30 de setembro de 2024

A Epopéia de Gilgamesh - Tábua II

 ۞ ADM Sleipnir

Arte de MarmaduX para o moba SMITE


TÁBUA II

O texto desta tábua foi muito danificado. A harimtu (prostituta sagrada) empreende a tarefa de iniciar Enkidu na vida humana e civilizada. Mais tarde, enquanto ambos seguem em direção a Uruk, Enkidu se depara com um camponês que lhe revela a verdadeira condição do homem, que deve ganhar a vida ao custo de mil fadigas. Enkidu e a harimtu entram em Uruk. Supõe-se que seja por causa da mulher que Gilgamesh e Enkidu lutam. Gilgamesh, apesar de sua força, é derrotado por Enkidu; mas este manifesta sua admiração pela resistência do rei de Uruk, e eles se tornam amigos.

Coluna I

(Esta coluna foi perdida)

Coluna II

(Texto babilônico. A narração, mais abreviada que na versão assíria, retoma, desde os primeiros versos, o texto assírio da coluna IV)

Enquanto Gilgamesh contava seu sonho,
Enkidu estava sentado perto da cortesã,
e a acariciava e a despia.
Enkidu esquecia-se do lugar de seu nascimento!
Durante seis dias e sete noites,
Enkidu desfrutou da prostituta.
Então ela abriu a boca
e disse a Enkidu:
"Quando olho para você, Enkidu, percebo que é como um deus.
Por que você se junta, na planície,
com as bestas selvagens?
Venha comigo! Eu o conduzirei
até Uruk, das amplas praças,
ao templo sagrado, morada do deus Anu.
Levante-se, Enkidu! Eu o conduzirei
ao templo sagrado, morada do deus Anu.
Em Uruk vive Gilgamesh, cheio de força.
Você o abraçará como se fosse sua esposa,
o amará como a si mesmo.
Vamos! Levante-se do chão,
que é o leito dos pastores."

Enkidu escutou com prazer essas palavras,
e o conselho da mulher
penetrou em seu coração.
Ela pegou uma de suas vestes
e a colocou no homem;
com outra roupa ela se vestiu.
Então, segurando-o pela mão
como se fosse seu filho, ela o guiou
até os pastos verdes,
onde estão os currais,
até o lugar onde se reúnem os pastores...

(Lacuna)

pois Enkidu, que havia nascido nas montanhas,
até então havia pastado com as gazelas,
bebia com os rebanhos nas fontes,
e gostava de beber com as bestas selvagens.

 


Coluna III

O leite das bestas selvagens
ele costumava mamar.
Deram-lhe alimentos;
inquieto, ele abria a boca,
olhava fixamente para eles,
sem saber o que fazer.
Do pão que se come
e da cerveja que se bebe,
nada sabia.
A prostituta abriu a boca
e disse a Enkidu:
"Come deste pão, ó Enkidu,
que dá vida,
bebe a cerveja, como é costume aqui."

Enkidu então comeu pão
até ficar saciado;
bebeu depois cerveja,
bebeu sete vezes,
e seu espírito se libertou, e falou em voz alta,
cheio o corpo de bem-estar
e o rosto resplandecente.
Cortaram a mata
de pelos de seu corpo,
ele se esfregou com óleo,
como fazem os homens.
Vestiu-se com roupas,
parecia um noivo!
Pegou sua arma,
atacou os leões,
e assim os pastores descansaram à noite.
Capturou lobos,
prendeu leões,
e dos pastores que descansavam
Enkidu foi o protetor...

(Faltam alguns versos)

 

Coluna IV

Enkidu levantou os olhos
e viu o homem.
Disse à prostituta:
"Moça, chame aquele homem!
Por que ele vem aqui?"
A prostituta chamou o homem,
que se aproximou de Enkidu, que o viu e disse:
"Homem, por que você veio?
Qual é o objetivo da sua penosa viagem?"
O homem abriu a boca e respondeu:
"Na Morada da Reunião são decididos,
de fato, os destinos dos homens.
O homem
é sobrecarregado de trabalho na cidade.
Os campos são lugares de lamentos!
Por ordem do rei de Uruk,
arrasta-se o povo para os cultivos!
Por ordem de Gilgamesh, rei da muralhada Uruk,
arrasta-se o povo
para os cultivos!
A mulher destinada pela sorte
é logo fecundada pelo homem,
e depois, vem a morte!
Por ordem do deus foi decretado
que, desde o ventre de sua mãe,
esse seja o seu destino."

Ao ouvir tais palavras,
Enkidu empalideceu.


Coluna V

(Faltam cerca de 6 versos)

Enkidu vai à frente,
e atrás dele marcha a prostituta.
Quando ele entra em Uruk, das amplas praças,
o povo vem ao seu encontro.
Ele para nas ruas
de Uruk, das amplas praças,
onde as pessoas se reúnem
e dizem sobre ele:
"Como ele se parece com Gilgamesh!
Embora seja mais baixo,
tem os ossos mais robustos...
Agora é um dos mais fortes do país.
O leite dos rebanhos
ele costumava mamar.
Em Uruk haverá um constante choque de armas..."

Os nobres se regozijam:
"Um herói apareceu
para o homem de porte nobre.
Para Gilgamesh, semelhante a um deus,
chegou seu igual."

Para a deusa Isharra (1), uma cama
foi preparada
na Morada da Reunião.
Gilgamesh, à noite,
se esgueira para fora...
Mas Enkidu, na rua,
bloqueia o caminho
de Gilgamesh...
Eles se agarram diante da porta da Morada da Reunião.

(Faltam cerca de 9 versos)

 


Coluna VI

Contra Gilgamesh lançou-se Enkidu,
com os cabelos desgrenhados.
Levantou-se
contra ele,
e mediram suas forças na grande praça.
Enkidu bloqueou a porta
com seu pé,
e Gilgamesh não conseguiu entrar.
Eles se agarraram,
como dois ferozes touros
se lançaram um contra o outro.
Fizeram estilhaços da porta,
derrubaram o muro.
Gilgamesh e Enkidu
se agarraram;
como dois touros ferozes
se lançaram um contra o outro.
Fizeram estilhaços da porta,
derrubaram o muro.
Gilgamesh teve que ajoelhar
uma perna no chão.
Sua cólera acalmou-se,
seu peito sossegou;
quando seu peito se aquietou,
Enkidu falou assim a Gilgamesh:
"Único entre todos, tua mãe
te deu à luz,
a fogosa vaca do estábulo,
a divina Ninsun,
que elevou tua cabeça
acima dos outros homens!
Enlil te nomeou rei
do povo!"


FIM DA TÁBUA II



Notas:

  1. Isharra é uma deusa associada ao amor, ao casamento e aos juramentos na antiga Mesopotâmia. Sua origem remonta ao período sumério-acádio, e ela foi particularmente reverenciada nas culturas babilônica e assíria. Embora não seja tão conhecida quanto deusas como Ishtar (Inanna) ou Ninhursag, Isharra desempenhava um papel importante nas práticas religiosas e nos ritos sociais, especialmente aqueles ligados a juramentos e alianças matrimoniais.

