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3 de julho de 2023

A Jornada ao Oeste: Capítulo IX

۞ ADM Sleipnir



CAPÍTULO IX:

AO IR TOMAR POSSE DE SEU CARGO, CHEN GUANGRUI ENCONTRA O INFORTÚNIO. AQUELE QUE FLUTUA NO RIO VINGA SEUS PAIS E RETRIBUI SUAS RAÍZES

A cidade de Chang-An, localizada na província de Shaanxi, foi o local onde, geração após geração, os imperadores estabeleceram sua capital. Desde a época dos Zhou, dos Qin e dos Han, ela tem sido embelezada. Oito rios (1) desaguaram nela, dando-lhe um ar de beleza incomparável. Nessa época, o imperador Taizong (2), da Grande Dinastia Tang, ocupava o trono, dando ao seu reinado o nome de Zhenguan. Ele governava há treze anos, sendo conhecido como Jisi. Seu reino gozava de paz e as pessoas vinham de todas as regiões para lhe oferecer tributo. Não havia um único habitante da terra que não se considerasse seu súdito.

Um dia, Taizong sentou-se no trono e convocou todos os seus colaboradores à sua presença. Depois de prestar suas homenagens, o primeiro-ministro Wei Zheng (3) deu um passo à frente e disse:

- Como o mundo goza de paz e tranquilidade em todos os lugares, seria conveniente restaurar o antigo costume dos exames e fixar datas específicas para sua celebração. Para eles seriam convidados os intelectuais mais ilustres, de modo que, escolhidos os de conduta mais reta e inteligência profunda, lhes fossem confiadas as altas responsabilidades da administração e do governo.

- Nosso digno súdito expressou um princípio sólido em seu memorial - disse Taizong, e imediatamente emitiu um documento convidando todos os versados ​​em escritos confucionistas a virem à Chang-An para fazer o exame, tantos quantos fossem capazes de escrever com precisão. elegância e estilo, e aos que passaram nos três graus (4), independentemente da idade, profissão ou origem. A ordem chegou até o último canto do império, fixando-se em todas as prefeituras, cidades e vilas. 

Assim, ela também chegou a um pequeno lugar chamado Haizhou, onde morava um certo jovem chamado Chen E, cujo nome de cortesia era Chen Guangrui. Após ler o documento imperial, Guangrui correu para a casa de sua mãe, de sobrenome Zhang, e disse a ela:

- Chegou um anúncio da corte (5), convocando exames em todas as províncias do sul para a seleção das pessoas mais inteligentes e virtuosas. Com sua permissão, desejo participar de tais exames. Se eu conseguir um cargo de alguma importância, todos vocês ficarão orgulhosos de mim, nosso nome adquirirá um brilho que nunca teve, minha esposa será uma dama, meu filho não terá nada a temer no futuro e nossa casa será respeitada como se fosse um templo. Essas são as aspirações de seu filho. Eu queria que a senhora soubesse antes de eu partir.

- Bem sei, meu filho - respondeu a mãe -, que uma pessoa educada "estuda quando é jovem, e busca a vida quando amadurece". Acho que você também deveria seguir os ensinamentos deste provérbio. Procure ter cuidado durante a viagem e volte para casa assim que conseguir a posição que deseja.

Guangrui ordenou ao criado que arrumasse todas as suas coisas e, depois de se despedir de sua mãe, partiu animado. Chegando a Chang-An, viu que os exames já haviam começado e não perdeu tempo em se dirigir ao grande salão onde estavam sendo realizados. Ele passou nos primeiros testes, indo direto para os realizados no tribunal. Estes tratavam de política administrativa e, após acirrada competição com outros candidatos tão inteligentes quanto ele, obteve o primeiro lugar. Dessa forma, obteve o título de "zhuangyuan" (6), assinado pessoalmente pelo próprio Imperador dos Tang. Então, seguindo o costume, ele percorreu a cidade por três dias a cavalo.

O cortejo passou pela casa do primeiro-ministro Yin Kaishan (7), que tinha uma filha chamada Wenjiao, embora ela fosse conhecida por todos como Mantangjiao. Ela ainda não havia se casado, e precisamente naquele momento, ela se preparava para escolher um marido, jogando do alto de uma torre enfeitada com flores e guirlandas uma pequena bola bordada. Vendo a presença viril de Guangrui e descobrindo que ele era o novo "zhuangyuan", ela se sentiu atraída por ele e atirou a bola bordada, com tanta sorte que o mesmo pousou no chapéu de seda preta de Guangrui

Instantaneamente, a música alegre dos alaúdes e flautas se espalhou por toda a área, festiva como o renascimento cíclico da primavera, enquanto dezenas de servos e donzelas desciam a torre, agarravam o cavalo de Guangrui pelo freio e o levavam para dentro da residência do primeiro-ministro, onde seria realizada a festa de casamento. Imediatamente o alto oficial imperial e sua esposa deixaram seus aposentos, reuniram o mestre de cerimônias e todos os convidados e deram a garota a Guangrui como sua esposa. Os noivos se curvaram diante do Céu e da Terra, cumprimentaram-se com respeito e se ajoelharam diante dos pais da noiva. Visivelmente satisfeito, o primeiro-ministro ofereceu um farto banquete e todos os convidados comemoraram o feliz evento noite adentro. A essa altura, os dois noivos já haviam deixado a sala de recepção e se retirado, de mãos dadas, para a câmara nupcial.

