15 de maio de 2023

A Jornada ao Oeste: Capítulo II

 ۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang

CAPÍTULO II:

COMPREENSÃO TOTAL DA EXTRAORDINÁRIA DOUTRINA DE SUBODHI (1), A DESTRUIÇÃO DE MARA (2) E O RETORNO ÀS ORIGENS LEVAM À UNIDADE DO ESPÍRITO


Assim que recebeu seu novo nome, o esplêndido Rei dos Macacos pulou de alegria, curvando-se repetidamente diante de Subodhi em sinal de agradecimento. O mestre ordenou aos reunidos que trouxessem Sun Wukong para fora e o ensinassem a umedecer a terra e o pó com água, a falar corretamente e a se comportar com a cortesia exigida em um lugar como aquele. O grupo de imortais fez o que foi pedido e Sun Wukong curvou-se perante seus respeitáveis ​​colegas, que não perderam tempo em arrumar um lugar para ele no corredor para que ele pudesse dormir.

Na manhã seguinte, ele começou a aprender as artes da linguagem e da etiqueta, a memorizar os escritos sagrados, a discutir aspectos doutrinários, a praticar caligrafia e a queimar incenso. Era nisso que sua rotina diária se resumia. Quando seus deveres permitiam, ele varria o chão, limpava as ervas daninhas do jardim, plantava flores, podava árvores, juntava lenha, acendia o fogo, buscava água e servia bebidas aos que viviam com ele. Não lhe faltava absolutamente nada, e assim, sem que ele percebesse, passaram-se seis ou sete anos.


Um dia, o venerável Subodhi subiu ao estrado, onde sentou-se e chamou à sua volta todos os imortais. Então, começou a instruí-los nos princípios da grande doutrina. Suas palavras eram tão carregadas de eloquência que faziam lótus douradas imediatamente brotarem da terra. Com extraordinária sutileza, expôs a Doutrina dos Três Meios (3), sem omitir nenhum detalhe. Com indescritível elegância, ele movia seu leque de cerdas de cervo (4) para a direita e para a esquerda, enquanto sua voz portentosa atingia a altura do Nono Céu. De tempos em tempos, ele dava palestras sobre o Tao, para depois falar sobre o Zen. Era absolutamente natural para ele harmonizar os princípios das três escolas (5). Desvendar o significado exato de uma única palavra poderia levar a uma vida mais intensa e a uma conhecimento infinitamente mais profundo. 

Wukong, que também veio ouvir os ensinamentos do mestre, ficou tão emocionado com o que ouviu que começou a coçar a orelha e acariciar o rosto. Um sorriso satisfeito cruzava o seu rosto de orelha a orelha. Incapaz de se conter, ele começou a dançar de quatro, mas o mestre o viu e, levantando a voz, de repente perguntou-lhe:

— Posso saber por que está pulando e dançando como um louco, em vez de ouvir o que estou dizendo?

— Juro a você que seu discípulo o atendeu com respeito, explicou Wukong. — Mas, ao ouvir coisas tão maravilhosas como as que saíram da sua boca, foi impossível para mim conter minha alegria e comecei a pular e dançar sem perceber. Peço humildemente o seu perdão, mestre.


— Gostaria de saber — respondeu Subodhi — se você realmente entendeu o que acabei de expor. Há quanto tempo você está nesta caverna?

— Seu discípulo - respondeu Wukong — possui uma memória muito débil e não se lembra a quantas estações está aqui. Pra falar a verdade, tampouco me importo. No entanto, posso dizer-lhe que quando o fogo se extingue no fogão, costumo ir a uma montanha apanhar lenha. É um lugar esplêndido coberto de pessegueiros e todas as vezes que estive lá me fartei de seus frutos dourados. Lembro de ter comido até me fartar de pêssegos sete vezes.

— O lugar de que você fala se chama “Montanha do Pêssego Maduro” — concluiu Subodhi— e se você comeu de seu fruto sete vezes, significa que está aqui há pelo menos sete anos. Qual caminho do taoísmo você gostaria de aprender?

— Estou totalmente sujeito às decisões do meu respeitável mestre — respondeu Wukong. — Aprenderei tudo o que está impregnado de sabor taoísta. Para mim isso é o mais importante.

— Dentro da tradição taoísta —  explicou Subodhi — existem trezentos e sessenta caminhos diferentes que podem levar diretamente à Iluminação. Não sei qual deles você gostaria de seguir.

— Estou sujeito à vontade de meu respeitável mestre — repetiu Wukong . — Para o teu discípulo não há virtude maior do que a obediência.

— Que tal se eu te ensinar o Caminho das Artes Mágicas? — perguntou Subodhi.

— E o que é esse Caminho das Artes Mágicas? — perguntou Wukong.

- O Caminho das Artes Mágicas - explicou Subodhi- trata das invocações aos imortais, das práticas divinatórias baseadas no uso de caules de diversas plantas e no aprendizado dos segredos que levam à prática do bem e à rejeição do mal.

— Tal caminho pode levar à imortalidade? — perguntou Wukong.

— Não — respondeu Subodhi.

— Então não o aprenderei — concluiu Wukong.


— O que você acha de eu te mostrar o Caminho das Seitas? — perguntou, por sua vez, o venerável Subodhi.

— O que é o Caminho das Seitas? perguntou novamente Wukong.

— O Caminho das Seitas — explicou Subodhi — compreende os ensinamentos dos confucionistas, budistas, taoístas, dualistas, moístas e alquimistas. Todos eles estudam as escrituras e recitam orações. Alguns consultam sacerdotes, enquanto outros convocam diretamente personagens do reino espiritual.

— Tal Caminho pode levar à imortalidade? — Wukong perguntou mais uma vez.

— Tentar alcançar a imortalidade dessa maneira é como inserir uma coluna dentro de uma parede! respondeu Subodhi.

— Eu, como o senhor bem sabe — respondeu humildemente Wukong — , sou um sujeito simples, que não compreende enigmas muito bem. O senhor pode me explicar o que significa inserir uma coluna dentro de uma parede?

— Quando alguém ergue um edifício e deseja que ele seja bem firme disse Subodhi —, insere colunas retas dentro das paredes. Porém, com o passar do tempo, quando a ruína se apodera delas, as colunas também participam de sua destruição imediata.

— Isso significa então que eles não são nada duráveis — concluiu Wukong. — Não estou interessado em aprender esse Caminho.

— O que você acha se eu te ensinar o Caminho do Silêncio? sugeriu, mais uma vez, o venerável Subodhi.

— E qual é o seu propósito? perguntou Wukong.