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27 de setembro de 2024

A Jornada ao Oeste: Capítulo XXVII

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO XXVII:


O GRANDE SÁBIO DERROTA O DEMÔNIO DAS TRÊS TRANSFORMAÇÕES. O MONGE TANG EXPULSA O SEU DISCÍPULO MAIS FIEL.


Sanzang e seus discípulos fizeram todos os preparativos para retomarem sua jornada na manhã seguinte, mas o Mestre Zhenyuan havia se tornado um grande amigo do Peregrino e se recusava a deixá-los partir. Após selar com ele um pacto de irmandade, ele deu ordens para que os festejassem sem parar por cinco ou seis dias. No entanto, tanto o espírito quanto o corpo de Sanzang haviam se fortalecido de forma incrível depois de provar o fruto da Árvore do Cinábrio Revertido, e ele recusou-se terminantemente a ficar ali por mais um dia sequer. Ele estava decidido a obter as escrituras sagradas a qualquer preço, e partiram assim que o sol nasceu. 

Após poucas horas de viagem, eles encontraram uma montanha muito alta, e Sanzang disse aos seus discípulos:

— A cordilheira à nossa frente parece ser íngreme e acidentada,  e temo que o cavalo não consiga prosseguir tão facilmente por ela. Sugiro, portanto, que caminhemos devagar e com muito cuidado.

— Não tenha medo, mestre — respondeu o Peregrino. — Sabe que somos capazes de superar qualquer dificuldade. Prova disso é que chegamos até aqui. 

Como prova de sua inegável competência, o Peregrino encarregou-se pessoalmente de liderar o caminho, carregando seu bastão de ferro nos ombros e abrindo caminho ao longo das íngremes encostas. 

Os picos e desfiladeiros se sucediam incessantemente, um após o outro. Pressentia-se a presença de torrentes intransponíveis no fundo de abismos profundos, onde se esgueiravam, sorrateiramente, bandos inteiros de tigres e lobos. Ao longe, viam-se grandes rebanhos de veados, enquanto incontáveis famílias de javalis enchiam o ar com gritos e corridas frenéticas. Aquela montanha estava literalmente infestada de raposas e lebres. Mas nem todos os animais que a habitavam eram tão inofensivos, pois, entre as folhagens, escondiam-se uma enorme píton, com mais de mil pés de comprimento, e uma terrível serpente que chegava aos dez mil pés de extensão. Ambas exalavam pelas narinas um vapor venenoso que impregnava o ar de morte e destruição. Os caminhos estavam salpicados de cardos e espinhos, embora nos picos mais altos crescessem esplêndidos cedros e pinheiros. Para onde quer que se olhasse, viam-se trepadeiras selvagens, cuja fragrância subia, livre, aos céus, fazendo esquecer o fétido e venenoso hálito das serpentes. Diante dos viajantes, erguiam-se milhares de cumes cobertos de neve, que brilhavam, como se fossem de prata, sob a suave carícia dos raios do sol. Nos desfiladeiros e gargantas escondia-se o sopro divino de onde tudo surgira.

Sanzang estava amedrontado, mas o Peregrino estava pronto para mostrar suas habilidades.  Segurando firmemente seu bastão de ferro, soltou um grito tão selvagem que os lobos e serpentes correram para se refugiar em suas tocas, enquanto tigres e leopardos fugiam apavorados, como donzelas. Dessa forma, conseguiram subir a montanha sem que nenhuma besta os incomodasse.

Quando finalmente chegaram ao topo, Sanzang disse a Wukong:

— Estamos viajando há quase um dia, e já estou ficando sem forças. Por que não vai procurar alguma comida vegetariana para mim?

— Mestre, você não é muito esperto! — replicou o Peregrino, tentando acalmá-lo com um sorriso. — Estamos em um lugar totalmente selvagem e não se vê nenhum sinal de habitação. Onde quer que eu encontre comida vegetariana? Não conseguiria nem mesmo se tivéssemos todo o dinheiro do mundo.

— Maldito macaco! — exclamou Sanzang, visivelmente irritado com seu discípulo. Já esqueceu a vida que levava na Montanha das Duas Fronteiras? Tathagata havia colocado sobre você uma cordilheira inteira, tornando-o incapaz de mover um único músculo, exceto a boca. Deve sua vida a mim. Lembre-se sempre disso. Mas, se isso não lhe parece suficiente, tenha em mente que você aceitou se tornar meu discípulo após minha imposição de mãos e a aceitação de todos os mandamentos. Por que insiste em ignorar a humildade? Será que não consegue demonstrar um pouco mais de diligência?

— Pelo que sei — defendeu-se o Peregrino —, tenho sido bastante diligente. Quando foi que eu fui preguiçoso?

— Não basta a resposta que acabou de me dar? — replicou Sanzang. — Por que se recusa a ir pedir um pouco de comida vegetariana para mim? Como poderei continuar a viagem se estou com o estômago completamente vazio? Enfraquecido pela fome e por esses vapores pestilentos que emanam de todos os lados, não demorarei a adoecer e nunca conseguirei alcançar o Monastério do Trovão. Quem será o culpado de tal fracasso retumbante? Diga! Quem?

— Está bem, está bem — respondeu o Peregrino. — Compreendo perfeitamente. Você tem uma natureza arrogante e orgulhosa, que o faz se enfurecer por qualquer trivialidade. O problema é que sempre recorre ao seu feitiço para me torturar. Mas, enfim, não falemos mais disso. Desça do cavalo e descanse um pouco, enquanto vou procurar alguém a quem pedir um pouco de comida.

Ele não havia terminado de falar quando deu um salto e se elevou acima das nuvens. Usando as mãos como viseira, olhou ao redor, mas não conseguiu avistar nenhum povoado. O caminho que levava ao Oeste estava completamente deserto. As florestas e arbustos se contavam aos milhares, mas não havia nenhum sinal de habitação humana. O Peregrino, no entanto, não desanimou e continuou olhando à distância por um bom tempo. Finalmente, avistou, ao sul, uma montanha muito alta, em cuja encosta oriental pareciam haver pequenos pontos vermelhos. 

Wukong então desceu rapidamente das nuvens e informou seu mestre, dizendo:

— Acho que encontrei algo para comer.

O mestre perguntou do que se tratava, e ele acrescentou:

— Não há uma única cabana por aqui onde possamos pedir um pouco de arroz. No entanto, em uma montanha ao sul, descobri alguns pontos vermelhos que, se não me engano, são pêssegos silvestres totalmente maduros. Se me permitir ir até lá, trarei alguns para saciar sua fome.

— Como poderia me recusar a deixá-lo partir? — exclamou Sanzang, satisfeito. — Para quem renunciou à família, os pêssegos são uma verdadeira bênção.

O Peregrino pegou a tigela de mendicância e montou em uma nuvem sagrada. Ele imprimiu tanta velocidade que deixou para trás uma trilha de vapor esbranquiçado e frio, enquanto se dirigia diretamente à montanha do sul em busca dos pêssegos.

