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29 de novembro de 2023

Whaitiri

۞ ADM Sleipnir

Arte de Valentina Phillips

Whaitiri é uma deusa pertencente à mitologia maori/polinésia, e uma de várias divindades dessa cultura que personificam os trovões, assim como seu avô, Te Kanapu e seu bisavô Te Uira. Seu pai chama-se Turiwhaia, o qual não se sabe praticamente nada além do nome.

Whaitiri é descrita como uma figura temível, e que tem uma predileção em se alimentar de carne humana. Por esse motivo, acabou descendo ao mundo dos homens e se casando com um chefe mortal chamado Kaitangata, pois achava que ele compartilhava do mesmo hábito que ela (o nome Kaitangata significa "devorador de homens"). Kaitangata na verdade era um homem gentil e incapaz de partilhar do gosto da esposa. Whaitiri só percebeu o seu engano após matar Anonokia, uma das servas de Whaitiri, removendo seu coração e fígado e os oferecendo em seguida ao marido, deixando-o completamente horrorizado com o ocorrido.

Kaitangata era um trabalhador árduo, e passava muito tempo pescando para alimentar sua família. Infelizmente, ele não sabia fazer anzóis farpados, e por isso a maioria dos peixes que pegava escapavam. Whaitiri lhe dá um anzol farpado e com ele Kaitangata consegue pescar uma garoupa, a qual entrega a Whaitiri e ela oferece aos deuses. Com o tempo, Whaitiri se cansa de se alimentar somente de peixes e um dia, enquanto seu marido estava fora pescando, ela pegou uma rede e capturou dois parentes de seu marido, Tupeke-ti e Tupeke-ta.

Quando Kaitangata retorna, Whaitiri pede que ele recite os cantos usados quando carne humana é oferecida aos deuses. Kaitangata, porém, não conhecia tais cantos, então Whatiri tentou executá-los ela mesma. O problema era que ela própria desconhecia os cantos, e tinha vergonha de admitir isso. Ela fingiu recitá-los murmurando palavras sem sentido, antes de cozinhar os corpos, cortá-los e empanturrar-se da carne, para desgosto dos aldeões. Do profano alimento, restaram apenas os ossos.

Mais tarde, Kaitangata usou esses ossos para fazer anzóis farpados e os usou para pescar. Ele conseguiu pegar uma garoupa e, ao chegar em casa, a entregou a Whaitiri, sem contar, porém, que havia usado anzóis feitos com os ossos de Tupeke-ti e Tupeke-ta. Whaitiri comeu o peixe, e como ele estava infundido com o tapu (sacralidade) dos corpos dos dois homens, Whaitiri gradualmente começou a ficar cega. No início, ela ficou perplexa com o motivo disso, mas, eventualmente, foi visitada por uma mulher do submundo que lhe contou o que aconteceu.

Arte de Kait Matthews

Retorno ao céu 

Um dia, Whaitiri ouve Kaitangata descrevê-la para dois estranhos. Ela se ofende após ouvi-lo dizer que sua pele era como o vento, e seu coração era frio como a neve. Em outra ocasião, ela se envergonha quando Kaitangata reclama que seus filhos estão sujos. Ela explica ao marido que não pode lavar os filhos porque é um ser sagrado dos céus, e lhe revela pela primeira vez que seu nome é trovão. Ela então se prepara para retornar ao seu verdadeiro lar nos céus e prediz que seus filhos a seguirão um dia. Ela parte em uma nuvem, deixando seus filhos, um dos quais chamava-se Hemā

Whaitiri é encontrada por seus Netos 

A profecia de Whaitiri se realizou quando Tāwhaki e Karihi, filhos de Hemā, partiram para subir até o céu. No pé da subida, encontraram sua avó, Whaitiri, agora cega, que ficava constantemente contando os tubérculos de batata-doce ou taro, que eram sua única comida. Os irmãos a provocaram ao roubar os tubérculos, um por um, e perturbar sua contagem. Eventualmente, revelaram-se a ela e restauraram sua visão. Em troca, ela lhes deu conselhos sobre como fazer a subida para o céu. Karihi tentou primeiro, mas cometeu o erro de subir pela aka taepa, ou cipó pendente. Ele foi violentamente soprado pelos ventos do céu e caiu para a morte. Tāwhaki subiu pela aka matua, ou cipó parental, recitou as incantações certas e atingiu o mais alto dos dez céus. Lá, ele aprendeu muitos feitiços com Tama-i-waho e se casou com uma mulher chamada Hāpai, ou como outros dizem, Maikuku-makaka. Eles tiveram um filho, e de acordo com algumas versões da história, é esse filho que recebeu o nome de Wahieroa.

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27 de novembro de 2023

A Jornada ao Oeste: Capítulo XVI

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang

CAPÍTULO XVI:


NO SALÃO DE GUANYIN, OS MONGES CONSPIRAM PARA OBTER A TÚNICA. VINDO DA MONTANHA DO VENTO NEGRO, UM MONSTRO A ROUBA.

Após esporear o cavalo, não demoraram a chegar às portas da construção, que, ao contrário do que o Peregrino pensava, era sim um monastério, composto por torres e bastilhões. O silêncio era absoluto. Sobre a porta do mesmo, podia-se ver uma extraordinária panóplia de nuvens de mil cores, que pareciam competir com as brumas avermelhadas que giravam incessantemente ao redor do Salão das Cinco Bênçãos. Todo o recinto estava cercado de bambus e pinheiros, que, com seu verde inalterável, simbolizavam a firmeza da virtude. No interior, podia-se ver um bosque de ciprestes e zimbros, que falavam da beleza do puro com a linguagem de suas tonalidades suaves. A harmonia da natureza não destoava da torre do sino, da serenidade do pagode, dos monges imersos em silenciosa meditação, nem do melodioso canto dos pássaros. Tudo parecia pensado para um retiro absoluto, que é o autêntico, da mesma forma que a inatividade do Tao é a inatividade total. Um poema afirmava sobre aquele lugar:

"O templo, como ocorre em Jetavana, está encaixado em uma floresta dominada pelo verde do jade. A beleza ao seu redor supera até mesmo a de Sadvarsa. Não poderia ser esperado menos de um lugar sagrado, onde os monges se dedicam continuamente à prática da perfeição. "

Admirados com tanta beleza, Sanzang desceu do cavalo e o Peregrino deixou no chão todos os fardos. Quando estavam prestes a atravessar a porta, apareceu um monge com um chapéu de palha e uma túnica notavelmente limpa. Ele usava brincos de latão nas orelhas, tinha a cintura apertada com uma faixa de seda e segurava na mão um peixe de madeira. Seus gestos eram serenos e tranquilos, como o movimento de suas sandálias de palha, que pareciam marcar o ritmo das ladainhas que murmurava incessantemente. Não havia dúvida de que era um humilde buscador de sabedoria. Sanzang o cumprimentou unindo as mãos e levando-as à testa. O monge respondeu da mesma forma e exclamou, sorrindo:

- Desculpem-me, mas acho que nunca os vi antes. Vocês se importariam de me dizer de onde vêm? Entrem para tomar um pouco de chá.

embora o texto afirme que o monge usava chapéu de palha e outros adereços específicos, a ilustração acabou trazendo um monge comum.

