22 de maio de 2023

A Jornada ao Oeste: Capítulo III

۞ ADM Sleipnir


CAPÍTULO III:

OS QUATRO MARES E AS MIL MONTANHAS SE INCLINAM EM SINAL DE SUBMISSÃO. OS NOMES DE DEZ ESPÉCIES (1) SÃO APAGADOS DO INFERNO DA ESCURIDÃO DAS NOVE DOBRAS (2)


Após matar o Rei Demônio da Confusão e apoderar-se de sua enorme cimitarra, Wukong passou a praticar diariamente a arte da guerra com seus súditos, ensinando-os a fazer lanças de bambus afiados, a fazer espadas de madeira, a fazer bandeiras e estandartes e a formar patrulhas, avançando e recuando e montando acampamentos.

Por muito tempo ele os treinou nessas artes, mas um dia de repente parou de fazê-lo. Ele tornou-se taciturno e silencioso, e depois de muita deliberação chegou à seguinte conclusão:

— No momento isso é apenas um simples jogo, mas as coisas podem ficar muito sérias. Suponhamos que, sem que saibamos, ofendamos os reis dos homens ou os líderes das bestas, ou que eles simplesmente tomem esses exercícios militares como uma ameaça e peguem em armas contra nós. Como vamos enfrentá-los com lanças de bambu e espadas de madeira? Devíamos possuir armas de verdade, como espadas afiadas e alabardas. Como poderíamos fazer para obtê-las?

Wukong fez essas reflexões em voz alta, e o nervosismo imediatamente tomou conta de todos os seus súditos.

— O senhor tem razão - disseram eles, alarmados -,  mas não há um lugar onde possamos consegui-los.

Mal tinham acabado de dizer isso, quando quatro dos macacos mais velhos - duas fêmeas de nádegas vermelhas e dois gibões com o torso sem pelos - avançaram, curvaram-se ante o rei e disseram respeitosamente:

— Se é isso que os preocupam, não há nada mais fácil de resolver.

— Sério? — exclamou Wukong, surpreso.

— Isso mesmo, senhor - responderam os quatro macacos. À duzentas milhas de nossa montanha, viajando na direção leste, está o país de Ao-Lai. Nele, existe um rei cujo exército é formado por incontáveis ​​soldados e homens, e certamente os ferreiros de seu reino devem chegar aos milhares. Se o senhor fosse até lá, poderia comprar as armas de que precisamos ou, em último caso, encomendá-las. Desta forma, não seria muito difícil para o senhor nos instruir posteriormente em seu uso e, assim, estaríamos prontos para defender esta montanha contra qualquer intruso e manter a paz e a tranquilidade por muito tempo.

Essas palavras trouxeram a alegria de volta a Wukong, que se apressou em dizer a seus súditos:

— Fiquem aqui e divirtam-se! Creio que vou fazer uma pequena viagem.

Mal acabara de dizê-lo, Wukong rapidamente deu seu salto nas nuvens e num instante percorreu os trezentos quilômetros (3) que o separavam do local que os seus conselheiros lhe haviam indicado. Ali estava, de fato, uma cidade de ruas largas, mercados impressionantemente grandes, casas praticamente incontáveis ​​e numerosas galerias. Um enxame de pessoas preenchia cada canto, totalmente alheias à pureza do céu e à dureza do sol.

—  Deve haver muitas armas não muito longe daqui  disse Wukong a si mesmo. — O melhor seria descer e comprá-las, mas isso seria muito mais complicado do que obtê-las por meio de minhas artes mágicas.

Ele imediatamente fez o sinal mágico que havia lhe dado tão bons resultados em ocasiões anteriores e recitou o encantamento que o completava. Então ele virou para o sudoeste e, depois de encher os pulmões de ar, soprou com toda a sua força. Imediatamente surgiu uma forte ventania que arremessava seixos e rochas como se fossem palha. Seu poder era aterrorizante. Ao mesmo tempo, uma densa camada de nuvens se formou sobre a terra, escurecendo-a completamente. Dos mares e rios surgiram nuvens tão altas que até os peixes e caranguejos sentiram o peso do terror. Nas florestas montanhosas, os galhos se quebravam aos milhares, deixando tigres e lobos em pânico. Nem um único homem podia ser visto em lugar algum. Os mercadores e comerciantes abandonaram suas lojas e armazéns e fugiram aterrorizados. O próprio rei deixou a sala do trono, retirando-se correndo para sua câmara, enquanto todos os oficiais do reino voltaram para suas casas e se trancaram nelas. O vento era tão forte que sacudiu o trono milenar de Buda e abalou as fundações da Torre das Cinco Fênixes.

Todos no país de Ao-Lai, desde o rei até o mais insignificante de seus súditos, estavam aterrorizados. Por toda parte, as famílias se trancavam atrás da segurança das portas de suas casas, e das quais ninguém ousava sair. Wukong diminuiu a velocidade da nuvem em que viajava e entrou no palácio imperial pelo portão principal. Não demorou muito para encontrar a sala de armas. Com um único golpe, derrubou o pesado portão que a trancava e viu que lá dentro estavam empilhadas inúmeras armas de todos os tipos e tamanhos: cimitarras, lanças, espadas, machadinhas, foices, chicotes, baquetas, tambores, arcos, flechas, entre muitas outras armas. Tal visão satisfez completamente Wukong, que disse a si mesmo novamente:

— Não sei por onde começar. Há tanto material aqui que é melhor eu usar minha magia para transportá-lo.

Wukong então arrancou um punhado de fios de cabelo, mastigou-os em pedacinhos e depois cuspiu-os, recitando o feitiço e gritando com
todas as suas forças:

— Transformem-se!

Eles instantaneamente se transformaram em macaquinhos, que começaram a se apossar das armas. Os mais fortes carregavam seis ou sete armas, enquanto os mais fracos só conseguiam carregar duas ou três. Mas todos agiram com tanta eficácia que, em poucos segundos, o que parecia ser o maior arsenal do mundo ficou vazio. Wukong subiu novamente em sua nuvem e, após recitar algumas palavras mágicas, convocou um forte vento e levou todos os macaquinhos para casa com ele. 

Os macacos da Montanha das Flores e Frutos brincavam do lado de fora dos portões da caverna quando ouviram o forte assobio do vento, e ergueram a cabeça surpresos. Ao verem incontáveis ​​macacos voando pelo ar em sua direção, eles entraram em pânico e fugiram em todas as direções. Um momento depois, o Belo Rei Macaco pousou sua nuvem, sacudiu seu corpo e os macacos que vieram consigo se tornaram outra vez pêlos, os quais se juntaram ao seu corpo novamente. Após empilhar as armas na frente da montanha, Wukong gritou:

— Pequeninos! Venham e recebam suas armas!