No entanto, como bem afirma um provérbio, "não há cume sem monstros nem pico onde não habite um demônio". O lugar escolhido por Sanzang para descansar não era exceção a essa regra. Nessa montanha havia, de fato, um espírito monstro, que ficou extremamente incomodado com a partida repentina do Grande Sábio. Montado em um vento sombrio, espiou por cima das nuvens e, ao ver o monge Tang sentado no chão, exclamou, incapaz de conter sua alegria:

— Que sorte a minha! Há anos ouço relatos sobre a jornada desse tal monge Tang, uma empreitada insana que o leva das Terras do Leste até o Paraíso Ocidental, onde ele espera aprender a doutrina do Grande Meio. O mais incrível, porém, é que esse monge é a reencarnação da Cigarra Dourada. Seu corpo foi purificado de tal forma durante suas últimas dez transmigrações que quem comer um pedaço de sua carne terá sua vida imensuravelmente prolongada. Que sorte a minha ele ter vindo parar justamente em meus domínios!

Quando estava prestes a saltar sobre Sanzang, viu dois guerreiros ao lado dele e desistiu de atacá-lo naquele momento. Os valentes protetores do monge não eram outros senão Bajie e o Monge Sha. Por mais inúteis e egoístas que pudessem parecer, ambos haviam ocupado grandes postos militares, e sua autoridade não havia sofrido uma perda irreparável. O que mais se poderia esperar de quem, em sua época, ostentava os títulos de Marechal dos Juncos Celestes e Marechal que Levanta a Cortina? O monstro estava ciente de seu passado e não ousou aproximar-se deles. Aos poucos, no entanto, começou a reunir coragem e finalmente disse a si mesmo:

— Não posso esperar por uma oportunidade melhor!


Desceu apressadamente do vento escuro no qual cavalgava e, com um leve sacudir do corpo, transformou-se em uma donzela com o rosto tão delicado quanto a lua e tão belo quanto as flores. Sua beleza era tal que não podia ser descrita adequadamente com palavras. Possuía olhos cheios de paixão, sobrancelhas traçadas com elegância, dentes impressionantemente brancos e lábios tão vermelhos quanto uma cereja. Na mão esquerda, carregava um cântaro de arenito azul, e na direita, um jarro de porcelana verde. 

Caminhando lentamente do oeste para o leste, dirigiu-se até onde estava o monge Tang, que imediatamente se sentiu atraído por ela. Era difícil resistir à delicadeza de suas mãos, que se moviam ritmicamente enquanto andava, e à graça de seus pequenos pés, que se mostravam brevemente entre as dobras de sua saia de seda de Hunan. O suor que molhava o seu rosto fazia com que parecesse uma flor coberta de orvalho, enquanto as partículas de poeira em suas sobrancelhas lembravam, de alguma forma, os fragmentos de névoa que envolvem os salgueiros. Sanzang não conseguia tirar os olhos dela. Sentia que ela vinha diretamente em sua direção e seu coração começou a bater mais rápido. Finalmente, ele se recompôs e, dirigindo-se a Bajie e ao Monge Sha, exclamou:

— Wukong disse agora pouco que esta era uma região totalmente deserta. Mas não é um ser humano quem está vindo ali?

— Mestre — respondeu Bajie —, fique aqui com o Monge Sha enquanto eu vou dar uma olhada.

Bajie deixou o ancinho de lado, ajeitou suas roupas o melhor que pôde e, adotando uma atitude educada, correu em direção à mulher. Com razão afirma o provérbio que "de longe não se pode apreciar a verdade e só se vê claramente o que se olha de perto". A beleza da moça era, de fato, cativante: ela possuía uma pele tão branca quanto o gelo, sob a qual se adivinhavam ossos tão consistentes quanto o jade. A brancura de seu pescoço pressagiava seios firmes e bem formados. Suas sobrancelhas lembravam de alguma forma salgueiros eternamente verdes e seus olhos amendoados brilhavam como estrelas de prata. Toda a sua figura exalava uma sedução graciosa, embora ninguém ousasse duvidar da pureza de suas intenções. Seu corpo era como o de uma andorinha que havia feito ninho em um salgueiro. Não por acaso, sua voz trazia à mente o delicado canto de uma cigarra ressoando na densidade da floresta. Seu porte ao andar era o de uma peônia recém-aberta, que mostrava, tentadora, todo o seu encanto. Quando Bajie viu quão bela ela era, não pôde evitar exclamar, atônito:

— Posso saber para onde a senhorita está indo? O que é isso que você carrega em suas mãos?

Seu disfarce era tão perfeito que Bajie não suspeitou em nada de sua natureza demoníaca. Isso a animou a responder imediatamente:

— O que trago no jarro azul são tortas de vinho feitas com arroz aromatizado, e no jarro verde um pouco de glúten de trigo frito. Faz tempo prometi alimentar todos os monges com os quais me encontrasse, e desde então não tenho feito outra coisa senão percorrer estes lugares, buscando cumprir minha promessa.

Bajie se sentiu profundamente lisonjeado ao ouvir isso. Ele se virou apressadamente e correu até onde estava Sanzang, gritando sem parar como um porco atormentado por parasitas:

"Ao homem bom nunca falta a ajuda do Céu." Como a fome corroía vossas entranhas, mandaste nosso irmão mais velho mendigar um pouco de comida vegetariana. Mas, não sabemos para onde ele foi, nem quanto tempo levará para voltar com os pêssegos. Além disso, essas frutas podem ser um tanto pesadas e enchem o estômago de gases. Porém, veja só, nossa sorte está prestes a mudar, pois ali vem uma moça encantadora, pronta para nos alimentar só porque somos monges.

— Deixe de brincadeiras, por favor! — exclamou, incrédulo, o monge Tang. — Temos vagado pelo mundo há muito tempo e ainda não encontramos uma pessoa como a que diz. Duvido que exista alguém que passe o tempo alimentando monges.

— Não é tão raro quanto pensa afirmou Bajie com convicção. — Aqui está uma dama que faz exatamente isso.

Ao vê-la ao seu lado, Sanzang deu um salto e, juntando as mãos em sinal de respeito, perguntou, muito nervoso:

— De onde vem, e a que família pertence? Por que fez esse estranho voto de alimentar todos os monges que encontrar?

Embora fosse um verdadeiro demônio, Sanzang não a reconheceu. O monstro jamais imaginou que chegaria tão longe, então precisou inventar, no momento, um passado convincente para satisfazer a curiosidade do monge Tang.

— Esta montanha — começou a dizer o demônio — é conhecida pelo nome de Tigre Branco, devido à enorme quantidade de serpentes e feras que habitam nela. Minha casa fica ao oeste daqui. Meus pais são pessoas muito piedosas, que passam o dia recitando sutras e fazendo obras de caridade. Foi deles que adquiri o costume de alimentar a todos os monges que se aventuram a cruzar esse lugar. Mesmo depois de muitos anos casados, não tiveram filhos e, se não fosse pela intervenção dos deuses, eu também não teria nascido. Eles queriam me casar com um jovem de família nobre, mas, devido à idade avançada, decidiram acolher um genro para cuidar deles. Assim, nada lhes faltaria, nem nesta vida nem depois.