-Viemos das Terras do Leste - respondeu Sanzang - e estamos indo para o Templo do Trovão em busca das escrituras de Buda. Está ficando tarde e pensamos que talvez nos permitam passar a noite em seu templo.

- Contem com isso - replicou o monge. - Entrem e sentem-se.

Sanzang se virou então para o Peregrino e pediu que cuidasse do cavalo. O monge não tinha prestado atenção ao rosto dele até aquele momento e exclamou, assustado:

- O que é aquilo que está segurando as rédeas do seu cavalo?

- Fale mais baixo - sugeriu Sanzang. - Ele tem um temperamento muito irritadiço e, se ouvir você tratá-lo como uma coisa, é bem provável que fique furioso. Ele é meu discípulo.

- Como você pôde ter um discípulo tão horripilante? - perguntou novamente o monge, roendo nervosamente as unhas.

-Certamente não é nenhuma beldade - admitiu Sanzang -, mas é uma das pessoas mais práticas que já vi em minha vida.


Embora tremendo, o monge não teve escolha senão acompanhar Sanzang e o Peregrino para o interior do mosteiro. Na entrada do edifício principal, podia-se ler em grandes caracteres: "Salão Zen de Guanyin". Isso alegrou muito Sanzang, que disse:

- Durante a viagem, recebi muitas bençãos da Bodhisattva, mas não tive a oportunidade de agradecê-la como deveria. É sorte, portanto, ter vindo parar em um lugar como este. É como se eu tivesse encontrado, de fato, a Bodhisattva pessoalmente.


Ao ouvir isso, o monge ordenou a um dos servos taoístas que abrisse as portas do recinto sagrado para que Sanzang pudesse rezar o quanto quisesse. O Peregrino amarrou o cavalo, deixou a bagagem no chão e acompanhou seu mestre para o interior do templo. Quando estavam diante da imagem dourada, Sanzang se prostrou no chão e começou a bater a testa no chão, enquanto o monge batia o tambor e o Peregrino fazia soar o sino. Sanzang orou fervorosamente por um longo tempo. Assim que terminou, o monge parou de tocar o tambor, mas o Peregrino continuou a tocar o sino, sem se importar que seu mestre tivesse encerrado as orações.


 Às vezes, ele o fazia em um ritmo surpreendentemente lento, para passar imediatamente a outro ritmo surpreendentemente vibrante. Ainda atônito, o monge perguntou:

- Por que você continua tocando o sino, quando o ofício terminou há muito tempo?

- Você realmente não sabe? - respondeu o Peregrino. - Estou seguindo o provérbio que diz: "Se você for monge por um dia, toque o sino por um dia inteiro".

Todos os monges do mosteiro, independentemente da idade ou posição, estavam nervosos com esses toques descontrolados e, abandonando seus aposentos de uma só vez, perguntaram, mal-humorados:

- Pode-se saber quem é o louco que está castigando o sino dessa forma?


- Seu avô Sun! - respondeu o Peregrino, saindo do templo. - Quem mais poderia ser?

Ao vê-lo, todos os monges sentiram tanto pânico que caíram no chão e murmuraram, respeitosos:

- Oh, venerável deus do trovão!

- Aquele de quem vocês falam é meu neto - zombou o Peregrino. - Venham, venham. Levantem-se e não tenham medo. Somos apenas dois monges vindos da Grande Nação dos Tang.


Os monges não ousavam acreditar, mas assim que viram Sanzang, tiveram que se convencer de que era verdade. O guardião do mosteiro se destacou então dos outros e disse:

- Por favor, nos acompanhem para a parte de trás, para que possamos oferecer-lhes chá.

Depois de desamarrar o cavalo e pegar a bagagem, dirigiram-se ao pavilhão traseiro do monastério, onde se sentaram seguindo uma ordem rigorosa de dignidade. Assim que terminaram o chá, o guardião do monastério ordenou que lhes fossem servidos alguns pratos vegetarianos, embora ainda fosse muito cedo para a hora do jantar. Sanzang agradeceu por tantas atenções. Mal tinha terminado de fazê-lo, quando apareceu um monge de idade tão avançada que só podia andar apoiado por outros mais jovens. Ele usava um chapéu Vairocana, coroado por um esplêndido topázio e uma túnica coberta de bordados feitos com fios de ouro e penas de martim-pescador. Caminhava apoiado em uma bengala coberta de pedras preciosas, que não destoava da delicadeza de seus sapatos, nos quais eram representados os Oito Tesouros. Seu rosto estava totalmente coberto de rugas, algumas tão profundas que o faziam parecer a Velha Bruxa da Montanha Li. Seus olhos tinham uma vivacidade que lembrava os do Rei Dragão do Oceano Oriental, embora fosse claro que mal podiam ver agora. Sua idade, como testemunhavam sua corcunda e completa falta de dentes, era extremamente avançada. Ao vê-lo, todos os monges exclamaram com respeito:

- O patriarca acabou de chegar!

- Venerável mestre - cumprimentou Sanzang, inclinando-se diante dele.


O ancião retribuiu o gesto da melhor forma que pôde e se sentou. Depois disse, virando-se para seus convidados:

- Assim que soube que dois monges vindos da corte dos Tang acabavam de chegar, me apressei para dar-lhes as boas-vindas.

- Se soubéssemos que íamos causar tantos transtornos - respondeu Sanzang -, não teríamos ousado colocar os pés em seu respeitável templo. Peço que nos desculpe.

- Por favor! - exclamou o monge ancião. - Posso perguntar qual é a distância entre a Terra do Leste, de onde, segundo entendo, vocês vêm, e este humilde santuário?