Vencendo o medo, os macacos colocaram suas cabeças para fora de seus abrigos e viram Wukong, sozinho, de pé em terra firme. Eles logo se aproximaram dele e, depois de cumprimentá-lo com muito respeito, perguntaram-lhe o que havia acontecido. Wukong então contou-lhes sobre como tinha usado um vento poderoso para transportar as armas até ali.

Após expressar sua gratidão, os macacos imediatamente se lançaram sobre o precioso aço trazido recentemente do distante país de Ao-Lai. Enquanto alguns agarravam as cimitarras, outros pegavam nas espadas, machados e lanças, puxavam os arcos e deixavam as flechas voarem livremente. Os macacos passaram o dia inteiro brincando com armas, tão empolgados que não pararam de gritar um só segundo. Na manhã seguinte formaram filas e Wukong os contou um a um. Dessa forma, pôde verificar que seu exército era composto por quarenta e sete mil infantes. Tal força impressionou fortemente todos os animais da montanha - lobos, insetos, tigres, leopardos, veados de todos os tipos, raposas, gatos selvagens, leões, elefantes, macacos, ursos, antílopes, javalis, búfalos verdes de um chifre, éguas selvagens e mastins gigantes. 

Liderados pelos reis demônios de setenta e duas cavernas, todos eles se reuniram para prestar homenagem ao Rei Macaco. A partir de então eles prestavam-lhe homenagens todos os anos e atendiam a sua chamada no início de cada uma das quatro estações. Alguns deles também participavam de exercícios militares, enquanto outros forneciam provisões. Tudo estava tão organizado que a Montanha das Flores e Frutos era tão segura quanto uma parede de metal. Os vários reis demônios se encarregaram de oferecer-lhes gongos, tambores, bandeiras coloridas, capacetes e armaduras em grande abundância, e todos os dias haviam exercícios militares.

Mas o Belo Rei dos Macacos não estava satisfeito. Ele reuniu todos os seus seguidores e disse-lhes:

— Agora todos vocês são adeptos do uso do arco e flecha, e proficientes no uso de armas. Porém, esta cimitarra não me agradou muito. Ela é meio grande e desajeitada. O que posso fazer para resolver isso?

Os quatro macacos anciãos se aproximaram dele e disseram:

— O senhor é um sábio celestial, e é natural que não ache as armas da terra do seu agrado. Nos perguntamos, no entanto, se o senhor seria capaz de empreender uma longa jornada através dos mares.


— Dado que domino perfeitamente os segredos do Tao — disse Wukong — , as setenta e duas transformações não me oferecem nenhum mistério. O salto acima das nuvens também tem poder ilimitado. Sem contar que conheço totalmente a magia das aparições e a arte da onipresença. Isso me permite caminhar livremente pelos céus, penetrar no interior da terra, mover-me sob o sol e a lua sem projetar nenhuma sombra e até entrar no coração dos minerais e das pedras. A água não pode me afogar e o fogo não pode me queimar. Como pode haver um lugar onde eu não possa ir?

— É uma sorte que o senhor tenha esses poderes disseram os quatro anciões porque a água que corre sob esta ponte de ferro flui diretamente até o Palácio do Dragão do Mar Oriental. Se o senhor estiver disposto a ir até lá, tenha certeza de que o velho rei dragão lhe fornecerá a arma de que você precisa e que, sem dúvida, será do seu agrado.


Ao ouvir isso, Wukong se encheu de alegria, e exclamou, decididamente:

— Farei essa viagem o quanto antes!

Sem pensar duas vezes, Wukong subiu no parapeito da ponte, determinado a fazer uso da magia da divisão de águas. Ele então fez um sinal mágico com os dedos e mergulhou na correnteza do rio, que se abriu como uma porta diante dele. Desta forma, não foi difícil para ele seguir o curso d'água e chegar ao fundo do Mar Oriental. 



Enquanto nadava, de repente encontrou um oficial em patrulha, que ao vê-lo lhe perguntou, surpreso:

— É possível saber que tipo de sábio é você, que empurra as águas para os lados dessa forma?  Diga-me claramente para que eu possa anunciar sua chegada.


— Sou o sábio Sun Wukong da Montanha das Flores e Frutos — respondeu o Rei dos Macacos — , um dos vizinhos de seu senhor, o velho Rei Dragão. Acho difícil acreditar que você não me conhece.

O oficial então correu para o interior do Palácio de Cristal de Água e informou a seu rei, dizendo:

— Lá fora está um sábio que diz se chamar Sun Wukong, da Montanha das Flores e Frutos, e que diz ser seu vizinho. Dado seu jeito impulsivo, não ficaria nem um pouco surpreso se ele aparecesse diante do senhor sem ser convidado a entrar.

Ao ouvir isso, Ao-Kuang, o Rei Dragão do Mar Oriental, levantou-se imediatamente de seu trono e saiu para receber tão ilustre hóspede, acompanhado de inúmeros filhos e netos de dragões da mais alta linhagem, uma coorte de soldados-camarões e o mais seleto de seus generais-caranguejo.

— Entre, imortal, e nos honre com sua companhia! — disse sua excelência.

O cortejo entrou no palácio e, após oferecer a Wukong o lugar de honra e um copo de chá, o rei Dragão perguntou-lhe com muita cortesia:

— Quando você foi instruído nos mistérios do Tao, e que tipo de magia celestial você aprendeu?


— Pouco depois de nascer, deixei minha família para me dedicar à prática da Grande Arte — respondeu Wukong -. Não é estranho, portanto, que eu agora possua um corpo sem começo nem fim. Ultimamente tenho treinado militarmente meus súditos para proteger a montanha que habitamos, mas infelizmente não consegui encontrar uma arma adequada para mim. Chegou ao meu conhecimento, no entanto, que meu honrado vizinho, que vive neste palácio de jade verde e pórticos de madrepérola desde tempos imemoriais, deve inevitavelmente possuir alguma arma celestial de sobra. Tomei justamente a liberdade de incomodá-lo, para ver se isso é verdade ou não.

O Rei Dragão não poderia ignorar um pedido tão justo. Dirigiu-se então a um dos seus comandantes-perca e ordenou-lhe que trouxesse uma cimitarra de cabo notavelmente comprido, que apresentou com deferência a tão ilustre visitante.

— Se não for um incomodo disse Wukong , eu gostaria de um tipo diferente de arma, porque, para dizer a verdade, não sou muito habilidoso com cimitarras.

O Rei Dragão ordenou novamente a um tenente-badejo e um servo-enguia para trazerem um tridente de nove pontas. Ao vê-lo, Wukong saltou de seu assento, agarrou-o com as duas mãos e praticou alguns golpes. Mas ele o devolveu quase que imediatamente, dizendo desapontado:

— Leve! Muito leve! Além disso, não combina com a minha mão. Você se importaria de me trazer outra arma?

— Tem certeza do que diz? — exclamou o Rei Dragão, soltando uma gargalhada. — Este tridente pesa mais de três mil e seiscentos quilos.

