Image Map

21 de julho de 2023

Manias

۞ ADM Sleipnir

Arte de YunaXD

As Manias (grego Μανιαι, Maniae, "loucura") eram os espíritos personificados (daimones) da loucura, da insanidade e do frenesi enlouquecido. Elas eram intimamente relacionadas com Lyssa, o espírito da raiva, e as Erínias (Fúrias), personificações da vingança. Às vezes, elas também eram mencionadas (embora, talvez em tom de brincadeira, ou como uma metáfora para a natureza às vezes cruel do amor) como tendo sido amas de leites do deus Eros .Embora não existam declarações a respeito, especula-se que elas sejam filhas da deusa Nix.

O geógrafo grego Pausânias  (Lídia, c. 110 - 180) em sua obra "Descrição da Grécia" (grego Ελλάδος περιήγησις) relatou que na estrada que ligava as cidades de Megalópolis e Messene, havia um santuário que segundo os cidadãos locais era dedicado às Manias, e que seu distrito circundante também se chamava ManiaeSuas fontes locais também lhe contaram que foi lá que a loucura tomou conta de Orestes, daí a visão de Pausânias de que as Manias eram na verdade as Erínias.

"O Remorso de Orestes" de William-Adolphe Bouguereau


fonte:
PARTICIPE! Deixe seu comentário, elogio ou crítica nas publicações. Faça também sugestões. Sua interação é importante ajuda a manter o blog ativo! Siga o Portal dos Mitos no Youtube, TikTok e Instagram!

20 de julho de 2023

Shōkera

۞ ADM Sleipnir

Shōkera (japonês 精螻蛄 ou しょうけら, "espírito do grilo toupeira" é um yokai do folclore japonês, registrado em pergaminhos ilustrados datados do período Edo, como o Hyakkai Zukan  (百怪図巻, "O Volume Ilustrado de Cem Demônios") de Sawaki Suushi e o Gazu Hyakki Yakō ( japonês: 鳥山石燕 画図百鬼夜行, "A Ilustrada Parada Noturna de Cem Demônios") de Toriyama Sekien. Ele é geralmente retratado como um grande demônio de pele escura e três dedos em ambas as mãos e pés, à espreita em cima de algum telhado ou templo religioso. 

Acredita-se que o shōkera seja algum tipo de demônio com conexões com a fé Kōshin, uma religião esotérica popular japonesa com origens no taoísmo. De acordo com a fé Kōshin, existem três vermes ou insetos espirituais, chamados de sanshi (japonês 三尸, "Três vermes), que vivem dentro de cada ser humano. A cada sessenta noites, em uma noite especial chamada kōshin machi, esses vermes deixam o corpo enquanto seu hospedeiro humano dorme. Os sanshi viajam para o céu para relatar as boas e más ações de seus humanos. O imperador do céu então usa essas informações para prolongar ou encurtar a vida das pessoas de acordo com suas ações. 

Enquanto as pessoas boas não têm nada a temer dos kōshin machi, os perversos podem tentar evitar que suas más ações sejam relatadas ficando acordados e recitando orações a noite toda durante essas noites especiais para que os sanshi não possam deixar seus corpos. É quando o shōkera começa a trabalhar. Ele espreita nos telhados durantes essas noites, espia através de janelas, portas ou clarabóias e caça qualquer um que viole as leis do céu.

Como a religião Kōshin não é mais difundida, e as vítimas de ataques de um shōkera estariam assumindo que cometeram atos perversos ao admitirem terem visto um, nada mais se sabe sobre ele.



fontes:



CLIQUE NO BANNER ABAIXO PARA MAIS POSTAGENS DA SÉRIE

PARTICIPE! Deixe seu comentário, elogio ou crítica nas publicações. Faça também sugestões. Sua interação é importante ajuda a manter o blog ativo! Siga o Portal dos Mitos no Youtube, TikTok e Instagram!

19 de julho de 2023

A Jornada ao Oeste: Capítulo XI

۞ ADM Sleipnir


CAPÍTULO XI:

APÓS UMA JORNADA PELO MUNDO INFERIOR, TAIZONG VOLTA A VIDA. APÓS ENTREGAR A OFERTA DE MELÕES E FRUTAS, LIU QUAN SE CASA NOVAMENTE.

Cem anos se passam como as águas de um riacho. Tudo o que resta de uma vida inteira de labuta é espuma e fumaça. Ontem o rosto possuía o brilho dos pêssegos e hoje as têmporas estão cobertas de flocos de neve. A vida, como a labuta contínua dos cupins, nada mais é do que pura ilusão (1). Quando o cuco começa a cantar, aproxima-se a hora do retorno. Apesar de tudo, a prática do bem ajuda a prolongar a vida de uma forma que desconhecemos. Sabemos apenas que quem se entrega à virtude encontrará ajuda do Céu.

Em um piscar de olhos, o espírito de Taizong deixou a Torre das Cinco Fênixes. Tudo estava embaçado e escuro. Por um momento, ele teve a sensação de estar rodeado de guardas imperiais, que insistentemente o convidavam para uma caçada. Taizong concordou, satisfeito, e galopou atrás deles. Eles cavalgaram juntos por algum tempo e, de repente, os homens e cavalos desapareceram, deixando-o sozinho. Desorientado, ele vagou por campos abandonados e planícies desoladas. Ele tentou encontrar o caminho de volta sem sucesso e então ouviu alguém gritando com ele por trás:

Grande Imperador Tang, venha aqui! Venha aqui!

Taizong olhou para trás e viu um homem com um gorro de seda branca na cabeça, do qual pendiam estranhas tiras de seda preta e na cintura um chifre de rinoceronte preso com atraentes fivelas de ouro. Ele usava uma túnica, também de seda, que emitia uma luz sagrada, assim como a placa de marfim que segurava em suas mãos. Ele também usava um par de botas de sola branca, muito apropriadas para caminhar entre as nuvens e escalar a névoas. Junto ao coração levava o Livro da Morte e da Vida, onde está traçado o destino de cada um. Os cabelos, fartos e soltos, pareciam formar uma auréola ao redor da cabeça, enquanto a barba esvoaçava livremente ao vento, marcando a linha do queixo. O homem havia sido primeiro-ministro dos Tang, e agora julgava casos para o rei do Mundo Inferior. Taizong caminhou até ele, e o homem, ajoelhando-se no chão, disse:

- Perdoe-me, Majestade, por demorar tanto para recebê-lo. 

- Posso saber quem você é e por que veio me encontrar? - Taizong perguntou.

- Há cerca de meio mês - respondeu o homem - o espírito do dragão do rio Jing apresentou uma queixa contra você no Palácio das Trevas, por ter permitido sua execução, após ter concordado que você salvaria sua vida. Consequentemente, o rei Qinguang enviou um destacamento de demônios com ordens para prendê-lo e levá-lo ao Tribunal dos Três Juízes. Assim que soube, vim correndo para recebê-lo. Reitero minhas desculpas por ter chegado tão tarde, mas a verdade é que não lhe esperava hoje.