Guangrui e Yin Wenjiao

Na manhã seguinte, bem cedo, o imperador tomou assento na Sala do Tesouro das Chaminés Douradas e, depois de convocar todos os conselheiros, militares e civis, perguntou:

- Para onde devemos enviar o novo "zhuangyuan"?

- Descobrimos que há uma vaga em Jiangzhou - respondeu o ministro Wei Zheng. - Peço-lhe que lhe conceda essa posição.

Taizong nomeou-o governador de Jiangzhou, ordenando-lhe que partisse para lá o mais rápido possível. Depois de agradecer ao imperador por tão alta honra, Guangrui deixou a corte e correu para a casa do primeiro-ministro para relatar tudo à sua esposa. Não demorou muito para ele se despedir dos sogros e não tardou em seguir, acompanhado da esposa, para seu novo destino.

Quando iniciaram a viagem, a primavera já estava chegando ao fim. Uma leve brisa agitava o delicado verde dos salgueiros, enquanto o vermelho ardente das flores se salpicava de minúsculas gotas de chuva. Como o caminho passava pela casa de sua mãe, Guangrui parou para cumprimentá-la. Os noivos curvaram-se a ela com respeito e, radiante, a mãe exclamou:

- Parabéns, meu filho. Você partiu sozinho e voltou acompanhado de uma linda esposa.

- Confiando apenas no poder de sua bênção - respondeu Guangrui, emocionado -, obtive o título imerecido de "zhuangyuan". Quando eu estava andando pelas ruas da cidade por ordem imperial, por acaso passei pela mansão do ministro Yin, e por sorte uma bolinha cheia de bordados caiu na minha cabeça. O próprio ministro veio ao meu encontro e me entregou sua filha como esposa. Posteriormente, Sua Majestade nomeou-me Governador de Jiangzhou e para lá me dirijo para assumir o cargo. Seria uma grande honra para nós contar com a sua companhia.

A Sra. Zhang sentiu um brilho de alegria em seu coração e imediatamente começou a arrumar suas coisas. A viagem não demorou muito. Depois de alguns dias de viagem, eles chegaram à Pousada das Dez Mil Flores (8), cujo dono era um certo homem chamado Liu Xiaoer. A Sra. Zhang de repente se sentiu indisposta e disse ao filho:

- Não estou me sentindo bem. Por que não descansamos aqui uns dois ou três dias antes de partir?

Guangrui aceitou sua sugestão sem questionar. Na manhã seguinte, ele se encontrou do lado de fora da pousada com um homem que vendia uma carpa de uma atraente cor dourada. Pensando em sua esposa, ele a comprou por um punhado de moedas. Quando se preparava para cozinhá-lo, notou que a carpa piscava como se estivesse viva. Espantado, ele pensou:

- Ouvi dizer que quando um peixe ou uma serpente pisca assim, é um sinal claro de que não é um animal comum.

Então, ele foi novamente em busca do pescador e perguntou-lhe:

- Você se importa de me dizer onde pescou este peixe?

- De forma alguma - respondeu o pescador com simplicidade. - Peguei-o no rio Hung, que fica a uns quinze quilômetros daqui. Consequentemente, Guangrui correu até o rio e devolveu o peixe vivo. 

Assim que voltou para a pousada, contou tudo à mãe, que comentou com satisfação:

- Estou realmente orgulhosa do que você fez. É uma boa ação libertar os seres vivos.

- Tem razão - respondeu Guangrui, para acrescentar em tom diferente: - Estamos há três dias nesta estalagem e estou francamente preocupado, porque a ordem do imperador era urgente. Não tenho escolha a não ser retomar a estrada amanhã. Gostaria de saber se você está totalmente recuperada.

- Ainda não estou me sentindo bem - respondeu a Sra. Zhang. - Além disso, faz muito calor nesta época do ano, e temo que isso agrave minha doença durante a viagem. Por que você não aluga uma casa e me deixa aqui com um pouco de dinheiro até que minhas forças sejam totalmente restauradas? Você pode continuar seu caminho, e pode vir me encontrar, se quiser, no outono, quando estiver um pouco mais fresco.

Guangrui discutiu o assunto com sua esposa e, conforme combinado, alugou uma casa, onde hospedou sua mãe. Depois de lhe dar algum dinheiro, eles se despediram dela e continuaram seu caminho. O cansaço da viagem logo voltou a apoderar-se de seus corpos, embora logo chegassem às margens do rio Hung. Para atravessá-lo, solicitaram os serviços de dois barqueiros, chamados Liu Hong e Li Biao, que de bom grado se ofereceram para levá-los em seu barco. Acontece que Guangrui havia sido predestinado em sua encarnação anterior a enfrentar uma calamidade, materializada nesses dois criminosos. 

Liu Hong e Li Biao

Depois de ordenar a seu servo que colocasse toda a bagagem no barco, Guangrui e sua esposa se prepararam para embarcar. Liu Hong notou imediatamente a beleza extraordinária da senhora Yin. Seu rosto realmente lembrava a lua cheia, seus olhos tinham o apelo sereno da água do outono, seus lábios lembravam ameixas em cor e tamanho e sua cintura delicada e estreita era como um jovem salgueiro. Suas feições eram tão atraentes que, ao vê-las, os peixes podiam se deixar afundar e os patos selvagens dobrar as asas e cair, como pedras, no chão. Sua beleza era tão perfeita que a lua se escondia ao vê-la, e as mais belas flores sentiam-se envergonhadas. Liu Hong tramou com Li Biao e eles conduziram o barco para uma área isolada, onde esperaram impacientes pelo anoitecer. Eles então mataram o servo e espancaram Guangrui até a morte, jogando seus corpos na água em seguida. 

