo e sacrifícios. Nunca recitei as escrituras com ódio, nem lancei pedras contra a imagem de Buda, ou arranquei o ouro do rosto de um arhat. Que pena me dá, ainda assim, ser tratado dessa maneira! Não sei em que reencarnação ofendi tanto o Céu e a Terra, que agora só encontro pessoas sem sentimentos e sem alma. Se não quer me oferecer abrigo, está no seu direito de não fazê-lo. Mas por que precisa dizer coisas tão desagradáveis, como essa de que sou digno apenas de dormir nos corredores? É melhor não dizer isso ao Peregrino, caso contrário, ele pode reduzir tudo a ruínas com seu bastão de ferro imbatível. Enfim, não adianta lamentar. Como bem diz o provérbio, "o homem deve sempre priorizar a etiqueta e a decência". Acho que o melhor que posso fazer é entrar e pedir, mais uma vez, que nos permita passar a noite sob seu teto.

Seguindo os seus passos, o mestre chegou até a porta dos aposentos do abade. O monge já havia se despido de suas vestes e, pelo olhar severo, era evidente que sua irritação ainda não havia se dissipado. Não era surpreendente que ele não tivesse começado a recitar sutras ou a redigir qualquer oração. De fato, ele não parecia muito inclinado a tais atividades. O monge Tang, na verdade, só conseguia ver ao lado dele uma mesa sobre a qual descansava uma altíssima pilha de papéis. Mesmo assim, Sanzang não se atreveu a incomodá-lo e, em vez de entrar de forma abrupta, preferiu esperar do lado de fora, enquanto dizia, em voz alta:

— Nunca tive tamanha honra quanto a de saudá-lo neste momento.

O abade se sentiu incomodado pelo fato de Sanzang tê-lo seguido, mas não teve escolha senão engolir seu orgulho. Fingindo cordialidade, respondeu:

— De onde vêm?

— Das Terras do Leste — respondeu Sanzang. — Por ordem expressa do Grande Imperador dos Tang, estou a caminho do Paraíso Ocidental em busca das escrituras do Buda Vivente. Ao passar por essas respeitáveis paragens, a noite começou a cair, e achei conveniente pedir-lhe abrigo. Minha intenção é continuar a jornada assim que amanhecer. Suplico-vos, digníssimo abade, que tenha a bondade de conceder-me esse pequeno favor.

— Então, você é Tang Sanzang? — perguntou novamente o abade, levantando-se de seu assento.

— Sim, sou eu — admitiu Sanzang.

— Está mesmo indo para o Paraíso Ocidental, como disse — retrucou o monge. — Mas como você explica o fato de estar tão distante do caminho que leva até lá?

— Receio que esta seja a primeira vez que faço uma viagem como essa — desculpou-se Sanzang.

— Acho melhor você voltar imediatamente para a estrada principal — insistiu o abade. — Ela passa a quatro ou cinco quilômetros a oeste daqui. Não tem erro, porque lá há uma pousada chamada Pousada das Trinta Milhas, onde poderá descansar e comer o que desejar. Para você, seria muito mais conveniente ficar por lá. Além disso, confesso que não saberia como tratar uma pessoa da sua estatura, que veio de tão longe até aqui.

— Os antigos costumavam dizer — retrucou Sanzang, com as mãos respeitosamente unidas — que "os templos taoístas ou os monastério budistas são o lar de todo monge que neles chega, e que, por ser monge, tem direito a um pouco de comida". Por que insiste em negar-me a vossa hospitalidade?

— Maldito monge mendicante! — gritou o abade, perdendo a paciência. — Não sabe fazer outra coisa além de adular e bajular quem tem a infelicidade de ouvi-lo?

— O que quer dizer com isso? — perguntou Sanzang.

— Já esqueceu o que diziam os antigos? — rebateu o abade. — "Quando um tigre chega a uma aldeia, todos fecham as portas de suas casas. Assim, ele não consegue demonstrar sua ferocidade, e sua fama desaparece rapidamente."

— Pode me explicar o significado desse provérbio? — insistiu Sanzang.