- Após deixar a cidade de Chang-An - respondeu Sanzang -, viajei cerca de dois mil quilômetros, chegando à Montanha das Duas Fronteiras, onde adquiri o discípulo que agora me acompanha. Continuamos depois nossa viagem pelo reino Hamil dos bárbaros ocidentais, percorrendo em dois meses cerca de dois mil e quinhentos ou dois mil e seiscentos quilômetros antes de chegar a esta nobre região de vocês.

- Isso significa - concluiu o monge idoso - que vocês percorreram uma distância de, mais ou menos, cinco mil quilômetros. Posso dizer que eu jamais fiz algo tão meritório em toda a minha vida, pois nunca cheguei a ultrapassar a porta deste mosteiro. Eu me limitei, como diz o provérbio, a "sentar no interior de um poço e a olhar o firmamento". Não é surpreendente que agora eu tenha me transformado em um pedaço de lenha seca.

-  Se me permite a curiosidade, quantos anos o senhor tem? - perguntou Sanzang.

- Assim, como quem não quer nada - respondeu o ancião -, eu completei nada mais, nada menos que duzentos e setenta anos.

- Só isso! - exclamou o Peregrino. - Com essa idade, você poderia ser um descendente meu da décima milésima geração.

- Tenha cuidado com o que diz - repreendeu Sanzang. - Não é apropriado ofender com insolências aqueles que nos tratam com respeito.


- E você - perguntou o monge idoso, dirigindo-se ao Peregrino -, quantos anos tem?

- Não me atrevo a dizer - respondeu o Peregrino.

O ancião pensou que era uma fanfarronice e não deu mais atenção a isso. Em vez de continuar perguntando, preferiu tomar um pouco de chá e ordenou que lhe servissem uma xícara. Imediatamente apareceu um jovem monge com uma bandeja de jade tão branca quanto o leite, sobre a qual repousavam três xícaras esmaltadas com a borda de ouro. Quase imediatamente, outro jovem apareceu com um bule de cobre e começou a enchê-las com um chá extremamente aromático, de uma cor mais intensa do que os botões de camélia e mais fragrante do que as flores de cássia. 


Sanzang, ao ver tal luxo, elogiou calorosamente, dizendo:

- Que maravilha! Nunca vi algo tão fino e uma bebida tão aromática!

- Nada disso merece seus elogios - replicou o monge idoso. - Como você mesmo disse, você vem da corte de uma grande nação e tenho certeza de que deve ter visto inúmeros tesouros verdadeiramente extraordinários. Nossas modestas posses não podem estar à altura de seu respeitável elogio. A propósito, você trouxe algo valioso que possa nos mostrar?

- Que pena! - exclamou Sanzang, balançando a cabeça. - Nas Terras do Leste, eu não tenho absolutamente nada de valor. Além disso, mesmo que tivesse, não poderia tê-lo trazido em uma viagem como esta.

- Como assim? - replicou imediatamente o Peregrino. - Outro dia, vi em sua bolsa uma esplêndida túnica, que não fica atrás dos melhores tesouros. Por que não a mostra ao nosso anfitrião?


Ao ouvir isso, os outros monges riram e o Peregrino enfrentou-os, dizendo, irritado:

- Pode-se saber do que vocês estão rindo?

- Você não pode negar - respondeu o guardião - que é engraçado comparar uma túnica com um tesouro. Além disso, pessoas como nós têm vinte ou trinta vestimentas como as que você acabou de mencionar. Nosso patriarca, por exemplo, possui cerca de setecentas, o que não é surpreendente considerando que ele é um monge há mais de duzentos e cinquenta anos - e voltando-se para o ancião, sugeriu: 

- Se importaria de tirá-las para que nossos ilustres hóspedes possam vê-las?

Com prazer, o ancião pediu a seus irmãos taoístas que abrissem os armazéns e trouxessem os baús. Eles assim fizeram, escolhendo doze e levando-os diretamente para um dos pátios. Os monges abriram os cadeados e começaram a tirar as roupas. Eram tantas que, para pendurá-las, tiveram que esticar cordas ao redor de todo o recinto. Queriam que Sanzang as visse bem e não pouparam esforços. 


Os bordados eram, de fato, magníficos. O Peregrino os examinou cuidadosamente um por um. Ele percebeu, dessa forma, que a seda era de alta qualidade e que nos bordados não se economizou ouro, mas, apesar disso, ele riu e exclamou, desdenhoso:

- Muito bem, muito bem! Já foram todas vistas! Vocês podem guardá-las, se quiserem. Agora é nossa vez de mostrar a nossa.

- Por favor - suplicou Sanzang baixinho, levando-o para o lado. - Não é certo competir com a riqueza dos outros. Além disso, você e eu não passamos de dois viajantes que estão muito longe de casa. É possível, portanto, que o que você está sugerindo seja algo que possamos lamentar depois.

- O que vamos lamentar? - protestou o Peregrino. - Olhe para sua túnica. Não há outra igual sob as estrelas.

- Você não considerou o seguinte: - insistiu Sanzang. - Os antigos diziam, e com razão, que "coisas valiosas nunca devem ser mostradas a uma pessoa avarenta, porque, assim que as vê, ela será tentada a possuí-las e, uma vez tentada, pensará em como adquiri-las". Em casos como este, é melhor agirmos com prudência; caso contrário, é mais provável que alguém perca a vida, e isso é algo que ninguém deve se expor.

- Você está se preocupando sem motivo - tentou tranquilizá-lo o Peregrino. - Eu assumo toda a responsabilidade - e assim encerrou a discussão.


Ele se lançou sobre a bagagem e a desatou com incrível facilidade. Imediatamente, houve um brilho que lembrava os primeiros raios do sol nascente. Ele desembrulhou então a túnica e a sacudiu delicadamente para tirar as rugas causadas pelas dobras. Uma luz avermelhada se espalhou pelo pátio, enquanto todo o mosteiro parecia envolto em uma atmosfera celestial. Os monges sentiram tanta admiração que seus lábios eram incapazes de expressar o que seus corações experimentavam. A túnica era magnífica, de fato. As pérolas que a adornavam, únicas em sua espécie, só podiam vir do próprio tesouro de Buda. A seda da qual era feita era da mais alta qualidade, assim como o ouro usado em todos os seus bordados. No entanto, o mais surpreendente eram os poderes extraordinários com os quais ela estava dotada. Quem a vestisse seria capaz de matar ogros e enviar demônios para o inferno, como se fossem pedras em um lago. Não em vão ela foi confeccionada pelos deuses como presente para pessoas virtuosas e justas.


