21 de outubro de 2024

A Epopéia de Gilgamesh - Tábua V

 ۞ ADM Sleipnir

Arte de MarmaduX para o moba SMITE


TÁBUA V

Descrição das maravilhas do homem. Sonhos de Gilgamesh antes do combate. Os ventos, que vieram em auxílio dos heróis, decidem a luta, e os dois amigos conseguem cortar a cabeça de Humbaba.


 
Coluna I

(Texto assírio)

Eles estão lá, admirando a floresta,
contemplando a altura dos cedros,
contemplando a entrada da floresta.
No lugar onde Humbaba caminha, há uma trilha
bem traçada e de fácil passagem.
Eles contemplam a montanha dos cedros,
a morada dos deuses,
o santuário da deusa Irnini.
Na encosta, o cedro ergue seus galhos,
sua sombra é benéfica, cheia de delícias;
os arbustos são baixos, as espinheiras mirradas...

(Lacuna)


Coluna II

(Na véspera do combate, à noite, Gilgamesh tem um sonho, que conta a Enkidu.)

“Tive outro sonho.
Subimos ao topo de uma montanha,
e a montanha desmoronou,
e nós éramos como moscas de canavial,
nós que nascemos na planície!”
Enkidu interpretou o sonho para seu companheiro:
“Amigo, o sonho é favorável,
é um sonho magnífico;
meu amigo, a montanha que você viu é Humbaba;
venceremos Humbaba e entregaremos seu cadáver ao vento,
pisaremos sobre seus restos.”
Após quarenta horas, tomaram algum alimento,
após sessenta horas, descansaram,
e então cavaram uma cova diante do deus sol.
Gilgamesh, da encosta,
espalhou farinha dentro da cova, dizendo:
“Ó montanha, traga-nos sonhos!”
e a montanha lhes trouxe sonhos.

(Lacuna)


Coluna III

Gilgamesh permanecia sentado com a cabeça entre os joelhos,
mas o sono, destino da humanidade, o venceu.
Acordou ao cair da meia-noite,
levantou-se e disse a seu amigo:
"Você me chamou, meu amigo? O que me despertou?
Você não me tocou? Por que essa angústia?
Acaso um deus não passou por aqui? Por que me sinto tão fraco?
Meu amigo, tive outro sonho,
um sonho verdadeiramente extraordinário.
Parecia que um grande grito enchia os céus,
a terra ressoava,
o mundo se escureceu, as trevas se espalharam,
um relâmpago brilhou, o fogo correu,
as nuvens se inflaram e choveu morte.
Então, a claridade e o fogo se extinguiram,
e tudo o que havia caído se transformou em cinzas.
Vamos! Desçamos à planície, onde tomaremos uma decisão."

(As colunas IV e V são inutilizáveis. Aqui se intercalava outro sonho e depois vinha a descrição do combate contra Humbaba. Segue um fragmento hitita.)

Eles partiram, depois fizeram uma pausa,
e o sono que cai sobre a noite se espalhou sobre Gilgamesh,
que acordou à meia-noite
e contou seu sonho a Enkidu, seu amigo:
"Você não me acordou? Por que acordei?
Oh, Enkidu, meu amigo, tive um sonho...,
e em meu sonho vi uma montanha
que caiu sobre mim, e eu não pude fugir!
Um homem de grande beleza
me tirou debaixo da montanha,
deu-me água para beber e meu coração se sentiu melhor,
e ele me ajudou a levantar..."

(Os acontecimentos seguintes se referem à invocação de Gilgamesh ao deus Shamash e ao combate dos dois amigos contra Humbaba.)


Coluna VI

(Fragmento hitita)

Assim falou Gilgamesh ao deus-sol, ao deus do céu:  
"A ti acudo em súplica, deus-sol, deus do céu,  
porque vou me preparar para o combate."  
O deus-sol, o deus do céu, ouviu o pedido de Gilgamesh,  
e eis que formidáveis furacões se levantaram contra Humbaba:  
o ciclone, o vento do norte, o vento do sul,  
o vento da tempestade,  
o vento gelado, o redemoinho,  
o vento de todo mal, oito ventos se levantaram contra Humbaba,  
eles o atingirão no rosto e nas costas,  
impedindo-o de avançar e de recuar.  
Então Humbaba se rende e diz a Gilgamesh:  
"Não me aniquiles, ó Gilgamesh!  
Tu és meu senhor; eu serei teu escravo.  
[Esqueça todas as minhas ameaças!]  

(Lacuna)

Então Enkidu perguntou a Gilgamesh:  
"O que está dizendo Humbaba? Não o escute."  

(Lacuna)

(Lacuna. Texto assírio)  
E cortaram a cabeça de Humbaba.



FIM DA TÁBUA V

TÁBUA VI EM BREVE
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18 de outubro de 2024

A Jornada ao Oeste: Capítulo XXX

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO XXX:

O MONSTRO PREJUDICA A VERDADEIRA LEI. O CAVALO DA VONTADE BUSCA O AUXÍLIO DO MACACO DA INTELIGÊNCIA.


Uma vez capturado o Monge Sha, o monstro se recusou a torturá-lo ou matá-lo. Nem sequer o insultou, como costumam fazer os guerreiros vencedores com seus prisioneiros. Em vez disso, pegou a cimitarra e refletiu:

— O monge Tang é de uma nação nobre e, sem dúvida, deve ter um senso de justiça muito apurado. Não entendo como ele pode ter enviado seus discípulos para me capturar, depois de eu ter poupado sua vida. Isso não faz sentido! — exclamou de repente. — Claro! Isso tudo é obra da minha esposa, que conseguiu enviar uma carta para seus pais por meio desses monges. Só pode ser isso! Vou confrontá-la agora.

Tomado pela indignação, ele só pensava em acabar com a princesa, que nada sabia do ocorrido. Ela estava se preparando para dar um passeio quando viu o monstro se aproximar, com os olhos esbugalhados de raiva, o semblante franzido e os dentes trincados. 

A princesa, já acostumada com as mudanças de humor do monstro, não se assustou. Pelo contrário, sorriu suavemente e perguntou:

— Posso saber o que está te preocupando dessa forma?


— Maldita! — gritou o monstro em resposta. — Você não tem consideração nenhuma pelas relações humanas? Quando te trouxe para cá, não disse uma palavra de protesto. Gostava de se vestir de seda e se cobrir de ouro. Se queria algo, eu corria para te trazer, como se fosse seu escravo. Nada parecia suficiente para te fazer feliz. Você teve tudo que uma mulher pode querer, nunca te faltou nada! Não te tratei sempre com carinho e compreensão? Então por que continua pensando nos seus pais e não dá valor à família que tem agora?