— Mesmo assim, não combina com minha mão Wukong repetiu. Não consigo dominá-lo ao meu gosto!

O Rei Dragão começou a ficar impaciente, e mais uma vez ordenou a um almirante-sargo e a um brigadeiro-carpa que trouxessem uma enorme alabarda, pesando cerca de 7 toneladas. Quando Wukong a viu, correu até ela e a pegou em suas mãos. Novamente ele praticou alguns golpes, mas sua impressão não parecia ser melhor do que da vez anterior. Desapontado, ele a cravou no chão e exclamou:

— Esta também é leve! Muito leve!

— Mas imortal! o Rei Dragão protestou, desconcertado. Em todo o palácio, não há arma mais pesada que esta alabarda.

— Vamos, vamos! — Wukong respondeu, sorrindo. — Como diz o velho ditado, "Ao Rei Dragão nunca faltam tesouros". Por favor, encontre outra arma para mim, e se você conseguir encontrar uma de que eu realmente goste, tenha certeza de que lhe oferecerei um bom preço por ela.

— Eu realmente não tenho mais nenhuma arma — insistiu o Rei Dragão.

Enquanto os dois estavam nesse cabo de guerra, a Rainha Dragão e sua filha apareceram, dizendo:

— Grande Rei, vê-se claramente que este não se trata de um sábio qualquer. Não precisamos lembrá-lo de que em nosso tesouro marinho existe um bastão de ferro mágico que marca a profundidade do Rio Celeste (4). Precisamente nestes últimos dias ele tem brilhado de uma forma muito estranha. Não seria um sinal de que deveríamos confiá-lo a um sábio tão eminente?

— Esse - explicou o Rei Dragão — é o bastão que o Grande Yu (5) usou para determinar a profundidade dos rios e mares, quando dominou o Dilúvio. Certamente é um pedaço de ferro mágico, mas que utilidade poderia ter para ele?

— Isso não nos importa respondeu a Rainha Dragão. — Entregue-o a ele e deixe-o fazer o que quiser. O mais importante agora é tirá-lo do palácio o mais rápido possível.

O Rei Dragão concordou plenamente com ela e, voltando-se para Wukong, contou-lhe a origem desse precioso tesouro.

— Se o que você diz é verdade, o que você está esperando para buscá-lo e me deixar ver? — Wukong perguntou impaciente.

— Nenhum de nós pode movê-lo! exclamou o Rei Dragão, acenando com as mãos. — É tão pesado que não conseguimos removê-lo do local. Receio que você terá que ir pessoalmente para vê-lo.

— Onde está? Wukong perguntou novamente, determinado. — Leve-me até ele o mais rápido possível.

O Rei Dragão o conduziu sem demora até o centro do tesouro do mar, de onde emanava o brilho ofuscante de mil raios de luz dourada.

— Aí está! disse o Rei Dragão, apontando para o ponto de onde surgia tal brilho extraordinário. - É aquilo que brilha como o próprio sol.

Empolgado, Wukong cingiu suas roupas e foi direto tocá-la. Analisando-a mais de perto, ele pôde comprovar que se tratava de um bastão de ferro com mais de seis metros de comprimento e com a espessura de um tonel. Reunindo todas as suas forças, ergueu-a com as duas mãos e disse:

— É muito longo e um pouco grosso. Se fosse um pouco mais fino e um pouco mais curto, seria, com certeza, ideal para o meu propósito.

Wukong mal tinha acabado de dizer isso, quando o bastão encolheu sozinho alguns metros e tornou-se misteriosamente mais fino.

— Um pouco mais seria o ideal! — disse Wukong novamente, passando-o de uma mão para a outra.

O bastão cedeu, mais uma vez, aos seus desejos. Visivelmente satisfeito, Wukong o removeu do tesouro do mar e começou a examiná-lo cuidadosamente. Dessa forma, ele descobriu que ele era feito de puro ferro negro, e que suas duas pontas eram de ouro puro. Em uma delas estava gravada a seguinte inscrição:

"O complacente bastão com pontas de ouro (6).
 Peso: treze mil e quinhentos quilos."

— Isso sem dúvida significa pensou Wukong, louco de alegria que esse bastão é capaz de satisfazer todos os meus desejos.

Enquanto caminhava, Wukong sussurrava para si mesmo, enquanto mudava o bastão de mãos:

— Seria maravilhoso, se ao menos ele fosse um pouco mais curto e um pouco mais fino.

Quando Wukong finalmente deixou a sala do tesouro do mar, o bastão não passava mais dos seis metros de comprimento, e não era mais grosso do que uma tigela de arroz. Wukong o segurou com ambas as mãos e começou a passes e estocadas no ar com ele, como se estivesse lutando contra um inimigo mortal, engajando-se em um combate simulado por todo o caminho de volta ao Palácio de Cristal de Água. O Rei Dragão estava tão apavorado que começou a tremer de medo, e as princesas dragão, em pânico, por sua vez não sabiam para onde correr. As tartarugas esconderam a cabeça dentro de suas carapaças, enquanto os peixes, camarões e caranguejos se esconderam.


Wukong, sem soltar seu precioso tesouro por um único segundo, sentou-se no Palácio de Cristal de Água e disse, sorrindo, ao Rei Dragão:

— Estou em dívida com meu esplêndido vizinho por sua extraordinária bondade.

— Não diga isso!-  implorou o Rei Dragão. Afinal, o que eu fiz por você?

— Este bastão de ferro é realmente magnífico - respondeu Wukong. — No entanto, gostaria de lhe pedir um novo favor.

— Que tipo de favor seria esse solicitado por um imortal de sua categoria? — perguntou o Rei Dragão.

— Se eu não tivesse este esplêndido bastão de ferro — respondeu Wukong — , eu não o teria mencionado. Mas agora que me tornei seu afortunado dono, percebi que as roupas que estou usando não combinam com uma arma tão magnífica. O que posso fazer? Se você tivesse algum tipo de traje guerreiro para me dar, tenha certeza de que eu lhe agradeceria de todo o coração.

— Receio não poder atender seu pedido — respondeu o Rei Dragão.

— Um único convidado é incapaz de perturbar dois anfitriões afirmou Wukong. — Mesmo que você alegue não ter o que lhe peço, saiba que estou disposto a ficar aqui até que o consiga.

— Por que você não tenta visitar algum outro mar?  — implorou o Rei Dragão. — Talvez você encontre o que deseja lá.

— Visitar três lugares é muito mais cansativo do que ficar sentado em um — disse Wukong. — Peço-lhe, portanto, que me forneça os trajes de que preciso.

— Mas eu não realmente não tenho nenhum traje — insistiu o Rei Dragão. Se eu tivesse, tenha certeza que eu já teria dado a você.

—  Então é assim? — disse Wukong em um tom ameaçador. — Você quer que eu experimente esse bastão em você?