Quando o monge idoso viu tanta perfeição, quis tê-la instantaneamente e, ajoelhando-se diante de Sanzang, disse com fingida tristeza:

- Que azar o meu, mestre!

- Por que você diz isso? - perguntou Sanzang, ajudando-o a levantar.

- Porque meus olhos já são muito fracos e mal conseguem ver - respondeu o monge idoso à beira das lágrimas. - Não me diga que isso não é azar. Se fosse de dia ou houvesse um pouco mais de luz...


- Isso é fácil de resolver - replicou Sanzang. - Tragam algumas tochas e assim você poderá apreciar melhor os detalhes.

- Receio que isso também não seja uma solução aceitável - comentou o monge idoso. - Sua túnica está tão cheia de pedras preciosas que a luz das tochas vai refletir nelas e eu não poderei suportar tanta luminosidade. Faça o que fizer, nunca me será dado desfrutar de sua beleza.

- Não há uma maneira de você apreciar a perfeição de sua confecção? - perguntou novamente Sanzang, comovido.

- Sim, mas não me atrevo a sugerir isso - respondeu o monge idoso, adicionando imediatamente: - Se você me permitisse levá-la para meus aposentos, eu poderia passar a noite estudando-a cuidadosamente. Eu a devolveria amanhã, antes de você continuar sua viagem para o Oeste. O que você acha?

Sem saber o que fazer, Sanzang virou-se para o Peregrino e o repreendeu em voz baixa, dizendo:

- Tudo isso é culpa sua!

- Do que você têm medo? - replicou o Peregrino. - Permita-me envolvê-la e emprestá-la ao ancião. Eu mesmo cuidarei de repreendê-lo se algo der errado. Não se preocupe.

Pouco podia fazer Sanzang, a não ser entregá-la ao ancião.

- Está bem - concluiu, ainda que a contragosto. - Eu empresto a você. Mas você deve devolvê-la amanhã de manhã exatamente como a confio agora a você. Por favor, certifique-se de que não sofra o menor dano.


O monge idoso sorriu, satisfeito, e ordenou a um dos monges que a levasse para seus aposentos. Em seguida, pediu a vários monges que varressem o grande salão do monastério e deixou instruções para que, no dia seguinte, bem cedo, o café da manhã dos hóspedes estivesse pronto para que pudessem continuar a viagem quando quisessem. Sem mais delongas, todos se retiraram para descansar. O idoso voltou para a parte de trás do monastério, colocou a túnica sob algumas tochas e, sentando-se diante dela, começou a chorar alto. O guardião, pensando que algo estava errado, não ousou deitar-se na cama. Um dos monges jovens, por sua vez, correu emocionado para informar aos outros monges.

- Nosso venerável patriarca - disse - não parou de chorar desde que fomos dormir. Vejam só. A segunda vigília acabou de ser anunciada e ele ainda está imerso em prantos.

Dois dos discípulos favoritos do idoso se aproximaram dele e perguntaram com muito respeito:

- Pode nos dizer por que não parou de chorar a noite toda?

- Porque não consigo enxergar o tesouro do monge Tang - respondeu ele. Só por isso.


- Nosso respeitável patriarca está começando a delirar - disse, triste, um deles. Ele se virou para seu mestre e acrescentou: - Não é necessário que chore assim. Você tem a túnica diante de você. Tudo que precisa fazer é tirá-la da embalagem e olhar quanto desejar.

- Sim, mas não poderei fazê-lo o tempo todo que quiser - replicou o idoso. - Não preciso lembrar que tenho duzentos e setenta anos. De que me serviu colecionar todas as túnicas que tenho, se nenhuma delas supera em beleza a do monge Tang? Eu teria que me tornar ele para possuir uma maravilha dessas?

- Você não sabe o que está dizendo - repreenderam os discípulos. - Sanzang é um monge mendicante, que passa a vida indo de um lugar para outro. Você deveria se contentar com sua sorte e desfrutar o máximo possível da paz de seus últimos anos. Para que se lançar às inconveniências da estrada?

- Não posso negar que seria impossível encontrar em outro lugar a vida relaxada que levo aqui - admitiu o idoso. - Mas anseio tanto por possuir essa túnica que, se não conseguir, parecerá que minha passagem por este Mundo da Luz não teve sentido.

- Bobagem! - exclamou um dos discípulos. - Se você deseja vestir essa roupa, pediremos aos nossos hóspedes que fiquem mais um dia e você poderá ver seu desejo atendido. De qualquer forma, se isso não for suficiente, faremos com que fiquem ao nosso lado por algumas semanas, e você poderá exibir essa maravilha o tempo que quiser. Acredito que não podemos encontrar uma solução mais aceitável. Agora, por favor, pare de chorar de uma vez.


- Se os obrigarmos a ficar aqui por um ano - replicou o idoso, lamentando-se -, só poderei desfrutar dessa beleza por doze meses, um tempo verdadeiramente ridículo. Além disso, assim que quiserem partir, terei que devolvê-la sem objeções, e todos os nossos esforços terão sido inúteis. O que poderíamos fazer para prolongar indefinidamente o tempo do empréstimo?

- Nada é mais fácil do que isso - sentenciou um monge chamado Sabedoria Perfeita. 

- Poderia nos explicar esse plano que acabou de ocorrer a você? - pediram os outros monges, esperançosos.

- O monge Tang e seu discípulo - respondeu Sabedoria Perfeita, abaixando conspiratoriamente o tom de voz - gastaram muita energia em sua jornada. Na verdade, agora estão dormindo profundamente no grande salão. Não será difícil acabar com eles. Para maior segurança, podemos atribuir a tarefa aos mais fortes entre nós. Todos depois selaremos um pacto de silêncio, de modo que ninguém fora de nosso grupo jamais saiba que estão enterrados no quintal. Para maior segurança, também nos livraremos do cavalo e da bagagem. Quanto à túnica, a guardaremos como se fosse uma relíquia. Com esse plano, resolvemos o problema de forma definitiva.

- É perfeito! - exclamou o monge idoso, secando, esperançoso, as lágrimas. - A obra de um verdadeiro gênio! - e imediatamente pediu que fossem buscar lanças e facas.

