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30 de outubro de 2023

Mandulis

۞ ADM Sleipnir

Mandulis (forma grega do nome, em egípcio Meruel; também grafado Merw, Merwl, Merwil, Merweter, Menrwil ou Menlil) era um deus solar adorado no império Kushita na região da Núbia, e também cultuado no Egito durante a dinastia ptolomaica (entre 303 a.C. e 30 a.C.). Ele é a forma kushita do deus egípcio Hórus, que era o deus do céu e filho de Ísis e Osíris

Mandulis era frequentemente retratado usando um elaborado adorno de chifres de carneiro, cobras e plumas encimadas por discos solares. Representações mais comuns o mostram na forma de um falcão, mas com uma cabeça humana, que estabelecem uma notável semelhança com a representação tradicional do Ba, a parte da alma que se acredita ser capaz de voar e sair da tumba. O Ba era representado na arte egípcia antiga como um um falcão com uma cabeça humana que simbolizava o falecido.


O centro de seu culto estava no Templo de Kalabsha, em Talmis, mas ele também tinha um templo dedicado a ele em Ajuala. A adoração a Mandulis era desconhecida no Egito durante o reinado dos faraós nativos. O Templo de Kalabsha foi construído sob o governo dos Ptolomeus (305 a 30 a.C.) e se tornou popular durante o período romano. O templo foi expandido sob o reinado dos imperadores Augusto (27 a.C. - 14 d.C.) e Vespasiano (69 - 79 d.C.). No templo, há uma série de inscrições datadas que vão desde o reinado de Vespasiano até o ano 248 ou 249 d.C., onde Mandulis é identificado como o "Sol, o mestre onisciente, rei de todos, todo-poderoso Aion."Além dos templos em Kalabsha e Ajuala, Mandulis também era adorado no Templo de Petesi e Pihor em Dendur e em Filas. Uma inscrição em Dendur o identifica como o "grande deus, senhor de Talmis", indicando claramente o centro de seu culto. Em Filas, ele é representado em uma parede ao lado da última inscrição hieroglífica conhecida, que foi dedicada a ele em 394 d.C.

Arte de Asfodelo

 

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27 de outubro de 2023

Peito

۞ ADM Sleipnir

Arte de misellapuella

Peito (grego ΠειΘω, "persuasão") era uma deusa grega ou espírito personificado (daimona) da persuasão. Ela representa tanto a persuasão sexual quanto a persuasão política, além de estar ligada à arte da retórica. Entre os romanos, era conhecida como Suada ou Suadela. Seu oposto é Bia, a personificação da força, poder e compulsão. Ela era geralmente retratada como uma mulher com a mão levantada em um ato de persuasão ou fugindo de uma cena de estupro. Seus atributos eram uma bola de barbante e uma pomba.

A genealogia de Peito é variada, com diferentes autores atribuindo diferentes origens a ela. Segundo o poeta Hesíodo, Peito era filha dos titãs Oceano e Tétis, mas outros poetas atribuem seu parentesco a deusa Afrodite, ao titã Prometeu ou a daimona Ate. Além disso, em algumas versões, ela é casada com Hermes ou com o herói Foroneu.


Na mitologia, Peito desempenha um papel limitado, principalmente aparecendo como uma serva e arauto da deusa do amor Afrodite. Ela é mencionada em contextos relacionados a casamentos e persuasão, como no episódio do rapto de Helena por Páris, onde sua presença levanta questões sobre a capacidade dos mortais de resistir ao seu poder persuasivo.

Embora não fosse amplamente adorada, Peito era objeto de culto em várias cidades gregas, incluindo Atenas, Sicião, Megara e Argos. Ela desempenhou um papel fundamental na promoção da harmonia cívica e interpessoal, principalmente em Atenas e Argos, onde sua adoração estava ligada a rituais de persuasão e casamento. Em Atenas, Peito era venerada como a deusa da persuasão sexual e retórica, desempenhando um papel significativo na retórica política e na democracia. Além de Atenas, Peito tinha cultos em outras cidades gregas, muitas vezes sendo associada a Ártemis. Seu papel na persuasão era considerado essencial para o sucesso do estado democrático.


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25 de outubro de 2023

Sina e a Enguia

۞ ADM Sleipnir

Arte de Kacie987

Sina e a Enguia (Sina ma le Tuna na língua samoana, sendo "Tuna" a palavra samoana para "enguia") é um mito de origens na mitologia samoana que explica o surgimento do primeiro coqueiro. O coqueiro tem múltiplos usos e representa uma importante fonte de alimento. Além disso, é empregado na produção de óleo de coco, cestos, cordas de sennit utilizadas na construção tradicional de casas samoanas, tecelagem e na edificação de pequenas habitações. A carne seca do coco, chamada de copra, tem sido um produto de exportação crucial e uma fonte de renda em toda a região do Pacífico.

O mito é conhecido não só em Samoa, mas por toda a Polinésia, abrangendo Tonga, Fiji e os maori na Nova Zelândia. Por isso, diferentes versões do mesmo são compartilhadas entre os diversos países polinésios, e associadas a outras figuras de suas mitologias, tais como Hina, Tinilau, Tagaloa e Nafanua.

A versão mais famosa, e que traremos aqui é contada em Savai'i, uma das ilhas de Samoa. Essa versão narra a história de Sina, uma jovem deslumbrante e cuja beleza era reconhecida em todo o Pacífico. Sua fama chegou aos ouvidos do Tui Fiti, o Rei de Fiji, que, apesar de ser mais velho que Sina, ficou curioso para entender a razão de tamanho alarde. Utilizando sua magia, ele se metamorfoseou em uma enguia e dirigiu-se à aldeia onde Sina residia. Ao chegar à piscina da aldeia, pôde testemunhar a esplêndida beleza de Sina. No entanto, quando Sina olhou para a água da piscina, viu a enguia observando-a.

Inicialmente, Sina, sentindo-se incomodada, exclamou: - E pupula mai, ou mata o le alelo! (em samoano: Você me encara, com olhos demoníacos!). No entanto, rapidamente percebeu que a enguia tinha uma natureza gentil e a acolheu como seu animal de estimação. Com o passar dos anos, o Tui Fiti envelheceu, perdendo seus poderes mágicos. Um dia, ele finalmente revelou sua verdadeira identidade a Sina, explicando que outrora fora o Rei de Fiji e viera conhecê-la por sua beleza, embora soubesse que não tinha chance devido à sua idade avançada. Ele então pediu a Sina que plantasse sua cabeça no solo. Sina obedeceu, e a partir desse gesto, um coqueiro cresceu. Quando a casca de um coco é retirada, surgem três marcas circulares que lembram o rosto de um peixe, com dois olhos e uma boca. Uma dessas marcas é perfurada para que o coco possa ser bebido. Portanto, quando Sina toma um gole de coco, está, de certa forma, mantendo uma conexão com a enguia.

Em Samoa, a piscina de água doce Mata o le Alelo, localizada na pequena aldeia de Matavai, Safune, está intimamente ligada à lenda de Sina e a Enguia. A piscina recebeu esse nome com base nas palavras de Sina à enguia na lenda, e é aberta a visitantes.

Cultura Popular

A canção "You're Welcome" do filme Moana (2016), faz referência a Sina e a Enguia, mas com o semideus polinésio Maui matando uma enguia e enterrando suas vísceras no solo para fazer crescer árvores de coco. Enquanto canta a música para Moana, Maui brinca com um coco que possui três marcas circulares em sua superfície.

Embora não seja mencionado no filme, nos créditos, a mãe de Moana é listada como "Sina". Durante a canção "Where You Are," Sina é retratada ensinando Moana a colher cocos e a usar as várias partes da árvore de coco.


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23 de outubro de 2023

A Origem do Açaí

۞ ADM Sleipnir

O açaí (Euterpe oleracea) é uma fruta nativa da região amazônica, principalmente encontrada no Brasil, Peru, Colômbia e outras áreas da América do Sul. Esta fruta, conhecida por suas propriedades antioxidantes e benefícios à saúde, cresce em cachos nas palmeiras açaizeiras. A lenda de sua origem faz parte do rico folclore da região Norte, e é uma expressão da resiliência humana e das bênçãos que podem surgir mesmo nos momentos mais sombrios. 