— Cultivar o jejum e a abstinência, a quietude e a inatividade, a meditação e a arte de cruzar as pernas, o controle da linguagem e a alimentação vegetariana explicou Subodhi. Para alcançá-lo, são recomendadas práticas de ioga, séries de exercícios em posição ereta ou reclinada, imersão em estado de quietude absoluta, meditação individual e afins.

— Tudo isso pode proporcionar a imortalidade? Wukong insistiu.

— Estas práticas não são de forma alguma superiores à utilidade de tijolos que ainda vão ser cozidos no forno respondeu Subodhi.

— O senhor realmente gosta de rodeios! Wukong exclamou, rindo. Não acabei de dizer ao senhor que não compreendo enigmas? O que o senhor quer dizer com tijolos que ainda vão ser queimados no interior de um forno?

— É possível que as telhas e tijolos encontrados dentro de um forno já possuam a forma que lhes é própria —  respondeu Subodhi. — Mas se não forem purificados pelo fogo, uma chuva torrencial pode destruí-los a qualquer momento.

— Ou seja —  concluiu Wukong —, lhes faltam consistência. Não estou interessado em aprender tais práticas.

— Que tal eu te ensinar o Caminho da Ação?  sugeriu, sem desanimar, o venerável Subodhi.

— O que é esse tal de Caminho da Ação? — tornou a perguntar Wukong.

— Abrange uma infinidade de atividades disse Subodhi , entre as quais se destacam reunir o yin (positivo) para nutrir o yang (negativo), tensionar arcos e disparar flechas, massagear o umbigo para tornar a respiração correta. Também se estende à experimentação de certas fórmulas de alquimia, obtenção de mercúrio vermelho, fabricação de pedras outonais, beber leite de noiva (6) ​​e outras práticas semelhantes.

— Tais práticas podem proporcionar uma vida longa? perguntou Wukong.

— Tentar alcançar a imortalidade a partir de práticas como essas é como observar o reflexo da lua na água respondeu Subodhi.

— O senhor e seus enigmas novamente! Wukong exclamou. — O senhor pode explicar me o que significa olhar o reflexo da lua na água?

— Quando a lua está alta no céu, sua superfície se reflete na água respondeu o mestre , e embora possamos ver seu reflexo, tentar desvendar seus mistérios através dele é uma vã ilusão.

— Também não aprenderei isso! — concluiu Wukong.

Quando Subodhi ouviu isso, soltou um grito e pulou do estrado. Ele então apontou a régua que segurava em suas mãos para Wukong e lhe disse:

— Que tipo de macaco caprichoso é você? Não quero aprender isso, não quero aprender aquilo! O que exatamente você quer aprender?

O venerável Subodhi aproximou-se ainda mais dele e deu-lhe três golpes na cabeça.


Depois, ele colocou as mãos atrás das costas e saiu da sala, fechando as portas atrás de si e deixando de fora aqueles que vieram ouvi-lo. Diante de uma reação tão inesperada, eles se voltaram furiosos para Wukong e começaram a repreendê-lo, dizendo:

— Maldito macaco! Você estragou tudo! Você não pode ter um pouco mais de educação? O mestre estava disposto a lhe ensinar práticas mágicas. Por que você se recusou a aprendê-las e discutir com ele? Quem sabe, agora que você o ofendeu, quando ele voltará aqui?


Todos estavam contra ele, desprezando-o e ridicularizando-o tanto quanto queriam. Wukong, no entanto, não se aborrecia, e respondia aos seus insultos com o mais largo dos sorrisos. Sem que eles percebessem, o Rei Macaco havia desvendado o mistério por trás do comportamento estranho do seu mestre; portanto, ele não ficou zangado com nenhum de seus companheiros e manteve sua língua sob controle. Ele percebeu que, ao batê-lo três vezes seguidas, o mestre o incitara a se preparar para a terceira vigília; ao mesmo tempo, ao colocar as mãos atrás das costas e retirar-se para seus aposentos, enquanto trancava as portas da frente, estava orientando-o a entrar pela porta dos fundos para receber seus ensinamentos em segredo.

Wukong passou o resto do dia na companhia dos outros discípulos em frente à Caverna das Três Estrelas, esperando ansiosamente pelo anoitecer. Quando o entardecer finalmente deu lugar à escuridão, ele imediatamente se retirou para descansar com os outros. Não demorou muito para que, depois de fechar os olhos, sua respiração se tornasse regular e ele permanecesse totalmente imóvel, dando a entender que estava dormindo profundamente. Como na montanha não havia ninguém encarregado de marcar a passagem do tempo, nem mesmo instrumentos para fazê-lo, Wukong teve que confiar em seus próprios cálculos para medir o fluxo das horas. Para fazer isso, ele contou pacientemente o número de vezes que seus pulmões inspiraram e exalaram o ar. 

Por volta da hora de Dhzu (7), Wukong levantou-se silenciosamente e vestiu suas roupas. Abrindo furtivamente a porta da frente, ele se afastou do grupo e saiu. Ao erguer a cabeça, viu a lua brilhar e o orvalho se formar, puro e frio, na calmaria que tudo envolvia. Dentro da floresta as corujas solitárias descansavam, enquanto ao longe se ouvia o suave fluxo de uma fonte. A fraca oscilação dos vaga-lumes quebrou, com a força de dardos, o escudo das trevas. Colunas de patos selvagens voavam caligraficamente por entre as nuvens. Era exatamente a hora da terceira vigília, a hora mais indicada para buscar a Verdade e o Caminho Perfeito.

Wukong se dirigiu até os fundos por um caminho familiar e descobriu, para sua indescritível alegria, que a porta estava entreaberta.

— Não me enganei disse a si mesmo, transbordando de felicidade. O mestre realmente tem  a intenção de me transmitir seus ensinamentos. Caso contrário, não teria deixado a porta aberta.

Em três passadas ele alcançou a porta e a atravessou com um cuidado indescritível. Ele foi na ponta dos pés até a cama de Subodhi, mas para sua surpresa, ele o encontrou dormindo, com seu corpo enrolado e virado para a parede. Wukong não ousou perturbá-lo; apenas ajoelhou-se diante de sua cama. 


Depois de um tempo, Subodhi acordou, esticou as pernas o máximo que pôde e murmurou para si mesmo:

— Como é difícil! Não há nada mais sombrio do que o Caminho! O elixir dourado (8) é incapaz de iluminar as coisas mais humildes. Quem insiste em ensinar mistérios profundos a um homem imperfeito está condenado a tirar o sentido das palavras, a cansar inutilmente a boca e a secar a língua para sempre!