- Apesar do que você diz, não acho esse plano tão bom - afirmou outro monge chamado Grandes Desígnios, que era colega de Sabedoria Perfeita. - Se você quiser se livrar deles, é preciso analisar a situação com mais cuidado. Acho que não será difícil acabar com o de pele mais clara, mas tenho minhas reservas em relação ao discípulo dele. Se, por um motivo ou outro, não conseguirmos matá-lo com um único golpe, é muito provável que sejamos nós que acabemos na cova. Eu elaborei um plano no qual não será necessário o uso de espadas e lanças.

- Quer explicar do que se trata? - pediu o monge idoso.


- Claro que sim - respondeu Grandes Desígnios. - Convocaremos todos os monges e diremos que é conveniente, para o bem de toda a comunidade, purificar a ala leste do monastério. Consequentemente, cada um terá que contribuir com uma pilha de lenha, que servirá para incendiar o Salão Zen. Antes disso, todas as suas portas e janelas serão seladas, e assim eles queimarão, incluindo o cavalo. Quem não estiver ciente de nosso propósito pensará que foi um acidente, e nós continuaremos com as mãos completamente limpas. Não importa que alguns de nossos irmãos caiam. O importante é obter a túnica. O que vocês acham?

- Este plano é muito melhor que o outro! - exclamaram em coro os outros monges. - Praticamente impossível de superar! - e imediatamente partiram em busca de lenha.

Que irresponsabilidade da parte daqueles homens! Seu plano pérfido provocou a morte de um monge venerável e a total destruição do Salão Zen de Guanyin. O monastério possuía um total de setenta pavilhões, nos quais viviam cerca de duzentos monges. Muitos deles se apressaram em buscar lenha, que amontoaram ao redor do salão Zen, até que não houvesse lugar para mais um único feixe.


Inconscientes do plano irracional dos monges, Sanzang e seu discípulo descansavam tranquilamente no interior. No entanto, o Peregrino era um macaco dedicado totalmente às práticas espirituais e, embora parecesse estar profundamente dormindo, na verdade estava realizando exercícios de respiração. Ele percebeu imediatamente a agitação incansável dos monges e o barulho que faziam ao quebrar a madeira.

- Que estranho! - pensou ele, abandonando imediatamente sua meditação. - É a hora deles descansarem e, no entanto, há uma incrível movimentação lá fora. Serão ladrões planejando algo contra nós?

Virando-se, ele deu um pulo e teria aberto a porta para olhar para fora, se não tivesse medo de acordar seu mestre. Então, tremendo o seu corpo, transformou-se em uma pequena abelha.


Era tão idêntico às reais que possuía uma boca cheia de doçura, uma agulha carregada de veneno, uma cintura mínima e um corpo notavelmente leve. Era capaz de mover-se entre as flores e os salgueiros à velocidade de uma flecha, buscando o precioso tesouro do pólen. Apesar da fragilidade de seu corpo, podia transportar uma grande quantidade de essência de flores. Suas asas conheciam o segredo da navegação pelo vento. Wukong elevou-se até o teto e abriu caminho entre as vigas para ver o que estava acontecendo. Para sua surpresa, descobriu que os monges estavam amontoando feno e lenha ao redor do salão onde estavam descansando, a fim de atear fogo.


- Então, o que meu mestre temia se tornou realidade! - disse Wukong com amargura. - Querem acabar conosco para obter a túnica. Não há dúvida sobre isso. Eu deveria pegar o meu bastão e acabar com todos eles num piscar de olhos. Mas, se fizer isso, meu mestre ficará furioso comigo e me acusará de ceder à tentação da violência. Não, não. É melhor que desta vez eu aja com um pouco mais de astúcia. O importante, de qualquer forma, é que eles se deem mal e tenham que ir embora.

Num pulo, ele chegou até o Portão Sul dos Céus. Os guardiões Pang, Liu, Gou e Bi ficaram tão desconcertados com essa aparição inesperada que se prostraram no chão, e os ilustres Ma, Zhao, Wen, e Guan inclinaram respeitosamente a cabeça.

- Que o céu nos proteja! - pensaram, apavorados, para si mesmos. - Esse sujeito que causou confusão no reino celestial está aqui de novo!


- Não há necessidade de tanta cerimônia comigo - disse o Peregrino. - Só vim ver Virupaksa, o Devaraja de Olhos Largos. Portanto, não tenham medo.

Mal havia terminado de dizer isso quando o próprio Devaraja apareceu e exclamou, saudando o Peregrino:

- Quanto tempo faz que não nos vemos! Aliás, não faz muito tempo ouvi dizer que a Bodhisattva Guanyin solicitou ao Imperador de Jade que os Quatro Guardiões, os Seis Deuses da Luz e das Trevas, e os Doze Guardiões pudessem encarregar-se da proteção do monge Tang, enquanto ele ia ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras sagradas. Além disso, ela mesma me disse que o tomou como discípulo. Por que você está aqui hoje? Seu mestre lhe deu folga?

- Nada disso - respondeu o Peregrino. - O monge Tang encontrou uns malfeitores, que estão prestes a queimá-lo vivo. Vim precisamente pedir emprestada a sua manta à prova de fogo. Então, se não se importar, me dê logo. Prometo devolvê-la quando tudo estiver resolvido.


- Você está enganado - comentou o Devaraja. - Se esses malfeitores querem incendiar seu mestre, você deveria procurar água em vez de vir até aqui. Para que você quer uma manta à prova de fogo?

- Você não entendeu minha ideia - respondeu o Peregrino. - Com água, eu poderia, é claro, resolver tudo, mas isso beneficiaria nossos inimigos. Se eu quiser a manta, é para que apenas o monge Tang saia ileso. Os outros não me importam nem um pouco. Por mim, que eles se queimem todos. Vamos, seja rápido. Se eu demorar mais um pouco, será tarde demais.

- Tenho certeza de que você não está planejando algo bom - replicou o Devaraja, rindo. - É a primeira vez, de fato, que o vejo se preocupar com os outros.

- Chega de bobagens e se apresse - instigou o Peregrino. - Caso contrário, você vai arruinar todo o meu plano. O Devaraja não ousou negar e lhe entregou a manta. 


O Peregrino desceu com ela em alta velocidade, entrou no salão Zen e cobriu o monge, o cavalo e a bagagem. Em seguida, voou até o telhado do aposento do monge idoso para proteger a túnica. Quando viu os outros monges ateando fogo aos feixes de lenha, fez um gesto mágico, cruzando os dedos, e recitou o encanto apropriado. Em seguida, virou-se para sudoeste e, enchendo os pulmões o máximo que pôde, soprou com todas as suas forças. 