- Como se chama, e qual é a sua patente? - Taizong perguntou novamente.

- Em vida - respondeu o homem - servi ao imperador que o precedeu como magistrado de Cizhou, antes de ser nomeado vice-presidente do Conselho de Ritos. Meu nome completo é Cui Jue, e sou juiz na Cidade da Morte.

Ao ouvir isso, Taizong ficou muito feliz, e correu até ele com as mãos estendidas. Ajudando-o a se levantar do chão, disse-lhe:

- Sinto muito por ter incomodado você. A propósito, Wei Zheng, que atualmente é um dos meus principais colaboradores, confiou-me uma carta para você, a qual tenho o prazer de entregá-lo.

O juiz agradeceu e perguntou onde a carta estava. Taizong então tirou-a das mangas e entregou-a sem mais delongas. Cui Jue curvou-se agradecido e leu com grande interesse:

- Seu indigno irmão Wei Zheng envia-lhe esta carta com a cabeça baixa em respeito a um juiz tão alto quanto você, o Honorável Cui Jue e nosso querido irmão. Cada vez que me lembro do nosso pacto de fraternidade, vem-me à memória o teu rosto e a tua voz, que, por outro lado, tenho sempre presentes no meu coração. Em todo caso, muitos são os anos que se passaram desde a última vez que ouvi seu jeito equilibrado de falar. A única coisa que pude fazer em todo este tempo foi preparar algumas frutas e legumes e oferecê-los a vocês como sacrifícios nas muitas festas que marcam nosso calendário, embora, para ser sincero, duvide muito que eles chegaram até você. Estou, no entanto, profundamente grato, pois você me deu provas suficientes em meus sonhos de que você não me esqueceu. Se você não me tivesse presente em seu coração, como eu poderia saber da alegria de sua promoção? Infelizmente, existe uma distância tão grande entre os mundos da luz e das trevas que nos é impossível atravessá-la para nos vermos face a face, o que lamento de todo o coração. A razão pela qual decidi escrever esta carta para você foi a morte repentina de nosso mais digno imperador, o nunca suficientemente elogiado Taizong, a quem tenho a honra de servir. Presumo que o caso dele será revisto pelo Tribunal de Três Juízes, portanto não será difícil para ele se encontrar com você. Rogo-lhe pela nossa antiga amizade para que faça tudo o que estiver ao seu alcance para trazer sua majestade de volta à vida. Se você fizer isso, meu carinho por você aumentará e serei eternamente grato.

Assim que leu a carta, o juiz exclamou com entusiasmo:

- Não sabes o quanto admiro o juiz Wei Zheng por ter executado o velho dragão de forma tão limpa outro dia. Não preciso dizer que sou muito grato a ele pelo que fez por meus filhos depois de minha morte. Já que ele me escreveu esta carta intercedendo por você, tenha certeza de que voltarás à vida e mais uma vez ocuparás o trono de jade.

Taizong lhe agradeceu com a cortesia que se esperava dele. Enquanto conversavam, viram aproximar-se dois jovens vestidos de azul, portando estandartes e bandeiras. Quando estavam perto o suficiente para serem ouvidos, levantaram a voz, dizendo:

- Trazemos um convite para vós por parte do Rei deste Mundo Inferior.

Taizong e o juiz Cui Jue se voltaram para os dois jovens, e então Taizong percebeu que havia uma imensa cidade nas proximidades. Em uma de suas portas havia uma inscrição, visível de longe e escrita em letras douradas, que dizia: "Região das Trevas. Portão dos Espíritos".

Ainda agitando seus estandartes, os jovens de mantos azuis conduziram Taizong para a cidade. Enquanto caminhavam, eles viram o imperador anterior, Li Yuan, seu irmão mais velho, Jiancheng, e outro de seus irmãos mortos, Yuanji, que vinham em sua direção gritando: 

-“Aí vem Shimin! Aí vem Shimin!”


Os irmãos agarraram Taizong e começaram a espancá-lo, exigindo vingança (2)Taizong ficou tão perplexo que nada conseguia fazer para escapar. Somente quando o juiz Cui Jue chamou um demônio de rosto azul e presas terríveis para expulsá-los, Taizong conseguiu escapar e assim continuaram a sua jornada.

Não haviam percorrido mais do que cinco quilômetros quando chegaram a um edifício muito alto com ladrilhos verdes. Sua aparência era magnífica, de fato. Uma névoa de mil cores cobria sua parte mais alta, penetrando em cada um de seus orifícios e dando-lhes uma atraente coloração avermelhada. Dos beirais, brilhantes como o próprio sol, projetavam-se cabeças de animais selvagens. As portas, com grandes blocos de jade branco como vergas, eram adornadas com várias fileiras de pregos de ouro. Uma espécie de fumaça brilhante saía das janelas, e as cortinas que cobriam suas aberturas tinham um brilho que as fazia parecer relâmpagos de uma tempestade avassaladora. Suas torres eram tão altas que seus topos, praticamente invisíveis, se projetavam no azul do céu. 

Uma rede labiríntica de corredores ligava-se aos diferentes salões. Nuvens perfumadas de incenso saíam de enormes caldeirões de bronze de três pernas (3), que subiam, em volutas caprichosas, até o topo. Todos os seus corredores eram iluminados por impressionantes lâmpadas de seda vermelha. Ferozes guerreiros com cabeça de touro montavam guarda à esquerda, enquanto horríveis guardas com cara de cavalo guardavam a direita. Para guiar os espíritos através de tais labirintos, inúmeros letreiros de ouro foram pendurados na parede. No maior, colocado em um lugar de destaque, podia-se ler: 

"Portão Central do Inferno. O Palácio das Trevas do Príncipe do Submundo."

Enquanto Taizong observava com atenção um lugar tão peculiar, de seu interior veio o tilintar de cintos de jade, seguido pelo misterioso aroma de incenso divino, e começaram a descer as escadas, precedidos por dois pares de tochas, os Dez Reis do Mundo Inferior. Seus nomes eram: Qin Guang; Chujiang, o "Rei do Rio das Origens"; Songdi, o "Rei do Império Song"; Wuguan, o "Rei dos Cinco Ofícios",  Yama, o "Rei da Morte"; Taishan, o "Rei do Monte Tai"; Dushi, o "Rei da Capital"; Biancheng, o "Rei das Transformações" e Zhuanlun, o "Rei dos Cinco Caminhos da Reencarnação"

Assim que deixaram o Salão do Tesouro do Palácio das Trevas, eles se curvaram ante Taizong, dando-lhe as boas-vindas. Eles então o convidaram para ocupar o lugar de honra, o que ele recusou com louvável modéstia. Mas eles insistiram repetidamente, dizendo:

- Você, Majestade, é imperador dos homens no Mundo da Luz, enquanto nós não passamos de meros reis de espíritos no Mundo das Trevas. Não há razão para você nos mostrar tanta deferência.