— Mestre, — disse Wukong imediatamente seu discípulo está ajoelhado há muito tempo, esperando o senhor acordar.

Assim que o venerável Subodhi ouviu a voz de Wukong, ele pulou da cama e se vestiu apressadamente.

— Você de novo, maldito macaco? exclamou ele, sentando-se de pernas cruzadas. Por que você não está descansando com os outros ? Posso saber o que você veio fazer aqui?

— Ontem respondeu Wukong — o senhor mesmo, diante do estrado e na presença de todos os teus discípulos, me ordenaste, por volta da terceira vigília, que entrasse pela porta dos fundos para ser instruído nos mistérios do Tao. Se não fosse por isso, como eu poderia ousar entrar em seus aposentos?

Quando Subodhi ouviu isso, ficou muito satisfeito e disse para si mesmo:

— Este sujeito realmente descende do Céu e da Terra. Caso contrário, como poderia ter entendido minhas intenções tão claramente?

— Exceto seu humilde discípulo insistiu Wukong — , não há mais ninguém aqui. Por que o senhor não é gentil comigo e me mostra o caminho que leva à imortalidade? Se o fizeres, nunca me esquecerei de tão imenso favor.


— Ter resolvido tão rapidamente o enigma que te propus é uma indicação clara de que foste escolhido para dominar o mistério que tanto te incomoda afirmou Subodhi. Tenho orgulho de poder ensinar isso para você. Aproxime-se e ouça com atenção. Vou ensinar-lhe o caminho extraordinário da imortalidade.

Wukong tocou a testa no chão várias vezes em sinal de gratidão, lavou suas orelhas e, ajoelhado diante da cama, preparou-se para ouvir com a maior atenção possível.

— Aprenda bem o segredo desta maravilhosa e verdadeira fórmula: cuide e faça uso das forças vitais, nada além disso. O poder absoluto reside no sêmem, na respiração e no espírito. Cuide deles com muito zelo e total segurança, para que não haja a menor fuga dessas forças em você. Evite, acima de tudo, que se espalhem! As mantenha firmes dentro do seu corpo! Preste atenção ao meu ensinamento e o Tao se desenvolverá dentro de você. Não lance em ouvidos moucos as fórmulas orais, tão eficazes quando se tratam de dominar a luxúria e conduzi-lo ao reino da pureza, onde a luz é absolutamente brilhante. Só assim você poderá desfrutar do elixir dourado e aproveitar a lua (9)A Lua segura o Coelho de Jade, e o Sol,  o Corvo; a Tartaruga e a Cobra (10) agora estão fortemente entrelaçadas. Fortes também são as forças vitais. Se você for capaz de mantê-las em seu corpo, poderá plantar lótus de ouros mesmo em meio as chamas. Reúna e faça uso reverso das Cinco Fases (11)! E quando você for bem-sucedido, poderá se tornar um Buda ou um Imortal.


Naquele momento, o mistério das origens foi revelado a Wukong. Sua mente tornou-se espiritualizada, e a felicidade desceu sobre ele. Ele registrou cuidadosamente em sua memória todas as fórmulas orais que lhe foram confiadas e, após se curvar ao seu mestre, tocando repetidamente sua testa no chão em agradecimento, saiu de seu quarto pela porta dos fundos. Ele então viu que a porção leste do céu estava começando a se encher de luz, embora os raios dourados da Via Láctea ainda fossem visíveis. Seguindo o mesmo caminho que havia trilhado horas antes, ele voltou para o seu dormitório, abriu a porta com cuidado e deslizou silenciosamente para dentro. Ele então se sentou na cama e, jogando as cobertas para o lado, começou a gritar:

— Já amanheceu! Vamos! É hora de levantar!

Eles estavam todos dormindo profundamente e ninguém sabia que Wukong havia recebido uma revelação tão extraordinária. Ele se fez de bobo o quanto pode naquele dia após se levantar, enquanto persistiu secretamente no que havia aprendido, fazendo exercícios respiratórios antes da hora de Zi e depois da hora de Wu (12).


Três anos se passaram rapidamente, e o mestre Subodhi subiu novamente ao estrado para palestrar ao seu grande número de discípulos. Nessa ocasião, dissertou sobre parábolas e discussões escolásticas, dando especial atenção à densa rede de inter-relações da conduta externa. Quando ele parecia estar absorvido com aquele assunto, ele parou de repente e perguntou:

— Você pode dizer onde Wukong está?

— Aqui, professor respondeu o próprio Wukong, aproximando-se do estrado e ajoelhando-se.

— Que tipo de arte você tem praticado ultimamente? — perguntou novamente Subodhi.

— Seu discípulo respondeu Wukong mais uma vez recentemente começou a compreender a natureza de tudo o que existe, lançando assim bases sólidas para sua construção infindável de conhecimento.

— Se em sua busca pelas origens você já penetrou na natureza do darma, afirmou Subodhi, maravilhado significa que, de fato, você está dentro da substância divina. No entanto, você deve se proteger contra o perigo das três calamidades.

Ao ouvir isso, Wukong começou a meditar e, após longa deliberação, finalmente ousou dizer:

— Receio que suas palavras não sejam totalmente precisas, pois tenho ouvido dizer com bastante frequência que quem é versado no conhecimento do Tao e se destaca na prática da virtude gozará da mesma idade que os Céus; fogo e água não poderão lhe causar o menor mal e doença alguma o fará mal. Sendo assim, como é possível que exista esse perigo das três calamidades?

— O que você aprendeu não é magia comum — respondeu o mestre Subodhi. — O que você fez foi apoderar-se dos próprios poderes criativos do Céu e da Terra e penetrar nos mistérios obscuros do sol e da lua. Garanto a você que o seu sucesso em aperfeiçoar o elixir é algo que os deuses e demônios simplesmente não podem tolerar. Embora sua aparência seja preservada e sua idade prolongada, uma vez que quinhentos anos tenham passado, o Céu enviará a calamidade do trovão para atingi-lo. Portanto, você deve ser inteligente e sábio o suficiente para evitá-la antes do tempo. Se você puder escapar, sua idade será de fato igual à do Céu; caso contrário, sua vida terá chegado ao fim. Passados mais quinhentos anos, o Céu enviará a calamidade do fogo para queimá-lo. Esse fogo não é natural nem comum; seu nome é o Fogo de Yin, e surgirá de dentro das solas de seus próprios pés, ascendendo pelo seu corpo até atingir até a cavidade de seu coração, reduzindo suas entranhas a cinzas e seus ossos à ruína total.  Dessa forma, o árduo trabalho de um milênio terá sido completamente supérfluo. Passados mais quinhentos anos, a calamidade do vento será enviada para soprar em você. Não é o vento do norte, sul, leste ou oeste; nem é um dos ventos das quatro estações; nem é o vento das flores, salgueiros, pinheiros e bambus. É chamado de Vento Poderoso, e entra no corpo pelo topo do crânio, passa pelo diafragma e circula livremente por suas nove aberturas (13). Sua carne e ossos se dissolverão como cera e todo o seu corpo desaparecerá. Você deve, portanto, evitar essas três calamidades a todo custo.