— Perdoe-me — replicou Sanzang —, mas sua explicação me parece um tanto peculiar. Como diz os escritos do sábio: "enquanto vivem nossos pais, não devemos nos afastar por muito tempo, e, se o fazemos, é para visitar lugares que conhecemos bem" (1) Você mencionou que seus pais ainda estão vivos e que acolheram um genro para cuidar deles. Não seria mais apropriado que o seu marido cumprisse esse voto no seu lugar ? Não parece certo que uma dama percorra sozinha montanhas tão perigosas, sem criados ou acompanhantes. Desculpe minha franqueza, mas me parece muito arriscado para você.

— Meu marido — explicou então a mulher, sorrindo de forma compreensiva está ao norte desta montanha, arando os campos com alguns criados. Eu estava justamente indo levar a comida dele quando encontrei vocês. Não temos muitos servos e, como meus pais já são muito velhos, ofereci-me para levar-lhes essas tortas para que comam. No entanto, ao vê-los de longe, senti a urgência de seguir o exemplo de meus pais e corri para oferecer-lhes esse alimento. Espero que não o considerem indigno de seu paladar e o aceitem como um gesto de reconhecimento e respeito.

— Agradeço de coração — respondeu Sanzang —, mas um de meus discípulos foi buscar frutas e não deve demorar muito a voltar. Além disso, não é certo que comamos o que você preparou para o seu marido. O mais provável é que ele a repreenda ao saber o que aconteceu, e, sinceramente, não queremos assumir essa responsabilidade.

Ao ver que o monge Tang se recusava a aceitar a comida, o monstro acentuou a doçura sedutora de seu sorriso e exclamou:

— Como pode ser tão rigoroso? Meu marido é tão caridoso quanto meus pais e nunca sentiu ciúmes. Além disso, ele passa a vida construindo pontes e reparando caminhos para facilitar a locomoção dos pobres e dos idosos. Se soubesse que entreguei toda a comida que trouxe para vocês, em vez de se enfurecer, ele me cobriria com ainda mais carinho do que o habitual. Portanto, ao invés de me causar um problema, vocês estariam me fazendo um grande favor.

No entanto, Sanzang não cedeu. Por outro lado, Bajie se mostrava cada vez mais irritado e não parava de lamentar, dizendo:

— Com a quantidade de monges virtuosos que há no mundo, eu tinha que dar de cara com o mais exigente de todos! Nos servem o arroz em uma bandeja, e o cretino se recusa a aceitá-lo, alegando que um macaco vulgar foi buscar alguns pêssegos que, com toda certeza, ainda estarão mais verdes que a casca de uma árvore.

Sem pedir permissão a ninguém, Bajie se aproximou do jarro de alimentos e começou a devorá-los, movendo o focinho guloso. Por sorte, naquele exato momento, o Peregrino voltou pelos ares, carregando os pêssegos que havia colhido nas montanhas do sul. Quando já se encontrava sobre seus irmãos, abriu seus olhos flamejantes o máximo que pôde e suas pupilas de diamante revelaram, com surpresa, que a mulher com quem seu mestre estava falando era, na verdade, um monstro. 

Rapidamente, ele sacou o seu bastão de ferro. Mas, quando estava prestes a desferir um golpe sobre a cabeça da besta, Sanzang agarrou suas mangas e exclamou furioso:

— Ficou louco, Wukong? Por que quer descarregar sua fúria sobre esta pobre donzela?

— A jovem que está diante de você — respondeu o Peregrino — não é uma donzela, mas um monstro que veio aqui com a única intenção de enganá-lo.

— Estranho que fale assim dela — replicou Sanzang. — Normalmente, você é bastante comedido em suas observações. Por que agora está dizendo essas tolices? Esta dama teve a delicadeza de me convidar para comer. De onde tirou que ela é um monstro?

— O que você sabe dessas coisas? — exclamou o Peregrino, soltando uma gargalhada —. Eu fazia o mesmo na Caverna da Cortina de Água, quando queria provar carne humana. Eu me transformava em uma moeda de ouro, ou em um saco de prata, ou em um edifício abandonado, ou em um bêbado engraçado, ou em uma mulher bonita, ou em... o que quer que fosse! Dessa forma, eu atraía os incautos para a minha caverna e depois os cozinhava ou os fervia no vapor. Se não conseguia comê-los de uma vez, deixava os restos secarem ao sol para uma próxima oportunidade. Se eu tivesse demorado um pouco mais para voltar, você teria caído em suas garras para sempre.

Mas todos os seus esforços foram em vão. O monge Tang se recusou a acreditar no que ele dizia, repetindo várias vezes que aquela mulher era uma pessoa muito piedosa e digna de confiança.

— Eu sei muito bem o que está acontecendo — insistiu o Peregrino —. É natural que você se sinta encantado pela beleza dessa jovem. Se quiser desfrutar dela, basta dizer. Bajie buscará a madeira, o Monge Sha recolherá a grama e eu construirei uma cabana aqui mesmo, onde poderá realizar seus desejos. Isso marcará o fim da nossa colaboração, e cada um poderá seguir seu próprio caminho. Não acha que essa é a melhor solução? Para que continuar uma jornada tão longa em busca das escrituras?

O monge Tang era muito tímido e, ao ouvir essas palavras, sentiu tanta vergonha que seu rosto ficou completamente vermelho (2). No entanto, isso não aplacou a fúria do Peregrino, que, com seu bastão de ferro, desferiu um golpe terrível sobre o monstro. A criatura conhecia alguns truques e, ao ver a arma de Wukong se aproximando, decidiu usar a técnica conhecida como "libertação do cadáver". Ela então elevou seu espírito pelos ares, abandonou o corpo que havia tomado emprestado no chão, o qual foi Imediatamente, abatido pelo golpe certeiro do Peregrino. 


Horrorizado, Sanzang exclamou, sem acreditar no que tinha acabado de ver:

— Não há ninguém mais selvagem neste mundo que este macaco! Mesmo depois de eu repetir incontáveis vezes, a vida humana não significa absolutamente nada para ele.

— Acalme-se! Não seja tão duro comigo — suplicou o Peregrino— Agora, venha aqui e veja o que há nesses jarros.

O Monge Sha pegou Sanzang pela mão e o conduziu até onde estavam os dois recipientes. As tortas de vinho haviam desaparecido como por encanto, e não restava absolutamente nada de sua fragrância. Tudo o que podia ser visto era um punhado de vermes longos e repugnantes. O glúten de trigo frito, por sua vez, havia se transformado em algumas tartarugas e em vários pares de rãs, que pulavam loucamente. 