- Receio - respondeu Taizong - que com minha conduta eu tenha ofendido a todos vocês. Não me é lícito esconder-me atrás de rótulos, trazendo à tona as diferenças entre os homens e os espíritos, entre o Mundo da Luz e o Mundo das Trevas

Uma vez que seus protestos foram respondidos, Taizoing finalmente decidiu entrar no Palácio das Trevas. Os Dez Reis tomaram seus assentos, de acordo com sua posição, convidando seu ilustre convidado a fazer o mesmo. O Rei Qinguang então cruzou as mãos na altura do peito e, aproximando-se dele, disse:

- O dragão do rio Jing acusa-te, Majestade, de não teres salvado a vida dele, mesmo tendo prometido  fazê-lo. Você tem algo a dizer em sua defesa?

- É verdade que, como você diz - respondeu Taizong -, eu lhe assegurei que nada lhe aconteceria, quando ele veio a mim em sonho pedindo ajuda. Todos sabem que ele foi considerado culpado dos crimes de que foi acusado, e o juiz Wei Zheng foi encarregado de executá-lo. Para evitar que isso acontecesse, convidei o juiz para uma partida de xadrez, sem contar que Wei Zheng pudesse cumprir suas obrigações durante o sono. Foi um estratagema realmente inteligente e, embora eu tenha feito o possível, não consegui evitar que o dragão fosse morto. Confesso que fui o primeiro a ser surpreendido.

- Mesmo antes de o dragão nascer - disseram os Dez Reis, curvando-se  -, estava escrito no Livro da Morte, zelosamente guardado pela Estrela do Pólo Sul, que ele seria executado por um juiz mortal. Nós sabíamos disso o tempo todo, mas o dragão apresentou suas acusações contra você e insistiu que você fosse levado perante o Tribunal de Três Juízes e apresentasse quaisquer argumentos que considerasse adequados. Na verdade, seu caso foi revisto e ele já está a caminho de sua nova reencarnação. Lamentamos tê-lo forçado a fazer esta viagem e pedimos sinceras desculpas.

Assim que terminaram de falar, ordenaram ao juiz encarregado dos Livros da Vida e da Morte que trouxesse o processo do imperador, para ver quanto tempo ele ainda tinha de estadia entre os vivos. O juiz Cui Jue retirou-se apressadamente para seus aposentos e examinou, um por um, a duração de todos os reinados dos reis do mundo, que foram listados em seus livros. Então, levou um susto ao descobrir que o do Grande Imperador Tang Taizong do Continente Sul de Jambudvipa estava prestes a terminar, pois ele morreria no décimo terceiro ano do período Zhenguan. Rapidamente, ele pegou o pincel e acrescentou mais duas pinceladas. 

Quando os Dez Reis viram que sob o nome de Taizong havia o número trinta e três, eles perguntaram a ele com evidente desconforto:

- Há quanto tempo você ocupa o trono?

- Treze anos - respondeu Taizong.

- Nesse caso - concluiu o rei Yama -, não precisa se preocupar. Você ainda tem vinte anos de vida. Uma vez que seu caso foi revisado, só nos resta enviá-lo de volta ao Reino da Luz.

Assim que Taizong ouviu isso, ele se curvou em gratidão, enquanto os Dez Reis ordenaram que o juiz Cui Jue e o marechal Zhu o conduzissem de volta ao mundo dos vivos.

Antes de deixar o Palácio das Trevas, Taizong voltou-se para os Dez Reis e perguntou:

- O que vai acontecer com os que vivem no meu palácio?

- Nada - responderam os Dez Reis. - Todos chegarão a uma idade muito avançada, exceto sua irmãzinha, que, ao que parece, não viverá muito.


- Há pouco que eu possa fazer para expressar minha gratidão a vocês, uma vez que eu chegue ao Mundo da Luz - disse Taizong, curvando-se novamente. - Se desejarem, posso oferecer-lhes alguns melões e outras frutas.

- Você não sabe o quanto nós agradeceríamos - responderam encantados os Dez Reis. Aqui temos melões do leste e do oeste, mas faltam os do sul.

- Não se preocupem - Taizong os tranquilizou. - Assim que eu voltar, enviarei o que puder -, e, curvando-se mais uma vez diante deles com as mãos cruzadas na altura do peito, iniciou o caminho de volta.

O marechal Zhu foi a frente portando uma bandeira para guiar espíritos, enquanto o juiz Cui Jue fechava a retaguarda, para melhor proteger Taizong. Quando estavam prestes a sair da Região das Trevas, o imperador percebeu que seguiam um caminho diferente daquele por onde vieram e perguntou, alarmado, ao juiz:

- O que está acontecendo? Estamos perdidos?

- Claro que não - respondeu o juiz, balançando a cabeça. - O Mundo das Trevas é organizado assim. Seguindo o caminho que o trouxe até aqui, seria praticamente impossível você voltar. Estamos tentando tirar você da região da Roda da Transmigração, para evitar que você caia na armadilha de uma nova reencarnação. É por isso que estamos dando tantas voltas. 

Diante de tais palavras, Taizong não teve escolha a não ser seguir o caminho que foi traçado para ele. Mas sentiu-se novamente prisioneiro da dúvida, quando depois de alguns quilômetros eles se depararam com uma montanha muito alta, coberta por nuvens escuras e uma névoa ameaçadoramente negra. Taizong virou-se para o juiz Cui Jue e perguntou, visivelmente preocupado:

- Que montanha é essa? 

- É a Montanha da Sombra Perpétua da Região das Trevas - respondeu o juiz.

- Você acha que podemos transpô-la sem nenhum contratempo? - Taizong insistiu, assustado.

- Você não deve se preocupar - respondeu o juiz, tentando tranquilizá-lo. - Estamos aqui justamente para guiá-lo.

Tremendo de medo, Taizong começou a subir suas encostas, seguindo de perto os outros. Cansado, levantou a cabeça e viu que era extremamente íngreme e muito difícil de escalar. A rugosidade das rochas que formavam a sua orla ultrapassava em muito a dos Picos de Shu (4), podendo-se considerar que a sua altura ultrapassava a dos picos de Lu. Não havia montanha como aquela no Mundo da Luz, pois era assustadora mesmo para um lugar tão escuro quanto a Região das Trevas. Por toda parte havia matagais de espinhos, sob os quais os demônios procuravam abrigo, e terraços de rocha retorcida, onde todos os tipos de monstros haviam se estabelecido. 

Não se ouvia o menor ruído, como se estivesse completamente desabitada ou os pássaros não fizessem ninhos nela e nem os animais cuidassem de suas ninhadas ali. Sentia-se apenas a presença de um vento frio e uma persistente névoa escura. Não havia dúvida de que eram emanações de seres diabólicos, que respiravam agachados em qualquer lugar. Não havia a menor beleza em suas paisagens sombrias. Para onde quer que o olho se voltasse, havia apenas desolação e abandono. Ao lado dela não havia outra montanha, nem picos, nem cumes, nem cavernas, nem riachos, nem grama, nem alturas que se estendessem até o céu, nem viajantes ousados ​​empenhados em escalar seus picos, nem fontes de água que se convertessem em torrentes. Espectros se amontoavam nas rochas, como náufragos desesperados de um naufrágio, ou como fantasmas em cavernas inacessíveis. No que antes foram os leitos dos rios, agora secos, as almas perdidas buscavam refúgio. No meio do caminho, os gritos selvagens de seres com cabeça de touro e rosto de cavalo podiam ser ouvidos em toda a parte. Parcialmente escondidos, os espíritos famintos (5) e as almas necessitadas gemiam inconsoláveis. O juiz passou entre eles, dando ordens à direita e à esquerda, enquanto o marechal gritava com eles, mostrando autoridade. Se não fosse por sua ajuda protetora, Tazong nunca teria atravessado a Montanha da Sombra Perpétua.