Assim que Wukong ouviu isso, seu cabelo se arrepiou e, ajoelhando-se respeitosamente diante de seu mestre, disse:

— Peço-lhe que tenha pena de mim e me ensine o caminho para evitar essas três calamidades. Se o fizer, juro-lhe que nunca me esquecerei de tão grande favor.

— O que você me pede não é tão difícil de conseguir — respondeu Subodhi. — Só que, como você é diferente das outras pessoas, não posso ensiná-lo.

— Em que eu sou diferente das outras pessoas? — Wukong protestou. Tenho uma cabeça redonda apontando para o céu, e pés quadrados caminhando sobre a Terra. Também tenho quatro membros, nove aberturas e entranhas como as que um homem possui. O senhor pode me explicar que diferenças existem entre mim e os outros?

— Embora você certamente pareça um homem respondeu Subodhi — , seu rosto é um pouco encovado.

Os macacos realmente têm um rosto angular, bochechas quase planas e uma boca muito protuberante. Wukong tocou seu rosto com a mão e, rindo, respondeu:

— O senhor não levou tudo em consideração. Embora seja verdade que tenho o rosto mais encovado que o dos humanos, tenho a boca mais saliente, o que, de certa forma, me serve de consolo.

— Muito bem. Não falemos mais nisso disse então Subodhi. — Qual método você estaria interessado em aprender? De um lado, temos a Arte da Concha Celestial, que abrange trinta e seis transformações, e do outro a Arte da Multidão Terrestre, que abrange setenta e duas.

— Seu discípulo quer tirar o máximo proveito disso confessou Wukong — , então desejo aprender a Arte da Multidão Terrestre.

— Nesse caso —  concluiu Subodhi — aproxime-se que lhe ensinarei algumas fórmulas. Então sussurrou ao ouvido de Wukong algo que nenhum de nós jamais ouviu.

O Rei dos Macacos, porém, pertencia àquela classe de pessoas que, tendo aprendido uma única coisa, são capazes de deduzir instantaneamente outras centenas. Ele imediatamente memorizou as fórmulas e, depois de praticá-las com singular constância, dominou todas as setenta e duas transformações.

Um dia, quando Subodhi e vários de seus discípulos admiravam o anoitecer em frente à Caverna das Três Estrelas, o mestre perguntou de repente:

— Como vão seus treinos, Wukong?

— Graças à profunda benevolência de meu mestre, seu discípulo finalmente alcançou a perfeição — respondeu Wukong. — Agora sou capaz de me elevar no ar como a névoa e voar.

— Deixe-me ver como você voa pediu o mestre.


Ansioso para exibir suas habilidades, Wukong se elevou a uma altura de mais de cinquenta metros, num salto que ele completou com uma graciosa cambalhota. Ele então caminhou pelas nuvens pelo tempo que geralmente dura uma refeição e viajou uma distância de cerca de três milhas antes de descer novamente e ficar diante de seu mestre.

— Isso, mestre, é o que eu chamo de voar na altura das nuvens! disse Wukong satisfeito, enquanto cruzava os braços na altura do peito e se curvava perante Subodhi.

— Isso não pode ser chamado de voar pelas nuvens! exclamou Subodhi, deixando escapar uma gargalhada. — Você deveria chamar isso de rastejar pelas nuvens. Como diz um antigo ditado,"o imortal viaja pelo Mar do Norte pela manhã e chega a Tzang-Wu à noite". Se você leva metade de um dia para percorrer apenas três milhas, é natural concluir que o que você faz é rastejar pelas nuvens. 

— O que o senhor quer dizer com "o imortal viaja pelo Mar do Norte pela manhã e chega a Tzang-Wu à noite"? — perguntou Wukong.

— Aqueles que podem verdadeiramente voar através das nuvens - explicou o mestre - são capazes de deixar o Mar do Norte pela manhã, viajar pelo Leste, Oeste e Sul e retornar a Tzang-Wu, lugar que na verdade se refere a Ling- Ling, que está localizado no Mar do Norte. Você poderá afirmar com propriedade que é capaz de viajar pelas nuvens, quando puder percorrer os quatro mares em um único dia. Caso contrário, tudo o que você faz é rastejar. 

— Mas isso é extremamente difícil! — Wukong exclamou.

—  Não existe nada difícil no mundo — declarou Subodhi. Nossa mente é quem faz com que muitas coisas pareçam assim.

Ao ouvir essas palavras, Wukong prostrou-se diante de seu mestre, e batendo repetidamente sua testa no chão, implorou humildemente.

— Mestre, se fazes um favor a alguém, é natural que o faça por completo. Eu imploro que, em sua grande misericórdia, o senhor tenha a gentileza de me ensinar as técnicas que facilitam o vôo através das nuvens. Se o fizer, tenha certeza de que serei grato ao senhor para sempre.

— Quando os imortais querem voar pelas nuvens — explicou Subodhi — , a primeira coisa que fazem é bater os pés no chão e em seguia eles se elevam. Você, ao contrário, dá um salto. Então, para ensiná-lo a voar sobre as nuvens, terei que me acomodar ao seu jeito peculiar de trabalhar.

Wukong enterrou ainda mais o rosto na poeira e intensificou seus apelos. Comovido, o venerável Subodhi confiou-lhe uma fórmula oral, dizendo:

— Faça o sinal mágico, recite o feitiço, feche o punho com força, sacuda o corpo e assim, quando você pular, a cambalhota que você der o levará a uma distância de cento e oito mil milhas.

Quando os outros discípulos presentes ouviram isso, exclamaram invejosos:

— Que sorte tem Wukong! Se aprender esse pequeno truque, poderá ganhar a vida levando cartas de um lugar para outro e entregando os documentos que lhe forem confiados. Como isso já tem o futuro garantido.