Isso convenceu o monge Tang de que pelo menos trinta por cento do que o Peregrino dissera era verdade. Bajie, no entanto, não conseguiu dominar completamente o ressentimento que o consumia e colocou mais lenha na fogueira, gritando:

— Não acredite em nenhuma de suas mentiras, mestre. Esta mulher não passa de uma camponesa que vivia aqui por perto. Ela se encontrou conosco por pura coincidência, já que, como ela mesma afirmou, estava indo para o outro lado da montanha para alimentar seu  marido e seus criados. Como alguém tão caridosa e de boa índole pode ser um monstro? Você sabe que nosso irmão mais velho é muito afeiçoado a usar seu bastão de ferro. Assim que voltou, inventou essa história absurda e desferiu um golpe na cabeça desta infeliz. Não digo que ele pretendia matá-la, mas calculou mal a força e acabou, sem querer, com ela. Depois, temendo que você recitasse aquele encantamento que lhe causa tantas dores, ele usou sua magia para fazê-lo acreditar no que não era verdade. Para ele, está tudo bem, até mesmo zombar de você, contanto que se livre daquele tormento.

As palavras de Bajie surtiram o efeito desejado em Sanzang. Furioso com o mais fiel de seus discípulos, ele fez o gesto mágico com uma mão e começou a recitar o encantamento em voz alta. A dor imediatamente atacou o Peregrino, que gritava sem parar:

— Minha cabeça! Vai explodir! Pare, eu suplico! Se você tem algo a me dizer, diga logo e resolva a questão. Por que me torturar dessa maneira?

— O que você quer que eu lhe diga? — replicou o monge Tang —. Aqueles que renunciam à família devem ser gentis com as pessoas o tempo todo e não abrigar pensamentos de destruição e morte. “Quando varremos o chão, devemos afastar as formigas e colocar telas nas lâmpadas para que as mariposas não sofram danos.” Mas você... você se deleita cada vez mais com a prática da violência! De que adianta ir em busca das escrituras se, a cada passo, você tira uma vida? Com essa atitude, é melhor nem fazer sacrifícios. Por mim, você pode ir embora.


— Para onde quer que eu vá? — perguntou o Peregrino, surpreso.

— Vá para onde quiser — respondeu o monge Tang. — Não quero que me siga como discípulo.

— Se eu o abandonar — replicou o Peregrino —, temo que você nunca chegará ao Paraíso Ocidental.

— Minha vida está nas mãos do Céu — respondeu o monge Tang, com firmeza. — Se meu destino é acabar devorado por algum monstro, não levantarei um único dedo para impedi-lo, mesmo sabendo que serei cozido ou assado. Além disso, você realmente acredita que pode me proteger de todos os perigos que me cercam? Você pode enfrentar minha própria morte? Saia imediatamente de perto de mim!

— Se esse é o seu desejo, assim o farei — concluiu o Peregrino. — No entanto, ainda não lhe retribui por tudo o que fez por mim.

— Do que está falando? — perguntou o monge Tang.

O Grande Sábio caiu de joelhos e, sem parar de golpear o chão com a testa, respondeu:

— Depois de mergulhar o Palácio Celestial em uma confusão terrível, fui merecedor de um grande castigo que Buda executou, me prendendo, como você sabe, sob a imensa Montanha das Duas Fronteiras. Por ter me libertado de seu peso e me concedido os mandamentos, minha gratidão a você e à Bodhisattva Guanyin é indescritível. Se você não me permitir acompanhá-lo até o Paraíso Ocidental, não poderei retribuir adequadamente o bem que me fez, e assim, meu nome será amaldiçoado para sempre. Como alguém pode ser considerado honrado se não retribui a bondade que recebe?

O monge Tang possuía um coração muito terno e pronto para a compaixão. Ao ver o Peregrino se expressar com tanta sinceridade e arrependimento, sentiu-se profundamente comovido e mudou de atitude, dizendo:

— Está bem. Desta vez, eu te perdoo. Mas lembre-se de que, se voltar a fazer uso da violência, recitarei o encantamento que você bem conhece pelo menos vinte vezes seguidas.

— Por mim, pode fazê-lo até trinta vezes — respondeu o Peregrino, eufórico. — Tudo me parece pouco contanto que possa permanecer ao seu lado. Eu lhe juro que isso não acontecerá novamente.

Levantou-se imediatamente do chão e ajudou o monge Tang a montar no cavalo, enquanto lhe oferecia os pêssegos que havia colhido. Sanzang comeu alguns e, assim, acalmou momentaneamente a fome que o atormentava.

O monstro, entretanto, havia se elevado até o alto, conseguindo salvar sua vida. O golpe do Peregrino não lhe causou o menor dano, pois, como foi dito, usou a magia de libertação de cadáver e seu espírito subiu aos ares a tempo. Sentou-se no topo das nuvens e, rangendo os dentes de raiva, disse, cheia de ódio pelo Peregrino:

— Há anos ouço falar sobre os muitos poderes desse macaco. Hoje, infelizmente, descobri que sua fama era bem merecida. Foi uma pena, pois o monge Tang já havia mordido a isca e estava prestes a saborear minhas iguarias. Se ele tivesse se abaixado um pouco para cheirá-las, eu o teria agarrado, e ninguém poderia livrá-lo das minhas garras. Eu só não esperava que esse macaco intrometido aparecesse de repente e arruinasse todos os meus planos. O pior, contudo, foi que quase me destruiu com seu bastão. De qualquer forma, não estou disposta a deixar esse monge partir assim tão facilmente. Seria a primeira vez que não concluiria uma empreitada. Tenho que descer novamente e debochar dele o máximo que puder.

Mal terminou de dizer isso, ela saltou da nuvem escura onde estava sentada. Foi parar em uma curva de pedras que havia um pouco mais à frente e, sacudindo o corpo levemente, transformou-se em uma mulher de oitenta anos. Na mão, segurava um cajado de bambu com uma empunhadura visivelmente curva. 

Caminhando com grande dificuldade, dirigiu-se aos viajantes, chorando alto e sem parar. Ao vê-la, Bajie exclamou, assustado:

— O que faremos, mestre? Aquela mulher está procurando alguém que nós conhecemos.

— De quem está falando? — perguntou o monge Tang, surpreso.

— Falo da jovem que nosso irmão acabou de matar. Não tenho a menor dúvida de que essa velha é sua mãe, que saiu à sua procura ao perceber que estava demorando.

— Por favor, pare de falar bobagens — pediu o Peregrino. — A jovem de quem fala mal havia completado dezoito anos, e essa mulher tem mais de oitenta. Como poderia ter dado à luz aos sessenta e poucos? Eu vos asseguro que, ou estou muito enganado, ou estamos diante de uma nova armadilha. Vou dar uma olhada.

Com dois passos, chegou até onde estava o monstro, que acabara de se transformar em uma idosa. Sua transformação não poderia ser mais perfeita. O cabelo que despontava de suas têmporas era tão branco quanto a neve, e seu andar era lento e inseguro. Todo o seu corpo mostrava uma fragilidade que combinava perfeitamente com a insegurança de seus passos. Seu rosto, murchado como uma folha seca, possuía a rugosidade das rochas, sensação acentuada por suas bochechas protuberantes e lábios caídos. Nela, eram evidentes as grandes diferenças que distinguem a juventude da velhice. O rosto, de fato, é como uma folha de lótus: viçoso e fresco quando se nasce, e enrugado e seco quando se está à beira da morte. No entanto, mais uma vez o monstro não foi capaz de enganar o Peregrino. Reconhecendo-a de imediato, levantou o bastão e o deixou cair com força sobre sua cabeça. 