Assim que a deixaram para trás, chegaram a um lugar onde havia inúmeros quartos e salões. Os gritos de tristeza tornaram-se insuportáveis ​​e mergulharam o coração num verdadeiro mar de terror.

- Como se chama este lugar? - perguntou, tremendo, mais uma vez Taizong.

- Este - respondeu imediatamente o juiz - são os Dezoito Níveis do Inferno, localizados exatamente atrás da Montanha da Sombra Perpétua.

 - E o que isso quer dizer? - Taizong insistiu.

- Tudo bem -  concordou o juiz. - Se você insiste, eu te explico. 

Nos infernos do tormento, da culpa insuportável e do fogo que não se apaga, toda a dor e desolação que neles reinam é produto dos milhares de pecados cometidos em vida por aqueles que agora estão imersos em suas masmorras. Todos eles começaram seu sofrimento assim que morreram. 

Nos infernos de Fengdu, das línguas arrancadas e da pele esfolada, os traidores, os rebeldes, os que murmuram contra o céu e os que falam como Buda e têm o coração de serpente pagam a sua culpa, entre lamentos, soluços e gritos. 

Nos infernos do da trituração, do espancamento e do esmagamento, aqueles que enganam, mentem e bajulam são condenados ao desmembramento e ao deslocamento de dentes e ossos. 

Nos infernos de gelo, da mutilação e da evisceração, estão aqueles com rosto sujo e cabelos emaranhados, sobrancelha franzida e olhar triste. Estes são os que espoliam os simples com pesos injustos, e assim trazem ruína sobre si mesmos. 

Nos infernos de óleo fervente, da escuridão total e da montanha de facas, aqueles que em vida oprimiram violentamente os justos, expurgam suas culpas sendo submetidas a terríveis convulsões. 

Nos infernos Avici (6), da poça de sangue e das balanças e pesos,  aqueles que, movidos pela avareza, cometeram assassinatos ou tiraram a vida de animais ou homens, são submetidos a tormentos atrozes - sua pele é rasgada, seus ossos expostos, seus membros cortados e os tendões separados. 

Tão horrendos foram seus crimes que em milhares de anos eles não serão capazes de lavar sua culpa. Todos estão bem amarrados com correntes, e assim que eles fazem o menor movimento, os demônios de cabelos ruivos se lançam sobre eles e perfuram seus corpos com lanças longas e espadas afiadas. Os demônios com cabeça de touro e com cara de cavalo os golpeam com martelos de bronze e ponteiras de ferro, e se alimentam deles fazendo com que seus rostos se contorçam de dor e seu sangue flua profusamente. Eles gritam para a terra e para o céu, pedindo misericórdia, mas não obtêm a menor resposta. Vê-se assim que o homem nunca deve trair sua própria consciência, pois os deuses tudo veem e sabem. Mais cedo ou mais tarde, o vício e a virtude acabam recebendo o que merecem. É simplesmente uma mera questão de tempo.

Ao ouvir essas explicações, Taizong ficou profundamente comovido. Eles continuaram andando e depois de um tempo encontraram um destacamento de soldados-demônio, que carregavam estandartes e bandeiras e que, estranhamente, haviam se ajoelhado no caminho. Sem ousar erguer os olhos do chão, eles disseram respeitosamente:

- O guarda da ponte está muito orgulhoso em recebê-lo.

O juiz ordenou que conduzissem Taizong para o outro lado da Ponte Dourada. O imperador moveu um pouco a cabeça e viu que um pouco mais adiante havia outra ponte, esta de prata, na qual alguns viajantes de aparência justa e honesta transitavam. Eles também eram guiados por uma coorte de bandeiras e estandartes. 


Do lado oposto havia outra ponte, sob a qual ferviam redemoinhos e ondas de sangue. Um vento gelado a sacudia continuamente, enquanto se ouvia gritos e gemidos que o arrepiavam. 

Taizong parou, impressionado, e perguntou:

 - Como se chama esta ponte?

- Esta, Majestade - respondeu o juiz -, é a Ponte-sem-retorno (7). Registre-a bem em sua memória, pois é necessário que você fale dela a seus súditos, quando você chegar ao Mundo da Luz . Sob os seus arcos corre uma imensa quantidade de água, que ninguém consegue atravessar, porque, à aspereza das suas ondas, se une um ar frio que penetra até aos ossos. Isso sem contar o fedor insuportável que exala de seu leito. Talvez por isso não haja barco que se aventure a transportar homens de uma margem a outra. Apenas espíritos condenados com pés descalços e cabelos emaranhados se aventuram perto dele. 

Embora tenha vários quilómetros de comprimento, a sua largura não ultrapassa três palmos, elevando-se a uma altura que ultrapassa os trezentos metros. Estima-se que a profundidade das águas que correm sob sua estrutura em ruínas chegue a mais de mil e oitocentos metros. Apesar disso, a ponte carece de grades para as mãos se agarrarem, e o mais perigoso é que bem perto de sua plataforma existe uma legião de demônios acorrentados, que tentam devorar todo homem que se atreve a andar sobre ela. Observe também aqueles guardas de aparência feroz na ponte e aqueles espíritos malditos lutando inutilmente contra as águas. Nota-se que foram arremessados ​​de uma altitude muito elevada, pois o precipício que leva ao leito do rio está coberto de roupas de todas as cores. Que sorte amarga a sua! Estão condenados por toda a eternidade a permanecer nesse estado, lutando, ao mesmo tempo, para evitar serem devorados por cães de ferro e serpentes de latão, que se alimentam exclusivamente deles. Um poema diz com razão: 

"Fantasmas são ouvidos lamentando; demônios costumam chorar
Como ondas de sangue sobem a dez mil pés de altura.
Inúmeros demônios com caras de cavalo e cabeça de touro
Fortificam essa Ponte-sem-opção severamente."

Assim que o juiz terminou de falar, os guardas da ponte voltaram aos seus postos. Taizong não fez nenhum comentário. Ele apenas olhou, horrorizado, e balançou a cabeça em silêncio. Ele estava tão apavorado que seguiu o juiz e o marechal através da Ponte-sem-retorno e do Reino do Lago de Sangue como um verdadeiro autômato. 

Felizmente, eles logo chegaram à Cidade da Morte, onde pouco a pouco um clamor de vozes se elevou, dizendo:

- Li Shimin está vindo! Li Shimin está vindo!