— Há alguns anos — respondeu o abade —, um grupo de monges mendicantes apareceu neste monastério. Sentaram-se diante da porta principal, e eu senti pena ao vê-los tão pobres, com as cabeças completamente raspadas, descalços e mal vestidos. Imediatamente os convidei para entrar, fiz com que se sentassem nos lugares de honra e lhes dei de comer o quanto quisessem. Não satisfeito com isso, dei-lhes túnicas novas e pedi que ficassem até se recuperarem completamente. Mal imaginava eu que a ganância deles era tamanha que, em vez de ficarem apenas alguns dias, passaram oito anos aqui antes de decidirem partir. Na verdade, não me teria importado tanto, se não fosse o fato de que se entregaram a toda sorte de desregramentos e comportamentos censuráveis.

— O que eles fizeram? — perguntou novamente Sanzang.

— Quando não tinham nada para fazer — explicou o abade —, passavam o tempo jogando pedras nas cercas e, quando se sentiam entediados, arrancavam um por um os pregos que pregavam as portas. No inverno, arrancavam as janelas e faziam fogueiras com elas, enquanto no verão levavam as portas e as deixavam jogadas pelos caminhos. Não satisfeitos com isso, destruíram quase todos os estandartes, fazendo ataduras com eles para se protegerem do frio. Acabaram com quase todos os nossos nabos e o nosso óleo, alegando que passavam fome e que a comida que lhes dávamos não era suficiente para restaurar suas forças. A gula deles era desmedida e, às vezes, parecia que faziam apostas para ver quem comia mais.

— É uma pena que este homem pense que sou tão desconsiderado quanto eles — pensou Sanzang, entristecido. O abatimento que sentia era tamanho que esteve prestes a ceder ao choro, mas temeu que o abade zombasse dele e não revelou seus verdadeiros sentimentos. Engoliu o orgulho o melhor que pôde e, limpando secretamente as lágrimas com a orla de sua túnica, dirigiu-se apressado ao encontro de seus discípulos. Quando o Peregrino viu o quanto ele estava irritado, aproximou-se e perguntou:

— Os monges deste monastério lhe agrediram?

— Não — respondeu o monge Tang.

— Então, por que está tão abatido? — retrucou Bajie.

— Você foi repreendido? — insistiu o Peregrino.

— Também não — respondeu o monge Tang.

— Então, por que está tão inquieto, se é verdade que não o trataram mal? — perguntou novamente o Peregrino. — Será que ainda sente falta do lugar de onde partiu?

— Disseram-me — afirmou Sanzang, com pesar — que este não é um lugar adequado para mim.

— Quer dizer que os que estão lá dentro são taoístas? — exclamou Peregrino, soltando uma gargalhada.

— Só há taoístas nos templos do Tao — retrucou o monge Tang, irritado. — Os daqui são monges.

— Você não tem jeito! — exclamou Peregrino, rindo novamente. — Se são monges, não há diferença entre eles e nós. Como diz o provérbio: "Todos os que se reúnem ao lado de Buda são iguais". Sente-se aqui, enquanto vou dar uma olhada neste monastério.

Depois de arregaçar a túnica e ajustar a tiara que usava na cabeça, o Peregrino dirigiu-se diretamente ao Salão do Grande Herói, empunhando firme o seu bastão de ferro. Parou diante dos três budas e, apontando com a arma, disse, ameaçador:

— Vocês não passam de estátuas vulgares de barro cobertas de ouro. Seu poder, portanto, é inexistente. Como sabem, estou viajando com meu mestre, o monge Tang, para o Paraíso Ocidental, em busca das escrituras sagradas, e só gostaríamos de passar esta noite aqui. Isso é pedir demais? Por isso, aconselho que anunciem minha chegada o quanto antes à pessoa responsável por todo este lugar. Se não o fizerem, saibam que reduzirei vocês a pedaços com este bastão e mostrarei que não são nada mais do que um monte de barro sem valor algum.

