16 de maio de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo LIX

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang

CAPÍTULO LIX:

A JORNADA DE TANG SANZANG É OBSTRUÍDA NA MONTANHA DE FOGO. O PEREGRINO SUN BUSCA PELA PRIMEIRA VEZ O LEQUE DE FOLHAS DE PALMEIRA.

"As diversas espécies têm, em sua essência, a mesma origem.
Tudo se mistura no vasto mar.
Cada pensamento e preocupação são em vão.
Todos os tipos e formas se unem em harmonia.
Quando o objetivo for alcançado,
O dharma será grande, pleno e brilhante.
Não deixe que nada se perca do leste a oeste ou de norte a sul (1).
Segure firme e mantenha o controle.
Reúna tudo no forno do elixir,
Refine até que se torne vermelho como o próprio sol.
Então, em toda a sua beleza radiante,
Será possível cavalgar nos dragões, indo e vindo à vontade".

Como já foi dito, seguindo os desejos da Bodhisattva, o monge Tang aceitou novamente o Peregrino em sua companhia. Com a ajuda de Bajie e do Monge Sha, conseguiu controlar os impulsos das duas Mentes e manter o Cavalo e o Macaco sob controle. Unidos assim em um só espírito, prosseguiram sua jornada rumo ao Paraíso Ocidental.

O tempo passava veloz como uma flecha, e as estações se sucediam rapidamente, como a roda de um tear em movimento. O calor escaldante do verão dava lugar às primeiras geadas do final do outono. As nuvens erravam sem rumo pelo céu, movidas pelo vento ocidental. Nas montanhas, ouvia-se o lamento distante das garças, enquanto o gelo cobria a paisagem com desenhos delicados. Uma melancolia sutil pairava sobre aquela sucessão interminável de elevações e cursos d’água. Bandos de patos voavam em direção ao norte, enquanto aves de plumagem escura retornavam ao sul. A solidão parecia pesar sobre os peregrinos. O frio começava a penetrar as túnicas dos monges. Mas, à medida que mestre e discípulos avançavam, o calor se tornava cada vez mais intenso. Surpreso, Sanzang puxou as rédeas do cavalo e comentou:

— Que estranho! Já estamos no outono. Como pode estar tão quente?

— Talvez vocês não saibam — respondeu Bajie —, mas a caminho do Oeste existe um reino chamado Su Ha-Li, onde o sol se recolhe ao final de cada dia. Por isso, o povo o chama de Reino do Fim dos Céus. Ao entardecer, o governante desse reino manda seus guerreiros para as muralhas do palácio, onde tocam tambores e clarins para abafar o som assustador que o sol faz ao mergulhar no mar. Como o sol é feito de fogo, quando suas chamas tocam as águas do Oceano Ocidental, fazem um barulho tão alto que, se não fossem os instrumentos, as crianças da cidade não suportariam. Esse calor que estamos sentindo agora deve ser resultado do pôr do sol.

Ao ouvir isso, o Grande Sábio soltou uma gargalhada e disse:

— Você não faz ideia do que está falando! Esse Reino de Su Ha-Li que mencionou fica muito mais adiante. Na verdade, ele está tão distante que, no ritmo do mestre, ele levaria várias encarnações para alcançá-lo.

— Se não estamos nos aproximando do lugar onde o sol se põe — retrucou Bajie —, então como explica esse calor?

— O clima aqui deve ser diferente do de outras regiões — sugeriu o Monge Sha. — Tanto que, quando aqui é verão, em outros lugares já é outono.

Enquanto estavam cada vez mais envolvidos nessa discussão, avistaram à beira do caminho um conjunto de edificações com telhas vermelhas, muros vermelhos e portas e janelas da mesma cor. Tudo ali era, sem exceção, vermelho. Sem entender a razão de tamanha preferência, por essa cor, Sanzang desceu do cavalo e disse a Wukong:

— Vá até uma dessas casas e pergunte por que faz tanto calor aqui.

O Grande Sábio deixou de lado o seu bastão de ferro com extremidades de ouro, ajeitou suas vestes e, adotando um ar civilizado, dirigiu-se à casa indicada pelo mestre. No mesmo instante, um idoso saiu da residência. Ele vestia uma túnica de ervas, nem não era nem amarela nem vermelha. A cabeça estava coberta por um chapéu de bambu, que não era nem preto nem azul. Em suas mãos, segurava um cajado de cana áspera, que não era nem torcido nem reto. Nos pés, calçava botas de couro de vaca, que não eram nem velhas nem novas. Seu rosto tinha um tom bronzeado, enquanto sua barba era espessa e branca, como cordas entrelaçadas. Seus olhos, em contraste, brilhavam intensamente, e os lábios, ao sorrir, deixavam à mostra alguns dentes de ouro. Ao avistar o Peregrino, ele pareceu surpreso e, apoiando-se firmemente no cajado, exclamou:

— Que tipo de criatura é você? De onde vem? Posso saber o que o trouxe até a minha porta?

— Por favor, não tenha medo — respondeu o Peregrino, curvando-se respeitosamente. — Não sou nenhuma criatura estranha. Sou apenas um monge enviado pelo Grande Imperador Tang das Terras do Leste em busca das escrituras sagradas. Somos quatro ao todo, mestre e discípulos. Acabamos de chegar à sua honrada região e, após sentirmos como o clima está quente, decidi perguntar a razão disso e também o nome desta terra. Vim especialmente em busca da sua orientação.

— Perdoe-me — disse o ancião, mais aliviado. — Minha visão já não é tão boa e, no início, não o reconheci.

— Não há problema — respondeu o Peregrino.

— E onde está seu mestre? — perguntou o ancião.

— Ali — respondeu o Peregrino, apontando. — É aquele à beira do caminho.

— Peça a ele que se aproxime — disse o ancião. — Em minha casa, há sempre um lugar para viajantes.