A Origem do Açaí

Há muitos e muitos anos, nas densas florestas de Belém, no Pará, florescia uma tribo indígena próspera. Contudo, à medida que a população crescia, a abundância de alimentos não conseguia mais suprir as necessidades do povo. Itaki, o respeitado cacique, tomou uma decisão angustiante para garantir a sobrevivência dos mais velhos: a partir daquele dia, todos os bebês nascidos seriam sacrificados. A tristeza se abateu sobre a tribo, e mesmo a filha de Itaki, Iaçã, não escapou dessa terrível regra, sendo forçada a sacrificar sua própria filha recém-nascida.

O luto consumiu Iaçã, que passou dias reclusa, chorando em sua oca. Desesperada, ela implorou ao deus Tupã por uma alternativa que pudesse salvar seu povo sem recorrer ao sacrifício de crianças. Comovido pela dor de Iaçã, Tupã decidiu intervir. Uma noite, Iaçã ouviu o choro de uma criança do lado de fora de sua oca. Ao investigar, deparou-se com a visão surpreendente de sua filha ao lado de uma palmeira. Em um gesto de amor, Iaçã correu para abraçar a criança, que misteriosamente desapareceu. Incapaz de conter a tristeza, Iaçã chorou até desfalecer.

Na manhã seguinte, seu corpo foi encontrado abraçado à palmeira, exibindo um sorriso tranquilo. Itaki, emocionado com a cena, decidiu sepultar sua filha ali mesmo, aos pés da palmeira, como um símbolo de amor eterno. Dias depois, Itaki notou que pequenos frutos roxos nasciam da palmeira. Em um gesto de gratidão, batizou a árvore de "Açaí", homenageando sua filha (Iaçã ao contrário). A palmeira generosa floresceu e alimentou a tribo, encerrando a era dos sacrifícios.

Arte de Marcio Luiz Quedinho

fontes:




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20 de outubro de 2023

Miniwashitu

 ۞ ADM Sleipnir


Miniwashitu (também conhecido como o Monstro da Água do Rio Missouri) é uma aterrorizante criptídeo dito habitar o Rio Missouri, no centro do estado de Dakota do Norte, nos EUA. Ela é descrita como uma criatura bípede, possuindo entre 2 e 2,5m de altura, coberto de pelos vermelhos e duros semelhantes aos de bisões. Ela possui um olho e um único chifre acima deste, além de cascos semelhantes aos de um alce, mãos humanas e uma espinha dorsal irregular e espinhosa.

De acordo com povos nativos da região, o Miniwashitu aparece no rio Missouri em momentos específicos, como na primavera, quando o gelo começa a derreter. Diz-se que ele usa seu enorme corpo e sua espinha dorsal para quebrar o gelo e anunciar sua chegada com um som ensurdecedor. Dizem que aqueles que tem o azar de avistar essa criatura ficam cegos e loucos, além de se contorcerem como se estivessem com alguma dor. Dizem também que tais efeitos permanecem até a morte do indivíduo.

Arte de LukeHardiman
fontes:
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18 de outubro de 2023

Druk

 ۞ ADM Sleipnir


Druk (tibetano padrão: འབྲུག, dzongkha: འབྲུག་) é o "Dragão do Trovão" da mitologia tibetana e butanesa, sendo também um símbolo nacional do Butão, país interior localizado no sul da Ásia, no extremo leste dos Himalaias. Há poucas fontes históricas sobre o aspecto mitológico do dragão, e muitos estudiosos acreditam que seja uma variante do Long (dragão) chinês, que também tem a capacidade de provocar tempestades e trovões.

Um druk aparece na bandeira do Butão, segurando joias para representar riqueza. No idioma dzongkha, o Butão é chamado de Druk Yul, que significa "Terra do Druk", e os líderes butaneses são chamados de Druk Gyalpo, que se traduz como "Reis do Dragão do Trovão". O hino nacional do Butão, Druk tsendhen, se traduz para o inglês como "Reino do Druk".

Bandeira do Butão

O druk foi adotado como emblema pela seita Drukpa, que teve origem no Tibete e se espalhou para o Butão. De acordo com relatos tradicionais, quando o fundador da seita, Tsangpa Gyare, começou a construir o mosteiro de Ralung, ocorreu uma tempestade violenta. O trovão, ou a "Voz da Nuvem", é visto como o rugido do dragão. Acreditando que isso era um presságio, ele nomeou o mosteiro como Drug-Ralung, acrescentando a expressão "dragão do trovão" ao nome. Os discípulos do mosteiro eram conhecidos como Drugpa, ou "Aqueles do Trovão". Na década de 1900, o Grande Lama do Butão usava um chapéu com dragões do trovão para simbolizar as origens da seita. À medida que a seita se tornou mais popular, estabeleceu mosteiros no que hoje é o Butão, resultando na região ser conhecida como Druk Yul, ou Terra do Trovão, tanto entre os tibetanos quanto entre os butaneses.

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16 de outubro de 2023

A Jornada ao Oeste: Capítulo XIV

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang

CAPÍTULO XIV:

O RETORNO DO MACACO DA MENTE AO CAMINHO DA VERDADE E DO BEM. OS SEIS BANDIDOS (1) DESAPARECEM SEM DEIXAR TRAÇOS


A Mente é Buda e Buda é a Mente; ambos possuem a mesma importância. Aquele que chega a compreender que não existem nem objetos nem mente está em posse do dharmakaya da autêntica inteligência. O dharmakaya carece de forma e se manifesta sob a aparência do brilho de uma pérola, na qual tudo está contido. O corpo autêntico é aquele que carece dele, e a forma mais real é aquela que não tem nenhuma. Não existem nem forma, nem vazio, nem nada, nem ir, nem voltar, nem se virar, nem igualdade, nem o oposto, nem ser, nem não-ser, nem dar, nem receber, nem desejar. Todo o universo e o reino de Buda cabem em um único grão de areia; na mente e no corpo está contido todo o cosmos. Para compreender profundamente tudo isso, é necessário submeter-se a Sakyamuni e renunciar a toda ação.

Dizíamos que Sanzang e Boqin, desconcertados e mortos de medo, ouviram uma voz estrondosa que dizia: 

- Meu mestre acaba de chegar! Meu mestre acaba de chegar!

- Deve ser macaco que está preso no interior da montanha há vários séculos - exclamaram, tremendo, os criados. 

- Claro! - confirmou o Guardião da Montanha. - Certamente deve ser ele. 

- De que macaco estão falando? - perguntou Sanzang. 

- Antigamente, este lugar era conhecido como a Montanha das Cinco Fases - explicou o Guardião -, mas mudou para seu nome atual após as heroicas campanhas realizadas pelo Imperador dos Tang para assegurar a parte ocidental de seu império. Anos atrás, ouvi dizer que esta montanha caiu dos céus com um macaco dentro. Esse fenômeno estranho ocorreu na época em que Wang-Mang (2) usurpou o trono dos Han. Segundo os mais velhos, o animal sobreviveu à fome, ao frio e ao calor, sempre observado pelos espíritos da terra, que o alimentaram com bolas de ferro e saciaram sua sede com bronze líquido. Não tenho a menor dúvida de que é ele quem está gritando dessa forma. Mas não tenha medo. Ele é totalmente inofensivo. Por que não descemos até o pé da montanha para dar uma olhada?

Sanzang não teve outra opção senão aceitar, e, virando-se, desceu pela íngreme encosta em cima de seu cavalo. Depois de percorrer alguns quilômetros, depararam-se com uma estrutura de pedra, dentro da qual, de fato, havia um macaco que não parava de agitar as mãos nem de falar em um estado de extrema agitação:

- Por que demorou tanto para chegar, mestre? Estou esperando por você há sei lá quantos séculos. Tire-me daqui e juro que o protegerei de todos os perigos que encontrar, desde aqui até as terras do Paraíso Ocidental.