Enquanto o Grande Sábio proferia essas ameaças, apareceu um criado com varas de incenso acesas nas mãos e as colocou em uma urna diante das imagens de Buda. Com um empurrão, o Peregrino o lançou, fazendo-o rolar pelo chão. Surpreso, o criado levantou a cabeça, viu o rosto do macaco e ficou tão apavorado que caiu novamente. Trêmulo, levantou-se com dificuldade, tropeçando várias vezes, até conseguir chegar aos aposentos do abade.

— Lá fora — disse ele, tremendo — há um monge.

— Vocês, criados, merecem ser chicoteados! — gritou o abade, irritado. — Não ordenei que levassem todos para os corredores e os deixassem passar a noite lá? Por que vem me incomodar de novo com isso? Se abrir a boca sobre isso mais uma vez, tenha certeza que vou lhe dar vinte chicotadas!

— Este é outro monge — defendeu-se o criado. — Além disso, ele tem uma aparência assustadora.

— Pode descrevê-lo? — perguntou o abade.

— Ele tem os olhos redondos, as orelhas pontudas, o rosto todo coberto de pelos e uma maneira de falar que lembra um deus do trovão — explicou o criado, ainda apavorado. — E, para piorar, ele empunha um pesado bastão de ferro com a clara intenção de espancar o primeiro que encontrar. Além disso, ele ainda range os dentes de uma forma realmente assustadora.

— Vou ver como ele é — disse o abade, abrindo a porta com cautela.

O Peregrino já estava lá dentro, sem ser convidado, e o pobre abade começou a tremer. Nunca antes vira um rosto tão estranho: olhos brilhantes, testa funda, mandíbula saliente. Parecia um caranguejo cozido. 


Assustado, o abade fechou a porta rapidamente, mas, num piscar de olhos, o Peregrino a reduziu a estilhaços e ordenou:

— Apresse-se e arrume mil quartos, quero tirar uma soneca.

O abade, que ainda procurava um lugar para se esconder, virou-se para o criado e exclamou:

— Não me espanta que ele seja tão feio! Todos que falam com arrogância acabam ficando com uma cara tão horrível quanto a dele. Veja bem, aqui, no máximo, temos trezentos quartos, e isso contando meus aposentos, os salões de Buda, as torres dos tambores e campanas, e os dois corredores. No entanto, esse sujeito exige nada menos do que mil quartos para dormir. De onde vamos tirar tantos quartos?

 Mestre, perdão por dizer isso, mas não tenho ideia do que fazer — confessou o criado.  Vou deixar que o senhor o responda como bem entender.

Tremendo da cabeça aos pés, o abade levantou a voz e disse:

— Peço que me ouça com atenção. Este monastério é tão humilde e insignificante que não poderemos servi-lo como merece. Sugiro, portanto, que procure outro lugar mais adequado para passar a noite.

O bastão do Peregrino adquiriu a espessura de uma bacia. Com força, o Grande Sábio golpeou o chão três vezes com ele e disse:

— O que acabaram de dizer tem uma solução simples. Vão embora daqui e o problema estará resolvido.

— Mas nós residimos neste monastério desde jovens — protestou o abade. — Nossos antepassados na fé confiaram-nos este lugar, e nossos mestres o confiaram a nós. É nosso dever transmiti-lo àqueles que um dia ocuparão o cargo que nós agora ocupamos. Que tipo de homem é você para nos exigir, sem mais nem menos, que abandonemos a herança de nossos predecessores?

— Melhor não discutirmos com ele — sugeriu o criado. — Por que não vamos embora? Se não fizermos o que ele diz, ele vai destruir tudo com esse bastão.

— É impossível ceder a esse absurdo! — gritou o abade, desesperado. — Entre jovens e velhos, somos quinhentos monges. Para onde iríamos? E mesmo que saíssemos, jamais encontraríamos outro lugar para nos abrigar.

— Compreendo a situação de vocês — disse o Peregrino, ouvindo isso. — Mas tenho uma solução simples. Aceitarei que fiquem, se um de vocês se oferecer voluntariamente para receber alguns golpes do meu bastão.

— Vá e receba essa punição por mim — ordenou o abade ao criado, que respondeu, apavorado:

— Como pode me pedir uma coisa dessas? Não vê o tamanho desse bastão?