A princesa, apavorada, deixou-se cair ao chão e, com voz trêmula, perguntou:

— Por que está falando assim? Parece que você quer se separar de mim.

— Quem pensou nisso foi você! — retrucou o monstro. — Capturei o monge Tang e me senti o ser mais feliz do mundo, sempre quis provar a carne macia de um monge. Mas por que você prometeu libertá-lo antes mesmo de conversar comigo? Sei muito bem o motivo! Você escreveu uma carta para os seus pais e pediu que ele entregasse. Caso contrário, como explicaria que os dois monges vieram à minha porta exigir que eu te deixasse voltar para casa? Não negue! Fez isso ou não?

— Você está completamente enganado — respondeu a princesa. — Quando foi que eu enviei uma carta sem o seu consentimento?

— Não adianta me enganar — insistiu o monstro. — Acabei de capturar alguém que vai testemunhar contra você.

— De quem está falando? — perguntou a princesa, visivelmente abalada.

— Do Monge Sha, o segundo discípulo do monge Tang (1).

Ninguém aceita a morte de bom grado, mesmo sabendo que ela é iminente. E por isso a princesa continuou insistindo em sua inocência:

— Acalme-se, vamos interrogá-lo como você quer. Se a carta existir, aceitarei ser punida. Mas se não houver carta nenhuma, não será uma grande injustiça me condenar à morte?

O monstro aceitou a proposta sem hesitar. Com sua enorme mão azulada, agarrou a princesa pelos cabelos e a arrastou até a frente da caverna, onde jogou-a no chão sem piedade. 


Com a cimitarra em punho, ele interrogou o Monge Sha:

— Por que você e seu companheiro vieram me desafiar na minha própria casa? O pai dessa mulher enviou vocês, sabendo do paradeiro dela por uma carta que ela lhes entregou?

Vendo a fúria do monstro, que parecia disposto a matar sua esposa, o Monge Sha pensou:

— É verdade que ela enviou uma carta, mas também salvou meu mestre, e esse é um favor que ninguém poderia retribuir. Se eu confessar, essa fera vai matá-la sem pensar duas vezes, e em vez de uma recompensa, ela receberá um castigo cruel. Eu sigo meu mestre há muito tempo e ainda não fiz nada realmente grandioso. Agora que estou preso, esta é uma boa chance de retribuir um pouco do que fizeram por mim.

Então ele levantou a voz e respondeu ao monstro:

— Como pode ser tão bruto? Me diga, o que havia nessa carta que sua esposa supostamente escreveu, para você querer matá-la? Eu nunca vi esse documento. O motivo de termos vindo libertar a princesa é outro. Quando meu mestre estava na mesma situação que eu, ele a viu várias vezes. Não foi difícil para ele reconhecer a jovem de quem o Rei do Elefante Sagrado sempre falava quando chegamos aos seus domínios. Ele nos fez muitas perguntas sobre ela, e até nos mostrou um retrato. O rei só queria saber se a havíamos encontrado. Quando meu mestre descreveu a dama que viu neste palácio, o rei soube imediatamente que era sua filha. Ele nos convidou a brindar com ele e nos ordenou que viéssemos capturá-lo e libertar a princesa, para que a levássemos de volta ao palácio. Juro que foi isso que aconteceu. Então, por que inventar essa história de uma carta que não existe? Se quer matar alguém, mate a mim e não machuque um inocente. Não aumente seus crimes à toa.

Diante da determinação do Monge Sha, o monstro jogou a cimitarra no chão e levantou a princesa com as duas mãos:

— Parece que fui rude demais com você. Deve ter se ofendido com razão. Peço que me perdoe.

Ele ajudou a princesa a arrumar o cabelo e ajeitar as vestes, demonstrando carinho e ternura. Depois a abraçou, brincando com ela, e a levou de volta para a caverna. Lá, pediu que ela se sentasse no trono central e pediu desculpas da melhor forma que conseguiu. A princesa, de temperamento volúvel, ao ver a submissão do monstro, se arrependeu do que havia acontecido e pediu, com voz suave:

— Se valoriza nosso amor, solte um pouco as cordas do Monge Sha.

O monstro imediatamente ordenou que desamarrassem o monge e o trancassem na masmorra. Sozinho, o Monge Sha refletiu:

— Como diziam os antigos, "ser gentil com os outros é ser gentil consigo mesmo". Se eu não tivesse sido bondoso com a princesa, nunca teriam me soltado.

Para agradar à princesa e acalmar seus temores, o monstro pediu que servissem vinho e comida. Meio bêbado, ele vestiu uma túnica vermelha brilhante e prendeu uma espada dourada na cintura.

— Fique em casa e beba mais um pouco — disse ele à princesa, acariciando-a com uma das mãos. — Cuide bem de nossos dois filhos e não deixe o Monge Sha escapar. Já que o monge Sanzang ainda está por aqui, vou me aproximar dos meus.

— Vai ser aproximar de quem? — perguntou a princesa.

— Do seu pai, o rei — respondeu o monstro. — Pensando bem, sou o genro dele, e ele é meu sogro. Tem alguma razão para eu não me aproximar dele?

— Você não pode fazer isso! — exclamou a princesa.

— E por que não? — questionou o monstro.

— Meu pai — explicou a princesa — não ganhou seu império montado em um cavalo, ele herdou de seus antepassados. Desde que assumiu o trono, nunca saiu das portas da cidade. Além disso, ele não tem homens tão aterrorizantes e ferozes como você. Se você se encontrar com ele, só vai assustá-lo, e isso não te trará nenhum benefício. Por isso, acho que não é uma boa ideia se aproximar dele agora.

— Se isso é o que te preocupa — disse o monstro —, eu me transformarei em um homem bonito, e está resolvido.

— Está bem — concordou a princesa. — Transforme-se em um cavalheiro e deixe-me ver como você fica.

O monstro balançou o corpo e se transformou em uma pessoa de aparência gentil. Seus traços eram extremamente atraentes, complementando a indescritível beleza de seu corpo. Falava com a elegância de um erudito e se movia com a graça de um jovem nobre. Tinha tanta habilidade com rimas quanto Cao Zhi (2) e era mais belo que o próprio Pan Yue (3), que atraía cestos de frutas lançadas pelas mulheres. Na cabeça, usava um chapéu com cauda de corvo, que realçava o charme de seus longos cabelos. Vestia uma túnica de seda branca com mangas amplas e ondulantes. Calçava botas de couro preto, que contrastavam com o brilho do cinto de cinco cores que usava na cintura. Ele era, em resumo, o arquétipo do homem atraente: bonito, alto, respeitável e cheio de força. A princesa ficou tão satisfeita com a transformação que o monstro deu uma risada e perguntou:

— Ficou bom assim?