— Não levante suas mãos contra mim! — implorou o Rei Dragão nervosamente. Não as levante. Deixe-me ver se meus irmãos têm algum equipamento militar que você goste. Se assim for, daremos a você com grande prazer.

— Quem são seus respeitáveis ​​irmãos, se é que se pode saber? — perguntou Wukong desdenhosamente.


  — Ao -Shin, o Rei Dragão do Mar do Sul, Ao -Shun, o Rei Dragão do Mar do Norte e Ao -Jun, o Rei Dragão do Mar Ocidental.

— Não irei visitá-los -, disse Wukong, decidido. — Como diz o ditado, "dois na mão é muito melhor do que três na promessa". Tudo que eu quero é que você encontre um traje apropriado e me dê. Isso é tudo.

— Lhe asseguro que você não precisa ir a lugar nenhum disse o Rei Dragão, tentando apaziguá-lo. Aqui mesmo no meu palácio tenho um tambor de ferro e um sino de ouro. Quando preciso de alguma coisa, basta soá-los e instantaneamente meus irmãos aparecem.

— Se é assim — concluiu Wukong, quanto mais cedo você bater o tambor e tocar o sino, melhor.

Um general-tartaruga saiu imediatamente para tocar o sino, enquanto um marechal fez o mesmo com o tambor. 


Os instrumentos mal haviam parado de vibrar, quando os Reis Dragões dos outros três mares apareceram no pátio externo do palácio.

— Querido irmão, o que o fez bater o tambor e tocar o sino? perguntou Ao-Shin, alarmado.

— A história é grande para contar, irmão respondeu o velho Rei Dragão. — Tenho comigo um certo sábio da Montanha das Flores e Frutos. Ele apareceu de repente diante de mim, alegando ser meu vizinho, e me pediu para fornecer-lhe uma arma adequada às suas habilidades militares. Ofereci a ele um tridente de aço e uma alabarda, mas ele achou o primeiro muito pequeno e o segundo muito leve. Por fim, ele próprio se apropriou do bastão de ferro celestial que marcava o fundo do rio Celeste e começou a agir como se estivesse no meio de uma batalha.  Agora ele está sentado no palácio e diz que não o deixará até que lhe forneça um traje adequado para a batalha. E o pior é que eu não tenho nenhum. Foi por esse motivo que toquei o tambor e o sino e os convidei para virem. Se algum de vocês tiver o que aquele sábio está procurando, eu agradeceria se vocês dessem a ele o mais rápido possível. Assim, eu posso me livrar dele de uma vez por todas.

Quando Ao-Shin ouviu isso, ele ficou com raiva e disse:

— Vamos convocar nossos exércitos e prendê-lo!

—  Nem pense em fazer uma loucura dessas! — exclamou o velho Rei Dragão, alarmado. — Eu não quero ouvir sobre isso. Um pequeno golpe com seu bastão de ferro é praticamente fatal. Apenas ao tocá-lo, sua pele seria rasgada e seus músculos seriam reduzidos a pedaços. Esta arma é invencível!

— Se é sim concluiu Ao-Jun, o Rei Dragão do Mar Ocidental — , acho que o mais prudente seria não levantar um dedo sequer contra ele. Vamos dar a ele o traje militar que ele está procurando e nos livrarmos dele o mais rápido possível. Então faremos uma queixa formal ao Céu, e ele se encarregará de dar-lhe o castigo que merece.

— Você tem razão concordou Ao-Shun, o Rei Dragão do Mar do Norte. — Aqui comigo está um par de sapatos de andar pelas nuvens, da cor da raiz de lótus.

— Trouxe comigo um peitoral e uma cota de malha dourada — disse Ao-Jun, o Rei Dragão do Mar Ocidental.

— E eu um elmo, também de ouro, coroado por um feixe de penas de fênix — disse, por sua vez, Ao-Shin, o Rei Dragão do Mar do Sul.

O rosto do velho Rei Dragão se encheu de alegria, e ele correu para o Palácio de Cristal de Água com tais presentes únicos. 

Wukong imediatamente colocou o capacete de penas de fênix, a couraça de ouro e os sapatos de andar nas nuvens e, agarrando seu bastão, abriu caminho entre os dragões, agindo como se estivesse lutando e gritando com todas as suas forças:

— Desculpem tê-los incomodado!

Os Reis Dragões dos Quatro Mares ficaram furiosos com tal comportamento imprudente. Eles entraram no palácio e escreveram uma queixa formal, a qual não discutiremos aqui no momento.

Enquanto isso, o Rei dos Macacos voltou a abrir caminho pelas águas e parou bem no topo da ponte de ferro, onde os quatro macacos anciãos esperavam pacientemente, na frente de todos os outros, por seu valente mestre. Wukong surgiu de repente, saltando da água, e não havia uma gota de água em seu corpo enquanto ele caminhava para a ponte, todo radiante e dourado.

Os macacos ficaram tão perplexos que, ajoelhando-se, começaram a gritar:

— Que maravilhas nosso grande rei é capaz de fazer! 

Radiante de satisfação, Wukong sentou-se em seu trono, colocando o bastão de ferro bem à sua frente. Como não tinham mais o que fazer, os macacos se aproximaram, tímidos, e tentaram levantar o tesouro de seu dono, porém seus esforços foram inúteis. Era como se uma libélula tivesse decidido sacudir os galhos de uma árvore de ferro. Nem um único milímetro conseguiram movê-lo. Perplexos, eles começaram a morder os dedos e a estalar a língua, dizendo:

— Como isso é pesado! Como o senhor conseguiu trazê-lo aqui?

Wukong estendeu sua mão até o bastão, e o levantou sem nenhuma dificuldade. Então, soltando uma risada, respondeu:

— Tudo tem seu dono. Esse bastão presidiu o tesouro do mar por quem sabe quantos milhares de anos. Ultimamente, vinha brilhando com persistente insistência, mas para o Rei Dragão não passava de um pedaço de ferro negro, embora não fosse segredo para ninguém que ele servia para marcar a profundidade do Rio Celestial. Nem o Rei Dragão e nem seus servos puderam movê-lo do local, e eles me pediram para que eu o fizesse sozinho. A princípio, ele não tinha mais que seis metros de comprimento e a espessura de um barril. Mas após eu expressar meu desejo de que ele fosse um pouco menor, ele imediatamente o atendeu. E não uma ou duas vezes, mas três. Quando, finalmente, pude examiná-lo melhor, vi que em uma de suas extremidades tinha gravada a seguinte inscrição: "O complacente bastão com pontas de ouro. Peso: treze mil e quinhentos quilos." Afastem-se um pouco, vou pedir para ele se transformar mais um pouco.

Ainda segurando o bastão, Wukong gritou: — Fique menor! Menor, menor! —  e ele imediatamente encolheu até ficar do tamanho de uma minúscula agulha de bordar, tão pequena que Wukong o escondeu dentro da orelha. 

Admirados, os macacos gritaram: 

— Grande Rei! Tire-o do ouvido e brinque com ele um pouco mais!