— O provérbio está certo ao dizer que "são necessários mais de mil dias para formar um exército, mas basta um para destruí-lo" — explicou o abade. — Agora entende por que é preciso que você vá e não eu?

— É desumano que me ordene receber um castigo desses! — protestou com firmeza o criado. — Esse bastão é tão grande que, assim que me tocar, serei transformado em carne moída.

— É verdade — admitiu o abade. — E, se aquele bruto ficar aí com ela, qualquer um pode perder a vida ao esbarrar distraidamente nela durante a noite.

— E ainda querem que eu saia? — protestou novamente o criado.

Sua recusa provocou a indignação do abade, que começou a repreendê-lo com severidade. Mas o criado manteve sua posição, e uma discussão acalorada se iniciou entre eles. Ao ouvir isso, o Peregrino pensou:

— Está claro que ninguém vai aceitar minha proposta. Com um único golpe poderia matá-los a ambos, mas isso me colocaria contra o mestre e não resolveria nada. Acho que o melhor é descarregar minha força sobre qualquer outra coisa, para que esses tolos entendam do que sou capaz.

Levantando ligeiramente a cabeça, viu, junto à porta dos aposentos do abade, uma estátua de leão de pedra. Sem hesitar, levantou a barra e a deixou cair sobre a estátua, que se desintegrou instantaneamente em pó. Ao ver o que acontecera, o monge ficou tão aterrorizado que se escondeu debaixo da cama, enquanto o criado tentava se esgueirar para dentro da cozinha por um buraco que ali havia, sem parar de gritar:

— Essa barra é pesada demais! Não consigo me submeter ao castigo que me ordena! Ela é dura demais para mim!

— Saia daí!— ordenou o Peregrino ao abade. — Se disser a verdade, perdoo-lhe a vida. Quantos monges habitam neste monastério?

— Há um total de oitenta e cinco quartos, portanto, somos quinhentas pessoas que aqui residem — respondeu o abade.

— Chame todos e diga-lhes para saírem com as melhores roupas para receber meu mestre — ordenou o Peregrino. — Se fizer isso, perdôo-lhe a vida e não tocarei em você com o meu bastão.

— Se é assim, sou capaz de levá-lo eu mesmo até o salão principal — exclamou o abade, aliviado.

— Então, o que está esperando? — pressionou o Peregrino.

O abade se voltou para o criado e lhe disse:

— Não me diga que não lhe resta nem um pingo de coragem, porque, mesmo que suas pernas não respondam e seu coração tenha parado de bater, você tem que avisar os outros para que saiam imediatamente para receber o monge Tang.

O criado não teve outra opção a não ser arriscar sua vida. No entanto, não se atreveu a sair pela porta e teve que se arrastar penosamente por um buraco que levava diretamente à frente do salão principal. Sem perder tempo, começou a tocar a campainha do oeste e a bater o tambor do leste. Os monges se levantaram apressadamente e correram pelos corredores, visivelmente alarmados. Ao chegarem ao salão principal, perguntaram:

— Por que você está tocando o tambor e batendo a campainha, se ainda não amanheceu?

— Troquem imediatamente de roupa e saiam pela porta principal para dar as boas-vindas a um ilustre mestre que acabou de chegar diretamente da corte do Grande Imperador dos Tang.

Os monges seguiram as instruções, alinhando-se de acordo com sua dignidade. Alguns estavam com túnicas esplêndidas, outros usavam togas mais humildes, e os que não tinham recursos se contentaram com pedaços de tecido desbotado sobre os ombros. Ao vê-los, o Peregrino perguntou:

— Posso saber que tipo de roupa é essa?

— Não nos maltrate, por favor — suplicaram eles, tremendo de medo ao perceberem a feiúra de seu rosto e a dureza de seu olhar. — Esses tecidos nos foram presentes há muito tempo por algumas famílias piedosas da cidade, mas como aqui não há alfaiates, tivemos que costurá-los nós mesmos. Como podem ver, nossa habilidade com a agulha não é grande, embora chamemos esse estilo de "proteção contra o infortúnio".