— Com certeza — respondeu a princesa. — Está incrível! Mas lembre-se: meu pai nunca rejeita seus parentes. Todos os oficiais da corte, tanto civis quanto militares, vão te convidar para uma infinidade de banquetes. Tente ser moderado e não beba demais. Se perder o controle, pode acabar mostrando sua verdadeira forma, e todos vão fugir aterrorizados.

— Não preciso desses conselhos — retrucou o monstro. — Sei muito bem o que fazer.

Ele subiu em uma nuvem e logo chegou ao Reino do Elefante Sagrado. Dirigiu-se diretamente à corte e anunciou ao oficial que guardava a porta:

— O terceiro genro do imperador pede para ser recebido por seu ilustre sogro. Por favor, anuncie-me.

O Guardião da Porta Amarela correu até as escadarias de jade branco e informou seu senhor:

— O terceiro genro de Vossa Majestade pede para ser recebido. Ele está lá fora, aguardando sua decisão.

Naquele momento, o rei conversava com o monge Tang. Ao ouvir que se tratava de seu terceiro genro, voltou-se surpreso para seus ministros e comentou:

— Eu só tenho dois genros. De onde surgiu esse outro?

— Não há dúvida — explicaram alguns ministros — de que se trata do monstro que raptou sua filha.

— Acham que é prudente deixá-lo entrar? — perguntou o rei.

— É um monstro, Majestade! — exclamou o monge Tang, tremendo da cabeça aos pés. — E, além disso, é extremamente inteligente. Ele é capaz de viajar nas nuvens e prever o futuro. Se derem permissão, ele entrará. Mas se negarem, não fará diferença; ele vai entrar de qualquer jeito. Acho que o melhor é permitir que ele entre.

O rei concordou e ordenou que trouxessem o monstro até os degraus dourados. A criatura prestou seus respeitos ao monarca com tanta elegância que todos ficaram impressionados. Ao ver como ele era bonito, ninguém se atreveu a considerá-lo um monstro. Confiando em seus olhos mortais, acreditaram que era um homem de bem. O próprio rei, ao notar seus modos comedidos, pensou que era um homem de qualidades excepcionais, digno de governar o mundo com justiça. 


Satisfeito, o monarca perguntou:

— De que região você é? Onde vive? Quando se casou com a princesa e por que não veio antes conhecer sua família?

— Vosso humilde servo — respondeu o monstro, prostrado no chão — é de uma região ao leste desta cidade, mais precisamente da Caverna da Corrente Lunar, localizada na Montanha da Panela.

— E a que distância fica de nosso palácio? — perguntou o rei.

— Não muito longe, senhor — respondeu o monstro. — Cerca de trezentos quilômetros.

— Trezentos quilômetros? — exclamou o rei, surpreso. — Como a princesa chegou até lá para se casar com você?

O monstro, muito astuto, tentou confundir o rei, dizendo:

— Desde jovem, vosso servo sempre gostou de caçar, de atirar flechas e cavalgar. Há treze anos, quando eu estava com vários criados soltando os falcões e mastins, avistei um tigre enorme. Ele descia a montanha com uma jovem entre as presas. Vosso servo disparou uma flecha e matou a besta, trazendo a jovem de volta à minha residência, onde foi reanimada com remédios. 


Quando perguntei de onde ela vinha, ela nunca mencionou ser uma princesa. Se tivesse dito que era filha de Vossa Majestade, jamais teria ousado casar-me com ela sem a vossa permissão. Teria vindo até este palácio dourado para pedir sua mão, apesar da humildade de minhas origens. Mas ela me fez acreditar que era filha de camponeses, e isso me encorajou a suplicar que ficasse ao meu lado. 

Parecíamos feitos um para o outro e desejávamos viver juntos. Já se passaram treze anos desde o nosso casamento. Após a cerimônia, pensei em matar o tigre e oferecer sua carne aos meus parentes, mas a princesa pediu que eu não o fizesse e explicou com estes versos a razão: “Céu e Terra nos uniram como marido e mulher, sem a ajuda de casamenteiras ou testemunhas. Desde tempos imemoriais, nossos destinos estão ligados por fitas de seda vermelha (4). O tigre, na verdade, foi o nosso mediador”. 

Diante dessas palavras, vosso servo libertou o tigre e poupou sua vida. A criatura fugiu com a flecha no corpo. Mal sabia eu que, anos depois, o tigre se tornaria um espírito da montanha através da meditação. Em vez de controlar sua natureza feroz, ele ficou ainda mais selvagem, atraindo e devorando inocentes. 

Ouvi falar de certos Peregrinos, todos monges, enviados pelo Grande Imperador Tang em busca de escrituras sagradas, e decidi esperar por eles para recebê-los adequadamente. Infelizmente, o tigre soube disso e os devorou sem piedade. Não satisfeito, roubou seus documentos de viagem e, disfarçado, veio até o vosso palácio para enganá-lo. Creio que devo informá-lo, senhor, que aquele que está sentado ao vosso lado, em uma almofada brocados, não é outro senão o tigre que raptou a princesa há treze anos. Ele pode parecer um monge, mas não passa disso.

Os olhos mortais do rei não só falharam em reconhecer o monstro, como também aceitaram tudo o que ele dizia como verdade. Muito agradecido, ele perguntou:

— O que te faz afirmar que esse monge é o tigre que levou minha filha?

— Vossa majestade — respondeu o monstro —, eu passo a vida entre tigres. Deles me alimento, com suas peles me visto, durmo e acordo com eles. Como eu não iria reconhecê-los assim que os vejo?

— Nesse caso — disse o rei —, faça com que ele assuma sua verdadeira forma.

— Tragam-me uma tigela de água pela metade — pediu o monstro — e seu desejo será realizado.

Sem demora, o rei ordenou que trouxessem a água. O monstro a segurou nas mãos e se preparou para usar uma magia chamada "Escurecedora de Olhos e Transformadora de Corpos". Ele recitou um encantamento, lançou um pouco de água sobre Sanzang e gritou:

— Transforme-se!

O corpo de Sanzang sumiu, e no seu lugar surgiu a figura feroz de um tigre. Sua cabeça era redonda e os seus olhos eram tão ameaçadores que pareciam emitir faíscas. Tinha garras abertas e afiadas como lâminas. Dentes mais finos que adagas enchiam sua boca. As orelhas pontudas e as sobrancelhas grossas aumentavam a expressão de selvageria, embora lembrasse um grande gato. Era tão alto quanto um cervo, mas sem a mansidão de um herbívoro. Ao contrário, ele estava furioso, com os pelos eriçados e um hálito fétido que pressagiava morte.