A besta no, entanto, usou novamente sua magia e, lançando seu espírito para o alto, permitiu que o ferro destruísse seu disfarce. O corpo da velha ficou, então, estendido ao lado do caminho, completamente inerte. Ao ver o que aconteceu, o monge Tang sentiu as forças o abandonarem e caiu do cavalo, como se fosse um boneco. Estava tão abalado que, sem sequer se mover do chão, recitou o encantamento vinte vezes seguidas. O Peregrino sentiu tanta dor que parecia que sua cabeça havia se transformado em uma cabaça com a forma de uma ampulheta. Era tão insuportável que ele se jogou no chão e começou a rolar como um louco, enquanto suplicava ao seu mestre:

— Mestre, por favor! Pare de recitar esse encantamento! Se deseja me dizer algo, faça-o sem recorrer à tortura.

— Não há nada a dizer! — exclamou o monge Tang. — Para evitar cair nos tormentos do inferno, aqueles que renunciaram à família seguem continuamente o caminho da virtude. Eu tentei, repetidas vezes, fazê-lo ver a conveniência de agir corretamente em todo momento, mas você ignorou minhas palavras. Por que insiste em agir sempre com violência? Que explicação pode me dar por ter  tirado, sem motivo, outra vida humana?

— Ela era um monstro — explicou, desesperado, o Peregrino.

— Creio que você perdeu o juízo — replicou o monge Tang. — Está tão obcecado com monstros que os vê onde menos se espera? A verdade é que você tem uma propensão inata para o mal e carece completamente de vontade para se dedicar à prática do bem. O melhor que pode fazer é ir para outro lugar. Só de te ver, sinto ânsias de vômito.

— Tens tão pouco apreço por mim? — lamentou o Peregrino, com amargura. — Muito bem, vou embora. Mas antes, preciso deixar uma coisa bem clara.

— Do que se trata? — inquiriu o monge Tang.

— Do que mais seria? — respondeu Bajie prontamente. — Ele quer que você divida a sua bagagem com ele. Já faz tempo que está ao seu lado para sair de mãos abanando e com a bolsa quase vazia. Se quer se livrar dele, terá que lhe dar uma de suas túnicas velhas e oferecer metade de todo o dinheiro que tem.

Ao ouvir isso, o Peregrino perdeu o controle e, saltando como se tivesse enlouquecido, enfrentou Bajie, gritando:

— Você é um idiota, falastrão e rechonchudo! Após aceitar de bom grado o princípio da pobreza absoluta, jamais demonstrei inveja ou ganância. Como se atreve a afirmar que o meu desejo é levar comigo metade da bagagem de nosso mestre?

— Se é verdade que você não demonstra inveja nem ganância — disse o monge Tang —, por que não vai embora logo?

— Vejo que não me conhece bem — respondeu o Peregrino. — Há mais de quinhentos anos, quando eu morava na Caverna da Cortina d'Água, no coração da Montanha das Flores e Frutos, todos os demônios das setenta e duas cavernas me prestavam reverência, e não menos de quarenta e sete mil pequenos demônios obedeciam às minhas ordens sem questionar. Eu era considerado um herói e não me faltava absolutamente nada. Sobre minha cabeça brilhava uma coroa de ouro avermelhado, vestia uma túnica vermelha e dourada, ajustada na cintura com um valiosíssimo cinto de jade, calçava sandálias capazes de caminhar sobre as nuvens e segurava em minhas mãos, como um cetro, o meu bastão de ferro com as extremidades de ouro. Apesar de tudo, quando compreendi que apenas o nirvana poderia me livrar de meus pecados, decidi fazer voto de absoluta pobreza e renunciei de bom grado à minha vida passada de luxo e excessos. O que obtive em troca de minha fidelidade? Apenas essa tiara de ferro que me aperta cruelmente a cabeça toda vez que você recita esse encantamento. Se realmente está decidido a me afastar de seu lado, arranque-a de uma vez, para que eu possa voltar, com a cabeça erguida, junto àqueles que me consideram um herói e não um servo. Você não pode me negar esse favor. É o mínimo que pode fazer por todos os anos que lhe servi com absoluta fidelidade.

Profundamente comovido, o monge Tang respondeu:

— Sinto muito, Wukong, mas não sei como arrancar essa tiara da sua cabeça. A Bodhisattva não me ensinou.

— Nesse caso — concluiu o Peregrino —, não há outra escolha senão me levar com você.

— Então levante-se — disse então o monge Tang, percebendo que não tinha outra escolha a não ser aceitá-lo de volta em sua companhia. — Eu lhe perdoo mais uma vez, mas com a condição de que nunca mais use a violência.

— Renuncio a ela a partir de agora — prometeu o Peregrino, e, levantando-se, voltou a ajudar o mestre a montar no cavalo.

O monstro, enquanto isso, feliz por não ter sido atingido desta vez pela arma do Peregrino, sentou-se em uma nuvem e suspirou aliviado, enquanto limpava o suor da testa: 

— Que macaco mais extraordinário! Que percepção maravilhosa! Mesmo disfarçado de velha, ele foi capaz de me reconhecer. O problema é que ele e seus companheiros estão avançando mais rápido do que eu esperava. Mais quarenta milhas e eles terão deixado para sempre meus domínios. Se caírem nas mãos dos demônios de outra região, vão zombar de mim até doerem as costelas de tanto rir, e minha fama será prejudicada. É melhor eu desçer e zombar um pouco mais deles.

De novo, ele saltou do vento negro em que cavalgava e pousou em um abrigo na montanha. Sacudindo levemente o corpo, transformou-se em um velho com cabelos mais brancos que os de Peng-Tse (3) e uma barba tão densa que lembrava os pingentes de gelo da Estrela da Idade. Usava brincos de jade cujos brilhos rivalizavam com a pureza e intensidade dos olhos, que brilhavam como uma estrela dourada. Vestia uma túnica leve feita de penas de garça, que lhe chegava até os pés, e segurava um rosário nas mãos, recitando um sutra budista. 

Ao vê-lo, Sanzang ficou muito satisfeito e exclamou, impressionado:

— Dá para ver que o Oeste é uma região verdadeiramente sagrada. Olhem para esse ancião. Mal tem forças para caminhar e, no entanto, ainda encontra forças para recitar sutras.

— Deixe o entusiasmo para depois — aconselhou Bajie. — Esse homem vem nos pedir contas.

— O que você quer dizer com isso? — perguntou o monge Tang.

— Ele descobriu que matamos sua esposa e filha e decidiu vingar a morte delas — respondeu Bajie. — Não temos escapatória. Somos culpados desses crimes. Portanto, você será condenado à morte, o Monge Sha terá que fazer trabalhos forçados pelo resto de seus dias, e eu serei obrigado a servir no exército até o fim da minha vida. Nosso irmão mais velho, claro, não sofrerá nada, já que usará magia e desaparecerá daqui como a névoa levada pelo sol.