O Peregrino não pôde deixar de sorrir e ordenou que os monges continuassem caminhando em direção à porta. Quando chegaram a ela, se ajoelharam e começaram a bater a testa no chão. O abade então levantou a voz e disse:

— Respeitável mestre Tang, honre-nos ocupando os aposentos do nosso abade e descanse neles quanto desejar.

— Não acredite em uma palavra do que ele diz — aconselhou Bajie, ao ver a cena. — Se bem me lembro, trataram você com tanto desdém que as lágrimas inundaram seus olhos e parecia que tinham pendurado dois pequenos recipientes de óleo nos seus lábios. Pode me dizer o que os fez mudar de atitude tão rapidamente? Certamente, tudo isso é parte de alguma artimanha de Wukong; caso contrário, não entendo como se ajoelham diante de você com tanto respeito.

— Que tolo você é! — repreendeu-o Sanzang. — Parece que você não tem ideia do que está acontecendo. Não se esqueça de que, como diz o provérbio, "até os espíritos têm medo dos feios".

Ao vê-los ajoelhados, o monge Tang se sentiu muito inquieto e, aproximando-se deles, disse com visível nervosismo:

— Levantem-se, por favor.

Mas os monges continuaram a bater a testa no chão, respeitosos, enquanto lhe suplicavam:

— Interceda por nós diante de seu discípulo e peça, por tudo o que for mais sagrado, que ele não nos golpeie com esse bastão de ferro que ele tem. Se ele concordar, talvez possamos olhá-lo diretamente nos olhos. Caso contrário, continuaremos a nos ajoelhar por toda a nossa vida.

— Não os bata, Wukong — ordenou o monge Tang.

— Não vou fazer isso — replicou o Peregrino. — Sei que poderia acabar com todos eles com um só golpe.

Ao ouvir isso, os monges se levantaram ao mesmo tempo. Alguns pegaram as rédeas do cavalo, enquanto outros carregavam a bagagem e os mais fortes pegaram nos ombros o monge Tang, Bajie e o monge Sha, levando-os com inesperada pompa para o interior do monastério. 

Assim que se sentaram, todos os monges se aproximaram e prestaram reverência. Sanzang se sentiu muito desconfortável com tantas demonstrações de respeito e, dirigindo-se ao abade, disse:

— Não é necessário que sejam tão cerimoniosos comigo. No fim das contas, não sou mais do que um pobre monge e todos servimos a um mesmo mestre: Buda.

— Embora nos unam os mesmos laços de irmandade — respondeu o abade —, vós sois um enviado imperial, que fez uma longa e árdua viagem para chegar até aqui. Tudo o que fizermos por vós será, na verdade, muito pouco, principalmente considerando que, a princípio, fomos incapazes de reconhecer em vós uma pessoa de indiscutível nobreza. Permitam-me perguntar: desejam uma refeição simples ou preferem provar nossos pratos vegetarianos?

— Jamais provei carne em minha vida — respondeu Sanzang.

— Ouviram o que disse nosso respeitável mestre? — disse o abade, voltando-se para os outros. — Vão imediatamente preparar um banquete.

— Também somos vegetarianos — anunciou o Peregrino, elevando a voz. — Mantivemos, de fato, essa dieta desde o momento do nosso nascimento.

— Como é possível? — exclamou o abade, surpreso. — Nunca imaginei que homens tão violentos como vocês se alimentassem apenas de verduras.

O Peregrino franziu a testa, ofendido. Felizmente, outro dos monges se aproximou dele e perguntou:

— Quanto arroz vocês querem que cozinhemos?

— Como vocês são avarentos! — exclamou, mal-humorado, Bajie. — Para que fazer essa pergunta? Não exigimos nada. Dêem-nos o que acharem conveniente.

Os monges inclinaram a cabeça, respeitosos, e correram para lavar os potes e as panelas. Alguns se retiraram para o interior do monastério, trazendo archotes e lanternas, enquanto outros preparavam a mesa.

Assim que os Peregrinos saciaram sua fome, os monges retiraram as sobras, e Sanzang agradeceu ao abade, dizendo:

— Estamos em débito com vocês por sua inestimável hospitalidade.

— De modo algum — respondeu o abade com prontidão. — Na verdade, não fizemos nada que mereça tamanho reconhecimento.