Radiante de contentamento, o Peregrino fez um sinal para que Sanzang se aproximasse, e todos seguiram em direção à casa. Bajie conduzia o cavalo pelas rédeas, enquanto o Monge Sha carregava a bagagem.Todos se curvaram respeitosamente diante do ancião, que, ao perceber a distinção de Sanzang e o aspecto peculiar de Bajie e do Monge Sha, sentiu-se ao mesmo tempo honrado e apreensivo. Mesmo assim, não teve alternativa a não ser convidá-los a entrar e tomar assento, enquanto os criados preparavam um pouco de chá e algo para comerem.

Após agradecer a hospitalidade, Sanzang perguntou:

— Por que nesta nobre região faz tanto calor no outono?

— Este lugar — explicou o ancião — é conhecido como a Montanha de Fogo. Aqui, não há primavera nem outono.

— Onde ela está localizada, exatamente? — perguntou Sanzang. — Está no caminho para o Oeste?

— Por aqui, é impossível seguir para o Oeste — respondeu o ancião. — A cerca de oitenta quilômetros daqui, ergue-se uma terrível montanha que impede a passagem dos viajantes. Suas chamas devoram tudo ao redor. Num raio de mil quilômetros, não cresce um único fio de grama sequer. Se tentarem se aproximar, derreterão como cera, ainda que tenham cabeça de bronze e corpo de ferro.

Sanzang empalideceu e não se atreveu a perguntar mais nada. Nesse mesmo instante, um jovem passou diante da porta empurrando um carrinho pintado de vermelho e gritando:

— Bolinhos de arroz! Bolinhos de arroz fresquinhos!

O Grande Sábio arrancou um fio de cabelo, transformou-o em uma moeda de cobre e saiu à rua, fazendo sinal para que o vendedor se aproximasse. Sem se preocupar em verificar o valor do dinheiro, o jovem pegou um bolinho de arroz cozido no vapor e o entregou ao Peregrino. O bolinho estava tão quente que Wukong, desprevenido, sentiu como se segurasse um pedaço de carvão em brasa ou um prego recém-saído da forja. Incapaz de segurá-lo por muito tempo em uma só mão, começou a passá-lo de uma mão para a outra, enquanto gritava:

— Quente! Quente! Quente! Não consigo comer isso!

— Se não aguenta o calor, não venha para cá — respondeu o jovem, rindo. — Por aqui, é sempre quente assim.

— Você não entende nada, meu jovem —  retrucou o Peregrino. — Como diz o provérbio: "Se não faz calor nem frio, os cinco grãos não crescem". Se aqui é tão quente assim, como você consegue a farinha para fazer esses bolinhos?

— Por aqui, costumamos dizer que: "Se a farinha para o bolinho deseja encontrar, ao Imortal do Leque de Ferro deve perguntar"  respondeu o jovem.

— O que esse imortal tem a ver com isso? — perguntou o Peregrino.

—O imortal de quem estou falando possui um leque muito especial — explicou o jovem— Ao abaná-lo uma vez, ele apaga o fogo; ao abaná-lo duas vezes, ele levanta o vento; e na terceira vez, começa a chover. Só então podemos cultivar nossos campos e conseguir as magras colheitas de onde tiramos essa farinha. Sem a ajuda do imortal e de seu leque, nada cresce nesta região.

Ao ouvir aquilo, o Peregrino correu para dentro da casa e entregou o bolinho de arroz a Sanzang, dizendo:

— Relaxe, Mestre! Não se preocupe antes da hora. Coma esse bolinho primeiro, e eu lhe  contarei o que acabo de descobrir.

Sanzang então ofereceu o bolinho ao ancião, dizendo:

— Por favor, aceite um pedaço.

— Como posso aceitar, se ainda nem ofereci um chá a vocês? — respondeu o ancião.

— Não precisa se preocupar em nos oferecer chá ou arroz, senhor  disse o Peregrino  Em vez disso, me responda: onde vive o Imortal do Leque de Ferro?

— Por que quer saber isso? — perguntou o ancião.

— O vendedor de bolinhos acabou de me contar — explicou o Peregrino — que esse imortal possui um leque tão especial que apaga as chamas com um único abano, convoca os ventos com o segundo e traz a chuva com o terceiro. Só então as pessoas desta terra conseguem plantar e colher os alimentos de que vivem. Gostaria de encontrá-lo para pedir que apague as chamas daquela montanha. Assim, poderemos continuar nossa jornada, e vocês terão uma vida mais adequada ao ciclo natural das estações.

— O que o vendedor disse é verdade confirmou o ancião. — Mas, pelo que vejo, vocês não têm nada para oferecer a ele. Temo que o imortal não atenderá a um pedido vindo de mãos vazias.

— Que tipo de presentes ele costuma receber? — perguntou Sanzang.

— As pessoas daqui costumam visitá-lo a cada dez anos — respondeu o ancião. — Nessas ocasiões, levam quatro porcos, quatro ovelhas, algum dinheiro embrulhado em papel vermelho, alguns ramos de flores exóticas, alguns quilos de frutas da estação, galinhas, patos e vinho doce. Antes de subir à montanha para pedir que ele exerça seu imenso poder, todos tomam um banho caprichado e vestem suas melhores roupas.

— Qual é o nome dessa montanha e a que distância fica daqui? — perguntou novamente o Peregrino.

— Ela fica a sudoeste, e é conhecida como Montanha da Nuvem de Jade — respondeu o ancião. — Nela, há uma caverna chamada Caverna da Folha de Palmeira. Quem sai daqui leva aproximadamente um mês para voltar, pois a distância é de cerca de dois mil e quinhentos quilômetros.

— Isso não é problema algum — disse o Peregrino, sorrindo. — Estarei de volta num piscar de olhos.

— Espere um momento — exclamou o ancião. — É melhor comer algo antes e levar um pouco de comida seca. Além disso, é mais seguro ir acompanhado por pelo menos duas pessoas. Não há assentamentos humanos pelos arredores, e o caminho está repleto de tigres e lobos. É impossível fazer essa viagem em um único dia. Isso não é brincadeira!