Quando Wenjiao viu que seu marido havia sido morto, ela tentou pular no rio, mas Liu Hong foi rápido em segurá-la ao seu lado.

- Se você ceder aos meus desejos, nada irá acontecer com você - disse Liu Hong, colocando o braço em volta da cintura dela. - Caso contrário, vou partí-la em duas com esta faca que tenho em minhas mãos.

Sem alternativa, a mulher consentiu e se entregou à Liu Hong. O ladrão então levou o barco para a margem sul, onde o deixou sob os cuidados de Li Biao. Em seguida, vestiu as roupas de Guangrui, pegou suas credenciais e continuou seu caminho para Jiangzhou, acompanhado por Wenjiao.

O corpo do servo assassinado foi arrastado rio abaixo pela corrente, enquanto o corpo de Chen Guangrui afundou, onde logo foi avistado por um yaksha em patrulha. Sem perder tempo, o yaksha correu ao Palácio do Dragão e relatou o ocorrido ao seu rei, que naquele momento estava em audiência pública, dizendo com voz trêmula:

- Um homem de letras acaba de ser espancado até a morte perto da foz do rio Hung por uma pessoa não identificada, e seu corpo jaz completamente inerte no fundo do rio.

O Rei Dragão ordenou que o cadáver fosse trazido até ele e, após examiná-lo cuidadosamente, exclamou com raiva:

- Este homem é meu benfeitor! Como ele pode ter sido assassinado? Como dizem, "a bondade deve ser recompensada com a mesma moeda". Devo trazê-lo de volta à vida e, assim, retribuir-lhe o inestimável bem que me fez ontem.

Sem perder tempo, ele emitiu um despacho oficial para o espírito local e ao deus protetor de Hongzhou, no qual suplicava sinceramente que lhe entregassem a alma do homem de letras, para trazê-lo de volta à vida. Estes, por sua vez, ordenaram aos demônios que entregassem o espírito de Chen Guangrui ao yaksha que lhes trouxera o despacho, o qual, por sua vez, conduziu a alma desnorteada ao Palácio de Cristal da Água para uma audiência com o Rei Dragão.

- Como se chama, e de onde você veio? - pergunto-lhe o Rei Dragão. - Por que você veio aqui e quais são as razões pelas quais você foi espancado tão brutalmente?

- Meu nome - respondeu Guangrui, após cumprimentar respeitosamente seu anfitrião - é Chen E, embora todos me conheçam como Guangrui. Venho do distrito de Hongnong em Haizhou. Nos últimos exames imperiais, obtive o título de "zhuangyuan" e, consequentemente, o imperador me nomeou governador de Jiangzhou, para onde me dirigia em companhia de minha esposa para assumir o cargo. O que eu menos suspeitava, ao pegar o barco para atravessar o rio, é que aquele malvado barqueiro chamado Liu Hong se apaixonaria por minha mulher e tramaria tirar-me a vida. Em um momento de distração, ele me espancou até a morte e depois jogou meu corpo na água. Eu imploro, senhor, tenha piedade de mim.

- Então foi isso que aconteceu! - o Rei Dragão exclamou, indignado. - Acredite ou não, sou o peixe dourado que você salvou ontem. És, portanto, meu benfeitor. Você certamente está em uma situação muito difícil, mas não há razão que me impeça de ajudá-lo.

O Rei Dragão empurrou o corpo de Guangrui para o lado e colocou uma pérola mágica em sua boca para evitar que se decompusesse e assim facilitar o reencontro com sua alma. Desta forma, ele poderia se vingar mais tarde.

- Enquanto isso - acrescentou o Rei Dragão -, seu espírito pode permanecer como um oficial em meu palácio.

AgradecidoGuangrui se curvou diante do Rei Dragão, batendo repetidamente sua testa no chão. O Rei Dragão, por sua vez, preparou um esplêndido banquete de boas-vindas, para o qual convidou seus colaboradores mais próximos.

Enquanto isso acontecia no reino das águas, Wenjiao nutria tanto ódio por Liu Hong que seu único desejo era poder comer sua carne e dormir em sua pele. Porém, como estava grávida e ainda não sabia se era menino ou menina, não teve escolha a não ser submeter-se contra sua vontade ao seu desprezível sequestrador. Sua chegada a Jiangzhou ocorreu depois de alguns dias. Todos os funcionários saíram para recebê-los, oferecendo-lhes um suntuoso mimo na mansão do governador. Aos brindes, Liu Hong disse com falsa modéstia:

- Como bem sabem, sou apenas um simples homem de letras. Conto, portanto, com vossa ajuda e vossas sugestões para cumprir minhas responsabilidades governamentais.

- Tamanha humildade o honra, senhor -, responderam os oficiais. - Foste o primeiro nos exames e tens uma das mentes mais privilegiadas de todo o reino. Não duvidamos, portanto, que considerará o povo como seu próprio filho e, assim, suas decisões serão corretas e seus pronunciamentos totalmente justos. Todos nós dependemos de sua capacidade de comando. Então, por que se mostrar tão humilde?

O banquete durou até tarde da noite.