— Fariam a gentileza de nos indicar o local onde passaremos a noite? — perguntou Sanzang.

— Não se preocupem com isso, mestre — respondeu o abade. — Já providenciei tudo.

Voltando-se para um dos serventes que aguardavam nas proximidades, o abade perguntou:

— Há algum criado disponível?

— Creio que sim, senhor — respondeu o servente, inclinando a cabeça em deferência.

— Nesse caso — concluiu o abade —, que dois ou três se encarreguem de alimentar o cavalo de nosso hóspede. Os demais devem ir para a parte da frente e preparar três dos quartos do Zen, sem se esquecer das camas e dos mosquiteiros. É preciso que nossos irmãos se sintam o mais confortáveis possível entre nós.

Os servos obedeceram sem questionar. Assim que terminaram sua tarefa, retornaram junto ao monge Tang e o convidaram a se retirar para descansar. Ao chegarem aos quartos do Zen, os viajantes ficaram impressionados. O ambiente estava iluminado como um pequeno palácio, e cada detalhe das acomodações fora cuidadosamente preparado. As camas eram impecáveis, e o cuidado com o conforto era evidente. Mesmo assim, o Peregrino ordenou a um dos servos que trouxesse o cavalo e o amarrasse ao lado de seus leitos. Enquanto isso, Sanzang escolheu o lugar mais iluminado do quarto e sentou-se, mas não tardou a ser cercado pelos monges do monastério. Eram quinhentos ao todo, e nenhum deles parecia disposto a se retirar antes de receber sua permissão.Percebendo a hesitação deles, Sanzang ergueu-se e, com um gesto gentil, disse:

— Por favor, retirem-se aos seus aposentos. Só assim poderei descansar em paz.

Mas eles se recusaram a sair, pois o abade lhes havia ordenado que não se afastassem de seu lado até que tivessem provido tudo o que o monge Tang precisasse. Foi necessário que o mestre lhes dissesse uma vez mais:

— Não preciso de mais nada, obrigado.

Eles então se levantaram e, aos poucos, foram se retirando. Assim que saíram, o monge Tang pareceu se sentir mais relaxado. Ele se aproximou da porta e, ao ver o puro brilho da lua, chamou seus discípulos, dizendo:

— Venham, aproximem-se.

Tanto o Peregrino quanto Bajie e o Monge Sha interromperam o que estavam fazendo e se aproximaram dele. Emocionado pelo brilho límpido da lua, um disco radiante que iluminava toda a terra, Sanzang compôs um longo poema em estilo antigo, de alguma forma expressando a saudade das terras de onde partira. O poema era o seguinte:

"Suspenso no alto, o globo de luz se assemelha a uma pedra preciosa cuidadosamente lapidada. Seu brilho é tão intenso que nada no mundo escapa à sua luz. Muros de jaspe e torres de jade se enchem da clareza de seu fulgor. Seus raios se estendem normalmente por mais de dez mil milhas, mas esta noite possuem uma luminosidade ainda maior do que todas as noites de um ano juntas. Parece um enorme bolo de geada surgindo da escuridão azul do mar, ou um disco de gelo suspenso por um imenso prego de jade no céu. Em uma posada escura ao longo de um caminho, o frio da noite faz um dos hóspedes se queixar, enquanto, em uma aldeia nas montanhas, um ancião descansa tranquilamente na simplicidade de sua cabana. Tudo é observado pela lua com seus olhos de prata. Ela irrompe com força na corte dos Han, trazendo um estranho desconforto aos mais velhos, e faz com que as prostitutas se maquiem cuidadosamente, enquanto sua luz começa a subir lentamente pelas paredes das Torres de Chin (5). Foi sob seu brilho que Yü-Liang (6) escreveu os poemas que estão na História de Qin, e Yüan-Hung (6) navegou por inúmeros rios em seu barco. Quando se reflete nas bordas das taças e xícaras, sua luz parece suave e fria, mas, quando exibe todo o seu poder luminoso nos clareiros das florestas, lembra a incomparável força dos deuses. Ao contemplá-la, por trás de cada janela se ouve a canção da bola de neve e, em cada lar, o som de instrumentos musicais com cordas de gelo (7). Esta noite, sua beleza tranquila pousa sobre um monastério. Quando voltarei a vê-la repousando sobre o telhado da minha casa?"