O Rei dos Macacos assim o fez. Colocou-o cuidadosamente na palma de uma das mãos e ordenou novamente:

— Fique maior ! Maior, maior!

O bastão o obedeceu imediatamente e tornou a ser tão grosso como um barril e a ter mais de seis metros de comprimento. 

Wukong ficou tão empolgado com a brincadeira que saiu correndo pela ponte e deixou a caverna. Então, segurou o bastão com força em suas mãos, e começou a realizar a magia da imitação cósmica. Ele se curvou respeitosamente, e então bem alto novamente:

— Cresça o máximo que puder!

Em um piscar de olhos, seu corpo adquiriu uma altura de três quilômetros, sua cabeça tornou-se tão grande quanto o Monte Tai, seu peito tornou-se áspero como picos escarpados, seus olhos tornaram-se raios, seus dentes tornaram-se afiados como espadas e alabardas, e sua boca parecia uma tigela de sangue. O bastão que ele segurava em suas mãos atingiu tal tamanho que sua extremidade mais alta tocou o trigésimo terceiro céu e a mais baixa alcançou o décimo oitavo nível do inferno. 

Os tigres, leopardos, lobos, todos os tipos de animais rastejantes, os monstros das montanhas e os reis demônios das setenta e duas cavernas ficaram tão assustados com tal visão que imediatamente se prostraram de rosto no chão e prestaram respeito ao Rei dos Macacos. Satisfeito com tanta submissão, Wukong retomou sua forma habitual, reduzindo ao mesmo tempo o bastão de ferro ao tamanho de uma minúscula agulha de bordar, que imediatamente guardou em sua orelha. Sem mais delongas, ele voltou para a caverna que era sua morada. Os reis demônios das outras cavernas ficaram, no entanto, tão assustados que continuaram por muito tempo a bater submissamente suas testas no chão e prestar suas homenagens.

Para comemorar o retorno de seu senhor, os macacos desfraldaram seus estandartes, tocaram tambores e soaram chocalhos e gongos com toda a força. Ao mesmo tempo, ofereceram-lhe um esplêndido banquete, ao qual não faltou nenhuma delicadeza requintada. As taças transbordavam de vinhos de frutas e do saboroso suco dos cocos. O banquete durou vários dias, até que, cansados ​​de tanto comer, resolveram retomar as práticas militares. O Rei dos Macacos fez dos quatro macacos anciões os comandantes de suas tropas, nomeando as duas fêmeas como marechais Ma e Liu, e os dois machos como generais Beng e BaAos quatro foram confiadas tarefas de tamanha importância, como a defesa do acampamento e a manutenção da disciplina entre as tropas.

Assim, o Rei dos Macacos sentiu-se completamente à vontade para voar nas nuvens e cavalgar na névoa, percorrer os quatro mares e divertir-se em mil montanhas. Exibindo sua habilidade marcial, ele fez extensas visitas a vários heróis e guerreiros, com quem estabeleceu laços de profunda amizade, valendo-se por vezes do remédio infalível da sua magia. Além disso, ele selou alianças com outros seis reis: Niú Mó Wáng, o "Rei Touro Demônio"; Jiāo Mó Wáng, o "Rei Dragão Demônio",  Péng Mó Wáng, o "Rei Peng Demônio"Shī Tuó Wáng, o "Rei Espírito Leão"Míhóu Wáng, "o Rei Espírito Macaca" e Yúróng Wáng, o "Rei Espírito Macaco Dourado". Juntamente com o Belo Rei Macaco, eles formaram uma ordem fraternal conhecida como os Sete Sábios (七聖, Qī Shèng). 

Todos os dias eles se reuniam para discutir assuntos militares e civis, brindavam sem parar à saúde de todos e cantavam e dançavam ao som de canções e instrumentos de cordas. Eles se reuniam pela manhã e se separavam à noite. Não havia um único prazer do qual eles se privassem, viajando dez mil milhas em instantes apenas para experimentar um novo. Para eles, a distância simplesmente não existia. Como diz um ditado, "um mero movimento da cabeça ultrapassa três quilômetros, enquanto uma volta do corpo equivale a oitocentos".

Um dia, os quatro comandantes foram instruídos a preparar um grande banquete em sua caverna, para o qual os outros seis reis foram devidamente convidados. Sem perda de tempo, um grande número de cavalos e vacas foram sacrificados, e depois foram oferecidos ao Céu e à Terra. Os convidados bebiam até cair bêbados no chão, enquanto grupos de diabinhos não paravam de cantar ou dançar. 


Terminado o banquete, Wukong se despediu de seus convidados e recompensou os seus comandantes com esplêndidos presentes. Ele então se deitou sob um grupo de pinheiros que cresciam orgulhosamente ao lado da ponte de ferro e logo adormeceu. Ao vê-lo descansando, seus quatro comandantes imediatamente chamaram todos os macacos e ordenaram que formassem um círculo fechado em torno de seu mestre. Ninguém ousava levantar a voz com medo de acordá-lo.


Em sonho, o Belo Rei dos Macacos viu dois homens se aproximando com uma intimação na mão na qual se podiam ler os caracteres: "Sun Wukong". Eles se aproximaram dele e, sem dizer uma palavra, amarraram-no com uma corda e o arrastaram. 


O espírito do Belo Rei Macaco resistiu o quanto pôde, mas seus esforços eram inúteis. Logo eles chegaram à periferia de uma cidade. O Rei Macaco levantou a cabeça e viu uma placa de metal na qual estavam gravadas as seguintes palavras:  "Região das Trevas. Portão dos Espíritos".

O Belo Rei dos Macacos recuperou totalmente a consciência e disse:

— A Região das Trevas é a morada de Yama, o Rei da Morte (7). Posso saber por que vocês me trouxeram aqui?

— Muito simples - responderam os dois homens. — Sua etapa no Mundo dos Vivos terminou e recebemos a ordem de prendê-lo.

 — Eu sou o Macaco e estou acima das Três Regiões e das Cinco Fases. Portanto, Yama não tem jurisdição sobre mim. Como ele poderia ter ordenado que vocês me prendessem? Ele não tem poder para isso!

Mas os homens não lhe deram atenção. Eles continuaram a empurrá-lo e puxá-lo, determinados a forçar sua entrada na cidade. Furioso com a falta de consideração com que o tratavam, Wukong sacou seu bastão de ferro, fê-lo crescer até ficar grosso como um barril, ergueu-o acima da cabeça e deixou-o cair sobre os dois miseráveis, que foram instantaneamente reduzidos a cinzas. Então ele se livrou da corda e, com as mãos completamente livres, abriu caminho até a cidade, brandindo sua arma. 