O tempo passou rapidamente. Certo dia, as funções oficiais de Liu Hong o levaram a uma parte muito remota de sua circunscrição. Como sempre, Wenjiao ficou na mansão. Sentou-se num dos pequenos gazebos do jardim e começou a pensar com tristeza no marido e na sogra. De repente, ela foi tomada por um tremendo cansaço e começou a sentir uma dor tão forte na barriga que perdeu a consciência e caiu no chão. Desta forma, ela deu à luz um filho. Nesse momento pensou ter ouvido alguém sussurrar em seu ouvido:

- “Mantangjiao, ouça com atenção o que vou lhe dizer. Eu sou o Espírito da Estrela Polar e vim entregar este filho a você por ordem expressa da Bodhisattva Guanyin. Um dia seu nome será conhecido em toda a terra, pois não haverá comparação entre ele e um mortal comum. Quando Liu Hong voltar, ele provavelmente tentará fazer mal ao menino. Você tem que fazer tudo o que puder para pará-lo. Seja corajosa e não tenha medo. Seu marido foi salvo pelo Rei Dragão. Vocês se encontrarão novamente - disso pode ter certeza. Chegará o dia em que tudo que está torto será endireitado e todos os crimes punidos. Nunca se esqueça das minhas palavras! Agora acorde, acorde o mais rápido possível!

A voz tornou-se distante e não foi mais ouvida. A senhora acordou e guardou no cofre de seu coração o que ouvira. Ela pegou o menino nos braços e o segurou com força contra o peito, sem saber exatamente o que fazer para protegê-lo. Assim que Liu Hong voltou, quis afogá-lo, mas a mulher o impediu, dizendo-lhe com astúcia:

- Já é tarde. Deixe-o viver até amanhã. Afinal, haverá muito tempo para atirá-lo no rio.

Por sorte, na manhã seguinte Liu Hong foi novamente chamado para algum negócio urgente, o que o manteve longe do palácio o dia todo. Em um misto de alívio e desespero, a mulher disse para si mesma:

- Se a criança ainda estiver aqui, quando aquele bandido voltar, sua vida estará em grave perigo. O melhor que posso fazer é abandoná-la no rio e deixar que a morte ou a vida sigam seu próprio curso. Talvez o céu tenha pena de sua sorte e envie alguém para cuidar dela e criá-la.  Quem sabe se no futuro nos encontraremos novamente! Mas esta é a única solução.

Temendo não poder reconhecê-lo depois, mordeu o próprio dedo e escreveu uma carta com sangue, deixando claro o nome de seus pais, a infeliz história de sua família e os trágicos motivos de seu abandono. Em seguida, arrancou um dedinho do pé esquerdo da criança com uma mordida, para marcá-lo. Ela então pegou um manto, envolveu a criança nele e a conduziu para fora da mansão, sem ser vista por ninguém. Felizmente, o palácio não ficava longe do rio. Ao alcançar à margem, ela não pôde conter suas lágrimas, que escorriam rapidamente pelo seu rosto. 

Quando estava prestes a jogar a criança na água, viu uma tábua na margem. Ela a pegou e amarrou a criança nela, colocando em seu peito a carta escrita com sangue. Depois de confiá-la aos céus, deixou-a ser arrastada pela correnteza rio abaixo. Wenjiao se sentiu tão abatida que por muito tempo não conseguiu se mexer. Aos poucos, porém, recobrou as forças e voltou para a mansão a passos lentos, com os olhos marejados de lágrimas.

A tábua deslizou com segurança rio abaixo até parar por conta própria no Monastério da Montanha de Ouro. O guardião desse monastério era um monge chamado Fa-Ming. Ele havia cultivado a virtude com tanta constância e compreendido com tanta perfeição o significado dos livros sagrados que para ele o mistério da imortalidade não continha nenhum segredo. Ele estava sentado em atitude meditativa, quando de repente ouviu o choro de uma criança. Ele se levantou apressado e correu para o rio para ver o que estava acontecendo. Foi assim que encontrou o bebê amarrado à tábua na margem. Sem perder tempo, puxou-o para fora da água e imediatamente notou a carta escrita com sangue em seu peito.

Depois de lê-lo com uma avidez incomum, ele deu à criança o nome de "Aquele-que-flutua-no-rio" e entregou-a a uma mulher piedosa para alimentá-lo e cuidar dele. A carta permaneceu em sua posse, cuidadosamente guardada. O tempo passou tão rápido quanto o vôo de uma flecha, e as estações passaram tão rápido quanto a lançadeira se move ao longo do tear. "Aquele-que-flutua-no-rio" completou 18 anos, então o guardião do monastério raspou sua cabeça e o convidou a se dedicar a uma vida de ascetismo e meditação, dando-lhe o nome religioso de Xuanzang. Assim que recebeu a bênção e aceitou os mandamentos, Xuanzang seguiu o Caminho com grande determinação.

Um dia, já no fim da primavera, vários monges se reuniram à sombra dos pinheiros para discutir os princípios do Zen e debater os mistérios que eram tema constante de suas meditações. Um deles, sentindo-se incapaz de resolver os enigmas que Xuanzang lhe apresentava com maestria, perdeu a paciência e exclamou rabugento:

- Quem você pensa que é? Você não sabe seu nome e nem o nome de seus pais. Como se atreve a vir aqui e dar uma de grande? Você é um ninguém. Entendeu? Um ninguém!