— Como você é idiota! — repreendeu o Peregrino —. Por que alarmar nosso mestre desnecessariamente? Nem sabemos quem é esse velho. Se não se importam, vou dar uma olhada.

Ele deixou de lado o bastão de ferro e, aproximando-se do demônio, perguntou:

— Posso saber para onde vai e por que recita um sutra enquanto caminha?

O monstro pensou que, desta vez, havia conseguido enganar o Grande Sábio e que, afinal, ele não era tão difícil de ludibriar quanto acreditava.

— Eu, senhor — respondeu o falso ancião —, vivi neste lugar toda a minha vida. Desde jovem, dediquei-me à prática do bem, alimentando peregrinos, absorvendo o conteúdo das escrituras sagradas e recitando sutras sem cessar. Como o céu não me concedeu um filho homem, tive que adotar um genro, a quem casei com a única filha que minha esposa trouxe ao mundo. Ela saiu de casa esta manhã bem cedo com um pouco de comida e, como ainda não voltou, temo que possa ter sido devorada por tigres ou outras feras. O pior é que minha esposa, impaciente com a demora, saiu à sua procura há várias horas e também não retornou. Não faço ideia do que pode ter acontecido com elas. Por isso decidi seguir seus passos para ver se consigo encontrá-las. Não estou muito otimista em encontrá-las vivas. Se, como acredito, estão mortas, ficarei feliz em ao menos encontrar seus ossos e enterrá-los no jazigo da minha família.


— Nunca encontrei alguém tão brincalhão quanto você! — exclamou o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Acha que pode me enganar com essa história inventada? Não sou tão tolo quanto pareço. Consigo enxergar que você é um monstro.

A besta ficou tão desconcertada que não conseguiu dizer nada em sua defesa. O Peregrino rapidamente agarrou seu bastão de ferro, mas, quando estava prestes a desferir o golpe, pensou, alarmado:

— Se eu não acabar com ele, ele tentará capturar meu mestre novamente. Mas, se eu o fizer, meu mestre recitará o encantamento novamente, e acabarei enlouquecendo.

Era um dilema muito difícil de resolver, então ele continuou pensando:

— Se não matar a besta, estarei correndo um risco desnecessário, porque, na primeira oportunidade que tiver, ela irá atrás do meu mestre, e eu terei que me esforçar muito para salvá-lo. Acho que o melhor é acabar com ele o mais rápido possível. Assim, pouparei esforço. O que importa se o mestre recitar seu maldito encantamento? Como diz o ditado, "nem os tigres mais sanguinários devoram os da própria espécie". Além disso, tenho boa lábia. Com minha língua afiada, não será difícil convencê-lo.

Imediatamente, ele convocou o espírito local e o deus da montanha e disse:

— Esse monstro zombou do meu mestre três vezes seguidas. Desta vez, vou garantir que a matarei, mas vocês devem vigiar do alto. Não o deixem escapar.

Os deuses não se atreveram a desobedecer suas ordens e se posicionaram estrategicamente acima da faixa de nuvens. O Grande Sábio então levantou o bastão de ferro e o deixou cair com força sobre o demônio. Desta vez, a sorte não lhe sorriu, e sua luz espiritual se extinguiu como o frágil piscar de uma vela.

Montado em seu cavalo, o monge Tang ficou tão horrorizado com o que viu que, por muito tempo, não conseguiu articular nenhuma palavra. Bajie, no entanto, levou as mãos à cabeça e exclamou com certa malícia:

— Esse Peregrino está realmente louco! Em menos de meio dia, já matou três pessoas.

Esse comentário fez com que o monge Tang recuperasse a compostura e se preparasse para recitar o encantamento novamente. Mas o Peregrino se lançou aos pés do cavalo, gritando:

— Não faça isso, por favor! Não faça isso! Venha primeiro dar uma olhada no que restou dessa besta.

Diante deles, havia apenas um monte de ossos tão brancos quanto farinha.

— Esse homem acabou de morrer — comentou, muito perturbado, o monge Tang —. Como ele se transformou tão rapidamente em um esqueleto?

— Ele não era mais do que um cadáver vivo, que só queria fazer mal às pessoas — explicou o Peregrino —. Agora que morreu, revelou, finalmente, sua verdadeira natureza. Você mesmo pode ler os caracteres que estão escritos em sua coluna vertebral: "Demônio dos Ossos Brancos (4)".

O monje Tang parecia estar disposto a acreditar nele desta vez, mas Bajie não desistia de difamá-lo, dizendo:

— Wukong não tem remédio. Gosta de mostrar a força do seu braço e matar as pessoas. Já fez isso mil vezes e voltará a fazer outras tantas. Tem medo, de qualquer forma, do seu encantamento e, para livrar-se de tão justo castigo, transformou o cadáver deste ancião em um simples monte de ossos para enganá-lo.

O monje Tang possuía um caráter muito volúvel e, mais uma vez, deixou-se levar pelas palavras de Bajie, começando a recitar seu temível encantamento. No limite de suas forças, o Peregrino conseguiu se ajoelhar com dificuldade à beira do caminho e suplicou, desesperado, a seu mestre:

— Pare por favor! Pare!  Se deseja me dizer algo, faça-o sem recorrer à tortura.

— Seu macaco cabeçudo! — retrucou o monge Tang. — O que quer que eu diga? As boas ações de quem renuncia à família são como a grama de um jardim na primavera: invisíveis, mas crescendo vigorosamente a cada dia. Por outro lado, aquele que se dedica ao mal se assemelha a uma pedra de amolar: embora não se perceba, seu tamanho diminui com o tempo. Você conseguiu escapar da justiça depois de matar três pessoas apenas porque estamos em um lugar desolado, onde ninguém pode enfrentá-lo. Mas imagine que chegássemos a uma grande cidade e você, de repente, decidisse atacar as pessoas com seu bastão, ignorando a moral e as leis. Como pensa que conseguiria escapar de tal situação? Todos nós estaríamos em um grande conflito e não poderíamos prosseguir nossa jornada. Portanto, opino que o melhor é que você retorne ao lugar de onde veio.

— Você está muito equivocado, mestre — tentou defender-se o Peregrino. — Este cadáver que vê é, na verdade, um monstro que buscava sua ruína. A única coisa que fiz foi defendê-lo de suas armadilhas, mas você se recusa a reconhecê-lo. Prefere acreditar nas calúnias de um idiota que não sabe nem onde está sua mão direita. Por que deseja me atacar com tanta fúria? Como diz o provérbio, "é possível que uma mesma coisa se repita três vezes". Sua insistência me faz parecer um sem vergonha sem princípios. Muito bem, você venceu. Irei embora. Mas asseguro que sua partida não trará benefícios, pois você não encontrará ninguém que o sirva tão desinteressadamente quanto eu.

— Este macaco insolente está ficando cada vez mais desrespeitoso! — exclamou o monge Tang, perdendo a paciência. — Como se ao meu redor não houvesse mais pessoas dignas de confiança ! Quem você pensa que é? Por acaso Wuneng e Wujing são menos fiéis que você?