Ao ouvir tais gritos, Taizong sentiu suas forças se esvaírem e ficou sem ânimo de continuar. De repente, um enxame de espíritos se interpôs em seu caminho, alguns sem cabeça, outros com os membros arrancados e as costas esmagadas, gritando ameaçadoramente:

- Devolva nossa vida! Devolva!

Em pânico, Taizong tentou correr e se esconder no primeiro lugar que encontrou, mas lembrou-se do juiz e, voltando-se para ele, implorou desesperadamente: 

- Salve-me, juiz Jue! Salve-me!

- Estes, Majestade - explicou o juiz - são os espíritos de príncipes, ladrões e bandidos das mais diversas localidades, que morreram violentamente e agora não têm quem cuide deles. Como são totalmente desprovidos de posses ou dinheiro, estão condenados a passar fome e frio por toda a eternidade. Se Sua Majestade quisesse fazer uma pequena doação para eles, eles seriam aliviados de suas ansiedades e se tornariam seus aliados.

- De onde vou tirar dinheiro agora, se vim completamente de mãos vazias? - Taizong protestou.

- Isso é fácil de resolver - respondeu o juiz. - No Mundo dos Vivos vive um homem que tem uma grande quantidade de ouro e prata depositados neste Reino das Trevas. Se quiser, pode pedir-lhe um empréstimo, do qual serei fiador e que você generosamente distribuirá entre esses fantasmas famintos. Desta forma, além de outras vantagens futuras, permitirão que você siga em frente sem contratempos.

- Quem é esse homem de quem você fala? - Taizong perguntou.

- É natural do distrito de Kaifeng, na província de Henan, e atende pelo nome de Xiang Liang - respondeu o juiz. - Estimo que ele tenha cerca de treze armazéns aqui cheios de ouro e prata. Uma vez que você o encontre no Mundo da Luz, não será difícil para você devolver o que agora está tomando emprestado.

Taizong aceitou de bom grado esta sugestão, e não perdeu tempo em assinar um recibo que entregou ao juiz. Nele, todo o ouro e prata que havia em um dos armazéns foi aceito como empréstimo, o qual o grande marechal distribuiu imediatamente entre todos os espíritos. Enquanto o marechal Zhu o fazia, o juiz Cui Jue ergueu a voz e disse:

- Distribuam essas moedas de prata e ouro da melhor maneira possível e usem-nas da maneira que acharem mais adequada. Em troca, só peço que deixem o Grande Pai dos Tang ir em frente, pois ele ainda tem muitos anos de vida. Estou justamente acompanhando-o ao Reino da Luz, por ordem expressa dos Dez Reis. Em todo caso, garanto que, assim que ele chegar ao mundo dos vivos, celebrará uma cerimônia fúnebre (8) para vocês e, assim, vocês poderão obter seu descanso. Então, por favor, não nos causem mais problemas.

Assim os espíritos receberam o ouro e a prata, eles se afastaram e os deixaram seguir seu caminho. Satisfeito, o juiz dirigiu-se ao marechal e ordenou-lhe que agitasse a bandeira usada para guiar as almas. Desta forma, Taizong finalmente conseguiu deixar a Cidade da Morte. O caminho que seguiram era largo e de superfície muito boa para caminhar, permitindo-lhes avançar mais rapidamente do que haviam conseguido até então.

Depois de muito viajar, chegaram à encruzilhada dos Seis Caminhos da Transmigração. Olhando para cima, eles viram um número incontável de pessoas montadas em nuvens sagradas. Muitas usavam túnicas e mantos fortemente bordados, e algumas usavam peixes dourados e outros amuletos taoístas pendurados na cintura. Entre eles estavam monjas, monges, pessoas comuns e todos os tipos de animais, pássaros, espíritos e fantasmas. Como se fosse um riacho, eles passavam sob a Roda da Transmigração e cada um ia parar no caminho que lhes havia sido previamente designado.

- O que tudo isso significa? - perguntou o Imperador dos Tang, surpreso.

- Você deve prestar atenção em tudo isso e torná-lo público mais tarde no Reino dos Vivos - respondeu o juiz. - Agora que sua mente recebeu a iluminação, você está em uma posição invejável para entender que a natureza de Buda é imanente em tudo o que existe. O lugar em que estamos é chamado de Encruzilhada dos Seis Caminhos da Transmigração. Por meio dela, os que praticam o bem são promovidos à categoria de imortais, os que preservam até o fim seu espírito patriótico obtêm a nobreza como recompensa, os que praticam os princípios da piedade filial retornam à vida como seres privilegiados, os que são os justos e honestos reencarnam como seres humanos, os que se entregam à prática da virtude alcançam riquezas incalculáveis, enquanto os que se entregam ao vício e se entregam à violência acabam se tornando verdadeiros demônios.

- Que recompensas maravilhosas estão contidas nas boas ações! - exclamou o Imperador dos Tang, suspirando e sacudindo a cabeça. - A vida virtuosa nunca abre as portas para a enfermidade. É necessário, portanto, mostrar bondade para com todos, praticar a caridade e não ceder aos maus pensamentos. Pois o Céu já determinou o destino de todos, e aquele que pratica o mal não escapará da retribuição.

O juiz conduziu-o então à entrada do caminho que conduzia à nobreza e, ajoelhando-se diante dele, disse:

- É por aqui que você deve continuar. Não tenho permissão para acompanhá-lo mais um passo, mas o Grande Marechal Zhu irá acompanhá-lo um pouco mais.

- Lamento que tenha feito uma viagem tão longa por minha causa - desculpou-se o Imperador dos Tang, agradecido.


- Quando voltares ao Mundo da Luz - lembrou-lhe o juiz -, não te esqueças de celebrar a cerimônia por aquelas almas esquecidas que carecem de um teto e de um lar.  Somente se não houver murmúrios por vingança na Região das Trevas, haverá a prosperidade da paz em seu Mundo de Luz. Se houver algo em sua vida que não esteja de acordo com a virtude, você deve mudá-lo o mais rápido possível e ensinar seus súditos a agir sempre com retidão. Dessa forma, você pode ter certeza de que seu império nunca vacilará e sua fama permanecerá viva por gerações e gerações.

O Imperador dos Tang prometeu seguir cada uma de suas recomendações e se despediu emocionado do juiz Cui Jue. O grande marechal Zhu pegou-o então pelo braço e conduziu-o até ao portão que marcava o início do caminho que lhe havia sido atribuído. Alguns metros depois, depararam-se com um cavalo com tinturas acastanhadas, selado e com as rédeas prontas. Sem perder tempo, o marechal ajudou o imperador a montá-lo, e o cavalo disparou para a frente, alcançando logo as margens do rio Wei. Duas carpas douradas brincavam entre as ondas e o imperador, satisfeito com tão bucólico espetáculo, puxou as rédeas e passou a observá-las.

- Apresse-se, Majestade, e volte para sua cidade enquanto ainda há tempo - urgiu o marechal.