O monge aproximou-se para vê-lo melhor e constatou que ele tinha uma boca protuberante, um rosto totalmente plano e dois olhos tão penetrantes que pareciam emitir fogo. Ele estava preso há tanto tempo que líquenes tinham crescido em sua cabeça, ervas em suas orelhas, musgos em suas têmporas e cardos em seu queixo, exatamente onde deveria haver uma barba densa e volumosa. Suas sobrancelhas e narinas também estavam totalmente cobertas de lama, o que lhe dava uma aparência de um condenado que havia perdido toda a esperança. Seu corpo estava tão sujo que era difícil distinguir suas mãos e pés das rochas íngremes ao seu redor. Felizmente, seus olhos e língua não pareciam ter sofrido qualquer rigidez, o que não podia ser afirmado de outras partes menos favorecidas de seu corpo. Aquele que há quinhentos anos atrás, se autodenominara o Grande Sábio, Sósia do Céu, havia sido reduzido a um estado tão lastimável, mas seu castigo estava prestes a ter um fim.

O Guardião da Montanha reuniu coragem e, se aproximando da criatura repulsiva, arrancou-lhe alguns cardos do queixo e um pouco de musgo das têmporas, e perguntou-lhe:

- Quer dizer alguma coisa?

- Sim, mas não a você - respondeu o macaco. - É com o monge que eu gostaria de falar. Tenho algo a perguntar a ele.

O que você quer saber? - replicou imediatamente Sanzang.

- O Imperador das Terras do Leste enviou você em busca das escrituras sagradas? - indagou o macaco.

- Sim, é verdade - admitiu Sanzang. - Pode me dizer por que está me perguntando isso?

- Eu - respondeu o macaco - sou o Grande Sábio, Sósia do Céu, e há aproximadamente quinhentos anos causei confusão no Palácio Celestial. Isso fez com que Buda me castigasse, me aprisionando sob esta massa de pedra. Há algum tempo, porém, a Bodhisattva Guanyin passou por aqui e me informou que estava indo às Terras do Leste em busca de um homem justo disposto a buscar as escrituras. Pedi a ela que me ajudasse, e ela me fez prometer que nunca mais me envolveria em distúrbios como os que causei no passado. Dessa forma, aceitei as leis de Buda, comprometendo-me, ao mesmo tempo, a proteger o futuro peregrino durante toda a sua jornada para o Oeste. Não tenho dúvidas de que, então, minhas ofensas serão perdoadas e receberei uma recompensa generosa. Isso explica por que tenho esperado dia e noite por você, pois somente você pode me libertar. Em troca, me tornarei seu discípulo e oferecerei toda a proteção que precisar.

- Como posso te libertar? - exclamou Sanzang, desconcertado. - Apesar de suas boas intenções e do que a Bodhisattva lhe disse, eu não tenho nada à mão para fazer buracos, nem mesmo um simples machado.

- Quem está falando em instrumentos? - protestou o macaco. - Para me libertar, você só precisa realmente querer isso.

- Claro que eu quero! - replicou Sanzang. - Mas você pode me dizer como fazer?

- Muito simples - respondeu o macaco. - No topo desta montanha, há uma laje de pedra com um texto escrito pelo próprio Buda em letras de ouro. Pegue-a e remova-a do cume. Isso será suficiente para que eu possa sair desta masmorra.

Sanzang concordou em fazer imediatamente o que lhe foi pedido. Ele se virou para Boqin e implorou, dizendo:

- Por favor, me acompanhe até o topo desta montanha. 

- Você acha que ele está dizendo a verdade? - perguntou Boqin, desconfiado.

- Claro que sim! - protestou o macaco com firmeza. - Como eu ousaria mentir na situação em que me encontro?

Boqin não teve escolha senão chamar seus criados e ordenar que segurassem os cavalos pelas rédeas. Dessa forma, eles iniciaram sua difícil ascensão ao topo da montanha, agarrando-se a espinhos e a plantas selvagens. O cume era o pico mais alto de toda a cordilheira, sobre o qual convergiam dez mil raios de luz dourada. Como o macaco havia dito, lá erguia-se uma enorme laje, na qual estavam gravadas as seguintes palavras: "Om mani padme hum". 

Sanzang se aproximou, ajoelhou-se e a observou atentamente. Ele tocou o chão com a testa várias vezes e, voltando-se para o oeste, orou, dizendo:

- Eu, vosso indigno discípulo Chen Zuanzang, fui escolhido para buscar os textos sagrados. Se, de fato, este macaco foi predestinado a ser meu seguidor, permitam-me arrancar essas letras de ouro e assim ele ficará livre para me acompanhar até a Montanha do Espírito. Por outro lado, se ele for apenas um monstro cruel que procura me enganar e arruinar a empreitada à qual me comprometi, façam com que nem mesmo consiga movê-las do lugar.

Após tocar novamente o chão com a cabeça, dirigiu-se à pedra e arrancou com incrível facilidade as letras de ouro que estavam incrustadas nela. Imediatamente, levantou-se um vento aromático que ergueu a laje para o alto, enquanto uma voz dizia:

- Eu sou o carcereiro do Grande Sábio, cuja sentença termina hoje. Estou retornando ao lado de Tathagata para entregar o selo que ele me confiou.

Sanzang, Boqin e os criados sentiram tanto medo que caíram no chão, sem coragem de olhar para cima. Quando finalmente desceram da montanha, foram até a masmorra de pedra e disseram ao macaco:

- A laje foi removida, então você pode sair quando quiser.

- Se não se importam - replicou o macaco, louco de alegria -, gostaria que se afastassem um pouco. Dessa forma, quando eu sair, vocês não ficarão tão assustados com a minha aparência.

Boqin levou Sanzang e os criados a uma distância de três ou quatro quilômetros a leste, mas o macaco gritou:

- Mais longe! Um pouco mais longe!

Sanzang e seus acompanhantes foram obrigados a se afastar tanto que acabaram abandonando a montanha. Nesse momento, ocorreu um tremor tão intenso que, por um momento, parecia que a montanha tinha desabado ou a terra se dividido ao meio. 

Todos ficaram apavorados. No entanto, antes que pudessem perceber, o macaco já estava na frente do cavalo de Sanzang e, ajoelhando-se na poeira, disse, visivelmente emocionado:

- Estou livre, mestre! Livre!

Ele se curvou quatro vezes diante de Sanzang e, levantando-se, dirigiu-se respeitosamente a Boqin, dizendo:

- Agradeço-lhe pelo incômodo que teve ao acompanhar meu mestre até aqui e pelo gesto de arrancar as ervas do meu rosto.

Assim que terminou de dizer isso, foi amarrar a bagagem de seu mestre com uma corda. No entanto, ao vê-lo, o cavalo ficou muito nervoso e quase empinou. Como o macaco era responsável pelos cavalos-dragão nos estábulos celestiais, sua autoridade sobre esses animais era tanta que eles tremiam ao vê-lo. Sanzang percebeu que se tratava de alguém com intenções honestas, um verdadeiro servo da causa budista, e, chamando-o, perguntou:

- Como você se chama, discípulo?

Eu  me chamo Sun. - respondeu o macaco 

- Nesse caso, permita-me que lhe dê um nome religioso. Será mais fácil me dirigir a você.

- Tal gesto vos honra, mestre - replicou o macaco - e eu o agradeço de coração. No entanto, já possuo um nome religioso. Na verdade, meu nome é Sun Wukong.

- Devo admitir que soa muito bem - afirmou Sanzang, satisfeito. - No entanto, você parece um monge mendicante. Que tal se, a partir de hoje, eu te chamar de o Peregrino Sun?

- Excelente! - exclamou Wukong.