Devastado, Xuanzang  correu para o interior do templo e, ajoelhando-se diante de seu professor, disse com lágrimas nos olhos:

- Embora todo ser humano deva sua existência às Cinco Fases e às forças do yin e yang, ele tem que ser educado pelos pais depois. Como é possível que haja uma pessoa no mundo que não tenha pai e mãe, como eu?

Usando esses argumentos, ele insistiu com firmeza para que seu mestre revelasse o nome de seus pais, e o mesmo lhe disse:

- Se você realmente deseja saber quem são seus pais, venha comigo até meu quarto. 

Xuanzang o seguiu até seu quarto. O velho monge então subiu em uma viga e baixou uma pequena caixa. Ele a abriu e tirou uma carta escrita com sangue e um vestido, que entregou a Xuanzang, sem dizer uma palavra. Xuanzang desdobrou a carta e leu-a com atenção. Dessa forma, ele descobriu os nomes de seus pais e a inesperada tragédia que havia ocorrido em suas vidas. 

Ainda chorando, ele caiu no chão e exclamou:

- Como pode ser chamado de homem aquele incapaz de vingar os próprios pais? Por dezoito anos ignorei seus nomes e hoje, finalmente, descobri que minha mãe ainda está viva. De toda forma, eu nunca teria chegado a essa idade, se não tivesse sido salvo e cuidado pelo senhor. Permita-me, então, ir em busca de minha mãe. Prometo reconstruir este monastério mais tarde com a tigela de arroz em minha cabeça (9) e, assim, retribuirei em parte o que fizeste por mim.

- Se deseja conhecer sua mãe - respondeu o velho mestre -, pegue a carta e o vestido e vá até à mansão do governador de Jiangzhou. Lá você encontrará a mulher que lhe deu a luz.

Xuanzang aceitou o conselho de seu mestre e foi à Jiangzhou mendigar. Quis o céu que Liu Hong estivesse fora do palácio quando ele chegasse e, assim, mãe e filho poderiam se reencontrar com a ternura que o momento exigia. Precisamente na noite anterior à sua chegada, a Sra. Yin teve um sonho em que viu a lua minguante tornar-se cheia novamente e disse a si mesma, esperançosa:

- Faz muito tempo que não tenho notícias da minha sogra, meu marido foi assassinado e meu filho jogado no rio. Se alguém o salvou e cuidou dele todo esse tempo, deve ter dezoito anos. Quem sabe? Talvez o Céu tenha decidido que nos encontraremos novamente em breve.

Enquanto pensava nisso, de repente ouviu alguém recitando fragmentos das escrituras sem parar na porta de seus aposentos, enquanto gritava:

- Uma esmola para este monge mendicante! Uma esmola, por favor! 

Assim que pôde, a senhora aproximou-se dele e perguntou:

- De onde você vem?

- Eu, senhora - respondeu Xuanzang, humilde -, sou um dos muitos discípulos de Fa-Ming, guardião do Monastério da Montanha de Ouro.

- Então você é discípulo do guardião daquele monastério? - ela repetiu e o convidou a entrar na mansão, onde lhe deu alguns legumes e um pouco de arroz para comer.

Olhando-o atentamente, ela percebeu que em seus gestos e em seu modo de falar havia algo que a lembrava de seu marido. Intrigada, ordenou que as criadas se retirassem e perguntou-lhe novamente:

- Quando você abandonou sua família para se tornar um servo da verdade: quando criança ou quando adulto? Como você era chamado antes de entrar na religião? Seus pais ainda estão vivos?

- Jamais abandonei a minha família, nem quando era mais velho nem quando era jovem - , respondeu Xuanzang. - Para dizer a verdade, tenho uma ofensa a vingar tão grande quanto o céu e tão profunda quanto o mar. Acredite ou não, meu pai foi assassinado e minha mãe sequestrada. Se vim aqui, foi porque meu mestre, o guardião Fa-Ming, me disse que poderia encontrá-lo justamente na mansão do governador de Jiangzhou.

- Você sabe o nome da sua mãe? - perguntou, mais uma vez, a senhora.

- Yin Wenjiao - respondeu Xuanzang. - Meu pai pertencia à família Chen e seu nome era Guangrui. Todos me conhecem por "Aquele-que-flutua-no-rio", embora meu nome religioso seja Xuanzang.

- Eu sou Wenjiao - afirmou a senhora, entusiasmada. - Mas deixe-me insistir. Que prova você pode me dar de sua identidade?

Ao ouvir que ela era sua mãe, Xuanzang deu um pulo e, prostrando-se com o rosto em terra, chorou, dizendo:

- Como é possível que nem minha própria mãe acredite em mim? Se quer provas, aqui está este vestido e esta carta escrita com sangue.

Wenjiao pegou-os com a mão trêmula e imediatamente percebeu que eram autênticos. Chorando de alegria, ela o abraçou e gritou:

- Meu filho voltou! Meu filho voltou! - porém, sua alegria logo se transformou em ansiedade e ela o suplicou, dizendo: Vá embora daqui o quanto antes, filho! Afaste-se deste lugar!

- Durante dezoito anos tenho procurado meus pais - respondeu Xuanzang, surpreso -, e agora que te encontrei, quer que eu me afaste de você? Não posso suportar uma nova separação! Você não entende?

- Saia de uma vez! - ela insistiu. - Fuja daqui, como se todo o seu corpo estivesse em chamas! Se Liu Hong retornar, ele certamente o matará. Eu vou te dizer o que vamos fazer. Amanhã fingirei estar doente e direi a ele que devo ir sem demora ao seu monastério para entregar cem pares de sapatos aos monges, fruto de uma promessa que fiz há algum tempo. Assim podemos conversar com mais calma.