O Grande Sábio se sentiu profundamente ferido por esses comentários. Estava tão abatido que só pôde dizer:

— Como a memória dos homens é frágil! Lembre-se de quando não tinha outro companheiro de viagem além de Liu Boqin, nos longínquos dias da sua partida de Chang-An. Depois que me libertou da Montanha das Duas Fronteiras e me fez seudiscípulo, fui eu quem invadiu cavernas antigas e florestas sombrias para capturar demônios e derrotar monstros. Fui eu, arriscando minha vida inúmeras vezes, que dominei Bajie e trouxe o Monge Sha para nosso grupo. Mas hoje, parece que você jogou isso no esquecimento, e, "renunciando à sabedoria em favor da loucura", me expulsa. Sei que é assim que o mundo funciona, e o provérbio está certo: "Quando as aves desaparecem, guarda-se o arco, e quando as lebres morrem, sacrificam-se os cães (5)". Muito bem. Só quero deixar uma coisa clara antes de partir: o encantamento que ambos conhecemos muito bem.

— Fique tranquilo — disse o monge Tang. Não vou recitá-lo nunca mais.

— Isso é fácil de dizer — comentou o Peregrino.   Mas tenho certeza de que, quando estiver frente a frente com esses terríveis demônios que juraram sua destruição, e Bajie e o Monge Sha forem incapazes de livrá-lo de seus tormentos, o medo o levará a recitar o encantamento com mais fervor do que nunca. O que será de mim então? Mesmo estando a centenas de milhares de quilômetros de distância, essas terríveis dores de cabeça me atacarão, e serei forçado a voltar ao seu lado. Isso é exatamente o que quero evitar. Portanto, quanto mais cedo resolvermos essa questão, melhor.

Ao perceber o quão cauteloso se mostrava o Peregrino, o monge Tang ficou ainda mais enfurecido. Desceu apressado de seu cavalo e ordenou ao Monge Sha que retirasse papel e pincel de uma das alforjas. Depois, pegou um pouco de água de um riacho próximo e dissolveu tinta nela, escrevendo uma carta de compromisso.

 Após terminar de escrevê-lo, ele entregou o documento ao Peregrino, dizendo:

— Guarde essas palavras, macaco cabeçudo! Eu juro que nunca mais voltarei a aceitá-lo como discípulo. Se algum dia eu voltar atrás nesse juramento, que eu caia no Inferno Avici (6).

— Não há necessidade de jurar nada — respondeu o Peregrino, pegando a carta com pressa. — Sua palavra já é mais do que suficiente para mim — disse, enquanto enfiava o documento pela manga.

Ainda assim, achou prudente acalmar a ira do monge Tang antes de partir, e acrescentou:

— Se o segui durante tanto tempo, foi por desejo expresso da Bodhisattva. Temo, portanto, que ao abandoná-lo no meio da viagem, não consiga alcançar os méritos que, no princípio, me foram prometidos. Desejo, pois, se sente, para que possa me curvar diante de você e, assim, eu possa partir com a consciência tranquila e em paz.

O monge Tang virou as costas e recusou-se a responder, murmurando apenas:

— Eu sou um monge virtuoso e não posso aceitar as demonstrações de respeito de um ser tão maligno como você.

Ao perceber que o monge Tang se recusava a atender seus desejos, o Grande Sábio decidiu utilizar a mágica conhecida como "Corpo Além do Corpo". Com determinação, arrancou três pelos da nuca e, soprando sobre eles uma baforada de ar mágico, bradou:

— Transformem-se!

Imediatamente, os pelos se transformaram em outros três Peregrinos, que cercaram o mestre. Assim, onde quer que Sanzang se virasse, encontrava um Wukong ajoelhado diante dele. 

Satisfeito com o sucesso de sua artimanha, o Grande Sábio ergueu-se e, ao sacudir levemente o corpo, recuperou os pelos que havia arrancado. Em seguida, dirigiu-se ao Monge Sha e disse:

— Sei que é uma boa pessoa. No entanto, deve tomar cuidado para não ouvir as bobagens ditas por Zhu Wuneng. Lembre-se de que toda prudência é pouca para que esta viagem termine bem.  Se algum monstro capturar nosso mestre, diga a ele que o Rei dos Macacos é o mais destacado de seus discípulos e ele o libertará imediatamente. Essas bestas são muito simplórias, e nenhuma possui poderes superiores aos meus. Por isso não ousarão fazer mal ao nosso mestre.

— Não preciso da sua ajuda — retrucou o monge Tang, de forma displicente. — Sou um monge virtuoso e jamais misturarei meu nome com o de um ser tão maligno como você. Vá embora agora!

Diante da recusa do mestre, o Grande Sábio entendeu que não haveria mudança de opinião. Baixando a cabeça, não teve alternativa senão partir. Em lágrimas, prostrou-se diante do monge Tang para se despedir. Preocupou-se em aconselhar o Monge Sha, embora soubesse que suas palavras não seriam suficientes para enfrentar as terríveis provas que o aguardavam. Sentia-se tão abatido que, se pudesse, teria cravado a cabeça no chão, furando a rocha até alcançar o centro da Terra. Embora possuísse poderes para mover montanhas e mares, uma sensação de impotência parecia minar sua força de vontade. No entanto, essa sensação foi rapidamente superada, e, dando um salto tremendo, montou em uma nuvem sagrada, decidido a seguir para a Caverna da Cortina de Água na Montanha das Flores e Frutos. 

Sozinho e derrotado, ele avançou como uma flecha pelos ares, até que, de repente, o estrondoso barulho das águas o fez parar. Imediatamente, deteve a nuvem e percebeu que estava sobre o Grande Oceano Oriental. 


Essa visão fez com que se lembrasse do monge Tang, e as lágrimas começaram a fluir livremente por suas bochechas. Por um longo tempo, permaneceu suspenso no ar, apático, sem saber se deveria seguir em frente. Não sabemos o que lhe aconteceu a partir desse momento. Quem desejar descobrir, terá que ouvir com atenção as explicações que serão oferecidas no próximo capítulo.


CAPITULO XXVIII EM BREVE ...

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Notas do Capítulo XXVII

  1. Referência à obra  Analectos de Confúcio;
  2. Expressão de vergonha em grau superlativo, já que os monges tinham a cabeça raspada e se pensava que era nela que os sentimentos se manifestavam melhor.
  3. Peng-Tse, colaborador do lendário imperador Yao (2357-2255 a.C.), é o paradigma de uma vida realmente longeva, pois, segundo se afirma, viveu mais de oitocentos anos. Como Matusalém em nosso contexto cultural, tornou-se tema de inúmeros ditados populares.
  4. Em chinês, Baigujing (白骨精)
  5. Expressão comumente usada em situações de ingratidão manifesta, pois foi usada por Fan Li pouco antes de Goujian, senhor de Yue, exigir o suicídio de Zhong, fiel servo de Fuchai, senhor de Wu, por sua constante dedicação.
  6. O Inferno Avici é, segundo o budismo, o mais profundo e horroroso de todos os existentes.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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Ruby