Imediatamente, um vento muito forte se levantou e transformou a fogueira em um fogo incontrolável. As chamas subiram majestosas, enquanto a fumaça negra e densa apagava as estrelas no manto da noite. O incêndio assumiu proporções tão grandes que era visível a vários centenas de quilômetros. Inicialmente, as chamas pareciam pequenas serpentes de ouro, mas logo se transformaram em cavalos cheios de sangue. As Três Forças do Sul e o Deus do Fogo desencadearam todo o seu poder irresistível. Nem mesmo Sui-Ren (1) poderia suspeitar que sua extraordinária descoberta um dia alcançaria tais proporções. As chamas eram tão intensas que pareciam vir do forno de Lao-Tse. Ninguém era capaz de deter a fúria do fogo, aumentada pelos desígnios perversos daqueles que o iniciaram. O vento o espalhou em todas as direções, atingindo uma altura de oito mil pés. As cinzas subiram até o Nono Céu, como se fossem fogos de artifício de ano novo. Os estalos de tudo o que o fogo devorava lembravam o rugido dos canhões no campo de batalha. Até mesmo a imagem de Buda caiu nas chamas; os Guardiões do Templo também foram incapazes de encontrar um lugar para se esconder. Tal incêndio destruidor e voraz lembrava o que ocorreu durante a Campanha do Penhasco Vermelho (2), e superou em muito o que destruiu o magnífico Palácio de Epang (3).


Com razão, diz o ditado que "uma pequena faísca pode destruir dez mil hectares de terra". Num piscar de olhos, o vento forte avivou tanto as chamas que o Templo de Guanyin parecia uma gema vermelha. Aterrorizados, os monges começaram a tirar armários, baús, mesas e utensílios de cozinha. Os gritos de angústia logo encheram todo o pátio. O Peregrino observava os esforços totalmente inúteis dos monges para salvar o que podiam. Com exceção do salão Zen, tudo se tornara uma fogueira gigantesca, iluminando o céu e tingindo todo o ambiente com uma tonalidade dourada horrível. Não é surpreendente que tenha chamado a atenção de um monstro da montanha.

A aproximadamente sete quilômetros ao sul do Templo de Guanyin erguia-se a Montanha do Vento Negro, onde estava situada a caverna de mesmo nome. Ao se virar enquanto dormia, o monstro que a habitava notou um brilho estranho entrava pela sua janela. Inicialmente, pensou que tinha amanhecido, mas, ao se levantar, percebeu que essa claridade desconcertante vinha de um incêndio no norte.


- Céus! - disse a si mesmo, alarmado. - Deve ter ocorrido um incêndio no Templo de Guanyin. Esses monges têm tão pouco cuidado! Acho que é melhor eu ir ver se posso ajudá-los. Em seguida, montou em sua nuvem e voou imediatamente para o local de onde parecia vir a fumaça. 


Horrorizado, descobriu que o fogo estava prestes a destruir o monastério. Imediatamente, preparou-se para ir em busca de água, mas, para sua surpresa, viu que o pavilhão dos fundos permanecia totalmente intacto. Além disso, em cima do telhado, havia alguém instigando as chamas. Aproximou-se para olhar mais de perto e viu que em cima de uma mesa nos aposentos do monge idoso havia uma túnica que emitia uma luz multicolorida, apesar de estar envolta em um manto azul. 


Ele a desembrulhou com cuidado e descobriu que era uma vestimenta de seda ricamente decorada com bordados. Não teve dúvida de que tinha diante de si um tesouro budista valiosíssimo. Compreendendo a realidade do que aconteceu - como a riqueza corrompe facilmente a mente do homem! - ele não fez nenhum esforço para apagar o fogo ou buscar água. Agarrou a túnica e, aproveitando a confusão reinante, montou novamente na nuvem e voltou, sem ser visto, para a caverna da montanha.


O fogo durou até a quinta vigília. Sem parar de chorar ou uivar como lobos, começaram a cavar entre as cinzas, tentando desesperadamente salvar algo valioso da ruína. Alguns tentaram erguer um abrigo temporário entre as paredes que ainda estavam de pé, enquanto outros improvisavam fogões abertos para poder cozinhar arroz. Era raro encontrar alguém que não se desfazia em choro pelo que havia acontecido.


Enquanto isso, o Peregrino pegou a manta contra o fogo e, dando um salto, apareceu na Porta Sul do Céu. Sem nenhuma cerimônia, devolveu-a ao Devaraja de Olhos Largos, dizendo simplesmente:

- Obrigado por tê-la emprestado.

- Vejo que você é mais honesto do que eu pensava inicialmente - respondeu o Devaraja. - Tenho que admitir que estava preocupado com a possibilidade de você não me devolver tão valioso tesouro. Fico feliz por você ter cumprido sua palavra.

- Eu não costumo roubar - defendeu-se o Peregrino. - Além disso, como diz o provérbio, "quem devolve o emprestado tem a possibilidade de pedir novamente".

- Já faz muito tempo que não te vejo, e gostaria de convidar você para passar um tempo em meu palácio - disse o Devaraja. - O que acha da ideia?

- Não, não - respondeu o Peregrino. - Se fizer isso, eu voltaria às velhas artimanhas, perdendo tempo em conversas que não levam a nada. Além disso, tenho a obrigação de proteger o monge Tang e não tenho tempo livre. Talvez numa próxima vez.


Depois de se despedir do Devaraja, ele montou na nuvem e começou o caminho de volta. Chegou ao salão Zen quando o sol já despontava no horizonte. Sacudiu o corpo e se transformou novamente em uma abelha, permitindo que entrasse no prédio sem ser notado. Quando estava lá dentro, voltou à sua forma usual, verificando que seu mestre ainda estava dormindo. Ele se aproximou e o instigou:

- Levante-se. Não vê que já é de dia?

Sanzang abriu os olhos e, virando-se, disse:

- Você está certo.


Depois de se vestir às pressas, abriu a porta e saiu ao ar livre. Ao seu redor, reinava a desolação mais absoluta. Apenas algumas paredes isoladas permaneciam de pé; as torres e o restante das construções haviam desaparecido por completo. Surpreso diante de uma visão tão desoladora, deu um salto e exclamou, aterrorizado:

- O que aconteceu? Como tudo desabou e só restaram paredes enegrecidas?

- Não pense que está sonhando - aconselhou o Peregrino. - Se tudo está em um estado tão lamentável, é porque um incêndio ocorreu na noite passada.