Ao ver que o Peregrino Sun havia concluído os preparativos para continuar a jornada, Boqin virou-se para Sanzang e disse, respeitoso:

- Sois afortunado por ter encontrado aqui um discípulo como este. Parabéns. Parece ser uma pessoa excelente e estou certo de que será um bom companheiro de viagem. Por minha parte, receio que devo retornar para casa o mais rápido possível.

- Jamais poderei agradecer o que fizestes por mim - replicou Sanzang, inclinando a cabeça. -  Peço desculpas à vossa mãe e à vossa esposa pelas inconveniências que tiveram comigo, e dizei-lhes que será uma honra saudá-las quando voltar.

Boqin assentiu e se afastou, seguido por seus criados. O Peregrino Sun pediu então a Sanzang que montasse no cavalo, reiniciando a jornada. O macaco seguia à frente com a bagagem às costas. Pouco depois de deixarem para trás a Montanha das Duas Fronteiras, avistaram um tigre de aspecto feroz rugindo ameaçadoramente - seus olhos pareciam lançar chamas. Nervoso, Sanzang puxou as rédeas e começou a tremer. O Peregrino, por sua vez, se afastou e disse ao seu mestre, alegre como se tivesse encontrado um tesouro:

- Não temais. Este é um presente que o céu colocou em meu caminho, pois, como compreendereis, não posso andar por aí totalmente nu.

Deixando a bagagem no chão, Wukong levou a mão à orelha e tirou dela uma agulha minúscula. Após sacudí-la contra o vento, ela imediatamente se transformou em um bastão de ferro tão grosso quanto uma tigela de arroz. Ele a olhou com satisfação e exclamou, sorrindo:

- Fazem quinhentos anos que eu não uso esse tesouro. Agora ele vai me proporcionar uma roupa quente e confortável.

Em dois passos, ele chegou até o tigre e gritou:

- Maldita besta! Aonde pensa que vai?

O tigre se agachou como se fosse um gatinho e permaneceu encurvado contra o chão, sem ousar se mexer. O Peregrino Sun ergueu o bastão de ferro e a deixou cair com força sobre a cabeça da fera. O crânio se espatifou, e o cérebro saltou como se fossem dez mil pétalas avermelhadas de flor de pêssego. Ao mesmo tempo, os dentes voaram pelo ar como inúmeras lascas de jade branco. Sanzang ficou tão assustado que caiu do cavalo e começou a gritar, mordendo as unhas:

- Santo céu, isso é incrível! Para subjugar o tigre outro dia, o Guardião da Montanha foi obrigado a lutar com ele quase meio dia. Você, por outro lado, o fez em pedaços hoje com um único golpe de seu bastão. Agora entendo o ditado que afirma: "Por mais forte que você seja, sempre há outro mais forte que você".

- Mestre - sugeriu o Peregrino, arrastando o tigre -, que tal sentar-se um pouco enquanto eu tiro a pele dele? Não se preocupe. Continuaremos a viagem assim que eu terminar de fazer com ela uma roupa adequada para mim.

- Mas isso vai levar muito tempo - protestou Sanzang. - Além disso, não tens ferramentas à mão.

- Não se preocupe com isso - tranquilizou-o o Peregrino. - Eu tenho meios próprios. Você verá.

Ele então arrancou alguns pelos e, soprando sobre eles uma baforada de ar mágico, gritou:

- Transformem-se!

Imediatamente, os pelos se transformaram em uma faca curva e extremamente afiada, com a qual Wukong desmembrou o tigre. Sua habilidade era tão grande que conseguiu retirar toda a pele. Depois, tirou as garras e a cabeça, obtendo assim uma peça retangular. Levantou-a no ar e, após calcular suas medidas a olho nu, concluiu:

- Acho que é um pouco grande para mim. É melhor eu dividí-la ao meio.

Ele pegou a faca e dividiu a pele em duas partes iguais. Guardou uma delas e a outra amarrou em torno da cintura, segurando-a com uma espécie de junco que crescia à beira do caminho.

- Pronto, mestre - disse então, satisfeito. - Quando encontrarmos uma casa e tivermos tempo suficiente, pedirei emprestado um pouco de linha e costurarei melhor. Agora podemos continuar nossa jornada.

Wukong sacudiu novamente o bastão de ferro e, instantaneamente, ele se transformou em uma agulha minúscula, a qual voltou a guardar em sua orelha. Após carregar a bagagem, ajudou o mestre a montar no cavalo, e prosseguiram com a viagem.

- Onde você guardou o bastão com a qual acabou de matar o tigre? - perguntou, surpreso, o monge. - Não vai me dizer que ele desapareceu.

- Não, não - respondeu o Peregrino, sorrindo. - Você não faz ideia do quão poderoso ele é. Obtive-o no Palácio do Dragão do Oceano Oriental. Chama-se o Guardião da Via Láctea, embora também seja conhecido como o Bastão Complacente Com Pontas de Ouro. Quando me revoltei contra o céu, ele me foi de grande ajuda, pois pode se transformar no que eu quiser, sem se importar com a forma ou o tamanho. Acabei de transformá-lo em uma pequena agulha de costura, e assim pude colocá-la na orelha. Vou retirá-la quando precisar novamente.

- Por que o tigre ficou parado quando te viu? - perguntou novamente Sanzang. - Como você explica o fato dele não ter feito nada para se defender?

- Até um dragão teria se comportado da mesma forma que aquela besta - respondeu Wukong. - Ainda que não acredite, tenho o poder de dominar os dragões, domesticar feras, fazer com que os rios transbordem e os oceanos se agitem. Sou capaz, além disso, de descobrir o caráter de uma pessoa só olhando para o rosto dela e de saber se o que está dizendo é verdade ou não, dependendo do tom de sua voz. Se eu quiser, posso ficar tão grande quanto o próprio universo ou tão pequeno quanto o menor fio de cabelo. Tenho, ainda, o poder de me transformar no que quiser, e até mesmo de ficar invisível. O que há de estranho, então, em ter dominado o tigre com tanta facilidade? Aguarde até nos encontrarmos em dificuldades reais, e então verá com seus próprios olhos o que sou capaz de fazer.

Ao ouvir isso, Sanzang se sentiu mais tranquilo e esporeou seu cavalo. Eles não pararam de falar nem por um segundo, tornando a jornada mais suportável. Pouco tempo depois, o sol começou a se pôr a oeste, tingindo as nuvens distantes de vermelho, que gradualmente perdiam intensidade. Os pássaros buscavam abrigo nas florestas, preenchendo o crepúsculo com a nervosa algazarra de seus cantos. As feras selvagens retornavam às suas tocas em pares, embora também fossem vistas, de vez em quando, em grupos maiores. A lua, por sua vez, já havia aparecido no céu, escoltada pelas dezenas de milhares de pontos luminosos das estrelas.

- Devemos nos apressar, mestre - disse o Peregrino, olhando para cima -, porque está ficando muito tarde. Vejo um denso conjunto de árvores adiante, e imagino que lá deve haver uma vila ou aldeia. Teremos que nos apressar se quisermos encontrar um lugar para ficar.

Sanzang esporeou o cavalo, e logo chegaram a uma casa. Enquanto o monge desmontava, o Peregrino dirigiu-se à porta e começou a batê-la, gritando:

- Abra! Abra!

Logo apareceu um ancião, que se apoiava em uma bengala para caminhar. A porta rangeu lastimosamente, e o homem quase morreu de susto ao ver o Peregrino com a pele de tigre enrolada na cintura, com uma aparência tão horripilante que parecia um deus do trovão. Em pânico, ele começou a gritar:

- Socorro! Um fantasma! Um fantasma! - e outras tolices do tipo. 

Sanzang se aproximou imediatamente e, segurando-lhe pelo braço, disse: 

- Não tenha medo. Este não é nenhum fantasma, mas sim meu discípulo. 

O ancião levantou os olhos e, ao ver os atrativos e bem proporcionados traços de Sanzang, finalmente cedeu à razão e perguntou: 

- A que monastério você pertence e por que ousou chegar até a minha porta acompanhado por um personagem tão sinistro como este? 