Ao vê-lo, demônios com cabeça de touro se esconderam aterrorizados, enquanto demônios com cabeça de cavalo fugiram em todas as direções. Um destacamento de soldados fantasmas conseguiu correr até ao Palácio das Trevas, onde gritaram apavorados e ofegantes:

— Uma grande calamidade ocorreu! Um desastre indescritível! Um deus do trovão, com o rosto completamente coberto de pelos, entrou na cidade como um redemoinho e está vindo para cá!

A notícia alarmou tanto os Dez Reis do Mundo Inferior que eles ajeitaram suas roupas e saíram para ver o que estava acontecendo. Vendo a figura feroz e aguerrida de Wukong, eles se alinharam de acordo com os postos que ocupavam e o saudaram em alta voz:

— Grande Imortal! Importa-se de nos dizer qual é o seu nome?

— Eu sou Sun Wukong, um sábio de origem celestial da Caverna da Cortina D'água, localizada na Montanha das Flores e Frutos - respondeu o Rei dos Macacos, que por sua vez perguntou: — Posso saber que tipo de oficiais são vocês?

— Nós somos os Imperadores das Trevas, os Senhores do Mundo Inferior responderam os Dez Reis, curvando-se perante Wukong.

— Digam o nome de vocês, um de cada vez, se não quiserem levar uma surra! ameaçou Wukong. Então, os Dez Reis responderam:

— Nós somos Qin Guang; Chujiang, o "Rei do Rio das Origens"; Songdi, o "Rei do Império Song"; Wuguan, o "Rei dos Cinco Ofícios",  Yama, o "Rei da Morte"; Taishan, o "Rei do Monte Tai"; Dushi, o "Rei da Capital"; Biancheng, o "Rei das Transformações" e Zhuanlun, o "Rei dos Cinco Caminhos da Reencarnação".

— Já que vocês são todos da realeza — repreendeu-os Wukong — , vocês deveriam ser um pouco mais espertos e saber quem recompensam e quem punem. Como é possível que vocês sejam incapazes de distinguir o bem do mal? Penetrei nos segredos do Tao e recebi a imortalidade como recompensa. Portanto, tenho a mesma idade dos Céus, estando do outro lado das Três Regiões e das Cinco Fases. Por que então vocês ordenaram minha captura?

— Tente se controlar, por favor - sugeriram os Dez Reis. — As coisas não são tão simples. Neste mundo existem muitas pessoas com o mesmo nome e o mesmo sobrenome. Já lhe ocorreu que talvez nossos emissários o tenham confundido com outra pessoa?

— Besteira! — exclamou Wukong, ainda mais mal-humorado. — Um ditado afirma que "o magistrado e o oficial erram, mas não o homem de quem dependem". Mostre-me os livros em que vocês registram os nascimentos e mortes, rápido! Não me façam perder meu tempo.

Quando os Dez Reis ouviram isso, eles o convidaram para entrar no palácio e vê-los por si mesmo. Com um passo determinado e sem largar seu bastão por um único segundo, Wukong foi direto para o Palácio das Trevas e sentou-se no meio do salão, voltado para o sul. 


Os Dez Reis imediatamente fizeram com que o juiz encarregado dos registros trouxesse seus livros para exame. Sem perder tempo, o juiz saiu por uma porta lateral e voltou de lá em poucos segundos, trazendo consigo cinco ou seis volumes de documentos e arquivos contendo todos os dados das dez espécies de seres vivos. Com inesperada destreza, ele verificou a lista de animais de pêlos curtos, pêlos compridos, alados, rastejantes e escamosos, mas em nenhum lugar encontrou o nome de Sun Wukong.  Então ele verificou as listas de macacos, mas Sun Wukong também não estava lá. E embora ele se assemelhasse a um humano em certos aspectos, ele não poderia estar na lista de humanos. Embora Wukong tivesse pêlos curtos, sua morada transcendia a dos animais daquele reino; embora se assemelhasse as feras, não estava sujeito ao qilin; e embora, de certa forma, se assemelhasse aos seres que voam, ele não era governado pela fênix.

Havia, porém, um outro livro que o juíz não havia verificado, mas que Sun Wukong decidiu verificar por conta própria. Nele, ele encontrou seu nome com a seguinte descrição:

"Macaco de pedra gerado pelo céu. Idade: trezentos e quarenta e dois anos. Final feliz."

— Não sei exatamente quantos anos tenho disse Wukong — , nem me importa. Tudo que eu quero é apagar meu nome daqui o mais rápido possível. Então, por favor, tragam-me um pincel.

O juiz o obedeceu prontamente. Mais rápido que um tigre, ele alcançou um pincel e o embebeu em tinta. Wukong pegou os  registros dos macacos e riscou os nomes de quantos ele pôde, antes de jogar os papéis no chão e dizer com desprezo absoluto:

— Espero não ter que fazer isso novamente. De forma alguma estou sujeito aos seus caprichos.


Brandindo seu bastão de ferro, ele abriu caminho para deixar a Região das Trevas. Os Dez Reis não se atreveram a detê-lo ou a dirigir-lhe a palavra novamente. Eles acharam mais conveniente ir diretamente ao Palácio da Nuvem de Jade e consultar o bodhisattva Ksitigarbha sobre o ocorrido. Eles tinham a intenção de relatar ao Céu a respeito deste desagradável incidente, assunto do qual não trataremos no momento.

O Rei dos Macacos estava prestes a deixar a cidade, quando de repente tropeçou em um pedaço de grama e caiu miseravelmente no chão. Isso o fez acordar instantaneamente, percebendo então que tudo tinha sido um sonho. 

Enquanto se espreguiçava, ouviu seus quatro comandantes e vários macacos gritando em alta voz:

— Grande Rei! Quanto vinho o senhor bebeu? O senhor dormiu a noite toda. Ainda não acordou?

— Dormir não é nada para ficar animado — disse Wukong — mas eu sonhei que dois homens vieram me prender, e eu não percebi a intenção deles até que estivéssemos na Região das Trevas. Eu então fiz uma demonstração de força, alcançando o próprio Palácio da Morte e enfrentando diretamente seus Dez Reis. Exigi que me deixassem examinar os registros de nascimentos e óbitos e risquei todos os nossos nomes. Esses sujeitos não têm poder sobre nós agora.

Todos os macacos se curvaram diante de seu rei para expressar sua gratidão. A partir daquele dia, muitos macacos da montanha pararam de envelhecer, pois seus nomes não estavam mais registrados no Mundo Inferior, permanecendo assim sempre jovens e saudáveis. Quando o Belo Rei dos Macacos terminou seu relato do ocorrido, os quatro comandantes o contaram, por sua vez, aos reis demônios das outras cavernas, que imediatamente vieram parabenizá-lo. Alguns dias depois, os membros restantes da Irmandade dos Sete Sábios também vieram até Wukong parabenizá-lo pessoalmente, felizes por seu nome não estar mais nos registros dos Dez Reis. Eles ofereceram um esplêndido banquete ao amigo, cuja pompa não entrarei em detalhes.