Começou a escurecer, e o mestre retirou-se para a caverna acompanhado de seus discípulos. Wukong, porém, praticou os ensinamentos recebidos durante toda a noite sem parar, até conseguir dominar a técnica de saltar entre as nuvens. A partir de então, ele gozou de total liberdade, desfrutando de seu recém-adquirido status de imortal.

Um dia, no início do verão, todos os discípulos se reuniram para discutir debaixo dos pinheiros, quando resolveram perguntar a Wukong:

— Podemos saber, Wukong, que tipo de méritos você acumulou em sua reencarnação anterior para que o mestre sussurrasse em seu ouvido outro dia sobre como evitar as três calamidades? Você já aprendeu tudo o que ele te ensinou?

— Claro que sim! —  respondeu Wukong, sorrindo. — Vocês sabem que sou incapaz de enganar alguém, e muito menos vocês, que são meus irmãos. Graças, em primeiro lugar, aos ensinamentos do mestre e depois à minha própria dedicação, pude dominar tudo o que ele me ensinou.


— Por que não aproveita agora que estamos todos reunidos e nos dá uma pequena demonstração? — sugeriu um dos discípulos.

Wukong ficou profundamente lisonjeado, e de bom grado começou a exibir seus novos poderes.

— Escolham vocês mesmos — disse Wukong. — O que vocês querem que eu me torne?

—  Por que não se transforma em um pinheiro? eles sugeriram novamente.

Wukong fez o sinal mágico, pronunciou o feitiço, sacudiu o corpo e instantaneamente se transformou em um pinheiro. Tinha uma copa tão larga que os vapores das quatro estações se acumulavam nela. Sua altura era tal que se perdia na pureza imaculada das nuvens. Aquela árvore não lembrava em nada o macaco travesso de onde havia emergido, tanto que seus galhos exibiam o estrago causado pela ação das geadas e da neve.


Assim que se recuperaram da surpresa, os discípulos começaram a bater palmas e a rir como loucos, enquanto exclamavam maravilhados:

— Que macaco extraordinário! É absolutamente incrível!

Eles ficaram tão animados que não perceberam que seus gritos haviam perturbado a meditação de seu mestre, que veio até eles correndo e brandindo seu cajado.

— Posso saber quem está criando tanto alvoroço? — perguntou Subodhi com raiva. Sua voz soava tão autoritária que os discípulos pararam de rir, arrumaram suas roupas da melhor maneira possível e se curvaram respeitosamente diante dele. 


Wukong retomou sua forma habitual e, abrindo caminho entre seus companheiros, disse:

— Para sua informação, respeitável mestre, estamos aqui reunidos discutindo. Não há ninguém entre nós que não pertença ao grupo de seus humildes servos.

— Então são vocês que estão gritando e berrando, comportando-se de maneira totalmente imprópria para pessoas consagradas à prática da Grande Arte! berrou Subodhi. Vocês não sabem que quem cultiva o Tao não deve abrir a boca para não perder a força vital, nem mover a língua para evitar todo tipo de discussão? Por que vocês estavam rindo de uma forma tão vulgar?

— Não ousamos esconder isso do mestre — , disseram todos em coro, menos Wukong. — Estavamos nos divertindo com Wukong, que de bom grado aceitou nos dar uma demonstração de seus poderes extraordinários. Sugerimos que ele se transformasse em um pinheiro, e ele o fez sem questionar. Ficamos tão empolgados que começamos a bater palmas como loucos, e acabamos incomodando o senhor. O que mais nos resta se não implorar humildemente pelo seu perdão?

— Saiam todos da minha frente voltou a berrar o mestre Subodhi — , menos você, Wukong. O que você pretendia obter se transformando em um pinheiro? Você acha que eu te ensinei aquela habilidade especial para divertir as pessoas? Suponha que você visse alguém com essa habilidade. Você não iria imediatamente perguntar a ele como a adquiriu? Da mesma forma, quando os outros virem que você possui essa habilidade, eles virão implorar. Se você tiver medo de recusá-los, revelará a eles o segredo; e se não o fizer, eles podem machucá-lo. Por causa de sua incompreensível irresponsabilidade, você colocou sua vida em risco.

— Eu imploro ao mestre que me perdoe implorou Wukong, batendo a testa no chão.

— Não irei condená-lo afirmou Subodhi , mas você deve deixar esse lugar imediatamente.


Quando Wukong ouviu isso, lágrimas começaram a escorrer de seus olhos.

— Para onde devo ir, mestre? — perguntou, soluçando.

— Ao lugar de onde vieste respondeu-lhe Subodhi. É para lá que você deve retornar.

— Eu vim de Purvavideha, o Continente Oriental, declarou Wukong, com sua memória refrescada pelas palavras do mestre - da Caverna da Cortina de Água da Montanha das Flores e Frutos, que fica no país de Ao-Lai!

—  Volte para lá o mais rápido possível e salve sua vida! aconselhou-lhe Subodhi. Você não pode mais ficar aqui!

— Permita-me dizer-lhe, meu respeitável mestre disse Wukong, com todo o respeito — , que estive longe de casa por vinte anos e certamente desejo ver meus súditos e seguidores de tempos passados novamente. Mas, apesar de tudo, não ouso ir embora, pois não lhe agradeci o suficiente pela profunda generosidade com que sempre me tratou.

— Não há nada para agradecer — disse Subodhi, tratando de tranquilizá-lo. — Só peço que não se meta em encrencas e, se não puder evitá-las, nunca mencione meu nome a ninguém.

Vendo que não havia mais o que fazer, Wukong fez uma reverência ao mestre e se preparou para deixar a companhia de seus discípulos.

— Após deixar este lugar antecipou Subodhi mais cedo ou mais tarde você acabará cometendo maldades. Não me importa em que tipo de atos criminosos você estará envolvido, mas eu o proíbo de mencionar que você foi meu discípulo. Se você dizer metade do meu nome, você pode ter certeza seu macaco miserável, que eu irei descobrir e lhe esfolarei vivo. Eu quebrarei cada um dos seus ossos e banirei sua alma para o Lugar das Nove Trevas, do qual você não será libertado mesmo depois de sofrer dez mil tormentos!

— Jamais ousarei mencionar o nome de meu mestre —  declarou Wukong. — Direi que eu aprendi tudo o que sei sozinho.