- Eu, senhor - respondeu Sanzang -, venho da corte dos Tang e estou indo em direção ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras de Buda. Ao passarmos por aqui, anoiteceu, e decidimos vir até sua casa em busca de abrigo. Dou-lhe minha palavra de que não ficaremos muito tempo. Na verdade, planejamos continuar a jornada assim que amanhecer. Por favor, não nos deixe passar a noite ao relento. 

- Pode até ser que você seja um súdito dos Tang - replicou o ancião -, mas duvido muito que esse sujeito tão sinistro que o acompanha também seja. 

- Não sei para que servem seus olhos! - exclamou Wukong, elevando a voz. - Até um cego perceberia que este, um cidadão do império Tang, é meu mestre, e eu sou seu discípulo. Quanto a mim, direi que pouco me importam as distinções que você acabou de fazer. Afinal, eu ainda sou o Grande Sábio, Sósia do Céu. Aliás, você e sua família deveriam se lembrar de mim, pois não é a primeira vez que nos vemos.

- Pode me dizer onde nos encontramos antes? - perguntou, de maneira desdenhosa, o ancião. 

- Você não se lembra que, quando era jovem, recolhia lenha diante dos meus olhos e colhia vegetais diante do meu rosto?

- Bobagem! - exclamou o ancião. - Onde você morava e onde eu estava para que eu recolher  lenha na frente dos seus olhos e colher vegetais diante do seu rosto? 

- Aqui o único capaz de falar bobagem é você - afirmou Wukong. - Isso prova que você ainda não me reconheceu. Aproxime-se e olhe-me atentamente. Sou o Grande Sábio que esteve prisioneiro na masmorra de pedra da Montanha das Duas Fronteiras. 

- Agora que você falou, você se parece um pouco com ele - disse o ancião, tentando se lembrar. - Mas como você conseguiu escapar de lá? 

Wukong então deu-lhe uma explicação detalhada de como a Bodhisattva o havia convertido e como ela o havia pedido para esperar pelo monge Tang para que o libertasse de seu confinamento. Depois de ouví-lo, o ancião se curvou diante deles e implorou que entrassem em sua casa. Ele chamou então sua esposa e seus filhos e pediu que tratassem tão respeitáveis hóspedes da melhor maneira possível. Quando ele contou o que aconteceu, todos ficaram encantados. Não demorou muito para que o chá fosse servido, momento em que o ancião aproveitou para perguntar a Wukong: 

- Quantos anos você tem, Grande Sábio?

- E você, quantos anos tem? - replicou Wukong. 

- Bem, vivi como um tolo neste mundo por cento e trinta anos - respondeu o ancião. 

- Nesse caso - concluiu o Peregrino -, você deve ser meu tataraneto. Sendo honesto, não me lembro de quando nasci. Tudo que eu sei é que passei mais de quinhentos anos sob aquela montanha.

- Sim, sim! - confirmou o ancião. - Lembro-me de que meu tataravô me contou uma vez que essa montanha caiu repentinamente do céu e que dentro dela estava preso um macaco de origem divina. E pensar que você teve que esperar tanto tempo para voltar a desfrutar da liberdade! Lembro-me de que, quando o vi pela primeira vez, você tinha ervas na cabeça e o rosto completamente coberto de lama. No entanto, não fiquei assustado nem um pouco. Agora, sem lama no rosto e grama na cabeça, você parece um pouco mais magro. E com este enorme pedaço de pele de tigre enrolado na cintura, que diferença existe entre você e um demônio?

Todos riram ao ouvir isso. O ancião, no entanto, era um homem decente e ordenou que preparassem uma refeição vegetariana para eles.

- A que família você pertence? - perguntou Wukong.

- Aos Chen - respondeu o ancião.

Sanzang abandonou seu assento e correu para apresentar seus respeitos, dizendo: - Parece que temos os mesmos antepassados.

- Como isso é possível, se o senhor se chama Tang? - protestou Wukong.

- Não, não - negou Sanzang. - Meu sobrenome verdadeiro é Chen, e sou originário da aldeia de Juxian, Prefeitura de Hongnong, Distrito de Haizhou. Meu nome religioso, na verdade, é Chen Xuanzang. Se agora uso o sobrenome Tang, é porque nosso Grande Imperador Tang Taizong fez um pacto de irmandade comigo. Daí alguns me conhecerem como Sanzang ou simplesmente como o monge Tang.

O ancião ficou muito feliz por ambos terem o mesmo sobrenome.

- Desculpe - disse o Peregrino, dirigindo-se a ele -, mas a verdade é que não me lavo há quinhentos anos. Você se importaria de pedir aos seus criados que preparem um pouco de água quente para eu e meu mestre nos banharmos? Quando partirmos, saberemos recompensá-lo à nossa maneira.

Instantaneamente, o ancião mandou aquecer a água e trouxe potes e tochas. Depois de se banharem, sentaram-se junto ao fogo, e o Peregrino disse novamente: - Eu temo, ancião Chen, que ainda tenho um novo favor a lhe pedir. Você poderia me emprestar uma agulha e um pouco de linha?

- Claro! - exclamou o ancião e ordenou a um de seus criados que fosse imediatamente buscá-los.

O Peregrino tinha uma visão muito aguçada e percebeu que Sanzang havia tirado uma camisa de sarja branca e não a havia vestido novamente após o banho. Ele apropriou-se dela com indescritível alegria e começou a costurar pacientemente a pele de tigre. Quando terminou, enrolou-a novamente na cintura e, passeando para frente e para trás diante de seu mestre, perguntou:

- O que você acha do meu visual hoje em comparação com o de ontem?

- Totalmente diferente - respondeu Sanzang. - Agora você parece um autêntico Peregrino. Se acha que essa camisa não está muito desgastada, pode ficar com ela.

- Obrigado pelo presente, mestre - replicou Wukong com respeito, e saiu para pegar um pouco de feno para os cavalos. Assim que os alimentou, todos se retiraram para descansar.

Na manhã seguinte, Wukong acordou muito cedo

 e preparou as bagagens enquanto Sanzang terminava de se vestir. Quando estavam prestes a partir, o ancião trouxe água para que se lavassem e um pouco de comida vegetariana. 

Logo após o café da manhã, Sanzang montou em seu cavalo, e eles retomaram a jornada. O Peregrino ia à frente, liderando o caminho. 


Poucos dias depois, o inverno se fez presente. Por toda parte, árvores nuas e bordos queimados pela geada eram visíveis. Somente de tempos em tempos, era possível contemplar o verde inalterável dos pinheiros e ciprestes. No início do décimo primeiro mês, no entanto, os dias se tornaram momentaneamente tão quentes quanto na primavera (3), e o aroma das flores de ameixa se espalhou por toda a paisagem. Mas isso durou pouco. Enquanto passavam por uma ponte feita de galhos de árvores, que ligava as duas margens de um riacho, viram nuvens acinzentadas pairando sobre suas cabeças, carregadas de neve. O vento era tão frio e forte que fazia os olhos lacrimejarem. À noite, as temperaturas caíam tanto que era impossível dormir ao relento.

Os dois caminhantes tinham coberto uma boa parte do seu trajeto quando foram surpreendidos por seis homens gritando como loucos e armados com lanças, espadas e arcos. Eles pararam exatamente no meio do caminho e, elevando a voz, disseram:

- Pare, monge, e desça do cavalo. Se quiser continuar, terá que nos dar tudo o que carrega.

Sanzang ficou tão aterrorizado que sentiu seu espírito deixando o corpo e acabou caindo do cavalo, sendo incapaz de articular alguma palavra. O Peregrino correu até ele e, ajudando-o a levantar, disse:

- Não tenha medo, mestre. Essas pessoas vieram nos oferecer roupas e um pouco de dinheiro para a viagem.


- Você está surdo ou não ouviu o que disseram? - exclamou Sanzang. - Querem que entreguemos o cavalo e tudo o que carregamos! Como pode afirmar que vieram nos socorrer?