Em vez disso, voltaremos nossa atenção  para o Grande Sábio Benevolente do Céu, o Imperador de Jade, que alguns dias depois presidiu uma audiência pública na Sala do Tesouro da Névoa Divina, localizada no coração do Palácio das Nuvens dos Arcos Dourados. Os ministros divinos, civis e militares, estavam se reunindo para a sessão da manhã quando de repente o taoísta imortal Qiu Hongzhi anunciou:

— Vossa Majestade, Ao-Kuang, Rei Dragão do Mar Oriental, acaba de chegar ao Palácio Transparente e solicita ser recebido imediatamente pelo senhor, para lhe apresentar um memorial urgente.

O Imperador de Jade ordenou que ele fosse trazido à sua presença e, após alguns poucos segundos, Ao-Kuang entrou solenemente no Salão da Névoa Divina. 

Depois de prestar suas homenagens, um pajem pegou o memorial e o colocou diretamente nas mãos do Imperador de Jade, que o leu do início ao fim. O memorial dizia o seguinte:

Vindo da região do Mar Oriental, que está localizada em Purvavideha, o Continente Oriental, seu humilde servo o dragão Ao-Kuang vem respeitosamente diante do Eminente Senhor dos Céus, informar-lhe do seguinte: Sun WuKung, um imortal inescrupuloso, originalmente da Montanha das Flores e Frutos e atualmente residindo na Caverna da Cortina de Água, ofendeu gravemente seu humilde servo, entrando à força em sua mansão marinha. Empregando o uso da força e da intimidação, ele exigiu a entrega de uma arma mágica. Não contente com isso, ele posteriormente exigiu, usando ameaças assustadoras, um traje militar apropriado. Sem qualquer consideração, aterrorizou toda a minha família e fez minhas tartarugas fugirem. O Rei Dragão do Mar do Sul começou a tremer como uma folha sacudida pelo vento, o do Mar Ocidental foi vítima do mais indescritível horror, o do Mar do Norte foi forçado a curvar a cabeça em submissão, e seu humilde servo, Ao-Kuang, não teve escolha a não ser dobrar seu corpo em prova de total submissão. Nós o presenteamos com um bastão de ferro mágico, um capacete dourado coroado com penas de fênix, uma cota de malha do mesmo metal e sapatos para andar nas nuvens. Tentamos então dispensá-lo da forma mais cortês que conhecemos, mas ele, determinado a demonstrar seu conhecimento marcial e seu domínio da magia, teve o descaramento de nos dizer:

"Desculpem, se os incomodei."
Tenho que admitir que nenhum de nós era um adversário adequado para ele e que, mesmo unindo nossas forças, não teríamos conseguido dominá-lo. Vosso servo pede, pois, ao vosso inquestionável sentido de justiça, completa vingança pelo nosso mal, suplicando-vos humildemente que envieis um destacamento de soldados celestiais o quanto antes para prender aquele monstro. Desta forma, a tranquilidade voltará a florescer em todos os mares e a prosperidade se espalhará por todas as Regiões Inferiores. Assim, apresentamos ao senhor este memorial."

Quando o Imperador Celestial terminou sua leitura, voltou-se para seu súdito e ordenou-lhe:

— Você pode retornar ao seu mar com a certeza de que meus generais se encarregarão de prender o culpado.

O Rei Dragão se despediu de seu soberano, tocando a testa no chão em agradecimento, e deixou o palácio. Ainda não havia ultrapassado o último de seus portões, quando o imortal Ge, o Divino Mestre, adiantou-se e anunciou solenemente:

— Sua Majestade, o Ministro das Trevas, Rei Qinguang, apoiado pelo Bodhisattva Rei Kṣitigarbha, Alto Comissário do Mundo Inferior, acaba de chegar e deseja lhe apresentar um memorial.

Uma assistente de jade veio até ele, pegou o memorial de suas mãos e o entregou ao Imperador de Jade, que também o leu do início ao fim. O memorial dizia:

"A Região das Trevas é a porção mais baixa da Terra. Da mesma forma que os Céus estão reservados aos deuses, a Terra pertence totalmente aos espíritos. Desta forma, a vida e a morte ocorrem de forma completamente cíclica. Bestas e animais estão continuamente nascendo e morrendo. O masculino e o feminino estão a cargo de um processo tão extraordinário, princípios criativos nos quais todo nascimento e transformação têm sua origem. Tal é a ordem da natureza, que de modo algum pode ser alterada. Mas de repente Sun Wukong, um macaco funesto de origem celeste, atualmente residindo na Caverna da Cortina de Água, na Montanha das Flores e Frutas, e um  praticante regular de todos os tipos de maldades e violências, invadiu nossos domínios, e recusou-se a aceitar nossas decisões irrevogáveis. Valendo-se de magia, ele se livrou dos espíritos mensageiros do Inferno da Escuridão das Nove Dobras., até mesmo aterrorizando, através da força bruta, os Dez Reis Misericordiosos que o governam. Mas a confusão que ele trouxe ao Palácio das Trevas foi ainda maior, pois, usando métodos tão condenáveis, apropriou-se do Livro dos Nomes e dele apagou o nome de todos os macacos que pôde. Como consequência, perdeu-se o controle necessário sobre essa espécie, que agora desfruta de um período de vida desproporcionalmente longo, e a roda da transmigração parou abruptamente, pois o nascimento e a morte foram eliminados do mundo dos macacos. Sabemos que, ao apresentar este memorial ao senhor, corremos o risco de trazer sua raiva sobre nossas cabeças, mas consideramos nosso dever fazê-lo. Portanto, ousamos humildemente sugerir que o senhor envie seu exército contra esse usurpador o mais rápido possível. Desta forma, a vida e a morte estarão, mais uma vez, sob nosso controle e o Mundo Inferior recuperará a segurança que sempre possuiu. Apresentamos este memorial ao senhor com o maior respeito."

Assim que o Imperador de Jade terminou de lê-lo, voltou-se para seu súdito e ordenou: 

— Você pode retornar ao Mundo Inferior. Garanto-lhe que meus generais prenderão esse culpado e darão a ele o que ele merece.

O Rei Qin-Kuang tocou a testa no chão novamente, em sinal de gratidão, e deixou o palácio de seu senhor. Assim que ele se foi, o Imperador de Jade convocou seu conselho de imortais e perguntou-lhes:

— Algum de vocês sabe quando aquele macaco bagunceiro nasceu, e em que reencarnação iniciou seu longo caminho para a perfeição? Como é possível que ele tenha alcançado tal domínio da Grande Arte em tão pouco tempo?

Ele mal terminou de falar quando Shunfeng'er e Qianliyan (8) deram um passo à frente e disseram em coro:

— Esse é o macaco de pedra que nasceu sob a ação direta do Céu há aproximadamente trezentos anos. Apesar de sua origem, ele não parecia ter nenhum poder especial, então não sabemos onde ele conseguiu adquirir o conhecimento que agora ostenta e que acabou transformando-o em um imortal. Domar tigres e dominar dragões (9) não é nenhum segredo para ele, à luz do qual não é tão surpreendente que ele tenha conseguido alterar à força os registros da morte.