Jamais alguém no palácio tinha visto uma fera tão aterradora e feroz. Sua respiração pesada ecoava ameaçadora pelos corredores, enchendo os cortesãos de um medo irreprimível. O rei sentiu o espírito lhe abandonar, mas teve força o suficiente para não fugir, como fizeram muitos de seus subordinados. Apenas alguns oficiais reuniram coragem para pegar armas e atacar o tigre. Se não fosse porque a hora do monge Tang ainda não havia chegado, ele teria sido feito em pedaços ali mesmo. Felizmente, ele estava sob a secreta proteção dos Deuses da Luz e das Trevas, dos Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais e dos Protetores da Fé, e não sofreu dano algum. As armas eram inúteis, incapazes de arranhar a fera, para desespero dos que as empunhavam. A confusão durou até o cair da tarde, quando os oficiais decidiram capturar o tigre vivo, prendê-lo com correntes e trancá-lo em uma jaula de ferro, colocada na sala mais segura do palácio. 

Aliviado, o rei ordenou ao responsável pelas festas da corte que preparasse um banquete esplêndido para agradecer ao genro por ter salvado o reino do falso monge. Quando os oficiais se retiraram, o monstro foi ao Salão da Paz de Prata, onde foi servido pelas dezoito damas mais jovens e belas do palácio. Elas cantavam e dançavam incansavelmente para ele, servindo-lhe licores e vinhos. O monstro não poderia estar mais satisfeito. Sentado no lugar de honra, cercado por donzelas tão belas, ele bebia sem parar, aproveitando ao máximo o momento. 

Na segunda vigília, já bêbado, não conseguiu manter sua forma humana. Com um salto, se colocou de pé, soltou uma risada cruel e voltou à sua verdadeira aparência. Seus instintos monstruosos renasceram, e ele agarrou uma das moças que tocava um pipá (5) e a decapitou com um golpe. As outras dezessete fugiram aterrorizadas, escondendo-se onde puderam. Seus rostos de pânico lembravam o som da chuva noturna batendo nos hibiscos. Suas corridas desesperadas faziam pensar nas peônias sendo sacudidas por fortes ventos da primavera. 

Ansiosas por salvar a própria vida, elas quebraram os pipás em pedaços e destruíram as cítaras. Estavam tão desnorteadas que não sabiam se corriam para o norte ou para o sul, se as portas davam para o leste ou oeste. Empurravam-se sem piedade, sem se preocupar com as que caíam no chão. Ainda assim, tiveram presença de espírito para não fazer barulho, evitando acordar sua majestade. Tremendo como folhas ao vento, buscaram refúgio sob os beirais do palácio.

O monstro, por sua vez, permaneceu tranquilamente no salão, bebendo uma taça após a outra. Antes de se servir novamente, ele pegava o cadáver ensanguentado e dava algumas mordidas. Enquanto ele se divertia dessa forma dentro do palácio, os rumores começaram a se espalhar do lado de fora: diziam que o monge Tang era, na verdade, um monstro. Essa história absurda logo chegou à hospedaria onde os monges tinham ficado ao chegar na cidade. O lugar estava completamente vazio, exceto pelo cavalo branco, que estava nos estábulos, calmamente comendo palha e feno.

Como devem se recordar, esse cavalo era, na verdade, o Príncipe Dragão do Oceano Ocidental. Mas, por não ter obedecido ao Mandato Celestial, seus chifres e escamas foram arrancados, e ele foi transformado em um corcel branco, para que Sanzang pudesse cavalgar em sua longa jornada rumo ao Oeste. Ao ouvir as pessoas comentando que seu dono era um tigre, o cavalo se alarmou:

— Meu mestre é um homem sem falhas. Não tenho a menor dúvida de que tudo isso é obra daquele monstro, que o transformou em um tigre só para arruiná-lo. O que eu poderia fazer? Sun Wukong se foi faz tempo, e eu não sei o que aconteceu com o Monge Sha e Zhu Bajie.

Inquieto, ele esperou até a segunda vigília e, mais uma vez, se perguntou:

— Se eu não agir agora para salvar o monge Tang, pode ser que nunca mais tenha outra chance.

Incapaz de conter sua impaciência, ele arrancou as rédeas com uma mordida e sacudiu de cima a sela. Em um instante, assumiu novamente sua forma de dragão, subiu em uma nuvem e elevou-se ao céu. 


Desse glorioso momento temos um poema que diz:

“O digno monge partiu rumo ao Oeste, para prestar seus respeitos ao Mais-Digno-do-Mundo. Incontáveis demônios e bestas tentaram barrar seu caminho, mas nenhuma foi tão selvagem quanto a que o transformou em um tigre branco. Felizmente, o cavalo se libertou de suas rédeas e partiu para resgatar seu mestre.”

Do alto, o jovem Príncipe Dragão avistou o Salão da Paz de Prata, brilhando intensamente. No interior, havia oito enormes candelabros, todos com velas acesas. Após descer da nuvem, o dragão espiou com cuidado e viu o monstro sentado à cabeceira da mesa, empanturrando-se de vinho e carne humana.

— Que criatura desprezível! — pensou o dragão, sorrindo com desprezo. — Agora ele está mostrando sua verdadeira face. Sempre achei de extremo mau gosto comer gente. Bem, como não sei onde o mestre está, o melhor que posso fazer é entrar e perguntar a essa besta. Não deve ser difícil controlá-la. Se tudo der certo, pode ser que eu consiga capturá-lo e assim libertar o meu senhor.

O dragão sacudiu levemente o corpo e, instantaneamente, transformou-se em uma donzela de figura esbelta e aparência atraente. Com um gesto decidido, dirigiu-se até o demônio e, inclinando-se respeitosamente, disse:

— Por favor, não me façam nenhum mal. Apenas vim servir um pouco de vinho.

— Nesse caso, não perca tempo e me sirva — ordenou o monstro.

O jovem dragão pegou a jarra e começou a encher uma taça. Quando a taça estava cheia, ele continuou derramando vinho, mas o líquido não transbordava. Na verdade, ele aumentava de volume, como se estivesse em um recipiente de cristal. Para isso, o dragão usou uma magia conhecida como "domínio dos líquidos". 

— Uau! Vejo que você não lhe faltam habilidades — exclamou o monstro, impressionado.

— Se desejar — respondeu o dragão —, posso continuar enchendo. O ar é capaz de conter tudo.