- Fique aqui cuidando de nossas coisas - sugeriu o Peregrino. - Eu vou me aproximar deles para ver o que está acontecendo.

- Ver o que está acontecendo? - repetiu Sanzang. - Por mais poderoso que seja um soco, sempre será menos eficaz do que dois punhos, e estes, por sua vez, menos eficazes do que quatro mãos. Você não entende? Temos seis brutamontes à nossa frente, e você tem um corpo pequeno. Pode me dizer como vai lidar com eles?

Corajoso como era, o Peregrino não esperou por mais argumentos. Ele se aproximou deles com os braços cruzados e, cumprimentando-os, perguntou com uma desconcertante audácia:

- Posso saber, cavalheiros, por que bloquearam o caminho de um monge tão pobre como este?

- Somos os reis da estrada e senhores filantrópicos das montanhas. Sempre fomos muito famosos, embora você pareça não saber. Entregue-nos o que carrega, e permitiremos que sigam. Caso contrário, faremos picadinho de vocês.

- Eu também fui rei e senhor de uma montanha por séculos - replicou o Peregrino. - No entanto, devo admitir que durante todo esse tempo nunca ouvi falar de vocês. Desculpem-me, mas não sei seus nomes.

- Não sabe? - repetiu um deles. - Está bem. Irei apresentar todos. Um de nós se chama "Olho que vê e encanta"; outro, "Ouvido que Ouve e se Enfurece"; outro, "Nariz que Cheira e Ama"; outro, "Língua que Prova e Deseja"; outro, "Mente que Percebe e Cobiça"; e por último, "Corpo que Suporta e Sofre".

- Vocês são apenas bandidos que não reconhecem um verdadeiro mestre - riu Wukong. - Como ousam bloquear meu caminho? Peguem tudo o que roubaram e dividam em sete partes iguais, se quiserem continuar vivos.

Ao ouvir isso, todos os ladrões reagiram com raiva e diversão, cobiça e medo, desejo e ansiedade. Então, lançaram-se sobre ele, gritando:

- Maldito monge! Não tem nada para nos oferecer e ainda exige que dividamos nosso saque com você. Quem pensa que é?

Brandindo suas lanças e espadas, cercaram o Peregrino e desferiram sobre sua cabeça não menos que setenta ou oitenta golpes. No entanto, Wukong agia como se nada estivesse acontecendo.


- Cuidado, esse monge tem a cabeça dura! - exclamou surpreso um dos bandidos.

- Não tanto assim - corrigiu o Peregrino, rindo. - Parece que tanto exercício está cansando vocês um pouco, não é? É hora de tirar a minha agulha e me divertir um pouco com vocês.

- Esse monge deve ser um acupunturista disfarçado,  zombou outro dos ladrões. Para que vai tirar sua  agulha, se nenhum de nós está doente?

Então, o Peregrino levou a mão à orelha e pegou sua pequena agulha de bordar. Ele a sacudiu um pouco ao vento e instantaneamente ela se transformou em um bastão de ferro do tamanho de uma tigela de arroz. Ele o segurou firmemente com as duas mãos e gritou com uma voz potente:

- Não corram, covardes! Me dêem a oportunidade de testar meu bastão em vocês!

Os seis ladrões se dispersaram em todas as direções, mas ele os alcançou com duas passadas, cercando-os com destreza felina. Depois, os matou um por um, tirou-lhes as roupas e os despojou de tudo o que tinham de valor.

- Agora podem continuar, mestre - disse, voltando sorridente até Sanzang. - Os bandidos foram exterminados.

- O que você fez foi terrível - repreendeu-o Sanzang. - Eles podem ter sido salteadores, mas você não tinha o direito de julgá-los e condená-los à morte da maneira que fez. Por que matou todos eles? Você deveria tê-los feito fugir. Como pode se considerar um monge, quando anda por aí matando pessoas indiscriminadamente? Aqueles de nós que seguem a vida espiritual têm a obrigação de "certificar-se de que não há formigas no chão quando varremos, para que não sofram nenhum dano; até mesmo devemos cercar as velas com pequenas telas, para evitar que as traças morram queimadas". Como você pode matar quem quiser, sem se deter para distinguir o certo do errado? É incrível que você seja tão pouco compassivo com os outros! A sorte é que estamos em um local deserto, e qualquer investigação sobre os fatos está descartada. Imagine se isso tivesse acontecido em uma cidade. Você acha que continuaria livre depois de bater com sua barra de ferro em quem quisesse?

- Mas, mestre - protestou Wukong, perplexo - , se eu não os tivesse matado, eles teriam acabado conosco.

- Os monges - sentenciou Sanzang - têm a obrigação de morrer antes de usar violência. Além disso, há uma grande diferença entre perder a vida e ter seis pessoas mortas. Não há justificativa para o que você fez. Mesmo se fosse o juiz, teria que admitir que sua conduta foi completamente equivocada.

- Quando eu era rei da Montanha das Flores e Frutos, cerca de quinhentos anos atrás - tentou se defender o Peregrino -, matei sei lá quantas pessoas; se não fosse por isso, nunca teria me tornado o Grande Sábio, Sósia do Céu.

- Mas você não entende - replicou Sanzang - que sofreu aquele tremendo castigo precisamente porque, ao agir sem escrúpulos ou controle, atraiu sobre si a ira da Terra e a condenação do Céu? Se, depois de abraçar a fé budista, ainda insiste em praticar a violência e continuar matando pessoas como antes, não é digno de ser um monge nem de me acompanhar ao Paraíso Ocidental, porque simplesmente é mau.

O macaco não estava acostumado a ser repreendido por ninguém. No início, tentou se controlar, mas como Sanzang não parava de repreendê-lo, acabou perdendo a paciência e exclamou, mal-humorado:

- Está bem, está bem! Se acha que não mereço ser monge nem acompanhá-lo até o Paraíso Ocidental, vou embora agora e o assunto está encerrado. Chega de tantas reprimendas!

Antes que Sanzang tivesse tempo de responder, o Peregrino deu um salto e desapareceu no alto, depois de gritar:

- Lá vou eu!

Sanzang levantou a cabeça, mas o macaco já tinha desaparecido. Apenas um som silvante flutuava no ar, movendo-se como uma exalação para o leste. O monge então balançou a cabeça e suspirou:

- Que homem! Como ele detesta ser doutrinado! Não entendo como ele pôde desaparecer tão rapidamente, tudo porque eu disse simplesmente o que pensava. Tudo bem. Parece que meu destino é não ter nenhum companheiro de viagem, porque a esse eu não faço voltar nem mesmo chamando-o. Como conseguiria, se nem ao menos sei onde ele está? Não me resta alternativa senão seguir adiante sozinho - e ele se preparou para continuar o caminho em direção ao Oeste, mesmo que isso significasse perder a vida na tentativa ou não falar com ninguém por muito tempo.

Assim, não teve outra opção senão pegar a bagagem e colocá-la no cavalo. O animal parecia tão exausto pelo peso que ele não ousou montar nele. Com as rédeas em uma mão e o bastão na outra, seguiu seu triste caminho em direção às Terras do Oeste. 

Não tinha ido muito longe quando encontrou uma senhora idosa vestida com uma túnica de seda e usando uma coroa com muitas flores na cabeça. Assim que a viu, Sanzang se afastou respeitosamente para deixá-la passar.

- De onde você vem e por que viaja sozinho? - perguntou a senhora.

- Eu, senhora - respondeu Sanzang, respeitosamente -, estou indo para o Paraíso Ocidental em busca, a pedido do grande rei das Terras do Leste, das autênticas escrituras de Buda.

- O Grande Buda do Oeste - comentou a senhora - vive na Índia, no Templo do Trovão, um lugar que fica aproximadamente a cinquenta mil quilômetros de distância. Como pretende fazer essa jornada tão longa sozinho, sem ninguém para acompanhá-lo?