Xuanzang aceitou o plano e, despedindo-se respeitosamente de sua mãe, voltou ao templo onde morava. A senhora Yin observou-o partir com uma mistura de ansiedade e alegria. Na manhã seguinte, sob o pretexto de estar doente, ela ficou na cama, recusando-se a comer qualquer coisa. Liu Hong entrou em seus aposentos e perguntou sobre a causa de sua doença inesperada.

- Quando eu era jovem - respondeu ela - prometi entregar cem pares de sapatos a um monastério, mas nunca cumpri essa promessa. Há cerca de cinco dias sonhei que um monge veio exigir minha promessa com uma faca na mão e desde então não tenho me sentido muito bem.

- Uma questão tão pequena! - exclamou Liu Hong - Por que você não me falou disso antes?

Ele se dirigiu ao salão de audiências e deu uma ordem aos superintendentes Wang e Li, para que em cinco dias cem famílias da cidade os presenteassem com um par de sapatos cada. 

As famílias prontamente cumpriram a ordem, e uma vez que tinha os sapatos em mãos, a senhora Yin disse a Liu Hong:

- Muito bem. Eu já tenho os sapatos. Agora só tenho que levá-los até um monastério. Você sabe se há algum por perto onde eu possa cumprir minha promessa?

- Em Jiangzhou existem dois: - respondeu Liu Hong - o da Montanha de Ouro e o da Montanha Queimada. Você pode visitar qual deles quiser.

- Há algum tempo ouvi dizer que o da Montanha de Ouro era muito bom. Então acho que vou até lá - concluiu a senhora.

Sem perder tempo, Liu Hong ordenou aos superintendentes Wang e Li que preparassem um barco. A senhora Yin escolheu a criada de sua maior confiança e subiu a bordo do pequeno barco. Os remadores remaram com força e o barco abandonou a costa, rumo ao Monastério da Montanha Dourada.

No dia do encontro com sua mãe, Xuanzang  voltou ao monastério às pressas e contou ao mestre Fa-Ming o que havia acontecido. Na manhã seguinte, uma criada da casa do governador chegou anunciando a chegada de sua patroa ao monastério para cumprir uma promessa. Todos os monges saíram, cheios de alegria, para recebê-la. A senhora entrou no templo e, após prestar homenagem à bodhisattva, ofereceu um esplêndido banquete vegetariano. Ela então ordenou à criada que colocasse as meias e os sapatos em bandejas e os levasse ao salão principal do monastério. 

Lá ela rezou novamente com devoção edificante e, antes que os monges se retirassem para seus afazeres, pediu ao Mestre Fa-Ming que distribuísse os presentes entre eles. Assim que Xuanzang  viu que todos haviam saído e que não havia ninguém no corredor, ele foi até sua mãe e se ajoelhou diante dela. A senhora então pediu que ele tirasse os sapatos e as meias e verificou que, de fato, faltava-lhe o dedinho do pé esquerdo. Mais uma vez, mãe e filho se abraçaram e choraram longamente de alegria. Eles então chamaram Fa-Ming e lhe agradeceram por cuidando de Xuanzang por todos aqueles anos.

- Tenho medo - disse então o mestre - que esta reunião chegue aos ouvidos do bandido. Portanto, é aconselhável agir rapidamente para evitar represálias.

A senhora Yin então virou-se para o filho e disse:

- Pegue este anel e vá até Hongzhou, um lugar que fica a aproximadamente mil e quinhentas milhas a noroeste daqui. Na Pousada das Dez Mil Flores você encontrará uma anciã de sobrenome Zhang, que é sua avó paterna. Espero que ela ainda esteja viva. Também escrevi uma carta que quero que você leve para a capital dos Tang. Seu destinatário é o primeiro-ministro Yin, meu pai e, portanto, seu avô. Não será difícil para você encontrá-lo. Sua mansão fica à esquerda do Palácio Dourado. Entregue-lhe a carta e peça-lhe que faça com que o imperador Tang envie cavalos e homens para prender o bandido que trouxe infortúnio para nossa família. Assim, seu pai será vingado e sua velha mãe recuperará a liberdade perdida. Não posso demorar mais aqui, pois se eu chegar tarde, aquele canalha pode suspeitar de alguma coisa e ficar furioso comigo.

Dito isso, ela deixou do templo, subiu no barco e voltou para sua mansão. Xuanzang a observou sair com lágrimas nos olhos. Ele correu em busca de seu mestre e pediu sua permissão para colocar o plano de sua mãe em ação o mais rápido possível. Tendo obtido sua aprovação, ele foi até Hongzhou, onde, após procurar a Pousada das Dez Mil Flores, questionou Liu Xiaoer, a pessoa que a atendeu, dizendo:

- Há algum tempo atrás hospedou-se aqui um senhor chamado Chen, cuja mãe, pelo que entendi, hospedou-se em seu estabelecimento. Você pode me dizer o que aconteceu com ela?

- Como bem afirma - respondeu Liu Xiaoer -, a mulher a quem se refere foi minha hóspede durante algum tempo. Aí ela ficou cega e durante três ou quatro anos ela não me pagou absolutamente nada pela hospedagem. Agora ele mora em uma olaria arruinada perto do Portão Sul e ganha a vida mendigando nas ruas. O que não entendo é como aquele senhor pôde deixá-la abandonada, sem dar sinais de vida e nem mandar ninguém buscá-la.