— Sim, sim, faça isso! — exclamou novamente o monstro, satisfeito. — Continue até que eu ordene o contrário.

O jovem dragão atendeu ao pedido. Logo, a altura do vinho superou a de uma pagoda de trinta andares, sem derramar uma gota no chão. O monstro, impressionado, levou a taça aos lábios e bebeu tudo de um gole. Depois, deu uma mordida no cadáver e perguntou:

— Você sabe cantar?

— Um pouco — respondeu o dragão, e imediatamente começou a entoar uma melodia cheia de ternura. Assim que terminou, ofereceu outra taça ao monstro, que, satisfeito, questionou novamente:

— Você sabe dançar?

— Receio que só um pouco — respondeu o dragão. — Além disso, dançar com as mãos vazias pode ser um pouco entediante para você.

O monstro levantou a túnica, retirou a espada que carregava na cintura e, sacando-a da bainha, a ofereceu ao dragão. A falsa donzela pegou a arma com cuidado e começou a dançar diante da mesa. Sua técnica era realmente admirável. Com uma maestria incomum, movia a espada para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo, criando movimentos extremamente complexos. 

Quando achou que o monstro estava totalmente tonto, virou-se contra ele e desferiu um golpe mortal. A besta conseguiu se desviar a tempo, fazendo com que o dragão errasse por pouco o ataque. Sem se desanimar, o servo do monge Tang lançou um novo golpe, que colidiu com um candelabro de ferro puro que o dragão ergueu acima da cabeça, apesar de seu peso ultrapassar oitenta ou noventa quilos. 

Não havia mais espaço para truques. O dragão recuperou sua forma habitual e, abandonando o Salão da Paz de Prata, subiu pelos ares, onde se envolveu em um combate aterrador e singular contra o monstro. A escuridão era total, mas isso não impediu que a batalha fosse intensa.

Não era à toa que um dos oponentes era um monstro oriundo da Montanha da Panela e o outro, um dragão herdeiro do Oceano Ocidental. O dragão lançava raios de luz tão brilhantes quanto os relâmpagos que cortam os céus, enquanto a besta exalava um hálito fétido que se espalhava pelo ar, formando uma nuvem avermelhada. Eram tão radicalmente diferentes que o dragão lembrava um elefante com presas branquíssimas, enquanto o monstro se assemelhava a um tigre sanguinário com garras de ouro. Com razão, um havia sido comparado a um pilar de jade sustentando o firmamento, e o outro, a uma ponte de ouro que une as duas margens do oceano. O dragão de prata voava com a graça de uma bailarina, enquanto a criatura de pele amarelada saltava grotescamente para cima e para baixo. A espada não parava de desferir golpes mortais, que eram repelidos pela precisão com que o candelabro se movia.

Após medirem suas forças durante oito ou nove assaltos seguidos, no limite das nuvens, o dragão começou a sentir um desconfortante formigamento nas mãos e nos braços. Afinal, o monstro era extremamente forte e poderoso. Sabendo que não tinha mais nada a fazer, o dragão lançou a espada contra seu adversário como se fosse uma lança. A besta havia previsto essa tática desesperada e, levantando uma das mãos, agarrou a espada pelo fio, enquanto soltava o candelabro com toda a força. 

O dragão não conseguiu se desviar a tempo e o ferro o atingiu diretamente em uma das patas traseiras. Ele caiu das nuvens rapidamente, indo parar no fosso do palácio imperial, salvando, assim, sua vida. O monstro tentou persegui-lo, mas ele se afundou na água e se tornou invisível. A besta desistiu de sua empreitada e, pegando a espada e o candelabro de ferro, retornou ao Salão da Paz de Prata, onde continuou a beber até perder os sentidos, rolando pelo chão como um fardo.

Enquanto isso, o dragão permaneceu escondido no fundo do fosso. Após meia hora de absoluto silêncio, ele apertou os dentes para suportar a dor que o assolava na perna e saltou sobre as nuvens. Dessa forma, conseguiu voltar à hospedaria, onde mais uma vez se transformou em um cavalo, e caiu exausto no chão. Seu estado não podia ser mais lastimável. Encharcado e ferido, inspirava compaixão em quem o visse. Era uma imagem que lembrava a jornada de seu Mestre, que havia começado tanto tempo atrás.

O Cavalo da Vontade e o Macaco da Inteligência já não trabalhavam juntos, assim como o Senhor do Metal e a Mãe Madeira (6). Quem pode alcançar seus objetivos quando a mente e a vontade estão tão divididas?

De qualquer forma, é hora de deixarmos as desventuras de Sanzang e a derrota do dragão para trás e nos concentrarmos em Bajie. Depois de abandonar o Monge Sha à sua sorte, ele escondeu a cabeça entre os arbustos e começou a fuçar no barro como o porco que era. Apesar do medo, não demorou a se render ao cansaço, roncando como se estivesse deitado no leito de um rei. Essa soneca intempestiva durou até bem entrada a noite. Quando finalmente abriu os olhos e recuperou a consciência, não sabia nem onde estava. Teve que esfregar os olhos várias vezes para recordar o que havia acontecido. Ajeitou os ouvidos o máximo que pôde e só ouviu o angustiante clamor do silêncio. Até aquela montanha nunca chegavam os latidos dos cães nem o canto estrondoso do galo. Mais tranquilo, levantou os olhos ao céu e calculou que deveria ser por volta da terceira vigília.


— Acho — disse ele, mais tranquilo — que deveria tentar libertar o Monge Sha, mas, como dizem, "um fio de seda não é o mesmo que uma corda". E "não se pode aplaudir com uma mão só". Então, o melhor é procurar o mestre. Se conseguir convencer o rei a mandar reforços, amanhã mesmo tentarei resgatar o Monge Sha.

Bajie subiu rapidamente em uma nuvem e voltou para a cidade. Não demorou muito para chegar à hospedaria. A lua já estava no zênite, e tudo parecia tranquilo. No entanto, apesar de vasculhar todos os quartos com cuidado, não conseguiu encontrar o mestre. A única coisa que viu foi o cavalo caído no chão e em um estado lastimável. Estava completamente molhado e em uma de suas patas traseiras havia um enorme hematoma, do tamanho de uma panela de arroz.

—Isso é realmente estranho! — exclamou Bajie, ainda mais surpreso. — Que eu saiba, este cavalo não saiu daqui, e, no entanto, está suado e ferido, como se tivesse feito uma longa viagem. Mas isso é impossível. Só posso imaginar que o mestre tenha sido vítima de bandidos, e que estes espancaram esse pobre animal.