— Agradeço sua preocupação, mas nada disso será necessário — respondeu o Peregrino, rindo. — Partirei agora mesmo.

Antes que terminasse de falar, o Peregrino desapareceu da vista de todos.

— Que coisa mais extraordinária! — exclamou o ancião, espantado. — Quem poderia imaginar que se tratava de um homem santo, capaz de viajar pelas nuvens?

Não vamos descrever em detalhes como aquela família recebeu o monge Tang e seus discípulos após o acontecimento extraordinário que acabaram de presenciar. Vamos nos concentrar no Peregrino, que logo chegou à Montanha da Nuvem de Jade. Enquanto procurava a entrada da caverna, ouviu o som de um lenhador cortando lenha no meio do bosque. 

Ao aproximar-se mais, pode ouvir o homem cantando:

"Pelas nuvens ao longe, meu querido e antigo bosque, eu te reconhecerei,
Embora a grama selvagem e as pedras ásperas escondam o caminho sob meus pés.
Quando eu vir a chuva da manhã nas colinas do oeste,
O riacho ao sul, em meu retorno, transbordará".

— Receba meus sinceros cumprimentos — disse o Peregrino, inclinando levemente a cabeça.

O lenhador deixou o machado de lado, retribuindo a saudação e perguntando:

— Para onde está indo?

— Esta é a Montanha da Nuvem de Jade? — perguntou o Peregrino.

— É sim — confirmou o lenhador.

— Ouvi dizer — prosseguiu o Peregrino — que nesta montanha existe uma caverna chamada de Caverna da Folha de Palmeira, onde vive o Imortal do Leque de Ferro. Pode me dizer onde ela fica exatamente?

— Existe mesmo uma Caverna da Folha de Palmeira por aqui — respondeu o lenhador —, mas ela não é a morada do imortal que mencionou, e sim da Princesa do Leque de Ferro, também conhecida como Rakshasi (2)

— Ouvi dizer — continuou o Peregrino — que esse imortal possui um leque capaz de apagar as chamas da Montanha de Fogo. Seria essa dama a verdadeira portadora desse leque?

— Exatamente — confirmou o lenhador. — Se alguns a chamam de Imortal do Leque de Ferro, é porque ela possui esse tesouro, que usa para extinguir o fogo que devora outras regiões.  Mas, para nós, seus poderes não servem de muita coisa. Nós a conhecemos apenas como Rakshasi, e no fundo, ela nada mais é do que esposa do poderoso Rei Touro.

Ao ouvir aquilo, o Peregrino empalideceu de surpresa e murmurou para si, preocupado:

— Um inimigo está à vista. Se não me engano, anos atrás, quando derrotei o Menino Vermelho (3), ele disse que foi criado por essa mulher. Quando encontrei o tio dele na Caverna da Anulação das Crianças, na Montanha da Supressão dos Machos (4), ele estava tão consumido pelo desejo de vingança que se recusou a me dar um pouco da água do Arroio dos Abortos. Agora, são os pais dele que tenho de enfrentar! Como vou conseguir esse leque?

O lenhador notou a mudança na expressão do Peregrino e disse, sem perder o sorriso:

— Aqueles que renunciaram ao mundo não deveriam se deixar abater pelo desânimo. Siga por este caminho em direção ao leste e logo chegará à Caverna da Folha de Palmeira. Fica a menos de oito quilômetros daqui. Por que tanta preocupação?

— Para ser sincero — respondeu o Peregrino —, sou o mais antigo dos discípulos do monge Tang, um homem piedoso que foi enviado pelo imperador das Terras do Leste ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras sagradas. Há alguns anos, ao passar pela Caverna da Nuvem de Fogo, tive um confronto com um demônio conhecido como o Menino Vermelho, que, por coincidência, era filho da Rakshasi. Temo que o rancor dela faça com que ela se recuse a me emprestar o leque. É por isso que estou preocupado.

— Cada um trata os outros de acordo com a impressão que teve deles — sentenciou o lenhador. — O melhor que você pode fazer é esquecer o passado e concentrar todas as suas energias em obter esse leque. Embora esta não seja uma tarefa fácil, tenho certeza de que você conseguirá.

— Agradeço pelos conselhos — respondeu o Peregrino, inclinando-se respeitosamente. — Vou me lembrar deles.

Após se despedir do lenhador, o Peregrino seguiu em direção à entrada da Caverna da Folha de Palmeira. As portas estavam firmemente fechadas, mas a beleza do lugar era absolutamente deslumbrante. As rochas da montanha eram tão ásperas que pareciam arrancadas do coração da terra. Uma névoa azulada envolvia as encostas íngremes, mantendo-as constantemente úmidas e alimentando o verde intenso dos musgos e líquenes. A paisagem lembrava a ilha de Penglai, mas o ar estava impregnado pelo perfume de flores semiabertas, um aroma típico da ilha de Yingzhou. Grupos de garças selvagens descansavam à sombra de pinheiros retorcidos, enquanto as oropéndolas entoavam seus cantos pousadas em salgueiros-chorões. Era evidente que aquele lugar havia sido morada de imortais por milhares de anos. Casais de fênices se ocultavam entre as árvores, e dragões milenares brincavam nas águas cristalinas. Os caminhos estavam tomados por ramos delicados de videiras, que o vento balançava suavemente, como se fossem brotos tenros de feijões selvagens. Dos rochedos pendiam cachos de trepadeiras, balançando ao som dos gritos dos macacos que habitavam os picos, entristecidos pela súbita aparição da lua. Por outro lado, as copas das árvores fervilhavam com os trilos das aves, animadas com o brilho do céu. À esquerda, viam-se dois bosques de bambu, cuja sombra era tão refrescante quanto uma chuva leve. Os caminhos estavam cobertos por um tapete de flores que lembrava padrões elaborados de bordados. Bandos de nuvens brancas corriam para pousar nas colinas distantes, apenas para serem dispersas pela brisa suave.

Após contemplar por alguns instantes aquela paisagem encantadora, o Peregrino gritou:

— Abra a porta, irmão Touro!