Mas o imperador o ignorou, recusando-se a ir mais longe. Desesperado, o marechal agarrou sua perna e gritou:

- O que você está esperando? Mova-se de uma vez! - e deu-lhe um empurrão, que o fez perder o equilíbrio, caindo de corpo inteiro no leito do rio Wei. Nesta forma, ele deixou a Região das Trevas e voltou ao Mundo da Luz.

Enquanto isso, Xu Mougong, Qin Shubao, Hu Jingde, Duan Zhixian, Ma Sanbao, Cheng Yaojin, Gao Shilian, Li Shiji, Fang Xuanling, Du Ruhui, Xiao Yu, Fu Yi, Zhang Daoyuan, Zhang Shiheng, e Wang Guei, as maiores autoridades civis e militares da dinastia Tang, reuniram-se no Palácio Oriental para lamentar a morte do imperador, juntamente com o príncipe herdeiro, a rainha, as damas da corte e o mestre de cerimônias do Salão do Tigre Branco. Ao mesmo tempo, eles discutiram a conveniência de tornar pública a morte do Filho do Céu em todo o império e elevar o príncipe herdeiro ao trono o mais rápido possível. Wei Zheng então tomou a palavra e disse:

- Não devemos agir precipitadamente. Se o alarme se espalhar pelas diferentes cidades e distritos, podemos encontrar reações desagradáveis ​​que não prevíamos. Sugiro, portanto, que aguardemos mais um dia. Por outro lado, estou convencido de que nosso senhor não deve demorar muito para voltar à vida.

- Posso saber do que está falando, Ministro Wei? - perguntou Xu Jingzong zombeteiramente. - Como diz tão bem o provérbio, "ninguém pode recolher a água derramada ou trazer um morto de volta à vida". O que você pretende conseguir, molestando nossos ouvidos com bobagens como as que acabamos de ouvir?

- Respeitável Sr. Xu -, respondeu Wei Zheng. - Desde muito jovem me dediquei ao estudo das ciências da imortalidade e posso garantir que, segundo meus cálculos, ainda não chegou a hora de sua majestade.

Ele mal tinha acabado de dizer isso, quando uma voz saiu do caixão, dizendo:

- Você está me afogando! Você está me afogando!

Os oficiais civis e militares ficaram tão assustados, e as damas tão amedrontadas, que seus rostos adquiriram uma estranha coloração amarelada, reminiscente de amoras no outono. Seus corpos perderam toda a energia ao mesmo tempo e ficaram tão flácidos e indefesos quanto brotos novos de salgueiro no início da primavera. As pernas do príncipe herdeiro tremiam tanto que ele não conseguia segurar o cetro nas mãos e continuar os ritos. A mesma coisa aconteceu com o mestre de cerimônias, que perdeu a consciência e caiu desmaiado no chão. Muitas das damas também perderam a consciência, como hibiscos recém-germinados soprados por um vento selvagem. Outras caíam contra as paredes, como margaridas esmagadas por uma chuva repentina. Os senhores permaneceram petrificados, tremendo de medo e quase sem forças para continuarem de pé. Todo o Salão do Tigre Branco parecia uma ponte com as tábuas quebradas, e o estrado sobre o qual repousava o catafalco parecia um templo arrasado.

Raros foram aqueles que não correram na direção oposta àquela onde estava o caixão. Apenas o reto Xu Mougong, o racional primeiro-ministro Wei, o bravo Qin Qiong e o impulsivo Jingde conseguiram criar coragem e, aproximando-se do caixão, gritaram:

- Se houver algo que o incomode, diga-nos e tentaremos resolver da melhor maneira possível. Mas, por favor, pare de aterrorizar seus parentes se comportando como um fantasma.

- Quem disse que ele está se comportando como um fantasma? - Wei Zheng protestou. - O que acontece é que sua majestade acaba de retornar ao mundo dos vivos! Rápido! Tragam ferramentas para abrirmos este caixão!

Eles levantaram a tampa do caixão e viram que Taizong estava realmente gritando em profunda agitação:

- Estou me afogando! Não há ninguém para me ajudar?

- Não tema, Majestade -, disseram Mougong e os outros, levantando-o com cuidado. - É apenas um sonho. Além disso, estamos aqui para defendê-lo.

O Imperador dos Tang então abriu os olhos e exclamou, totalmente abatido:

- Vocês não tem ideia do que eu passei. Quase me afoguei depois de escapar por pouco de um ataque de alguns demônios malévolos.

- Não tenhas medo, Majestade - aconselharam-lhe os ministros. - Se isso te faz sentir melhor, pode nos contar o que lhe aconteceu na água.

- Estávamos andando a cavalo e, quando chegamos ao rio Wei, parei para ver duas carpas brincando na água - explicou Taizong. - Aproveitando-se da minha distração, aquele traidor Zhu me empurrou do cavalo e acabei caindo no riacho, onde quase me afoguei.

- Receio, Majestade - disse então Wei Zheng -, que ainda não tenha se libertado completamente da influência dos mortos - e mandou trazer um remédio para acalmar e ao mesmo tempo fortalecer seu espírito. Uma porção de arroz foi então servida a ele, e somente depois de comê-la duas ou três vezes, ele recuperou a consciência e o domínio total de todos os seus sentidos. 

O Imperador dos Tang ficou três dias e três noites no Reino da Morte, antes de retornar novamente ao Mundo dos Vivos. Há um poema sobre um evento tão extraordinário que diz:

"Quanto o mundo mudou desde os tempos antigos! Inúmeros reinos surgiram e depois ruíram ao longo da história. A passagem do tempo até testemunhou as inúmeras maravilhas de Zhou, Han e Jin. Mas, por maiores que tenham sido, não podem ser comparados com o retorno à vida do Imperador dos Tang."

Ao cair da tarde, quando o imperador se retirou para descansar, os ministros finalmente decidiram voltar para suas casas. Na manhã seguinte, eles tiraram suas roupas de luto e foram ao tribunal, vestindo suas esplêndidas túnicas vermelhas, seus impressionantes chapéus pretos, suas atraentes faixas roxas e seus inúmeros ornamentos de jade e ouro. Taizong, por sua vez, dormiu profundamente a noite toda, de tal forma que quando acordou ao amanhecer, seu espírito estava totalmente recuperado. Como se nada tivesse acontecido, ele vestiu sua coroa, um luxuoso manto vermelho escuro, um cinto de jade verde da Montanha Azul e botas de couro de uma peça só. A majestade de seu porte excedia em muito a de todas as figuras da corte juntas, e pode-se afirmar que sua figura resumia toda a grandeza de seu esplêndido reinado. Quão extraordinariamente justo e reto era o Imperador dos Tang, o majestoso Li Shimin, que voltou do Mundo dos Mortos!

Assim que se vestiu, o imperador dirigiu-se no seu palanquim de ouro à Sala do Tesouro, onde convocou todos os seus ministros, que gritaram com entusiasmo, assim que o viram:

- Vida longa ao Imperador!

Os aplausos foram repetidos três vezes. Quando o silêncio foi restaurado, o imperador ergueu a voz e disse:

- Se alguém tiver algum assunto a expor, venha e me entregue o relatório correspondente. Caso contrário, a audiência estará encerrada.