- Alguns dias atrás - respondeu Sanzang - consegui um discípulo, mas ele tinha um temperamento muito forte e não gostava que ninguém interferisse em sua vida. Ele me deixou sozinho exatamente porque o repreendi um pouco. Parece que ele não tinha muito interesse em aprender.

- Uma verdadeira pena - exclamou a mulher. - Trago comigo uma túnica de seda e um chapéu incrustado com uma coroa de ouro que pertenceram ao meu filho. Ele foi monge por apenas três dias, após os quais morreu de uma doença súbita. Precisamente agora, venho do monastério onde ele buscava o caminho da perfeição. O luto terminou, e seu mestre me entregou essas coisas para que me ajudassem a guardar para sempre a lembrança dele. Como se eu não fosse mantê-lo eternamente vivo em meu coração! Na verdade, não me servem para nada. Já que você tem um discípulo, eu as ofereço para ele.

- Agradeço muito - respondeu Sanzang -, mas não me atrevo a aceitar. Como acabei de lhe dizer, ele me abandonou um pouco antes de encontrá-la.

- Para onde ele foi? - insistiu a senhora.

- Não sei - respondeu Sanzang. - Tudo o que posso dizer é que ouvi um tipo de assobio se movendo para o leste.

- Que coincidência! - exclamou a senhora. - Minha casa também fica nessa direção. É provável que ele tenha ido para lá. Além disso, conheço um feitiço para controlar a mente que você pode aprender sem dificuldade. Memorize-o e nunca o ensine a ninguém. Agora vou ver se o alcanço e consigo convencê-lo a voltar com você. Quando eu retornar, entregue a ele a túnica e o chapéu. Se ele persistir em não obedecer, recite o feitiço em voz baixa e eu garanto que ele nunca mais terá coragem de deixá-lo sozinho nem ceder à tentação da violência.

Em sinal de agradecimento, Sanzang inclinou a cabeça. A senhora então se transformou em um raio de luz que se moveu rapidamente para o leste. Assim, Sanzang percebeu que se tratava da Bodhisattva Guanyin. Sem perder tempo, ele pegou um pouco de terra e a espalhou como se fosse incenso, inclinando-se para o leste. Depois, pegou a túnica e a faixa dourada e as colocou na bolsa. Sentou-se então à beira do caminho e repetiu várias vezes o feitiço para dominar a mente, até que o memorizou completamente.

Enquanto isso, Wukong havia viajado até o Oceano Oriental, onde abriu um caminho na água que o levou diretamente ao Palácio de Cristal de Água. 

Ao saber de sua chegada, o Rei Dragão saiu pessoalmente para recebê-lo, dizendo:

- Até meus ouvidos chegaram as notícias de sua libertação, algo que, certamente, me alegra. Desculpe-me, Grande Sábio, por ainda não tê-lo parabenizado por isso. Suponho, de qualquer forma, que você deve ter estado ocupado organizando sua montanha e a caverna que um dia habitou.

- Isso é o que eu teria gostado de fazer - admitiu Wukong. - No entanto, tornei-me um monge.

- Um monge? - repetiu o Rei Dragão, surpreso. - Que tipo de monge?

- Foi tudo obra da Bodhisattva dos Mares do Sul, que me convenceu a dedicar-me à prática do bem e à busca da verdade. Comprometi-me, ao mesmo tempo, a acompanhar o monge Tang até as Terras do Oeste em busca das escrituras de Buda. Como prova desse compromisso, agora sou conhecido pelo nome de Peregrino.

- Isso é verdadeiramente louvável! - exclamou o Rei Dragão. - Não é fácil abandonar os caminhos do mal para seguir o caminho do bem. No entanto, se o que você acabou de me dizer é verdade, por que está indo agora para o leste?

- Esse monge Tang não tem a menor compreensão da natureza humana - replicou o Peregrino, rindo. - Alguns bandidos apareceram tentando nos roubar, e eu os derrotei em um instante. Mas, em vez de me agradecer, aquele monge começou a me repreender e a me acusar de estar supostamente errado em minha ação. Não consegui suportar e o deixei falando sozinho. Estava indo exatamente para minha montanha quando pensei em lhe fazer uma visita e tomar uma xícara de chá.

- Você não sabe o quanto agradeço! - exclamou novamente o Rei Dragão, e imediatamente seus filhos e netos apareceram com xícaras de um chá aromático.

Assim que o Peregrino terminou a sua xícara, virou-se e, ao ver pendurado na parede uma pintura representando o incidente dos sapatos na Ponte Yi, perguntou, interessado:

- O que significa essa pintura?

- O incidente que ela retrata - respondeu o Rei Dragão - aconteceu algum tempo depois de você nascer. É possível, portanto, que você não se lembre ou não tenha ouvido falar sobre a entrega tripla dos sapatos na Ponte Yi.

- A entrega tripla dos sapatos? - repetiu o Peregrino.

- Isso mesmo - concordou o Rei Dragão. - O imortal da pintura chamava-se Huang Shigong, e o jovem que está ajoelhado diante dele, Zhang Liang. Shigong estava sentado na Ponte Yi, quando de repente um de seus sapatos caiu, e ele pediu a Zhang Liang que fosse buscá-lo. O jovem fez isso, sendo obrigado a se ajoelhar para colocá-lo novamente. Isso aconteceu três vezes seguidas, mas Zhang Liang não demonstrou o menor aborrecimento ou impaciência, o que lhe valeu o afeto de Shigong, que lhe ensinou em uma única noite o conteúdo do livro celestial e pediu que apoiasse a casa dos Han. Zhang Liang "maquinou estratégias militares, confortavelmente sentado em uma tenda, que possibilitaram vitórias a milhares de quilômetros de distância" (5). Quando a dinastia Han estava firmemente estabelecida, ele renunciou ao cargo e se retirou para as montanhas, onde seguiu os ensinamentos da Semente do Pinheiro Vermelho (6) Taoísta, alcançando a luz da imortalidade. Se você não acompanhar agora o monge Tang e não se submeter aos seus conselhos e ensinamentos, tenha certeza, Grande Sábio, de que toda a sua vida será a de um imortal agitado. Não pense que, em sua idade, já alcançou todos os Frutos da Verdade, porque ainda há muito a aprender.

Wukong ouviu atentamente essas palavras e refletiu sobre elas em completo silêncio. Isso encorajou o Rei Dragão a acrescentar:

- Isso é algo que só você pode decidir, Grande Sábio, mas acho que é tolice hipotecar o futuro por alguns instantes de conforto.

- Não precisa dizer mais nada - interrompeu Wukong, decidido. - Voltarei agora mesmo para o lado do meu mestre.

- Se esse é o seu desejo - concluiu o Rei Dragão -, não serei eu quem o deterá ao meu lado por mais um segundo. Aliás, se não se importar, peço que não o faça esperar mais e volte o mais rápido possível para o lado dele.

O Peregrino se preparou imediatamente para deixar o oceano e, depois de se despedir do Rei Dragão, montou em uma nuvem e subiu aos céus. 

Em pouco tempo, encontrou a Bodhisattva dos Mares do Sul, que o repreendeu severamente:

- Por que não me ouviu e se recusou a acompanhar o monge Tang? O que está fazendo aqui agora?

Desconcertado, o Peregrino cumprimentou-a do alto das nuvens e respondeu:

- Não pode imaginar o quanto estou agradecido pelo que fez por mim. Como disse, um monge da corte dos Tang veio à minha prisão, quebrou o feitiço e salvou minha vida. Em gratidão, tornei-me imediatamente seu discípulo, mas ele me acusou de ser muito agressivo e eu o deixei. Mas apenas temporariamente. Pode acreditar. Na verdade, estou indo novamente para o lado dele.

- É melhor você se apressar antes que mude de ideia novamente - zombou a Bodhisattva, e eles continuaram seu caminho.

Não demorou para o Peregrino avistar o monge Tang sentado, muito abatido, à beira do caminho, e, aproximando-se dele, perguntou:

- Pode-se saber o que está fazendo aqui, mestre? Por que desistiu de seguir em frente?