Os portões rangeram ao se abrirem, revelando uma jovem com uma cesta de flores nas mãos e um pequeno ancinho nas costas. Não havia adornos em seu corpo, que estava completamente coberto por trapos. No entanto, era evidente que possuía um espírito extraordinário, pois sua mente estava imbuída dos princípios do Tao.

O Peregrino a saudou respeitosamente, unindo as palmas das mãos, e disse:

— Poderia anunciar minha chegada à princesa? Sou um humilde monge em peregrinação rumo ao Ocidente em busca das escrituras sagradas. Infelizmente, encontrei a Montanha de Fogo em meu caminho e vim suplicar à sua senhora que me empreste o seu leque de folhas de palmeira, para que eu possa prosseguir minha jornada.

— Qual é o seu nome e a que monastério pertence? — perguntou a jovem. — Preciso saber  para que eu possa anunciá-lo com a devida formalidade.

— Sou um monge oriundo das Terras do Leste, e meu nome é Sun Wukong.

A jovem entrou novamente na caverna e, ajoelhando-se diante da Rakshasi, anunciou:

— Senhora, há um monge lá fora que se apresenta como Sun Wukong e afirma estar viajando para as Terras do Oeste em busca das escrituras sagradas. Ele deseja que a senhora lhe empreste o leque de folhas de palmeira para que ele possa atravessar a Montanha de Fogo.

Ao ouvir o nome de Sun Wukong, a Rakshasi ficou vermelha de ira, como se alguém tivesse jogado sal sobre o fogo ou derramado óleo nas chamas. Seu rosto adquiriu um intenso tom carmesim, enquanto a sede de vingança ardia em seu interior.

— Maldito macaco! — gritou, fora de si. — Como ousa aparecer em minha porta? Tragam minha armadura e minhas armas imediatamente!

A jovem obedeceu prontamente e ajudou sua senhora a se vestir. Em seguida, a Rakshasi pegou duas espadas cujas lâminas cintilavam em um tom azul intenso e saiu da caverna.

O Peregrino se afastou para observá-la melhor, e viu que ela trajava um lenço estampado com flores, combinando com a túnica ricamente bordada que cobria seu corpo. Em torno da cintura, ela usava um cinto feito de tendões duplos de tigre, contrastando com a suavidade da seda de sua saia, que estava levemente levantada nas laterais, revelando calças com bordados dourados. Seus pés, tão pequenos que mal mediam sete centímetros, estavam ocultos em sapatos com pontas em formato de bico de fênix. Gritando e brandindo as espadas, a Rakshasi exalava um ar tão feroz quanto o da própria deusa da lua.

— Onde está esse tal Sun Wukong? — rugiu ela, saindo da caverna.

— Estou aqui, respeitável cunhada — respondeu o Peregrino, inclinando-se em sinal de respeito.

— Não sou sua cunhada! — retrucou a Rakshasi com desprezo. — E de que me servem as suas saudações?

— Está enganada quanto a isso — retrucou, por sua vez, o Peregrino. — Certa vez, fiz um pacto de irmandade com seu esposo, o Rei Touro. Ao todo, éramos sete irmãos de juramento. Que eu saiba, isso me dá o direito de chamá-la de cunhada.

— Maldito macaco! — gritou a Rakshasi, ainda mais enfurecida. — Você não se importou com esses laços de irmandade quando capturou meu filho. O que tem a dizer sobre isso?

— Seu filho? — repetiu o Peregrino, fingindo surpresa. — Poderia me dizer quem é seu filho?

— O Menino Vermelho — respondeu a Rakshasi. — O Santo Menino da Caverna da Nuvem de Fogo, localizada próxima ao Riacho do Pinho Seco. Você o privou de suas posses na Montanha Uivante! Como acha que vou deixá-lo partir assim? Estou esperando há muito tempo por uma chance de vingar a desgraça do meu filho. E jamais imaginei que você mesmo fosse se oferecer para ser minha presa.

— Parece que não entendeu bem o que aconteceu — disse o Peregrino, tentando acalmá-la com um sorriso. — Antes de me culpar tão duramente, deveria saber que seu filho capturou meu mestre e tentou devorá-lo, cozido no vapor. Felizmente, a Bodhisattva Guanyin interveio e, em vez de puni-lo, concedeu-lhe o título de Jovem da Riqueza da Bondade. Desde então, ele vive junto à Bodhisattva, dedicando-se inteiramente à virtude. Nem a doença nem a morte podem alcançá-lo. Ele tem agora a mesma longevidade do Céu e da Terra, igualando-se em idade ao sol e à lua. Não acha que, em vez de lançar contra mim toda essa ira, deveria me agradecer pelo que fiz por seu filho? Afinal, não é justo matar quem salvou-lhe a vida.

— Quanta eloquência! — zombou a Rakshasi. — Mesmo que o que diz seja verdade, de que adianta não ter matado meu filho, se agora nem sequer posso vê-lo?

— Se deseja vê-lo, isso é a coisa mais simples do mundo — respondeu o Peregrino. — Empreste-me seu leque, para que eu possa apagar o fogo. Assim que levar meu mestre para o outro lado da montanha, irei até os Mares do Sul e trarei seu filho para que possa vê-lo. Em seguida, devolverei o leque. O que há de mal nesse plano?  Com seus próprios olhos, verá que ele não sofreu um único arranhão. Se não for assim, poderá fazer comigo o que quiser. Mas, se o encontrar mais jovem e saudável do que antes, deverá me recompensar generosamente.

— Pare de dizer tolices, maldito macaco! — gritou a Rakshasi. — Abaixe a cabeça e deixe-me desferir alguns golpes com a minha espada. Se conseguir suportar a dor, emprestarei o leque. Caso contrário, mandarei você direto para o Rei Yama.

— Não diga mais nada — respondeu o Peregrino, cruzando as mãos e aproximando-se dela com um sorriso. — Vou abaixar a cabeça agora mesmo, para que possa desferir quantos golpes quiser. Permitirei que você me bata até se cansar. Mas lembre-se: assim que terminar, deverá me emprestar o leque.