Imediatamente os oficiais Xu Mougong, Wei Zheng, Wang Gui, Du Ruhui, Fang Xuanling, Yuan Tiangang, Li Chunfeng, Xu Jingzong, Yin Kaishan, Liu Hongji, Ma Sanbao, Duan Zhixian, Cheng Yaojin, Qin Shubao, Yuchi Jingde e Xue Rengui deram um passo a frente. Prostrando-se com os rostos rentes ao chão diante da escada de jade branco, perguntaram ao imperador com o maior respeito:

- Sua Majestade, pode nos explicar como acordou de seu longo sono?

- No mesmo dia em que Wei Zheng me entregou a carta - respondeu Taizong, condescendente - senti como se meu espírito deixasse estes salões e corresse a galope atrás de um grupo de caça dos guardas imperiais. Mas tanto os homens quanto os cavalos desapareceram depois de um tempo e me vi cercado por meu pai, o imperador anterior, e meus irmãos, já falecidos. Não fosse a chegada de alguém todo vestido de preto, com certeza eu não teria escapado deles. Esse alguém, que me libertou da ira de meu irmão era o juiz Cui Jue, a quem entreguei imediatamente a carta que Wei Zheng havia me dado. Enquanto ele lia, alguns jovens vestidos de azul com vários estandartes nas mãos apareceram, levando-nos ao Palácio das Trevas, onde fomos recebidos pelos Dez Reis do Submundo. Eles me informaram que a razão pela qual fui convocado à presença deles foi porque o Dragão do Rio Jing apresentou uma queixa contra mim por ter permitido que ele fosse executado, mesmo depois de eu ter lhe dado minha palavra de que nada lhe aconteceria. Assim que expliquei a eles o que realmente havia acontecido, eles me deram garantias de que meu caso seria arquivado pelo Tribunal de Três Juízes. Eles então pediram ao Juiz Cui Jue que procurasse nos livros de Vida e Morte o tempo que eu ainda tinha para residir na Terra, após o que o Rei Yama concluiu que meus dias ainda não haviam terminado. De fato, meu reinado tem uma duração de trinta e três anos, dos quais apenas treze se passaram. Consequentemente, os Dez Reis ordenaram que o juiz Cui Jue e o Grande Marechal Zhu me trouxessem de volta a este mundo. Depois de me despedir deles, prometi fazer uma oferenda de melões e outras frutas, em sinal de gratidão. Não havíamos ido muito longe do Palácio das Trevas, quando demos de cara com o inferno em que vivem aqueles que traíram sua pátria, aqueles que não respeitaram seus pais, aqueles que nunca se preocuparam com a prática do bem, aqueles que esfolaram seus semelhantes, aqueles que se dedicaram a enganar os outros, aqueles que alteraram pesos e medidas em benefício próprio e, finalmente, todos os estupradores, ladrões, mentirosos, hipócritas, libertinos, perversos e transgressores da lei. Todos sofriam ao mesmo tempo uma infinidade de torturas, sendo moídos, queimados, triturados, serrados, fritos, fervidos, pendurados e esfolados. Eram várias dezenas de milhares e, para ser honesto, não pude suportar essa visão horrível por muito tempo. Um pouco mais adiante atravessamos a Cidade da Morte, onde residem todos os bandidos e ladrões que já viveram na terra. Fiéis ao seu ofício anterior, eles bloquearam nosso caminho e se recusaram a nos deixar prosseguir, a menos que eu lhes desse uma quantia considerável de dinheiro. Felizmente, o juiz Cui Jue concordou em atuar como fiador e, assim, pude pegar emprestado um depósito inteiro cheio de ouro e prata de um certo Xiang, que mora na província de Henan. Os espíritos pareciam satisfeitos e nos permitiram continuar nosso caminho. Em todo caso, o Juiz Cui Jue insistiu que quando eu me encontrasse no Mundo da Luz, eu deveria fazer uma série de oferendas a esses espíritos abandonados, para que eles obtivessem a salvação o mais rápido possível. Assim chegamos ao ponto onde os Seis Caminhos da Transmigração se cruzam. Lá, o marechal Zhu me fez montar um cavalo tão rápido que parecia mais voar do que galopar. Não é de admirar que quase não tenhamos demorado a chegar às margens do rio Wei. Na água havia duas carpas brincando e fiquei olhando para elas por um tempo. Aproveitando-se da minha abstração, o marechal agarrou minha perna e me jogou no leito do rio, trazendo-me de volta à vida.

Todos os ministros parabenizaram o imperador por sua sorte e enviaram notícias do ocorrido a todos os cantos do império, de onde receberam sinais entusiásticos de apoio. Comovido, Taizong decretou uma anistia geral para todos os prisioneiros de seu reino. 


Não contente com isso, solicitou uma lista de todos os condenados à morte, cujo número, segundo os dados fornecidos pelo Ministério da Justiça, chegava a exatamente quatrocentas pessoas. Antes de serem executados, Taizong concedeu-lhes um ano de liberdade, para que pudessem voltar para suas famílias e colocar todos os seus bens e negócios em ordem. A gratidão dos presos era tão sincera quanto o cheiro que sobe da terra, quando encharcada pela chuva. Tão sábia decisão foi seguida de um novo decreto, pelo qual a coroa se comprometeu a cuidar e garantir o bem-estar de todos os órfãos. Ao mesmo tempo, concedeu liberdade a mais de três mil donzelas e concubinas do palácio, as quais foram desposadas pelos dignos oficiais de seus exércitos. A partir de então, seu reinado foi verdadeiramente virtuoso, como afirma o poema:

"Grande, de fato, é a virtude do Grande Soberano de Tang! Sob seu governo, as pessoas comuns conheceram mais prosperidade do que sob o governo de Yao e Shun. Quinhentos (9) condenados à morte foram libertados da prisão, enquanto mais de três mil donzelas deixaram o palácio imperial. Todos os funcionários lhe desejam vida longa e os ministros elogiam a retidão de seus julgamentos. Tal bondade de coração deve necessariamente ter a bênção do céu, fazendo com que a prosperidade alcance até a décima sétima geração."

Depois de libertar os prisioneiros e as donzelas da corte, Taizong emitiu um novo decreto, o qual ordenou que fosse afixado em todo o império, e no qual se dizia:

Embora vasto, o universo é comtemplado pelo sol e pela lua. Da mesma forma, o mundo, embora imenso, deve sua ordem à virtude e às boas ações. Se é o ganho pessoal que governa todas as suas ações, tenha certeza de que encontrará sua punição nesta mesma vida. Se, pelo contrário, o que dás supera o que recebes, a felicidade espera-te não só na próxima curva da vida futura, mas também nesta. A maior sabedoria consiste em seguir sempre os julgamentos da consciência. Dez mil homens violentos não se comparam a um simples e bom. Qual é a utilidade de estudar diligentemente os sutras se você não pratica a misericórdia ou a bondade? É inútil aprender os ensinamentos do Buda se você só pretende prejudicar os outros!