Após agradecer ao mestre, Wukong se virou, fez o sinal mágico, elevou-se ao céu e saltou sobre as nuvens. Ele partiu direto para Purvavideha e em menos de uma hora ele já podia avistar a Montanha das Flores e Frutos e a Caverna da Cortina de Água. Muito feliz, o Belo Rei Macaco disse para si mesmo:

— Oprimido pelo peso de meus ossos mortais, um dia deixei este lugar. Agora volto a ele leve como uma pluma graças à influência do Tao. Que pena que neste mundo de calamidades e infortúnios ninguém se decida a revelar o mistério da imortalidade, tão claro a todos que o buscam! Como foi difícil para mim cruzar o oceano na ida e com que facilidade o fiz hoje na minha viagem de volta! As palavras de despedida ainda ecoam em meus ouvidos, e já posso ver as profundezas que cercam o Continente Oriental. Jamais imaginei que tornaria a vê-los tão cedo!

Wukong desacelerou sua nuvem e pousou bem no centro da Montanha das Flores e Frutos. Mal pisara nela, começou a ouvir o grunhido das garças e o choro dos macacos; enquanto o canto das garças se elevava claramente aos céus, o lamento dos macacos enchia seu espírito de profunda tristeza. Ele ergueu a voz e disse:

— Estou de volta, meus queridos pequeninos! Mais uma vez estou entre vós!


Imediatamente, dezenas de milhares de macacos de todos os tamanhos começaram a sair dos penhascos, da beleza selvagem das flores e arbustos, e das densas florestas e árvores, e não perderam tempo em cercar o seu Belo Rei. Todos se prostraram diante dele, batendo com a testa no chão, enquanto gritavam:

— Grande Rei! Que descuido o seu! Por que se ausentou por tanto tempo e nos deixou aqui desejando sua volta como quem tem fome e sede? Recentemente, fomos maltratados por um monstro, que desejava dominar nossa Caverna da Cortina de Água. Desesperados, lutamos com ele com todas as nossas forças. Apesar de tudo, ele,se apoderou de muitos dos nossos bens, sequestrou vários de nossos filhos e nos privou do descanso necessário, obrigando-nos a guardar nossos bens. dia após dia e noite. Que sorte nosso grande rei ter retornado! Se o grande rei demorasse a retornar mais um ano, nossa caverna teria sido completamente tomada por aquele monstro.


Assim que Wukong ouviu isso, ele se encheu de ódio e perguntou:

— Que tipo de monstro é esse que se comporta de forma tão imprudente? Contem-me em detalhes e eu juro que irei vingá-los!

— Saiba, grande Rei — disseram os macacos, ainda batendo com a testa no chão — , que aquele monstro se auto-denomina o "Rei Demônio da Confusão",  e que mora ao norte daqui.

— A que distância aproximadamente? perguntou Wukong.

— Não sabemos! responderam os macacos, assustados. Ele aparece de repente como a nuvem e vai embora como a névoa, como o vento e a chuva, como o relâmpago e o trovão. 

— Nesse caso, — disse Wukong — vão brincar um pouco. Não tenham medo, eu irei cuidar desse sujeito.

Com um salto, o Rei dos Macacos elevou-se novamente aos céus, e dando uma cambalhota sobre as nuvens, rumou em direção ao norte, até que finalmente avistou uma montanha alta e íngreme. Seu topo pontiagudo parecia cortar o ar, como uma gigantesca faca de pedra. Pequenos riachos fluíam de suas encostas, mergulhando descontroladamente sobre penhascos de profundidade incalculável. Nas suas águas turbulentas avistavam-se miríades de flores e árvores carregadas de elegância exótica. Em alguns pontos, os pinheiros combinavam com o verde dos bambus. À esquerda, os dragões pareciam extremamente dóceis e calmos, enquanto à direita os tigres mostravam sinais de gentileza e submissão. Bois de aço aravam a terra, enquanto flores de ouro cresciam por toda parte. O ar carregava cantos melodiosos de pássaros estranhos, enquanto a fênix enfrentava a dureza do sol. Com o martelar contínuo do tempo, a água alisava e polia as rochas, que ora assumiam formas grotescas, ora formas estranhas e ferozes. O mundo está repleto de montanhas magníficas onde as flores nunca param de amadurecer e crescer, de se abrir e de morrer. Nenhum lugar, porém, era comparável àquele. Olhando para ele, tinha-se a impressão de que nunca havia sido tocado nem pelas quatro estações, nem pelas Oito Épocas (14). Dentro das Três Regiões (15) estava o Monte da Primavera do Norte, onde está localizada a Caverna do Ventre D'água, que se alimenta das Cinco Fases (16).

O Belo Rei Macaco observava silenciosamente a paisagem quando ouviu alguém falando. Ele desceu a montanha para investigar quem era e acabou descobrindo a Caverna do Ventre d'Água, no sopé de um penhasco íngreme. Vários diabinhos dançavam na frente da caverna, e quando viram Wukong, começaram a fugir correndo.


— Parem! exclamou Wukong. Antes de se esconderem, vocês devem ouvir as palavras que desejo transmitir. Eu sou o Senhor da Caverna da Cortina de Água na Montanha das Flores e Frutas ao sul daqui. Seu Rei Demônio da Confusão, ou como quer que ele seja chamado, repetidamente intimidou meus filhos, e eu trilhei meu caminho até aqui com o propósito específico de ensinar-lhe boas maneiras.

Ao ouvir isso, os diabinhos correram para a caverna e começaram a gritar:

— Soberano senhor, algo desastroso aconteceu!

— Que desastre? — perguntou, surpreso, o Rei Demônio da Confusão.

— Do lado de fora da caverna há um macaco que se auto-proclama Senhor da Caverna da Cortina de Água, localizada na Montanha das Flores e Frutos. Ele diz que você tem incomodado seus súditos e que ele veio acertar suas contas.

O Rei Demônio da Confusão riu e disse rudemente:

— Muitas vezes ouvi esses macacos falando que tinham um rei que partiu para aprender os segredos da Grande Arte. Ao que parece, ele acabou de voltar. Você pode me dizer como ele está vestido e que tipo de armas ele usa?

— Ele não usa nenhuma arma, grande senhor — responderam os diabinhos. — Ele está sem capacete, veste uma túnica vermelha com uma faixa amarela e um par de botas pretas. Ele não parece nem um monge, nem um leigo, nem um taoísta, nem um imortal. Ele é tão louco que está lá fora fazendo exigências de mãos nuas e punhos vazios.

Quando o Rei Demônio da Confusão ouviu isso, ele ordenou a seus diabinhos, sorrindo maliciosamente:

— Tragam-me as minhas armas e a minha couraça.

Os diabinhos obedeceram sem questionar e o ajudaram a colocar a couraça e o capacete. Quando tudo estava pronto, ele pegou sua cimitarra e saiu da caverna, seguido por todos os seus súditos.