Sem perder tempo, a Rakshasi ergueu os braços e desferiu um golpe terrível contra a cabeça do Peregrino. O impacto, no entanto, não teve qualquer efeito. Repetiu o movimento quatorze ou quinze vezes, mas o resultado foi o mesmo. Para o Peregrino, aquilo não passava de uma brincadeira. 


A Rakshasi, porém, começou a ceder ao medo e virou-se, tentando fugir. O Peregrino rapidamente agarrou-a pela túnica, e disse:

— Não foi isso que combinamos. Aonde pensa que vai? Empreste-me o leque agora mesmo!

— Não estou disposta a emprestá-lo assim tão facilmente — respondeu a Rakshasi.

— Nesse caso — concluiu o Peregrino —, experimente o sabor do bastão do seu querido cunhado!

Com a mão livre, o Peregrino retirou da orelha o que parecia ser uma pequena agulha de bordar. Em um instante, o objeto se transformou em um bastão com a espessura de uma tigela de arroz. Mas a Rakshasi conseguiu se soltar de suas mãos e, girando rapidamente, enfrentou-o com as duas espadas. O Peregrino não recuou, e desferiu um golpe poderoso contra elaAssim, movidos pelo ódio e deixando de lado qualquer laço fraterno, os dois começaram um combate singular no coração da Montanha da Nuvem de Jade. A princesa era uma exímia conhecedora das artes mágicas e nutria um rancor profundo contra o Macaco, pois ele havia derrotado seu filho. O Peregrino, apesar de seu temperamento explosivo, manteve a calma e suportou todos os seus insultos, pois estava focado na missão de salvar seu mestre. Para conseguir o leque de folhas de palmeira, ele adotou uma postura submissa, usando um tom educado e respeitoso, como o de um cortesão. Afinal, para quê recorrer à força se a própria Rakshasi havia proposto um desafio que ele superou sem sofrer um arranhão? Além disso, ele estava relutante em cruzar armas com uma mulher, pois além de serem parentes, nunca se ouvira falar de uma dama vencendo um cavaleiro. Mas todos esses pensamentos se dissiparam quando a princesa quebrou a palavra e se recusou a entregar o leque. Com uma fúria avassaladora, o Macaco empunhou seu poderoso bastão de ferro com extremidades de ouro. Embora tivesse a espessura de um tronco de árvore, ele o manuseava com a mesma destreza que a Rakshasi manejava suas espadas afiadas. Golpes se sucediam, enquanto ambos buscavam atingir a cabeça e o rosto do adversário, movidos por um desejo ardente de vitória. Avançavam e recuavam, com precisão, desferindo golpes e aparando ataques com uma habilidade rara. Poucos guerreiros no mundo poderiam ser comparados a eles.

A luta era tão intensa que nenhum dos dois percebeu a chegada da noite. Quando a escuridão tomou conta de tudo, a Rakshasi finalmente compreendeu que o bastão do Peregrino era uma arma formidável e que não havia ninguém capaz de superá-lo em combate. Ciente de que não conseguiria derrotá-lo, ela sacou o leque de folhas de palmeira. Girando-o contra o Peregrino, deu um único abanão. Imediatamente, um furacão se formou, arremessando o Macaco como se ele fosse uma folha seca. Satisfeita, a Rakshasi retornou triunfante à sua caverna.


O Grande Sábio tentou de tudo para escapar daquela corrente de ar poderosa, mas nem sequer conseguiu tocar o chão. O vento o arremessava de um lado para outro, como se fosse um grão de poeira, com a mesma facilidade com que um tufão arranca folhas de uma árvore ou uma correnteza arrasta flores murchas. Durante toda a noite, ele foi jogado de um lado para outro, até que, ao amanhecer, conseguiu finalmente agarrar-se ao topo de uma montanha. 


Quando a força do vento finalmente diminuiu, ele se deitou para descansar. Foi então que percebeu estar no Pequeno Monte Sumeru.

— Que mulher extraordinária! — exclamou o Grande Sábio, suspirando profundamente. — Não entendo como conseguiu me trazer até aqui. Lembro que, anos atrás, pedi ajuda ao Bodhisattva Lingji neste mesmo lugar para capturar o Monstro do Vento Amarelo, que havia sequestrado meu mestre (5). A cordilheira de mesmo nome fica cerca de cinco mil quilômetros ao norte. Isso significa que fui arrastado por dezenas de milhares de quilômetros para o sudeste. Acho melhor visitar o Bodhisattva Lingji  e ver se ele pode me indicar o caminho mais rápido para retornar ao meu mestre.


Ele mal havia terminado de pensar nisso quando ouviu o som de guizos e címbalos. Descendo a encosta, não demorou a chegar à entrada do monastério. Um dos monges o reconheceu imediatamente e correu para avisar o Bodhisattva, dizendo:

— Acaba de chegar o Grande Sábio de rosto peludo! Aquele que veio há alguns anos atrás pedir ajuda para capturar o Monstro do Vento Amarelo.

Ao perceber que se tratava de Wukong, o Bodhisattva levantou-se apressadamente do estrado e saiu para recebê-lo, exclamando com entusiasmo:

— Parabéns por suas façanhas! Imagino que já tenham conseguido obter as escrituras sagradas, não é mesmo?

— Não exatamente — respondeu Wukong. — Ainda é um pouco cedo para isso.

— Então, o que o trouxe de volta a esta humilde morada, se ainda não alcançaram o Monastério do Trovão?