Ao perceber que era Bajie, o cavalo branco recuperou a capacidade de falar e disse:

—Irmão...

Ao ouvir isso, Bajie entrou em pânico, suas forças o abandonaram e ele caiu no chão, assustado. O mesmo medo que o derrubou o fez se levantar logo em seguida. Mas, quando estava prestes a sair correndo, o cavalo o agarrou pela túnica com os dentes e disse novamente:

— Irmão, não entendo por que você tem tanto medo.

— Como é que até hoje você não falou? — exclamou Bajie, tremendo da cabeça aos pés. — Deve ter acontecido alguma grande desgraça para você decidir romper o silêncio.

— Você não sabe o que aconteceu com nosso mestre? — perguntou o cavalo.

— Não — respondeu Bajie, intrigado.

— Claro que não! — disse o dragão, um pouco ressentido. — Você e o Monge Sha estavam se gabando de seus poderes na frente do rei, achando que podiam capturar o monstro sozinhos, e acabaram caindo na armadilha. Não culpo vocês, pois sei o quão forte é esse monstro. Mas vocês deveriam ter nos avisado sobre sua derrota. Que importância teria perder sua recompensa? Vocês deviam ter vindo nos contar! Aquele maldito monstro se disfarçou como um jovem erudito, bonito e elegante, e invadiu a corte afirmando ser genro do rei. Mas isso não foi o pior. Ele transformou nosso mestre em um tigre feroz, que foi trancado numa jaula de ferro. Quando descobri o que tinha acontecido, senti como se uma espada tivesse atravessado meu coração. Vocês já estavam fora havia alguns dias e, com medo de que o mestre fosse morto se eu não agisse rápido, fui até a corte para libertá-lo. Não consegui encontrá-lo, mas acabei me deparando com o monstro no Salão da Paz de Prata. Me transformei em uma jovem e tentei enganá-lo. No começo, tudo estava indo bem, tanto que ele me pediu para dançar com a sua espada. Aproveitei que ele estava distraído e tentei atravessá-lo, mas errei o golpe, e ele me derrotou com um pesado candelabro de ferro. No último momento, joguei a espada com toda a minha força, mas aquele monstro é incrivelmente ágil e me atingiu na pata traseira. Por sorte, caí no fosso do palácio; caso contrário, não sei como teria sobrevivido. Esse hematoma aqui foi causado pelo candelabro.

— Isso é verdade? — perguntou Bajie, alarmado.

— Por que eu iria mentir para você? — protestou o dragão.

— O que podemos fazer? — exclamou Bajie, profundamente preocupado. — Você consegue se mover?

— Por que está perguntando isso? — perguntou o dragão, com um certo desprezo.

— Para ver se você consegue voltar sozinho ao oceano de onde veio — respondeu Bajie. — Para mim, está tudo acabado. Vou pegar minhas coisas e voltar para minha esposa na aldeia do velho Gao.

Ao ouvir isso, o dragão puxou sua túnica com força, impedindo-o de seguir com seus planos.

— Não consigo entender como você pode ser tão indiferente — disse o dragão, chorando de tristeza. — Não é certo desistir do que começamos.

— Por que não? — protestou Bajie. — O Monge Sha está nas mãos do monstro, e eu não tenho forças para derrotá-lo. Acho que é hora de seguirmos cada um por seu caminho. Não há mais nada que possamos fazer.

O dragão refletiu em silêncio por alguns segundos e, com os olhos cheios de lágrimas, disse:

— Acredito que você não deveria falar tão rapidamente sobre voltarmos para o lugar de onde viemos. Se realmente deseja salvar o mestre, basta procurar uma pessoa e trazê-la aqui.

— De quem se trata? — perguntou Bajie, surpreso.

— De nosso irmão mais velho — respondeu o dragão. — Você deveria montar em uma nuvem e ir o mais rápido possível à Montanha das Flores e Frutos. Convença o Peregrino Sun a vir aqui sem perder tempo. Ele certamente possui poder suficiente para dominar o monstro e libertar nosso mestre. Assim, poderemos nos vingar de nossa derrota e seguir viagem.

— Não, não — replicou Bajie, balançando a cabeça. — É melhor que outra pessoa vá até ele. Esse macaco e eu não nos damos muito bem, sabe? Quando ele matou a Dama dos Ossos Brancos na Montanha do Tigre, eu sugeri ao mestre que recitasse o feitiço que causa aquelas dores de cabeça horríveis. Isso nos tornou inimigos para sempre. Reconheço que agi de forma imprudente, mas, na verdade, nunca pensei que o mestre fosse me ouvir, e muito menos que iria expulsar o nosso irmão. Tenho certeza de que ele me odeia com todas as suas forças e,  não importa o que eu diga, ele não vai concordar em voltar comigo. Suponha que começamos a discutir. Você sabe o quão pesada é a barra de ferro dele. Se ele resolver me acertar com ela, terei muita sorte se continuar vivo.

— Você sabe que ele nunca faria uma coisa dessas — respondeu o dragão. — Por mais que isso lhe incomode, ele é junto e tem um bom coração. Quando o encontrar, não diga que o mestre está em perigo. Apenas comente que ele não para de pensar nele e faça o que for necessário para convencê-lo a voltar. Assim que ele vier e ver o que está acontecendo, ficará furioso e desafiará aquele monstro cruel. E quando derrotá-lo, salvará nosso mestre, e poderemos seguir em frente.

— Tudo bem — concluiu Bajie. — Se eu não fizer o que você disse, todos vão pensar que sou irresponsável e ingrato. Então, irei em busca do Peregrino e, se ele não se recusar a me acompanhar, voltarei com ele. Mas vou deixar uma coisa clara: se ele não concordar em voltar comigo, não me espere, porque eu também não voltarei.

— Vá o quanto antes — apressou-o o dragão. — Eu o conheço bem, e sei que ele virá.

Bajie deixou de lado o ancinho e arrumou sua roupa rapidamente. Em seguida, subiu aos céus e, montado em uma nuvem, dirigiu-se para o leste. 

Estava claro que ainda não era chegada a hora do monge Tang, pois o vento soprava forte na direção que Bajie seguia. Na verdade, o vento estava tão intenso que ele só precisou abrir suas enormes orelhas para ganhar velocidade sobre o Oceano Oriental. Parecia que ele tinha velas e as havia içado de costas para o vento.

O sol mal havia nascido quando Bajie finalmente chegou ao fim da viagem e saltou da nuvem. Não tinha dado dez passos quando ouviu alguém falando. Olhando com cuidado na direção das vozes, viu o Peregrino sentado em uma enorme rocha, bem no centro de um vale. À sua frente, mais de mil e duzentos macacos estavam alinhados em formação militar, gritando entusiasmados:

— Viva nosso pai, o Grande Sábio!