— Quem dos meus generais está disposto a descer para detê-lo? — o Imperador de Jade perguntou novamente.

Ele mal havia terminado de fazê-lo, quando Taibai Jinxing, a "Estrela Dourada do Planeta Vênus", deu um passo adiante e, prostrando-se com o rosto no chão, disse:

— Altíssimo Soberano, todos os seres das Três Regiões que possuem nove aberturas em seus corpos são capazes de alcançar a imortalidade através de simples exercícios. Não é de estranhar, portanto, que este macaco o tenha conseguido, sobretudo quando o próprio Céu e a Terra colaboraram na formação do seu corpo, o sol e a lua se encarregaram de modelar os seus traços e ele próprio tem uma cabeça que aponta diretamente para os Céus, pés que se apoiam na Terra para caminhar e se alimenta de brumas e orvalho. Como ele é diferente de um ser humano, agora que pode até domar tigres e dominar dragões? Permita que seu servo o lembre de que o senhor sempre foi generoso com todos os seres. Por que então o senhor não emite um decreto de reconciliação, ordena que ele venha para essas Regiões Celestiais e lhe concede alguma posição oficial? Desta forma, seu nome será inserido no registro e poderemos controlá-lo melhor. Se ele mostrar respeito por suas decisões, será recompensado de acordo e adquirirá uma posição mais elevada. Se, ao contrário, ele se entregar à desobediência, nós o prenderemos sem perda de tempo. Assim, em primeiro lugar evitamos de realizar uma expedição militar  e, em segundo, acolheremos um imortal entre nós com o decoro que ele merece.

— Suas opiniões são sólidas e prudentes comentou o Imperador de Jade, satisfeito. — Tenha certeza de que as seguiremos ao pé da letra.

Ele então se voltou para o seu escriba e ordenou-lhe que escrevesse imediatamente o um decreto, nomeando Taibai Jinxing como seu mensageiro. Assim que o documento foi concluído, ele o tomou em suas mãos e deixou o Palácio Celestial pelo portão sul. Sem perder tempo, ele montou em uma nuvem e desceu dos céus, num instante alcançando a Caverna da Cortina D'água na Montanha das Flores e Frutos. Lá ele encontrou vários macacos, aos quais informou:

— Sou um mensageiro celeste, enviado diretamente do alto, e trago comigo uma ordem imperial na qual seu rei é convidado a ir às Regiões Superiores imediatamente. Portanto, quanto mais cedo vocês o informarem, melhor para todos.

Os macacos passaram a ordem uns aos outros, até que chegaram ao coração da caverna e um deles finalmente pôde informar ao seu senhor:

— Há um homem lá fora com um papel nas mãos, que afirma ter sido enviado do Céu e diz trazer um convite do Imperador para o senhor.

Ao ouvir isso, o Belo Rei Macaco ficou profundamente lisonjeado e disse:

— Precisamente, nestes últimos dois dias eu estive pensando em fazer uma pequena viagem ao céu, e um mensageiro celestial já veio me convidar! Que sorte a minha.

Apressadamente, Wukong ajeitou seu traje e saiu para receber tão ilustre hóspede. Taibai Jinxing entrou na caverna e se posicionou no centro, onde ficou parado o tempo todo, sem tirar os olhos do sul. Então, anunciou solenemente:

— Eu sou a Estrela Dourada do Planeta Vênus, e desci à Terra para entregar em mãos este decreto de reconciliação por parte do Imperador de Jade e convidá-lo a ascender ao Céu, onde receberá uma das mais altas nomeações reservadas aos imortais.

— Estou muito grato por sua inesperada visita respondeu Wukong, sorrindo. Voltou-se então para seus súditos e ordenou-lhes: 

— Preparem um banquete para o nosso ilustre visitante!

Taibai Jinxing, no entanto, rejeitou o convite tão lisonjeiro, dizendo:

— Como portador de um documento imperial, não tenho permissão para ficar aqui por muito tempo. Receio ter de lhe pedir que venha comigo imediatamente. Teremos a oportunidade de conversar e nos divertir juntos mais tarde, quando você for promovido ao alto cargo que o Imperador tem reservado para você.

— Sua presença entre nós é uma honra indescritível! — disse Wukong, cerimoniosamente. -Lamento que você tenha que sair de mãos vazias!

Sun Wukong então convocou seus quatro comandantes e os exortou:

— Não se esqueçam de treinar os mais novos e, acima de tudo, fiquem tranquilos. Subirei ao Céu para ver se encontro um lugar onde possamos viver todos juntos.

Os quatro comandantes inclinaram-se ante ele em concordância e o Rei dos Macacos, subindo na mesma nuvem que Taibai Jinxing, se elevou ao ponto mais alto do Céu, reservado aos imortais de mais alto escalão, e se surpreendeu ao ver seu nome escrito nos inúmeros pergaminhos que cobriam as colunas de nuvens.

Não sabemos que cargo lhe foi confiado pela benevolência do Imperador Celestial. Quem quiser saber, deve ouvir atentamente as explicações oferecidas no próximo capítulo.

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    Notas do Capítulo III:

    1. As dez espécies são compostas pelas cinco classes de seres (religiosos, seculares, humanos, celestiais e infernais) e pelos cinco grupos de seres vivos (os que possuem asas, os que possuem pêlos, os que têm uma pele dura, os que têm escamas e os que não tem nada);
    2. Esse é um nome dado pelos taoístas ao submundo; 
    3. O texto original fala em duzentas milhas, que convertidas com exatidão equivalem à 321.869 quilometros;
    4. O Rio Celeste refere-se à Via Láctea;
    5. O imperador , um dos lendários governantes da China, é famoso por ter enfrentado enchentes e fundado a dinastia Hsia;
    6. Em chinês, 如意金箍棒,  Ruyi Jingu Bang; 
    7. Também conhecido como Yanluo, 阎罗王;
    8. Citados anteriormente no capítulo I, Qianliyan e Shunfeng'er são dois demônios ditos serem os guardas de Mazu, estando constantemente ao seu lado. Antes de se tornarem seus protetores, tanto Qianliyan quanto Shunfenger pediram a mão de Mazu em casamento, e ela concordou, mas apenas sob a condição de que eles a derrotassem em combate. Durante a batalha que se seguiu, Mazu facilmente subjugou os dois demônios com suas habilidades superiores em artes marciais e com a ajuda de um lenço de seda mágico que soprou areia em seus olhos, cegando-os. Em vez de se casar com Mazu, Qianliyan e Shunfenger juraram servir como seus guardiões e nunca deixarem o seu lado;
    9. "Domar tigres e dominar dragões" é uma forma de se referir aos processos da alquimia;

    • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
    • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
    fontes consultadas para a pesquisa:
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