— Desde que nos ajudou a capturar o Monstro do Vento Amarelo, passamos por muitas dificuldades. Agora mesmo, estamos presos nas proximidades da Montanha de Fogo. Os moradores da região disseram que apenas o Imortal do Leque de Ferro pode apagar aquelas chamas. Quando fui procurá-lo, descobri que, na verdade, tratava-se de uma mulher, esposa do Rei Touro Demônio e mãe do Menino Vermelho. Como o rapaz passou a servir a Bodhisattva Guanyin por minha causa, ela me culpa por não poder vê-lo desde então e então passou a me considerar seu maior inimigo, recusando-se a me emprestar o seu leque e lutando comigo. Quando percebeu que não conseguiria vencer meu bastão de ferro, ela sacou seu precioso leque. Com um único abanão, ergueu um furacão que me arrastou até aqui. Por isso, decidi procurá-lo e pedir orientação sobre a forma mais rápida de retornar ao meu mestre.  Sabe qual é a distância que nos separa da Montanha de Fogo?

— Essa mulher de quem fala — disse o Bodhisattva Lingji, soltando uma gargalhada — é conhecida como Rakshasi, mas também a chamam de Princesa do Leque de Ferro. Embora pareça um simples leque de folhas de palmeira, ele é um verdadeiro tesouro criado pelo Céu e pela Terra no momento em que o caos foi dividido, na parte ocidental do Monte Kunlun. Por conter a essência do yin, ele tem o poder de apagar o fogo. Quem tem o infortúnio de ser abanado por ele pode ser arremessado por mais de cento e cinquenta mil quilômetros no meio de um vento devastador. Se você foi levado por apenas oitenta mil quilômetros até aqui, foi porque sabe cavalgar sobre as nuvens. Qualquer outra pessoa não teria sobrevivido a isso.

— Extraordinário! — exclamou o Peregrino. — Existe alguma forma de neutralizar esses efeitos? Preciso fazer com que meu mestre retome a jornada o quanto antes.

— Acalme-se, Grande Sábio — aconselhou Lingji. — Se chegou até aqui, é porque seu vínculo com o monge Tang é muito forte.

— O que quer dizer com isso? — perguntou o Peregrino.

— Há alguns anos, Tathagata me deu instruções e entregou-me o Cajado do Dragão Voador e o elixir para deter o vento. Usamos o cajado para capturar o monstro, mas o elixir permanece intacto desde então. Creio que ele será útil para neutralizar os efeitos daquele leque. Assim, poderá obtê-lo, apagará as chamas e conquistará seu mérito.

O Peregrino agradeceu a generosidade do Bodhisattva, inclinando a cabeça respeitosamente. Lingji então retirou da manga uma pequena bolsinha de seda, dentro da qual estava o elixir para deter o vento. Com uma agulha e linha, ele mesmo a costurou na parte interna da gola da túnica do Peregrino.

— Não há tempo a perder — disse Lingji, despedindo-se. — Siga em direção ao noroeste e logo chegará à montanha onde habita a Rakshasi.

O Peregrino deu um de seus saltos formidáveis e em pouco tempo retornou à Montanha da Nuvem de Jade. Imediatamente, dirigiu-se à entrada da caverna e começou a golpear a porta com o seu bastão de ferro, gritando:

— Abram de uma vez! Vim pedir o leque emprestado!

A jovem encarregada da porta correu para informar sua senhora, dizendo:

— Aquele monge está aqui de novo. Ele quer que a senhora lhe empreste o leque.

— Que poderes incríveis tem esse maldito macaco! — exclamou a Rakshasi, espantada — Aqueles atingidos pelo meu leque são arremessados por mais de cento e cinquenta mil quilômetros. Como ele conseguiu voltar tão rápido? Desta vez, irei abaná-lo duas ou três vezes seguidas. Com certeza, desta vez ele demorará mais para retornar.

A Rakshasi então levantou-se imediatamente do trono e, ajustando sua armadura, dirigiu-se à porta, brandindo suas duas espadas com destreza.

— Não tem medo da morte, Peregrino Sun? — gritou com ironia, assim que o avistou do lado de fora da caverna. — Por que insiste em rondar minha caverna?

— Não seja tão mesquinha e me empreste logo o seu leque — respondeu o Peregrino, sorrindo. — Do que tem medo? Sou um homem de palavra, e sempre devolvo aquilo que me emprestam.

— Você não passa de um macaco sem princípios! — exclamou a Rakshasi, furiosa. — Como pensa que vou lhe emprestar o leque, se ainda não vinguei meu filho? Não fuja, e experimente o sabor das minhas espadas!

O Grande Sábio não recuou nem um passo. Levantou o bastão de ferro e desviou os terríveis golpes das espadas. O combate foi tão intenso quanto o primeiro. Entretanto, depois de cruzarem golpes por sete ou oito vez, os braços da Rakshasi começaram a ceder ao cansaço, enquanto os do Peregrino permaneciam firmes. Percebendo que estava perdendo, a Rakshasi retirou o leque e o sacudiu com força na direção de seu adversário. O Peregrino, no entanto, não se moveu do lugar. Ele estava tão confiante que deixou o bastão de ferro de lado e disse, sorrindo:

— Não pense que o que aconteceu da última vez irá se repetir. Pode me abanar o quanto quiser, mas lhe aviso: não conseguirá me mover nem um milímetro.

Desconcertada, a Rakshasi sacudiu o leque mais duas vezes, mas o Peregrino permaneceu firme, como uma rocha sob seus pés. Frustrada, ela guardou o leque e correu para se refugiar na caverna, fechando todas as portas com firmeza. O Peregrino então decidiu usar seus outros poderes. Arrancou da gola da túnica a pílula do elixir para deter o vento e a colocou na boca. Em seguida, sacudiu seu corpo e se transformou em um grilo, tão pequeno que não teve dificuldade em se espremer por uma pequena fresta na porta.


Dentro da caverna, a Rakshasi parecia exausta e ordenou a uma de suas criadas:

— Traga-me um pouco de chá. Estou morrendo de sede.


A criada trouxe rapidamente um bule cheio de infusões aromáticas e o serviu com tanta rapidez que bolhas se formaram na borda da xícara. Com uma incrível agilidade, o Peregrino se escondeu dentro de uma delas. A Rakshasi, com uma sede voraz, bebeu o chá em apenas dois goles. 


Assim que o chá atingiu seu estômago, o Peregrino voltou à sua forma habitual e gritou com todas as suas forças:

— Vai me emprestar esse leque ou não?