— Que maravilha! — exclamou Bajie para si mesmo. — Agora entendo por que ele não quer continuar sendo um monge. Aqui ele é muito melhor tratado do que nas estradas. Basta olhar para esses macacos para perceber o carinho e a devoção que têm por ele. Se eu tivesse um lugar tão esplêndido quanto este, também renunciaria ao monastério. Mas, infelizmente, não é o meu caso. O que posso fazer agora? Acho que o melhor é me apresentar logo.

Apesar disso, Bajie estava com medo do Peregrino e hesitou em se mostrar abertamente. Ele se arrastou pela grama, de quatro, sem coragem de erguer os olhos, tentando se infiltrar despercebido entre as filas coloridas dos macacos. No entanto, o Grande Sábio, com sua visão aguçada, logo notou sua presença e, erguendo a voz, perguntou:

— Quem é esse selvagem que está quebrando a ordem nas nossas fileiras? Alguém sabe de onde ele veio? Tragam-no imediatamente à minha presença!

Assim que terminou de falar, os macacos empurraram Bajie para frente, rápidos como um enxame de abelhas, forçando-o a manter o rosto colado ao chão.

— Pode me dizer de onde você veio, selvagem? — perguntou o Peregrino.

— É uma grande honra o senhor me dirigir a palavra — respondeu Bajie, sem ousar levantar a cabeça. — Mas devo avisar que não sou um selvagem, mas um velho conhecido seu.

— Não me diga! — exclamou o Peregrino. — Todos os macacos sob meu comando têm traços parecidos, e nenhum deles tem um rosto tão repulsivo como o que você tem. Você deve ser algum monstro vindo de uma terra bem distante. Se deve se tornar meu súdito, o que precisa fazer é escrever seu nome, sua idade e todos os seus dados em uma tabuleta e entregá-la a um dos meus subordinados. Nós o chamaremos para as filas no momento certo. Se te chamei de selvagem, foi porque apareceu diante de mim sem a menor consideração pelas regras de etiqueta. Como se atreveu a fazer uma coisa dessas?

— Peço desculpas se o ofendi — respondeu Bajie, ainda com a cabeça abaixada —, mas, por mais que não acredite, fui seu irmão por muitos anos. Se me chamou de selvagem, é porque não me reconheceu.

— Sério? — exclamou novamente o Peregrino. — Levante a cabeça para que eu possa vê-lo.

Timidamente, Bajie evantou o focinho, tremendo dos pés à cabeça, e disse:

— Espero que, mesmo que não lembre de mim, ao menos reconheça meu focinho inconfundível.

O Peregrino não conseguiu segurar a risada e exclamou:  

— Zhu Bajie!  

— Sim, sim! Zhu Bajie! — gritou Bajie, levantando-se de um salto. — Eu sou Zhu Bajie! 

Depois, mais calmo, acrescentou: 

— Agora que me reconheceu, vai ser mais fácil eu me expressar como deveria.

— Posso saber por que você não está acompanhando o monge Tang em sua missão de conseguir as escrituras sagradas? Não me diga que você também o ofendeu e foi expulso, como eu. Ele te entregou alguma carta de demissão? Se sim, eu gostaria de vê-la.

— Por que ele me entregaria uma carta dessas se eu não o ofendi e nem fui expulso? — retrucou Bajie.

— Então, por que você está aqui e não ao lado dele? — insistiu o Peregrino.  

— O mestre não para de pensar em você nem por um segundo e me pediu para vir pedir que você volte.

— Isso não é verdade — protestou o Peregrino. — Ele não pensou em mim, e muito menos te pediu para fazer o que você está dizendo. No dia em que me expulsou, ele jurou diante do Céu que nunca mais me aceitaria de volta. Como ele poderia  mudar de ideia agora? E, mesmo que fosse verdade, eu não estou disposto a me humilhar de novo diante dele.

— Mas é verdade, ele sempre te teve em mente! — mentiu Bajie com firmeza. — Ele nunca deixou de pensar em você!

— Você pode me dar algum detalhe concreto de quando isso aconteceu? — perguntou o Peregrino, ainda incrédulo.

— Pouco depois de você partir, o mestre estava montado em seu cavalo e chamou por nós em voz alta, mas nem o Monge Sha nem eu conseguimos ouvi-lo. Parecia que, de repente, ficamos surdos. Isso fez o mestre se lembrar de você, chamando-nos de inúteis e elogiando suas habilidades.  Ele disse que você respondia imediatamente aos seus chamados e que tinha uma inteligência tão afiada que sempre tinha pelo menos dez soluções para qualquer problema. Foi aí que você veio à tona na conversa. Não demorou muito até que ele me enviasse para pedir que você voltasse. Por favor, atenda ao pedido. Se não quiser fazer isso pelo mestre, faça ao menos por consideração à longa jornada que fiz para trazer essa ordem.

Ao ouvir isso, o Peregrino saltou da enorme rocha onde estava sentado e, segurando as mãos de Bajie, disse:  

— Lamento que, por minha causa, você tenha feito uma viagem tão longa. Acho que o melhor a fazer é celebrar como você merece.

— Não, não — protestou Bajie. — Este lugar é muito distante, e não gosto de deixar o mestre esperando. Seria melhor irmos o quanto antes.

— Depois de tudo — insistiu o Peregrino —é a primeira vez que você vem aqui. Não custa nada dar uma olhada na minha montanha, certo?

Bajie, sem coragem de recusar mais uma vez, seguiu o Peregrino em silêncio. De mãos dadas, eles subiram ao ponto mais alto da Montanha das Flores e Frutos, com os outros macacos caminhando atrás deles em silêncio. A montanha tinha passado por uma grande reforma desde o retorno do Grande Sábio. Ele mesmo havia se encarregado de devolver a ela seu antigo esplendor, trabalhando arduamente com suas próprias mãos. 

Agora, ela estava tão coberta de verde que parecia uma peça de jade esculpida. Era tão alta que seu cume desaparecia entre as nuvens. Por todo lado, podiam ser vistos tigres agachados e dragões enrolados, que escutavam, impassíveis, os gritos contínuos dos macacos e das garças. Ao amanhecer, as nuvens pareciam adormecer no topo da montanha, e ao entardecer, o sol dava a impressão de querer se deitar sobre a floresta.