A partir de então, não houve uma única pessoa em todo o império que não se entregasse à prática da virtude. Ao mesmo tempo em que esse decreto se tornava público, veio à tona outro em que se solicitava a colaboração de um voluntário para levar as prometidas frutas e melões à Região das Trevas. Dias antes Taizong enviara, por intermédio de Hu Jingde, Duque de Kothan, todo o ouro e prata contidos num armazém até o distrito de Kaifeng, província de Henan. Desta forma, o empréstimo que havia contraído com Xiang Liang foi liquidado.

Alguns dias após a publicação deste último decreto, um homem se ofereceu para levar os melões ao Reino da Morte. Originalmente da região de Zunzhou, seu nome era Liu Quan e pertencia a uma família extremamente rica. 

A razão para se oferecer para realizar tal missão sacrificial foi porque sua esposa, Li Cuilian, havia dado um grampo de cabelo de ouro como esmola para um monge que passava na frente de sua casa.  Após Liu Quan repreendê-la por sua indiscrição em se exibir fora de casa, ela se sentiu tão envergonhada que correu para dentro de casa e se enforcou, deixando para trás um par de crianças pequenas, que choravam terrivelmente dia e noite. 

Ao vê-los naquele estado, Liu Quan sentiu um remorso tão insuportável que decidiu abandonar a vida e tudo o que possuía para levar os melões para o Reino Inferior. 

O imperador ordenou que ele fosse até o Pavilhão Dourado, onde colocaram dois melões em sua cabeça, enfiaram algum dinheiro em suas mangas e lhe deram uma quantidade adequada de veneno para beber. 

Sua alma não demorou a chegar com o fruto diante da Porta dos Espíritos, onde alguns demônios guardiões o encontraram e lhe perguntaram:

- Quem é você e por que se atreveu a vir aqui?

- Eu - respondeu Liu Quan - venho da parte do Imperador Tang Taizong para entregar esta fruta e estes melões aos Dez Reis do Mundo Inferior.

Ouvindo isso, os demônios mudaram de atitude e o conduziram, com grandes sinais de agradecimento, à Sala do Tesouro do Palácio das Trevas. Quando finalmente chegou à presença do Rei Yama, ele o presenteou com a fruta, dizendo:

- Eu vim de longe, por ordem do Imperador dos Tang, para trazer-lhe estes melões como sinal de gratidão pela hospitalidade com que os Dez Reis o trataram.

- Esse Imperador Taizong é certamente um homem de palavra - exclamou o Rei Yama, visivelmente satisfeito. 

Após aceitar os melões, perguntou ao emissário o seu nome e o local onde tinha nascido, ao que respondeu:

- Seu humilde servo é originário da área de Zunzhou e se chama Liu Quan. Como sua mulher se enforcou, deixando-o a cuidar de um casal de filhos, decidiu sacrificar tudo o que possuía pelo bem do país, ajudando o imperador a trazer estes melões em sinal de gratidão.

Assim que ouviram essas palavras, os Dez Reis mandaram chamar a esposa de Liu Quan, e ela foi trazida perante eles por dois demônios guardiões. Desta forma, o casal se reencontrou no próprio Palácio da Morte. 

Depois de conversarem sobre o que havia acontecido, eles se voltaram para os Dez Reis e agradeceram pela gentileza que demonstraram. O Rei Yama ordenou que trouxessem os livros da Vida e da Morte e verificou que tanto o marido quanto a esposa deveriam atingir uma idade muito avançada. 

Ele rapidamente se virou para um dos guardas-demônios e ordenou que os conduzisse de volta ao Mundo da Luz, mas o guarda protestou, dizendo:

- Isso é praticamente impossível agora, senhor. Li Cuilian está no Mundo das Trevas há vários dias e, consequentemente, seu corpo deixou de existir. A quem sua alma deveria se ligar?


- Isso é fácil de consertar -, respondeu o Rei Yama, sorrindo. - Li Yuying, a irmã mais nova do imperador, está prestes a morrer. Tome seu corpo emprestado e dê a esta mulher. Assim não haverá nenhum problema.

O guarda-demônio obedeceu sem questionar e conduziu Liu Quan e sua esposa de volta ao mundo dos vivos. Não sabemos como aconteceu um evento tão importante, nem o que aconteceu depois. Quem quiser, então, seguir o fio da história, deve ouvir com atenção o que é dito no próximo capítulo.


CLIQUE NO BANNER ABAIXO PARA AVANÇAR AO

OU

CLIQUE NO BANNER ABAIXO PARA RETORNAR AO


    Notas do Capítulo XI:

    1. Esse trecho refere-se a uma história escrita por Li Kung-Tzu durante a dinastia Tang, que tornou-se, com o passar do tempo, um paradigma da vaidade de tudo o que é humano: um homem adormeceu em seu jardim e sonhou que estava viajando para uma terra distante, onde ele ficou por dez anos, até mesmo se casando com a filha do homem que os governou. Ao acordar, descobriu que havia um enorme cupim ao seu lado, que representava simbolicamente todos os lugares que visitou. Isso o fez perceber a transitoriedade dos empreendimentos humanos, abraçando mais tarde o taoísmo;
    2. Antes de se tornar imperador, Taizong, ou Li Shimin, como também era conhecido, teve que matar seus irmãos;
    3. Grandes caldeirões de bronze de três pernas, chamados “ting”, eram usados na cerimônias religiosas da corte durante as primeiras dinastias, particularmente a Shang. Pela proximidade com as origens, eram dotados de forte carga mística;
    4. O Monte Shu surge na província de Szechuan, famosa na literatura chinesa devido à aspereza do seu terreno. Quanto ao Monte Lu, é uma das elevações mais altas mais conhecidas de Jiangxi;
    5. Os espíritos famintos, ou “pretas”, ocupavam a última posição dentro do mundo dos espíritos, sendo submetido a terríveis tormentos, cujo número oscilava, segundo os diferentes autores, entre nove e trinta e seis;
    6. O Inferno de Avici é o último e mais terrível dos oito defendidos pelo budismo;
    7. A "Ponte-sem-retorno" atravessava as duas margens do Nei-He, na província de Shangdung. Antigamente acreditava-se que este rio tinha sua nascente no inferno, arrastando em suas águas o sangue de demônios e dos condenados;
    8. A origem de uma cerimônia para os falecidos, em que a água desempenhava um papel muito importante importante, é atribuída ao imperador Wu-Di, da dinastia Liang, que favoreceu a Budismo durante os últimos anos de seu reinado.
    9. No caso de um poema de louvor, o número quatrocentos mencionado anteriormente não pode ser mantido, uma vez que quatro e todos os seus múltiplos têm um significado pejorativo, pois sua pronúncia é a mesma da palavra death: "sz".


    • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
    • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
    fontes consultadas para a pesquisa:
    PARTICIPE! Deixe seu comentário, elogio ou crítica nas publicações. Faça também sugestões. Sua interação é importante ajuda a manter o blog ativo! Siga o Portal dos Mitos no Youtube, TikTok e Instagram!
    Ruby