- Como é possível que eu nem mesmo tenha percebido? - perguntou Sanzang. - É estranho, além disso, que eu não tenha sofrido o menor dano.

- Isso é porque eu cuidei da proteção do salão Zen - explicou o Peregrino. - Vi que você estava dormindo profundamente e não ousei incomodá-lo.

- Se você tinha o poder para proteger este salão - replicou Sanzang - por que não apagou o fogo dos outros edifícios?

- Para que você descobrisse a verdade, que você mesmo previu ontem à noite - respondeu o Peregrino. - Eles ficaram obcecados por sua túnica e planejaram se livrar de você usando um incêndio. Se eu não tivesse ficado alerta, agora ambos estaríamos reduzidos a cinzas.

- Você tem certeza de que foram eles que provocaram o incêndio? - indagou Sanzang, alarmado.

- Quem mais poderia ter feito isso? - replicou o Peregrino.

- Não será que foi você, para se vingar do tratamento ruim que recebeu ontem à noite? - insistiu Sanzang.

- Eu não sou do tipo que pratica atrocidades como essa - se defendeu o Peregrino. - Você precisa aceitar de uma vez por todas que foram eles que causaram essa catástrofe. Quando vi a malícia com que agiam, desisti de ajudá-los a apagar o fogo. Além disso, eu o avivei provocando um pouco de vento.

- Céus! - exclamou Sanzang, horrorizado. - A primeira coisa a fazer quando começa um incêndio é procurar água. Como você teve a ideia de provocar vento?

- Certamente você deve ter ouvido o que diziam os antigos - respondeu o Peregrino -: "Se o homem não faz mal ao tigre, o tigre também não fará mal a ele". Se eles não tivessem brincado com fogo, eu também não teria brincado com o vento.


- Onde está a túnica? - exclamou Sanzang, de repente. - Ela também queimou?

- De maneira nenhuma - respondeu o Peregrino. - Não sofreu o menor dano. Eu mesmo cuidei para que o fogo não chegasse aos aposentos do monge idoso. Como você sabe, ele estava lá.

- Melhor que seja assim - replicou Sanzang, cedendo ao ressentimento. - Se ela tivesse sofrido algum dano, eu garanto que recitaria o que você bem sabe e não pararia até que você estivesse morto.

- Por favor, não faça isso! - suplicou o Peregrino, preocupado. - Vou devolver a túnica imediatamente. Assim que a recuperar, continuaremos nossa jornada.

Sanzang pegou as rédeas do cavalo enquanto o Peregrino carregava a bagagem. Juntos, deixaram o salão Zen e se dirigiram aos aposentos da parte de trás. Ao vê-los, os monges, que continuavam lamentando como carpiderias, pensaram que eram espíritos e gritaram, apavorados:

- Esses fantasmas voltaram para se vingar de nós!


- Quem disse que somos fantasmas? - replicou o Peregrino. - Ainda estamos vivos, e tudo o que queremos é que nos devolvam nossa túnica.

- Do agir injusto nascem os inimigos, e de uma dívida um credor - sentenciaram eles, lançando rosto no chão. - Não temos nada a ver com o que aconteceu. Foi o Patriarca juntamente com Grandes Desígnios que planejaram tudo isso. Pelo amor de Deus, permitam-nos continuar vivendo! O que vocês ganharão se vingando de pessoas inocentes?

- Malditas bestas! - exclamou novamente o Peregrino, soltando uma risada. - De onde vocês tiraram a ideia de que queremos nos vingar? Só exigimos a devolução do que é nosso. Onde está a túnica?

- Supostamente vocês tinham morrido no incêndio do salão Zen - disseram dois dos monges mais atrevidos. - Como conseguiram sair ilesos? Vocês são homens ou espíritos?

- Maldito bando de idiotas! - exclamou novamente o Peregrino, soltando a risada. - Vocês não sabem onde o incêndio começou? Vão dar uma olhada no salão Zen e, assim, vão se convencer de que ainda estamos vivos.

Os monges fizeram isso e ficaram surpresos ao constatar que o fogo não tinha tocado nem um pouco na grande sala em que passaram a noite. Isso os convenceu de que Sanzang era um monge vindo do céu e o Peregrino, seu guarda-costas. Imediatamente voltaram-se para eles, lançando-se novamente no chão, e disseram:

- Certamente temos olhos, mas parecemos cegos. Como é possível que não tenhamos reconhecido vocês como dois seres celestiais? Sua túnica está na parte de trás, na residência do velho Patriarca.


Sanzang ficou com a alma aos pés ao ver o estado em que tudo tinha ficado. Mas, ao se aproximar dos aposentos do Patriarca, verificou, aliviado, que também haviam sido poupados pelas chamas.

- Venerável Patriarca- gritaram os monges -, o monge Tang deve ser um deus. O fogo nem sequer o tocou, enquanto nós perdemos tudo o que tínhamos. Devolva-lhe sua túnica, por favor.


Infelizmente, o Patriarca não conseguiu encontrá-la. Ele estava em um estado tão abatido que mal sabia o que dizer. Sentia-se culpado pelo ocorrido. Tomado pelo remorso, inclinou-se para frente, tomou impulso e esmagou a cabeça contra a parede. 


O golpe foi tão forte que o crânio se quebrou e o sangue fluiu abundantemente, caindo morto no chão como se fosse um saco de areia. Que final tão lamentável! De pouco adiantou viver por tanto tempo. Ele insistiu em possuir a túnica, sem perceber que era um presente do próprio Buda. Que serviço ruim lhe prestaram Grandes Desígnios e Sabedoria Perfeita! Aquele que pensa que pode alcançar facilmente o eterno está condenado ao sofrimento e ao fracasso. Horrorizados, os monges exclamaram:

- O que podemos fazer agora que o Patriarca se suicidou e não conseguimos encontrar a túnica?

- Certamente vocês a roubaram e depois a esconderam - bradou o Peregrino. - Saiam imediatamente e me deem uma lista completa de todos os seus nomes. Vou verificar um por um.

Sem perder tempo, os monges de maior autoridade fizeram uma lista de todos que habitavam no monastério, incluindo os monges, os dhutas, os aspirantes e os praticantes do taoísmo. No total, foram duzentos e trinta nomes entregues ao Peregrino. Depois de forçar o guardião a sentar-se no meio, Wukong começou a fazer a chamada, obrigando cada um a se despir completamente, mas a túnica não apareceu. Mesmo os baús que conseguiram salvar do incêndio foram revistados, mas não houve resultados. Desesperado, Sanzang despejou toda a frustração que sentia sobre o Peregrino e começou a recitar o encanto. O macaco caiu no chão e, segurando a cabeça com as mãos, incapaz de suportar a dor, suplicou, gritando como um condenado:

- Pare, por favor! Não recite mais essa fórmula! Dou minha palavra de que encontrarei a túnica!