— Trancaram direito todas as portas? — perguntou, assustada, a Rakshasi às suas criadas.

— Sim, senhora — responderam as criadas, tão confusas quanto ela.


— Se é verdade o que dizem — respondeu a Rakshasi —, como a voz do Peregrino está ecoando dentro da caverna?

— Parece estar vindo de dentro do seu corpo — disse uma das criadas, apavorada.

— Não venha com truques, Peregrino Sun! — exclamou a Rakshasi, pálida como cera.

— Eu não faço truques — respondeu o Peregrino. — Todas as minhas habilidades são reais. Neste momento, estou me divertindo muito dentro do seu estômago. Como diz o provérbio, estou vendo através dos seus olhos. Daqui de dentro, consigo perceber o quanto você está com sede, então vou te dar algo para aliviá-la — e golpeou com toda a força as paredes do estômago. A Rakshasi começou a sentir uma dor no ventre tão insuportável que fez ela se contorcer como um verme, gritando e rolando pelo chão.


— Vejo que também está com fome — disse o Peregrino, com o mesmo tom zombeteiro de antes. — Por isso, lhe oferecei um bolinho, cunhada. Espero que goste! — e, dando um salto, golpeou o céu do estômago da Rakshasi com a cabeça. 


Ela sentiu uma dor avassaladora percorrendo o seu coração. Seu rosto ficou amarelado e seus lábios ficaram esbranquiçados. Rolando no chão, tudo o que ela conseguia fazer era gritar:

— Cunhado Sun, por favor, poupe minha vida!

— Então agora me reconhece como cunhado!— exclamou o Peregrino, satisfeito. — Tudo bem. Pouparei sua vida por consideração ao meu irmão mais velho, o Rei Touro. Agora entregue-me o leque imediatamente para que eu possa usá-lo.

— Aqui está! — respondeu imediatamente a Rakshasi. — Saia e pegue-o.

— Deixe-me vê-lo primeiro — disse o Peregrino, desconfiado.

A Rakshasi ordenou a uma de suas criadas que pegasse o leque de folhas de palmeira e o colocasse ao seu lado. O Peregrino rastejou pelo interior de sua garganta e, ao vê-lo, disse:

— Bem, já que concordei em poupar sua vida, não farei um buraco em suas costelas para sair. Ao invés disso, sairei pela sua boca. Então, se não se importa, gostaria que a abrisse três vezes.

A Rakshasi o obedeceu, e o Peregrino, transformando-se novamente em um grilo minúsculo, deu um salto tremendo e pousou sobre o leque. 

Ele fez isso com tanta rapidez que ninguém percebeu que ele havia saído do corpo da Rakshasi. Ela mesma não parava de repetir, ansiosa:

 Por favor, saia logo, cunhado!

— Estou bem aqui — respondeu o Peregrino, recuperando sua forma habitual. — Obrigado por me emprestar o leque!

Em seguida, o Peregrino dirigiu-se à porta da caverna, mas nem precisou se preocupar em abri-la. As criadas  o fizeram com o respeito devido a príncipes. Satisfeito, o Grande Sábio montou em uma nuvem e partiu rumo ao leste.  Num piscar de olhos, chegou à casa de tijolos vermelhos. Ao vê-lo, Bajie gritou, entusiasmado:

— Mestre, Sun Wukong acabou de chegar!

Sanzang saiu imediatamente para recebê-lo, seguido pelo ancião e o Monge Sha. Assim que se sentaram ao redor da mesa, o Peregrino mostrou o leque e perguntou ao ancião:

— Este é o leque do qual falavam?

— Sim, é ele — confirmou o ancião, admirado.

— Quantos méritos você acumulou com esse ato tão nobre! — exclamou Sanzang, agradecido. — Tenho certeza de que lhe exigiu um grande para esforço obter esse tesouro.

— Não é necessário falar sobre isso — respondeu o Peregrino. — De qualquer forma, sabe quem é o Imortal do Leque de Ferro? A esposa do Rei Touro e mãe do Menino Vermelho. Seu nome é Rakshasi, embora todos a conheçam pelo nome de Princesa do Leque de Ferro. Fui à sua caverna para pedir o seu precioso leque emprestado, mas ela se negou de imediato, ressuscitando velhas rixas já esquecidas, e me golpeou várias vezes com suas espadas terríveis. Ela acabou se assustando ao perceber a força do meu bastão de ferro e recorreu ao poder de seu leque. Com ele, levantou um vento tão furioso que me arrastou até o Pequeno Monte Sumeru, onde tive a sorte de encontrar o Bodhisattva Lingji. Ele então me deu um elixir para deter o vento e me indicou o caminho de volta à Montanha da Nuvem de Jade. Mais uma vez, enfrentei a Rakshasi, mas, ao perceber que seu leque não podia fazer nada contra mim, ela ela se refugiou na caverna e a trancou tão bem que, para entrar, tive que me transformar em um grilo minúsculo. A sorte então sorriu para mim de forma muito especial, pois pude ver a Rakshasi tomando uma xícara de chá, e então aproveitei para me esgueirar até o interior de seu estômago, dentro de uma bolha. Lá, fiz com que ela sofresse muito, ao ponto dela se contorcer pelo chão e implorar que eu poupasse a sua vida, chamando-me de cunhado. Somente quando ela aceitou me emprestar o leque, é que concordei em parar de atormentá-la e vim correndo para cá. Devolverei seu precioso tesouro assim que atravessarmos a Montanha de Fogo.

Sanzang demonstrou enorme gratidão ao Peregrino. Em seguida, despediram-se do ancião e continuaram sua jornada rumo ao oeste. Após percorrerem cerca de setenta quilômetros, o calor começou a se tornar insuportável.

— Meus pés estão queimando! — exclamou o Monge Sha, alarmado.

Não aguento mais! — reclamou, por sua vez, Bajie.