— Onde está o Senhor da Caverna da Cortina de Água? — perguntou, levantando a voz e arregalando os olhos o máximo que podia.


Wukong notou imediatamente que o monstro usava um capacete de ouro preto na cabeça, no qual os raios do sol reverberavam. Seu corpo estava coberto por uma túnica de seda, também preta, que balançava ao capricho da brisa. Seu peito era protegido por uma armadura de ferro negro, presa aos flancos por cintas de couro de ferro. Seus pés calçavam botas perfeitamente acabadas, tão grandes quanto as usadas pelos guerreiros mais famosos da história. Ele tinha cerca de nove metros de altura e a circunferência de sua cintura ultrapassava os seis metros. Em suas mãos ele carregava uma espada com uma lâmina afiada e um acabamento perfeito. Não havia dúvida. Esse era, pelo temor que inspirava e pelo medo que despertava, o Rei Demônio da Confusão.

— De que te servem olhos tão grandes, se não consegues ver um velho macaco? — zombou o Rei dos Macacos.

O Rei Demônio da Confusão virou-se para ele e, ao vê-lo, desatou a rir e exclamou:

— Você mal tem um metro e meio, duvido que tenha chegado aos trinta anos, e aparece diante de mim de mãos vazias. Não entendo como pode ser tão insolente! Com o que você planeja me derrotar? Com sua arrogância?

— Que monstro idiota você é! Wukong respondeu. — Isso mostra que você é tão cego quanto uma minhoca. Você pensa que sou pequeno, mas não sabe que posso atingir a altura que eu desejar. Você pensa que estou totalmente desarmado, mas não sabe que somente com minhas mãos sou capaz de arrancar a lua de seu lugar no céu. Mas não se preocupe. Apenas prove a força dos punhos deste velho macaco.


Mal terminou de dizer essas palavras, Wukong se elevou nos ares e desferiu um golpe terrível no rosto do monstro. Com incrível agilidade, o Rei Demônio da Confusão deu um passo para o lado e disse, zombeteiramente:

— Para mim você não passa de um anão ridículo. Se você quiser usar apenas os punhos, é com você mesmo. Prefiro usar minha cimitarra. Embora, ao olhar para ela, vejo que seria muito fácil para mim dividir você em dois com ela. Então, deixemos ela de lado, e meçamos nossa força com nossos punhos.

— Bem falado respondeu Wukong. Vamos! O que você está esperando para me atacar?

O Rei Demônio da Confusão saltou e desferiu um de seus golpes, do qual Wukong se esquivou com maestria inigualável. 


O Rei Macaco então se lançou sobre ele e os dois se envolveram em um corpo a corpo aterrorizante. Wukong sabia que era fácil errar golpes à distância, enquanto os de curto alcance eram certeiros e mais eficazes. Desta forma, ele conseguiu acertar uma série de socos em suas costelas, chutou seu traseiro e quebrou várias de suas juntas, o que fez o demônio cambalear. 


Sentindo-se pressionado, o Rei Demônio deixou o acordo de lado e pegou sua cimitarra. Ele a brandiu com as duas mãos, e com ela mirou a cabeça de Wukong, que conseguiu se abaixar quando a lâmina estava prestes a penetrar sua carne. Vendo que a ferocidade de seu inimigo estava aumentando, decidiu usar a técnica conhecida como "Corpo Além do Corpo". Sem perder tempo, arrancou alguns fios de cabelo, meteu-os na boca, mastigou-os em pedaços minúsculos e, cuspindo-os bem alto, gritou:

— Transformem-se!

Imediatamente, os fios de cabelo se tornaram duzentos ou trezentos macaquinhos, que começaram a circular em torno dos dois lutadores. Quando alguém adquire o corpo de um imortal, é capaz de projetar seu próprio espírito, mudar de forma e realizar todo tipo de maravilhas. Uma vez que o Rei dos Macacos alcançou a plena compreensão da Grande Arte, cada um dos oitenta e quatro mil pelos de seu corpo tinha a propriedade de adquirir a forma ou substância que ele desejasse. Os pequenos macacos que ele acabara de criar tinham uma visão tão aguçada e uma rapidez de movimento que espadas e lanças eram impotentes contra eles. 


Com uma velocidade espantosa, eles correram em direção ao Rei Demônio da Confusão e o cercaram, uns o abraçando, outros o puxando, outros ainda rastejando entre suas pernas e puxando seus pés. Eles o chutaram, socaram, puxaram seu cabelo, cutucaram seus olhos, beliscaram-lhe o nariz. Todos eles formavam uma massa confusa ao seu redor, cujo único propósito era distrair a atenção do Rei Demônio da Confusão. Aproveitando a confusão, Wukong arrancou a cimitarra de suas mãos e, brandindo-a bem alto no ar, desferiu um tremendo golpe na cabeça do monstro, que instantaneamente caiu no chão dividido em duas partes iguais. Depois, Wukong se voltou contra os diabinhos que correram para se esconder dentro da caverna, matando a todos sem exceção. 


Terminada a batalha, Wukong sacudiu o seu corpo e os pelos que ele havia transformado em macacos recobraram sua forma original e retornaram ao seu corpo. Wukong então notou que alguns macacos não voltaram a ser pelos. Esses macacos eram na verdade alguns que foram sequestrados da Caverna da Cortina de Água pelo Rei Demônio da Confusão.

— O que vocês fazem aqui? — perguntou Wukong a eles.

Em lágrimas e soluçando, os cerca de cinquenta macacos que ali estavam responderam: 

— Assim que o Grande Rei partiu em busca da imortalidade, o monstro apareceu e nos assediou por mais de dois anos, até que finalmente nos obrigou a vir para cá com todos os nossos pertences. Você não percebeu que aqueles utensílios que estão espalhados pelo chão na verdade pertencem à nossa caverna? Veja, por exemplo, aqueles potes e tigelas de pedra. Eles foram todos roubados de nós por ele.

— Se o que dizem é verdade, recolham tudo o mais rápido possível ordenou Wukong, que em seguida ateou fogo à Caverna do Ventre d'Água. Não demorou muito para que ela fosse completamente reduzida à cinzas. 


Wukong então voltou-se para seus súditos e ordenou-lhes: 

— Sigam-me. É hora de voltar para casa.

— Grande Rei disseram os macacos — , quando chegamos aqui, tudo o que sentimos foi o vento passando por nós, e parecemos flutuar no ar até chegarmos aqui. Não sabemos o caminho de volta. Como faremos para voltar para a nossa casa?