Em pânico, os monges se ajoelharam diante de Sanzang e pediram para ele parar aquele tormento, o que ele concordou de bom grado. Assim que se viu livre da dor, o Peregrino pulou e tirou o bastão da orelha, pretendendo acabar de uma vez por todas com todos aqueles monges. 


Sanzang o deteve a tempo, gritando:

- Quer mais do seu remédio? Não entendo como você pode ser tão irresponsável. Você esqueceu que não há nada que eu despreze mais do que a violência? Deixe-me interrogá-los.

- Nos perdoem a vida - suplicaram os monges, tremendo. - Acreditem, nem mesmo vimos sua túnica. O culpado de tudo isso é o velho demônio que acabou de morrer. Assim que ele conseguiu seu tesouro ontem à noite, começou a chorar, sem que nenhum de nós conseguisse consolá-lo. Tudo o que ele queria era tirá-la de você para sempre. Por isso, decidiu queimar você vivo. No entanto, um vento terrível se levantou, e as chamas se voltaram contra nós. Naquele momento, a única preocupação era sufocar o incêndio o mais rápido possível e salvar o que pudéssemos. Não temos ideia de onde a túnica pode estar.


O Peregrino entrou furioso nos aposentos do Patriarca, agarrou o cadáver e o despiu completamente. No entanto, não encontrou nenhum sinal do tesouro de seu mestre. Era como se a terra o tivesse engolido. O Peregrino, no entanto, não desistiu. Depois de refletir por alguns minutos, perguntou:

- Há algum monstro nos arredores que se tenha se tornado um espírito?

- Ao sudeste daqui - respondeu o guardião do monastério destruído - ergue-se a Montanha do Vento Negro, onde está localizada a caverna de mesmo nome. Lá habita o Grande Rei Negro, com quem um de nossos companheiros já falecido costumava discutir sobre taoísmo. É o único monstro por aqui.

- A que distância está a montanha? - perguntou novamente o Peregrino.

- A seis ou sete quilômetros - respondeu o guardião. - Seu cume pode ser visto daqui mesmo.

- Não se preocupe mais com sua túnica, mestre - aconselhou o Peregrino a Sanzang. - Com certeza foi roubada pelo monstro negro.

- Esse lugar está a sete quilômetros daqui, pelo menos - replicou Sanzang. - Como você pode ter tanta certeza de que foi ele?

- Você não viu o incêndio ontem à noite - respondeu o Peregrino. - Era tão grande que certamente poderia ser visto de muito longe. Calculo que seria visível até do Terceiro Céu. Sete quilômetros são uma distância muito curta. Não tenho a menor dúvida de que ele viu o brilho e aproveitou a oportunidade para vir até aqui secretamente. Quando percebeu que sua túnica era um verdadeiro tesouro, aproveitou a confusão para pegá-la e fugir rapidamente. Deixe-me ir procurá-lo.

- Quem cuidará de mim enquanto você estiver fora? - exclamou Sanzang, preocupado.

- Não se preocupe com isso - tranquilizou-o o Peregrino. - Você tem a proteção de todos os deuses. De qualquer forma, eu vou garantir que os monges se preocupem com sua segurança.

Após reuni-los, ele ordenou:

- Que alguns enterrem esse velho demônio, enquanto os outros cuidam do meu mestre e do cavalo - os monges obedeceram sem protestar, e ele acrescentou, ameaçador: - Aqueles que cuidam do meu mestre devem ser simpáticos e agradáveis o tempo todo. Aqueles que cuidam do cavalo devem garantir que não lhe falte água nem comida. A menor negligência fará com que experimentem meu bastão de ferro. Portanto, cuidado com o que fazem.

Ele mal havia terminado de dizer isso quando sacou o bastão, se dirigiu contra um muro de tijolos e, com um golpe, não apenas pulverizou o muro, mas derrubou outras seis ou sete paredes. Quando os monges viram isso, ficaram aterrorizados. 


Eles se prostraram no chão e, sem parar de bater com a testa no chão, imploraram:

- Não seja tão severo conosco. Tenha certeza de que não pouparemos esforços para cuidar do seu mestre como ele merece. Pode ir sem preocupações.

Com um único salto, o Peregrino foi parar na Montanha do Vento Negro em busca da túnica. 


Sobre esses eventos, há um poema que diz:
"A Cigarra de Ouro deixou Chang-An (4) em busca da Verdade. Carregado de presentes, dirigiu-se para o Oeste, deixando para trás inúmeras montanhas azul-esverdeadas. Em seu caminho, encontrou lobos, tigres e alguns comerciantes. Somente a inveja de um monge estúpido ousou colocar sua vida em perigo. Felizmente, ele desfrutou da proteção do Grande Sábio, que o livrou do terrível incêndio que destruiu o Templo Zen. Foi então que um urso negro roubou a túnica bordada."
Não sabemos se o Peregrino encontrou a túnica ou não, nem se o resultado de sua busca foi bem-sucedido ou não. Portanto, é necessário ouvir o que será apresentado no próximo capítulo.


CAPITULO XVII EM BREVE ...

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Notas do Capítulo XVI

  1. Sui-Ren é o "Prometeu chinês", do qual se afirma ter descoberto o fogo ao friccionar dois pedaços de madeira;
  2. A Campanha do Penhasco Vermelho refere-se à derrota sofrida por Cao Cao às mãos de Zhuge Liang e Zhou Yu, que utilizaram embarcações em chamas para romper suas defesas;
  3. O Palácio de Epang foi construído por Qin Shi Huang (221-209 a.C.) em Hsienyang, Shaanxi, que foi a capital do império durante a dinastia Qin. Depois de ser saqueado por Xiang Yu, sofreu um incêndio tão voraz que levou cerca de três meses para ser totalmente extinto, conforme relatado por Du Mu em seu Epang Kung Fu;
  4. Embora no original se mencione Beijing, o tradutor da obra para o espanhol optou por trocar por Chang-An, pois esta era a capital do império durante a dinastia Tang. Resolvi manter a alteração por também achar mais coerente.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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Ruby