Até o cavalo parecia trotar mais rápido do que o habitual. A temperatura da terra aumentava conforme avançavam, até que chegou um momento em que eles não conseguiam mais seguir adiante. O Peregrino então disse ao mestre:

— Desça do cavalo, e não se movam. Vou apagar o fogo com o leque. O vento e a chuva esfriarão a terra, e assim poderemos atravessar essa montanha.

O Peregrino pegou o leque e o agitou com toda a força. Imediatamente, levantou-se um vento furioso, que acabou intensificando ainda mais as chamas. Ele agitou o leque pela segunda vez, e o fogo se tornou cem vezes mais forte. Ao agita-lo pela terceira vez, as chamas alcançaram uma altura de trinta mil metros e quase envolveram o Peregrino. 

Embora tenha conseguido escapar, os pelos de suas pernas foram totalmente queimados. Desesperado, ele correu até onde estava o monge Tang, gritando:

— Recuem! O fogo está vindo para cá!

O mestre subiu rapidamente no cavalo e seguiu em direção ao oeste, acompanhado por Bajie e o Monge Sha. A fuga durou cerca de vinte quilômetros.

— O que aconteceu, Wukong? — perguntou o mestre, assim que conseguiu se sentar para descansar.

— Que desastre! — exclamou o Peregrino, jogando o leque no chão, irritado. — Aquela mulher me enganou!

— O que faremos agora? — perguntou novamente Sanzang, desanimado, enquanto lágrimas de impotência escorriam pelo seu rosto.

— Por que você gritou para voltarmos tão apressadamente? — perguntou Bajie, confuso.

— Porque na primeira vez que agitei o leque, as chamas aumentaram; na segunda, ficaram ainda mais fortes; e na terceira, ultrapassaram os três mil metros de altura. Se eu não tivesse corrido, teriam queimado todos os pelos do corpo.

—  Como assim, agora você tem medo do fogo? — zombou Bajie, soltando uma risada. — Não dizia que nem raios nem chamas poderiam feri-lo? 

— Seu idiota! exclamou o Peregrino. — Você realmente não entende as coisas. O fogo não pode me atingir quando estou preparado. Mas dessa vez fui pego de surpresa. Eu estava convencido de que o leque apagaria as chamas, então não fiz nenhum gesto mágico nem recitei nenhum encantamento. Por isso, acabei queimando as pernas.

— O que faremos agora, se o fogo é tão intenso e não há outro caminho para o Oeste? — perguntou o Monge Sha, preocupado.

— O melhor é seguirmos numa direção onde não haja chamas — sugeriu Bajie.

— Sim, mas qual? — questionou Sanzang.

— Como assim, qual? — repetiu Bajie. — Para o norte, para o sul ou para o leste.

— Alguma dessas direções pode nos levar às escrituras? — insistiu Sanzang.

— Não, apenas o Oeste — respondeu Bajie.

— Eu só desejo seguir para onde as escrituras estão  — reiterou Sanzang, com firmeza.

— Estamos diante de um dilema — comentou o Monge Sha. — Onde há escrituras, há fogo. E onde não há fogo, não há escrituras.

Enquanto discutiam, ouviram uma voz dizendo:

— Grande Sábio, não se aflija! Coma algo primeiro, depois pense no que vai fazer.

Surpresos, viraram-se e avistaram um ancião vestindo uma túnica que se agitava com o vento e um gorro em forma de meia-lua. Ele segurava um bastão com a cabeça de um dragão e calçava botas de ferro. Atrás dele, caminhava uma criatura estranha, com rosto de peixe e bico de falcão, carregando uma bandeja de cobre contendo alguns bolinhos cozidos no vapor, pastéis de arroz e mingau de milho.

O ancião inclinou-se respeitosamente diante dos viajantes e disse:

— Sou o espírito da Montanha de Fogo. Quando soube que vocês não conseguiam seguir sua jornada por causa das chamas, apressei-me em preparar algo para comerem, e aqui estou.

— A última coisa que nos preocupa agora é comida — replicou o Peregrino. — Existe alguma forma de apagar o fogo para que meu mestre possa continuar a jornada?

— Para isso, precisarão pedir à Rakshasi que empreste o seu leque de folhas de palmeira— respondeu o espírito da montanha.

— Não é este o leque de que está falando? — questionou o Peregrino. — Para sua informação, ele não me serviu de nada. Assim que abanei as chamas com ele, elas cresceram de forma inacreditável. Pode me explicar o porquê?

Após examinar o leque cuidadosamente, o espírito da montanha riu e disse:

— Esse não é o leque verdadeiro Receio que você foi enganado!

— Como posso conseguir o verdadeiro? — perguntou o Peregrino, ignorando o riso do espírito.

— Se desejam o leque de folhas de palmeira — respondeu o espírito da montanha, inclinando-se respeitosamente —, terão que procurar o Rei Poderoso.

Não sabemos, por enquanto, por que razão eles devem procurar o Rei Poderoso. Quem desejar descobrir terá de ouvir atentamente as explicações apresentadas no próximo capítulo.

CAPITULO LX EM BREVE ...

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Notas do Capítulo LIX
  1. Manter um equilíbrio absoluto, sem oscilações para leste ou oeste, norte ou sul, é a condição indispensável para alcançar a imortalidade;
  2. Com já explicado nas notas do capítulo XL, uma rakshasi é uma criatura feminina da mitologia hindu e budista, pertencente à classe dos rakshasas, seres sobrenaturais que podem ser tanto demoníacos quanto protetores, dependendo do contexto. Geralmente, as rakshasis são descritas como seres poderosos e frequentemente malignos, que praticam magia, assumem formas humanas para enganar ou seduzir, e às vezes devoram humanos;
  3. Para melhor compreensão deste diálogo, consultar os capítulos XL-XLII, que narram o encontro de Sun Wukong com o Menino Vermelho e sua posterior conversão ao budismo;
  4. Referência aos eventos ocorridos no capítulo LIII;
  5. Os incidentes mencionados pelo Grande Sábio ocorreram nos capítulos XIX e XX, aos quais remetemos o leitor.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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Ruby