Na atmosfera, ouvia-se um murmúrio de águas que lembrava o tilintar do jade e as notas dispersas de um imenso saltério. Em frente à montanha, erguiam-se cordilheiras altíssimas com penhascos íngremes, enquanto, em sua parte posterior, se estendiam vastos tapetes de flores e florestas densas. A montanha era tão alta que seu cume tocava o recipiente celestial onde a Donzela de Jade lava seus cabelos, conectando a terra a um afluente do Rio Celeste.

A beleza de tudo ali superava, e muito, a de Penglai. Era, de fato, um lugar nascido do primeiro sopro que deu vida ao cosmos. Era um lugar tão perfeito que nenhum artista seria capaz de capturar sua essência em uma pintura, difícil até mesmo para um imortal modelá-lo em um rolo de seda. As formas peculiares das rochas pareciam esculpidas por um renomado escultor, e as cores no cume eram obra de um mestre pintor. Até o sol parecia encantado com sua beleza, destacando, com seus raios, a perfeição dos contornos.

Uma atmosfera de tranquilidade reinava naquele paraíso, onde habitavam as névoas avermelhadas da felicidade. Aquela era, de fato, era uma caverna sagrada, um lugar único, uma montanha extraordinária cheia de flores frescas e árvores exuberantes. Encantado com o esplendor à sua frente, Bajie não pôde deixar de exclamar:

— Este é um lugar realmente encantador! Duvido que haja no mundo outra montanha como esta.  

— Não gostaria de passar um tempo aqui? — provocou o Peregrino.  

— Que jeito de falar o seu! — exclamou Bajie, sorrindo. — Este é um lugar onde o céu derramou todas as suas bênçãos, e você me fala em "passar o tempo" aqui? Só pode estar brincando!

Durante horas e horas, os dois conversaram amigavelmente, sentados no cume daquela montanha sagrada. Quando finalmente decidiram descer, encontraram uma fila interminável de macacos que seguravam em suas mãos bandejas cheias de uvas roxas, peras aromáticas, pêssegos de um dourado brilhante e morangos de um vermelho escuro. Eles se ajoelharam ao lado do caminho e, levantando a voz, disseram:  

— Peguem o que quiserem, Grande Sábio. É hora do café da manhã e vocês não comeram nada.  

— Meu irmão Zhu tem um apetite insaciável, mas não gosta de frutas no café da manhã — respondeu o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Espero, de qualquer forma, que não se ofenda e aceite isso como um simples aperitivo.  

— Embora eu tenha um apetite extraordinário, meu lema sempre foi me adaptar aos costumes dos lugares que visito. Então não levem tudo isso. Se não se importarem, irei provar um pouco dessas frutas.  

Sem mais delongas, os dois começaram a comer vorazmente. O sol já estava alto quando terminaram de tomar o café da manhã. Temendo que não houvesse muito tempo para salvar o monge Tang, Bajie tentou apressar seu companheiro, dizendo:  

— Precisamos nos apressar. O mestre deve estar nos esperando com certa impaciência.  


— Para que tanta pressa? — protestou o Peregrino. — Antes de partir, gostaria que você se divertisse um pouco mais comigo na Caverna da Cortina de Água.  

— Agradeço de verdade — respondeu Bajie, recusando o convite —, mas o mestre deve estar muito preocupado com nossa demora. Entraremos na sua caverna da próxima vez que passar por aqui.  

— Nesse caso — concluiu o Peregrino —, não atrasarei mais a sua partida. Vamos nos despedir aqui mesmo.  

— Você não vai vir comigo? — exclamou Bajie, muito inquieto.  

— Para onde? — perguntou o Peregrino. — Este é o meu lugar. Nem o Céu nem a Terra têm poder sobre ele. Aqui desfruto de total liberdade. Que necessidade tenho de renunciar a tudo isso para me tornar novamente um monge sem futuro? Sinto muito mas não pretendo me mover daqui. Receio que você tenha que partir tão só quanto veio. Diga ao monge Tang que não pense mais em mim. Se ele quisesse, não teria me afastado de seu lado da maneira como o fez.  

Bajie não se atreveu a insistir, com medo de que o Peregrino perdesse a paciência e lhe desse alguns golpes com sua barra de ferro. Sem escolha, despediu-se e começou o caminho de volta. Vendo-o partir cabisbaixo, o Peregrino ordenou a dois macacos que o seguissem e ouvissem atentamente o que ele dissesse. Mal havia descido três ou quatro quilômetros pela montanha, quando se virou de repente, apontou na direção onde o Peregrino deveria estar e, com uma raiva incomum, gritou:

— Maldito macaco! Então você prefere largar a vida de monge para virar um monstro de má índole? Pois bem! A escolha é sua! Eu vim até aqui, de coração aberto, para pedir que você voltasse, mas não quis me ouvir. Ninguém poderá dizer que não fiz minha parte. Agora, você é livre para fazer o que bem entender!

Depois de caminhar mais um pouco, ele começou novamente a lançar insultos. Os dois macacos correram de volta até seu senhor e relataram tudo o que ouviram:

— Esse Zhu Bajie está meio pirado. Ele não para de insultá-lo enquanto caminha.

— Tragam-no imediatamente até mim! — gritou o Peregrino, fora de si.  

Os macacos saíram em perseguição a Bajie, que se viu cercado em um instante. Alguns agarraram seus cabelos, outros o puxaram sem consideração pelas orelhas, e a maioria se divertiu com seu frágil rabo. Em pouco tempo, ele foi reduzido a um estado lastimável e levado à caverna do seu antigo irmão.

Não sabemos como ele foi tratado lá ou o que aconteceu com ele. Quem deseja descobrir isso terá que ouvir com atenção as explicações que serão oferecidas no próximo capítulo.


CAPITULO XXXI EM BREVE ...

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Notas do Capítulo XXX

  1. O Monge Sha é o terceiro discípulo do Monte Tang. Aqui, o monstro lhe atribui o segundo lugar porque ainda desconhece a existência de Sun Wukong;
  2. Cao Zhi foi o terceiro filho de Cao Cao e logo se tornou famoso como um bom escritor e poeta. Diz a lenda que ele era tão talentoso com as palavras que conseguia compor um poema antes de dar sete passos;
  3. Pan Yue era um jovem da dinastia Qin tão atraente e encantador que as mulheres se aglomeravam ao seu redor, atirando flores e frutas a seus pés;
  4. Segundo a crença popular, o Velho da Lua atava os pés com fitas vermelhas daquelas pessoas que estavam destinadas a se tornarem esposas;
  5. Pipa é um instrumento musical de quatro cordas que, de certa forma, se assemelha ao alaúde;
  6. Denominação aplicada a Sun Wukong e Zhu Wuneng, por serem considerados personificações das Cinco Fases.




  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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Ruby