- Onde você esteve? - replicou Sanzang, levantando os olhos. - Ao desaparecer tão de repente, não me restou outra opção senão sentar aqui e esperar por você, sem ousar me mover.

- Fui apenas ao Oceano Oriental pedir um pouco de chá ao meu velho amigo, o Rei Dragão - respondeu o Peregrino.

- Aqueles que se dedicam à prática da virtude não deveriam mentir - sentenciou Sanzang. - Você esteve fora aproximadamente meia hora, e quer me fazer acreditar que esteve tomando chá na mansão do Rei Dragão? Vamos! Por quem você me toma?

- Devo dizer - respondeu o Peregrino, sorrindo - que sou capaz de andar nas nuvens, e um único dos meus saltos pode me levar a uma distância de quatrocentos ou quinhentos quilômetros. Foi por isso que fui e voltei tão rapidamente.

- Só porque fui um pouco duro ao lhe repreender, você ficou ofendido e partiu irritado - Sanzang o repreendeu. - Com seus poderes pode praticamente fazer o que quiser, e partiu em busca de um chá. Mas já parou para pensar que eu não tinha escolha a não ser sentar e suportar a fome?  Você se sente confortável com isso?

- De maneira alguma - reconheceu o Peregrino. - Se você está com fome, vou pedir algo para você agora.

- Não será necessário mendigar nada - informou Sanzang. - Ainda tenho na bolsa um pouco do que a mãe do Guardião da Montanha me deu. Mas eu apreciaria que me trouxesse um copo de água. Podemos continuar nossa jornada assim que eu tiver comido.

O Peregrino desatou a bolsa e encontrou alguns biscoitos feitos com farinha não peneirada. Ele os pegou e os entregou imediatamente ao mestre. Mas também viu o leve brilho de uma túnica de seda e de um chapéu incrustado com uma coroa de ouro e perguntou, interessado:

- Você trouxe isso das Terras do Leste?

- Esse chapéu e essa túnica sempre foram minhas - respondeu Sanzang sem hesitar. - Eu os usei na minha infância, e posso garantir que quem os vestir será capaz de recitar as escrituras, sem tê-las aprendido antes, e praticar todo tipo de cerimônias, sem tê-las estudado nunca.

- Se for assim - exclamou o Peregrino, entusiasmado -, permita-me vesti-los imediatamente.

- É bem provável que não sirvam para você - comentou Sanzang-, mas, se quiser, pode experimentá-los. Para mim, não faz diferença.

Radiante de alegria, o Peregrino tirou a túnica de algodão branco e imediatamente vestiu a túnica de seda, que parecia ter sido feita especialmente para ele. O mesmo aconteceu com o chapéu. Quando Sanzang viu que ele o tinha na cabeça, parou imediatamente de comer e começou a recitar um encanto bem baixinho.

- Oh, minha cabeça! - queixou-se então o Peregrino - Está doendo muito! 

O monge continuou repetindo-o várias vezes, e a dor ficou tão intensa que o Peregrino se jogou no chão, tentando em vão arrancar o chapéu com as mãos. Temendo que ele o quebrasse, Sanzang parou de recitar o encanto, e a dor cessou instantaneamente. O Peregrino levou a mão à cabeça e percebeu que uma fina camada de metal estava encaixada nela como se tivesse raízes. Tentou arrancá-la, mas todos os seus esforços foram em vão. Então, tirou a agulha da orelha, colocou-a entre o metal e a carne e começou a alavancar como um louco. Temendo mais uma vez que a coroa fosse removida, Sanzang retomou sua recitação, e o Peregrino começou a ser afligido novamente por terríveis dores de cabeça. Eram tão insuportáveis que ele começou a dar cambalhotas e mortais, seu rosto e orelhas ficaram completamente vermelhos, os olhos ficaram esbugalhados, e uma estranha fraqueza se apoderou de todo o seu corpo. Ao vê-lo, o monge se sentiu comovido e parou de recitar o encanto. A dor desapareceu imediatamente, e o Peregrino comentou, aliviado:

- Você me enfeitiçou, mestre. Não há dúvida.

- Te enfeiticei? - repetiu Sanzang. - Eu estava apenas repetindo um sutra.

- Recite-o novamente, para ver o que acontece - sugeriu o Peregrino.

Sanzang retomou seu cântico, e imediatamente as dores recomeçaram.

- Pare, por favor! Pare! - suplicou o Peregrino. - Eu não disse? Assim que você abre a boca, sinto como se minha cabeça fosse explodir.

- Você promete obedecer sempre a mim? - perguntou Sanzang.

- Sim, sim! - respondeu o Peregrino. - Eu prometo!

- E que nunca fará nada contrário às nossas normas? - insistiu Sanzang.

- Eu prometo, eu prometo! - disse novamente o Peregrino, mas ele não estava disposto a ceder tão facilmente. Ele sacudiu a agulha, e imediatamente ela adquiriu o tamanho de uma tigela de arroz. Com ela nas mãos, ele se virou contra o monge Tang, mas antes que pudesse desferir seu golpe, Sanzang recitou o encanto duas ou três vezes mais, e ele caiu no chão, tomado por uma dor insuportável. Era tão intensa que ele nem conseguia levantar as mãos. Só restou a força suplicante em seu corpo para dizer:

- Aprendi a lição, mestre! Pare, pelo amor de Deus!

- Como você pode ser tão malvado? - bradou Sanzang. - Nunca imaginei que seria capaz de tentar me derrubar com seu bastão.

- Quem lhe disse que eu planejava fazer uma coisa dessas? - replicou o Peregrino. - Aliás, você se importaria de me dizer quem ensinou esse encanto a você?

- Foi uma anciã - respondeu Sanzang.

- Não precisa me dizer mais nada - comentou o Peregrino, resmungando mal-humorado. - Tenho certeza de que essa mulher era Guanyin. O que eu não entendo é por que ela quer que eu sofra dessa maneira atroz.  Vou agora mesmo aos Mares do Sul exigir explicações dela.

- Reflita um pouco - aconselhou Sanzang. - Ela conhece os efeitos do encanto. Se você for até ela e ela recitá-lo, será o seu fim.

O Peregrino teve que admitir que ele estava certo e não se atreveu a sair do lugar. Arrependido, ajoelhou-se aos pés de Sanzang e disse:

- Não tenho outra opção senão acompanhá-lo até o Oeste. O método que a Bodhisattva inventou para me controlar é realmente extraordinário. Prometo que não vou incomodá-la, mas por favor, não recite o encanto novamente. Vou segui-lo de bom grado e nunca o abandonarei.

Nesse caso - concluiu Sanzang, satisfeito -, ajude-me a montar no cavalo e continuemos nossa viagem o mais rápido possível.

O Peregrino abandonou para sempre qualquer tentativa de rebelião. Arregaçou as mangas da túnica, colocou a bagagem nas costas e os dois seguiram seu caminho em direção às Terras do Oeste. 

Não sabemos o que lhes aconteceu depois, então todos que desejam saber devem prestar atenção às explicações oferecidas no próximo capítulo.



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Notas do Capítulo XIV

  1. Os seis sentidos, ou "cauras", privam o corpo da iluminação, daí serem personificados neste capítulo como um grupo de bandidos vulgares;
  2. Wang-Mang (45 a.C-23 d.C.) foi um ministro da dinastia Han que depôs Pingdi, tornando-se um verdadeiro reformador.
  3. O período do calendário lunar ao qual o texto se refere é conhecido precisamente pelo nome de "Pequena Primavera".
  4. Zhang Liang foi, junto com Xao-He e Han-Xin, um dos três estrategistas que ajudaram Liu Bang a estabelecer a dinastia Han;
  5. Originalmente um elogio que Liu Bang dirigiu a Zhang Liang, passou posteriormente a significar as realizações inigualáveis de um estrategista vitorioso.
  6. Semente do Pinho Vermelho foi um imortal lendário da antiguidade, identificado com um deus da chuva na época de Shennong.

  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:

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Ruby