— A luz da lua traz saudades de sua terra — disse o Peregrino, aproximando-se dele.  Mas não se esqueça de que ela também simboliza as transformações constantes da natureza. Tudo no ser é aparência, e essa aparência muda sem cessar. Quando o ciclo lunar chega ao trigésimo dia, dissolve-se todo o metal que contém seu yang, enquanto a água de seu yin atinge tal nível que acaba transbordando por todo o mundo.  Por isso, esse dia é chamado de "escuro", pois a lua perde toda sua luz e mergulha na escuridão absoluta. Nesse momento — continuou ele —, a lua se une ao sol. Durante dois dias, ela é impregnada por sua luz. No terceiro, surge uma pequena porção de yang, que cresce e se multiplica. No oitavo dia, metade do yang já terá tomado o lugar de metade do yin, deixando sua porção inferior mergulhada na escuridão. Por isso, a esse ciclo do mês se dá o nome de "quarto crescente" ou "arco superior". Passados mais sete dias, ou seja, no décimo quinto prosseguiu , outras três porções de yang terão amadurecido, alcançando, assim, uma união absoluta e perfeita. Este é o momento da lua cheia, quando ela encara diretamente o sol. É por isso que este período também leva o nome de lua cheia. No décimo sexto dia, entretanto, já terá se formado uma porção de yin, que se multiplicará por dois ao alcançar o vigésimo segundo dia. Nesse instante, metade do yin invadirá metade do yang, deixando a porção inferior submersa na escuridão. Por isso, esse ciclo do mês é chamado de "quarto minguante" ou "arco inferior". Ao chegar ao trigésimo dia, todas as porções de yin já estarão formadas, e a lua terá atingido novamente um estado de total escuridão. Esse processo é o símbolo da purificação constante que ocorre na natureza.  Na verdade, no momento em que conseguirmos que os Dois Oitos se transformem no Nove Vezes Nove (8), seremos capazes de ver o próprio Buda cara a cara e poderemos retornar tranquilamente ao nosso lar. Por isso, afirma o poema:

"Entre o primeiro e o último quarto, os elementos do elixir se misturam,
E a suprema perfeição é adquirida.
Antes, contudo, é preciso refinar tudo na retorta;
Sem isso, a constância jamais dará fruto,
E o Paraíso Ocidental nunca será alcançado."

O mestre sentiu-se imediatamente iluminado e compreendeu perfeitamente o significado dessas palavras capazes de alcançar a imortalidade. Sua satisfação era tão grande que agradeceu repetidamente a Wukong pelo que havia dito. O Monge Sha, entretanto, sorriu enigmaticamente e disse:

— Nosso irmão explicou bem que o primeiro quarto lunar representa o yang e o segundo, o yin. Porém, ele esqueceu de mencionar que, quando fogo e água se misturam, sua atração se torna irresistível. A decisão final recai sobre a Mãe Terra, que decide se essa união irá se concretizar ou não, sempre de forma harmoniosa, pois a água provém do Grande Rio e a lua paira no céu.

O mestre, mais uma vez, sentiu a clareza iluminar sua mente, repetindo-se o fenômeno de que, assim que a verdade alcança o coração, ela se apodera de todo o ser. Da mesma forma, quando alguém resolve o enigma do não-nascimento, essa pessoa se torna um deus.

Bajie, então, aproximou-se do mestre, puxou-lhe a manga e disse:

— Não dê atenção a tanta filosofia! O que acontece com a lua é simples: depois de desaparecer do céu, ela se refaz e volta a ser redonda. A verdade é que ela é tão imperfeita quanto eu. Já perceberam, na hora do almoço,  todos me criticam por causa do meu apetite exagerado; dizem que eu salivo demais sobre as tigelas que seguro. Além disso, dizem que sou um completo idiota, enquanto eles têm a bênção da inteligência e da compreensão. Uma coisa eu sei com certeza, e é que, assim que tivermos conseguido as escrituras, teremos completado os três caminhos do karma e poderemos subir aos céus com um simples movimento de nossas cabeças e rabos.