Xuanzang não esperou um único segundo antes de correr em direção à velha olaria no Portão Sul. Ao ouvi-lo, a velha disse, surpresa:

- Sua voz é muito parecida com a do meu filho Chen Guangrui.

- Isso não é nada estranho - respondeu Xuanzang -, já que sou o único filho de Chen Guangrui, marido da Sra. Wenjiao.

- Por que seu pai e sua mãe não voltaram para me buscar? - perguntou a anciã com amargura.

- Meu pai foi espancado até a morte por alguns bandidos, um dos quais obrigou minha mãe a aceitá-lo como marido - respondeu Xuanzang, triste.

- E como você descobriu meu paradeiro? - a anciã perguntou novamente.

- Minha mãe me disse onde encontrá-la - respondeu Xuanzang. - Ela também me deu uma carta e um anel para entregar a você.

A velha os pegou com as mãos trêmulsa e, sem conter as lágrimas, disse:

- Meu filho era uma pessoa de grande inteligência e sensibilidade primorosa. A princípio pensei que ele havia abandonado o caminho do bem, deixando de lado suas obrigações filiais. Como poderia suspeitar que ele havia sido brutalmente assassinado? Bendito seja o Céu, que não esqueceu minha desgraça e permitiu que meu neto viesse em meu auxílio!

- Como a senhora ficou cega? - perguntou Xuanzang, emocionado.

- Pensava tanto no seu pai! a velha exclamou. - Dia e noite esperei por ele, mas ele não apareceu. Percebendo que ele nunca mais voltaria, chorei tanto que meus olhos secaram.


Xuanzang então caiu de joelhos e, erguendo os olhos para o céu, exclamou:

- Tenha compaixão de Xuanzang, que, apesar de já ter feito dezoito anos, ainda não vingou a infâmia que caiu sobre seus pais. Seguindo o plano de minha mãe, vim aqui hoje e, assim, encontrei minha avó. Tenha pena de tanto sofrimento e faça seus olhos recuperarem a visão.

Assim que terminou sua oração, ele tocou os olhos de sua avó com a ponta da língua, e num instante eles ficaram tão brilhantes e vívidos quanto antes. Vendo a presença do jovem monge à sua frente, a anciã exclamou:

- Você é mesmo meu neto! Você é exatamente igual ao meu filho Guangrui!

Desta forma, sua alegria foi tingida com a pesada tristeza da memória. Xuanzang a tirou da velha olaria e a levou para a pousada de Liu Xiaoer, onde alugou um quarto para ela. Na despedida, ele deu a ela uma certa quantia em dinheiro, dizendo:

- Não se preocupe com nada. Estarei de volta em menos de um mês - e continuou seu caminho até a capital. Não foi difícil para ele encontrar a casa do primeiro-ministro Yin, na parte leste da cidade imperial. Aproximou-se do oficial que guardava a porta e disse:

- Sou parente do primeiro-ministro e vim visitá-lo.

O oficial correu para avisar ao seu senhor, que exclamou, surpreso:

- Um monge? Não sou parente de nenhum monge!

Mas sua esposa imediatamente o informou, visivelmente emocionada:

- Ontem à noite sonhei que nossa filha Mantangjiao retornava para casa. Será que nosso genro nos enviou uma carta por meio daquele monge?

O primeiro-ministro não teve escolha a não ser deixá-lo entrar. Assim que Xuanzang se viu em sua presença, caiu no chão chorando, enquanto tirava a carta de sua túnica e a entregava ao primeiro servo do imperador. O ministro começou a lê-lo e, à medida que sua leitura avançava, seus olhos se encheram de lágrimas, finalmente rompendo em um choro incontrolável.

- Posso saber o que está acontecendo, Excelência? - perguntou sua esposa, surpresa.

- Este monge que você vê aqui - respondeu o primeiro-ministro, entusiasmado - é nosso neto. Chen Guangrui, nosso genro, foi morto por bandidos e nossa filha Mantangjiao foi forçada a se casar com seu assassino.

Ao ouvir uma notícia tão assustadora, a mulher também começou a chorar e ele teve que confortá-la, dizendo:

- Seja forte e tente se consolar. Amanhã de manhã apresentarei um relatório a nosso senhor e eu mesmo irei à frente das tropas que hão de vingar tão imperdoável ultraje.

No dia seguinte o primeiro-ministro redigiu um documento, que apresentou ao imperador e no qual se lia:

"O genro de seu humilde servo, "zhuangyuan" Chen Guangrui, foi espancado até a morte pelo barqueiro Liu Hong, quando se dirigia para assumir seu novo cargo em Jiangzhou, acompanhado por sua família. Não contente com tal crime, forçou minha filha a dormir com ele, fazendo-se passar por meu genro e usurpando sua posição por muitos anos. Perante tão trágico e comovente acontecimento, rogo a Vossa Majestade licença para partir o quanto antes com cavalos e homens para aquela província, a fim de punir os culpados como merecem."