Wukong disse: 

— Isso tudo foi apenas um truque daquele demônio, mas não se preocupem! Agora eu sei não apenas um, mas uma centena de truques! E eu estou familiarizado com esse truque também.  Não tenham medo! Fechem os olhos e segurem firme.

O Rei Macaco recitou um encantamento, e um forte redemoinho os elevou aos céus. A viagem durou apenas uma fração de segundo, após a qual desceram das nuvens e retornaram ao solo. Voltando-se para seus súditos, Wukong disse:

— Meus pequeninos, vocês já podem abrir os olhos!

Os macacos sentiram a terra firme sob seus pés e, obedecendo ao comando de seu mestre, constataram, atônitos, que estavam novamente em seu lar. Muito felizes, eles correram por caminhos familiares para se juntar aos que os esperavam ansiosamente nas cavernas. Desta forma, a alegria floresceu novamente na Caverna da Cortina de Água. Agradecidos, todos os macacos foram ao encontro de seu rei e humildemente prestaram suas homenagens. Vinho fluia como as águas de um riacho naquele esplêndido banquete de boas-vindas, cujo prato principal era composto por frutas e bagas. 

Quando questionado sobre como havia derrotado o monstro e resgatado os jovens macacos, Wukong contou-lhes tudo sem ocultar nenhum detalhe sequer, e todos irromperam em uma enxurrada de aplausos sem fim. 

— Por onde o senhor esteve, Grande Rei? perguntaram-lhe, após os aplausos finalmente terminarem. —  Jamais imaginamos que fosse possível adquirir tais poderes.

— No ano em que vos deixei explicou Wukong naveguei pelas ondas do Grande Oceano Oriental, até finalmente alcançar Jambudvipa, o Continente Meridional. Lá, eu pude aprender sobre o estilo de vida dos humanos, aprendendo a usar essas roupas e calçados que agora uso. No entanto, oito ou nove anos se passaram e eu anda não conhecia um único princípio da Grande Arte. Então, decidi cruzar o Grande Oceano Ocidental e consegui chegar às margens de Aparagodaniya, o Continente Ocidental (17)Longa foi a minha busca, mas finalmente tive a imensa fortuna de encontrar um velho mestre que teve a delicadeza de me ensinar a fórmula para atingir a própria idade do céu e assim me tornar um imortal.

— Quão sortudo você é! exclamaram os macacos, parabenizando-o por sua conquista. — Tal sorte é difícil de encontrar mesmo depois de dez mil aflições!

— O que mais me enche de satisfação, no entanto disse Wukong novamente, sorrindo , é que toda a nossa família agora tem um nome.

— E qual é, grande rei? — perguntaram-lhe, entusiasmados.

— Sun — ele respondeu. E meu nome completo é Sun Wukong.

Ao ouvir isso, todos os macacos começaram a aplaudir e exclamar, tomados por uma alegria contagiante:

— Se o rei é o Grande Sun, então somos os Pequenos Sun. Nossa família é a Família Sun, e assim se chama nossa nação e também a nossa caverna.

Tão grande foi o entusiasmo que, para homenagear o seu rei, trouxeram tigelas de todos os tamanhos cheias de vinho de coco e de uva, além de flores e frutas de todos os tipos. Cada um dos macacos experimentou um momento solene. Eram uma família feliz, que tinham o nome admirável daquele que acabava de voltar às suas origens. Tal glória estava reservada apenas para nomes inscritos pelos deuses no céu.


Quem não sabe o que aconteceu a seguir e não conhece o destino de Wukong, deverá ouvir o que será relatado no próximo capítulo.


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Notas do Capítulo II:

  1. Subodhi foi um dos mestres míticos da meditação do vazio ou nada;
  2. Para o Budismo, Mara é o tentador, o destruidor e o maligno por excelência;
  3. A Doutrina dos Três Meios, ou Triyana, refere-se aos meios que os mortais usam para alcançar o nirvana. Distribuídos em três categorias, designam por vezes, como neste caso, todo o pensamento budista;
  4. Os grandes mestres da antiguidade costumavam usar um leque de cerdas de cervo ou de iaque para espantar moscas ou simplesmente para limpar a poeira. A partir daí o leque passou a adquirir um significado cerimonial e simbólico, sendo utilizado por mestres taoístas e budistas como expressão de sua pureza e desapego das realidades mundanas;
  5. As três escolas são o Confucionismo, o Taoísmo e o Budismo;
  6. Tanto a menstruação de uma donzela quanto a urina de um menino virgem eram utilizadas na elaboração de certos produtos alquímicos, recebendo às vezes os adjetivos "mercúrio vermelho" e "pedra outonal". "Leite de noiva" também parece ser um adjetivo, mas não encontrei correspondência para ele;
  7. A hora Dhzu corresponde ao período entre onze horas da noite a uma hora da manhã;
  8. O elixir dourado é o verdadeiro remédio da imortalidade. Como seu último estágio de refinamento acontecia dentro da pessoa que o bebia, também era chamado de elixir interno;
  9. Além de ser um símbolo de perfeição, a lua aqui refere-se ao cerne dos processos de alquimia interna;
  10. Para os taoístas, a tartaruga e a cobra representam o oposto um do outro. Por isso, logo passaram a simbolizar o yin e o yang;
  11. Segundo estudiosos da alquimia interna taoísta, dentro do corpo humano existem cinco forças que correspondem às Cinco Fases, ou elementos básicos: a natureza, que está relacionada à água; o espírito, que está relacionado ao fogo; o espírito vital, relacionado à madeira; energia, relacionada ao metal; e a vontade, relacionada à terra. Se for permitido que essas forças sigam seu curso natural, elas acabam sendo transformadas em sangue e descarregadas para o exterior através do esperma ou dos fluidos vaginais. O que as práticas alquimistas perseguem é justamente retê-las dentro do corpo;
  12. A hora Wu corresponde ao período entre onze da manhã e uma da tarde;
  13. As nove aberturas do corpo são: os dois olhos, as duas narinas, as duas orelhas, a boca, a uretra e o ânus;
  14. As oito épocas são os primeiros dias da primavera, verão, outono e inverno, juntamente com os solstícios e equinócios;
  15. Para o budismo, o universo é dividido em três zonas distintas: a do desejo, a da forma e a do espírito. O termo "três regiões" serve, portanto, para designar todo o cosmos.
  16. As Cinco Fases, ou elementos básicos, eram compostas de metal, madeira, água, fogo e terra;
  17. Esta explicação não condiz com o expresso no capítulo I. Trata-se de uma incoerência do texto original, provavelmente devido à difícil harmonização das diferentes versões anteriores.

  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.

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