— Enfim — suspirou Sanzang, dando por encerrada a discussão —. Devem estar exaustos. Vão dormir, enquanto eu medito um pouco mais sobre as escrituras.

— Mestre, perdoe-me mas creio que está equivocado — atreveu-se a dizer o Peregrino. — Você foi monge durante toda a sua vida, o que me leva a crer que conhece bem todas as escrituras que estudou na juventude. Depois, o Imperador dos Tang lhe pediu que empreendesse esta longa viagem até o Paraíso Ocidental para trazer o verdadeiro Cânone do Mahayana. Agora, diga-me: sobre qual porção das escrituras deseja meditar, se ainda não alcançou a perfeição necessária para ver Buda face a face e, consequentemente, apropriar-se de suas escrituras?

— Desde o momento em que deixei Chang-An — respondeu Sanzang —, não fiz outra coisa senão viajar.  Às vezes, temo que possa esquecer tudo o que aprendi na juventude. Esta noite, finalmente, surgiu uma oportunidade única para meditar, e não quero desperdiçá-la.

— Nesse caso — concluiu o Peregrino —, o melhor será que nós, discípulos, vamos dormir primeiro.

Assim que terminou de dizer isso, os três se retiraram para os seus respectivos leitos. O mestre, por sua vez, fechou as portas do salão do Zen. Com uma lamparina na mão, desenrolou um pergaminho e começou a meditar sobre ele. Na torre, soou a primeira vigília, e logo todas as atividades humanas cessaram. Até mesmo nas margens dos rios, as luzes que brilhavam nos barcos dos pescadores se apagaram.

Não sabemos como o mestre partiu daquele monastério. Quem desejar saber, deverá ouvir com atenção as explicações que serão dadas no próximo capítulo.


CAPITULO XXXVII EM BREVE ...

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Notas do Capítulo XXXVI

  1. Os nidanas são as doze causas que aprisionam o ser humano à existência, das quais o budismo busca libertá-lo. Especificamente, são eles: Avijjā (Ignorância), Sankhāra (Formações mentais ou volições),Viññāṇa (Consciência), Nāmarūpa (Nome e forma - aspectos mentais e físicos), Saḷāyatana (Seis sentidos - visão, audição, olfato, paladar, tato e mente), Phassa (Contato - entre os sentidos, objetos sensoriais e a consciência), Vedanā (Sensação - agradável, desagradável ou neutra), Taṇhā  (Desejo ou sede), Upādāna (Apego), Bhava (Tornar-se - existência ou vir-a-ser), Jāti (Nascimento) e Jarāmaraṇa (Velhice e morte);
  2. Nos templos budistas, existem torres cônicas decoradas com inúmeras estatuetas de Budas. Como em muitas outras representações, o número dez mil simboliza a totalidade;
  3. Buda, em algumas ocasiões, era chamado de "Grande Herói", pois, graças à sua sabedoria e poder, era capaz de enfrentar os demônios mais ferozes e perigosos;
  4. Flores silvestres de perfume penetrante utilizadas no budismo como símbolo de simplicidade e meditação;
  5. De forma eufemística, os prostíbulos eram frequentemente chamados de Torres de Chin;
  6. Yü-Liang (289-340) e Yüan-Hung (328-376) foram dois renomados poetas e funcionários da dinastia Qin.
  7. O instrumento musical mencionado no texto era semelhante a um pipa e foi presenteado ao imperador Xuan Zhong, da dinastia Tang, por um homem chamado Bai Xiu Zhen. Originário da região de Xinjiang, o instrumento possuía um som tão peculiar que se dizia que suas cordas eram feitas com seda produzida por "vermes de gelo";
  8. Embora ao longo da obra a expressão "nove vezes nove" seja frequentemente associada à perfeição, no budismo, o número oitenta e um representa as classes de pensamentos perversos que emergem do mundo do desejo. Esse mundo é formado por nove níveis, aos quais correspondem diferentes tipos de pensamentos.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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