Assim que o Imperador dos Tang leu o relatório, ele ficou extremamente furioso. Ele imediatamente convocou sessenta mil soldados imperiais e ordenou ao Ministro Yin que se dirigisse a Jiangzhou conduzindo-os adiante. O ministro obedeceu a ordem sem demora, partindo naquele mesmo dia para tão remota província. Viajando de dia e descansando de noite, logo chegaram ao local. Acamparam na encosta norte do rio e nessa mesma noite o Primeiro-Ministro convocou ao seu acampamento o Juiz e o Chefe Militar de Jiangzhou. Depois de explicar-lhes os motivos da expedição, pediu-lhes ajuda militar. Eles então cruzaram o rio e cercaram a mansão de Liu Hong antes do amanhecer. Liu Hong ainda estava dormindo quando soldados invadiram seus aposentos em meio ao rufar de tambores e ao troar de tiros. Liu Hong foi detido, antes que pudesse oferecer a menor resistência. Sem perder tempo, o primeiro-ministro o conduziu ao campo de execução, enquanto o exército acampava nos arredores da cidade.

O primeiro-ministro dirigiu-se então para a sala principal da casa, e chamou a filha para vir  para encontrá-lo. Ela estava prestes a fazê-lo, mas foi tomada pela vergonha de ver seu pai novamente e quis se enforcar ali mesmo. Assim que Xuanzang soube disso, correu para salvar sua mãe e, ajoelhando-se diante dela, disse:

- Seu pai e seu filho trouxeram as tropas aqui com o único propósito de vingar seu marido. O bandido, de fato, já foi capturado. Por que você quer morrer agora? Se fizer isso, também não poderei continuar vivendo.

Depois de um tempo o primeiro-ministro também apareceu para conforta-la. Ela então declarou:

- Uma mulher deve seguir seu marido até o túmulo. Meu marido foi assassinado por aquele bandido, e ainda assim eu me entreguei vergonhosamente a ele. Devo confessar, porém, que só a criança que carreguei no ventre me ligava à vida e que naquele momento me ajudou a suportar a minha tremenda humilhação. Agora que ele se tornou um homem e meu velho pai vingou minha humilhação à frente de suas tropas, não tenho outra opção senão acabar com minha vida, cumprindo assim o dever que devo a meu marido.

- Minha filha! - exclamou o primeiro-ministro, emocionado. - Como pode falar sobre vergonha? Você não teve escolha. Você não entende? Apesar do ocorrido, sua virtude permaneceu intacta, pois em nenhum momento você alterou seus pensamentos ou se rendeu ao oportunismo.

Pai e filha se abraçaram chorando, enquanto Xuanzang não conseguia conter a emoção. Enxugando as lágrimas, o primeiro-ministro disse:

- Você não deve se preocupar mais. Tenho o culpado em minha posse e agora mesmo vou dar um fim nele, com sua permissão.

Levantando-se, o ministro dirigiu-se com passo determinado ao local das execuções. Para sua alegria, o Chefe Militar de Jiangzhou também havia prendido seu comparsa Li Biao, que estava cercado por um grande grupo de sentinelas. Satisfeito, o primeiro-ministro ordenou que Liu Hong e Li Biao recebessem cem chicotadas com uma vara longa. Os réus então assinaram uma confissão, na qual contaram nos mínimos detalhes como haviam matado Guangrui. Li Biao foi então pregado a um cavalete de madeira e, depois de ter sido exposto em praça pública à zombaria de todos os transeuntes, foi esquartejado e teve a cabeça colocada em cima de uma estaca para todos verem. Liu Hong, por sua vez, foi levado ao local exato onde Chen Guangrui havia sido morto e seu coração e fígado foram arrancados e oferecidos como libação ali mesmo. Um escrito exaltando as altas qualidades de Chen Guangrui foi então queimado, e suas cinzas foram jogadas nas águas.

Incapazes de tirar os olhos do rio, os três começaram a choraram sem parar, e seus soluços ecoaram por quilômetros rio abaixo, alertando um yakṣha que patrulhava as águas. O yaksha pegou o espírito do escrito e o levou até o Rei Dragão, que o leu e imediatamente enviou um marechal tartaruga para buscar Guangrui. 

- Parabéns! - exclamou o rei, ao vê-lo. - Neste exato momento, sua esposa, seu filho e seu sogro estão oferecendo sacrifícios a você na margem do rio. Vou libertar seu espírito e assim você recuperará sua vida. Não quero, porém, que saia de mãos vazias, por isso imploro que aceite, como sinal de amizade e gratidão, esta pérola que concede todos os desejos (10), duas pérolas comuns, dez peças de seda de sereia (11) , e um cinto de jade incrustado de madrepérola. Hoje será um grande dia para você, pois voltará a se reunir com sua esposa, sua mãe e seu filho.

Guangrui agradeceu, emocionado, e o Rei Dragão ordenou a um yaksha que acompanhasse seu corpo até a foz do rio, onde se reuniria com seu espírito. O yaksha imediatamente cumpriu a ordem e deixou o palácio das águas.

Nesse exato momento, depois de chorar por seu marido por horas intermináveis, a senhora Yin tentou novamente o suicídio, atirando-se nas águas. Sua tentativa teria sido bem-sucedida, não fosse a intervenção de Xuanzang, que oportunamente a agarrou pela cintura. Enquanto os dois se debatiam, eles viram um corpo morto flutuando até a praia. A senhora Yin rapidamente se inclinou para dar uma olhada. Percebendo que era o cadáver de seu marido, ela intensificou seus urros de dor. Os que estavam ao seu redor voltaram-se para ela, pesarosos, e então viram, atônitos, que Guangrui lentamente abria os punhos e esticava as pernas. Logo todo o corpo começou a se mover e não demorou muito para que ele sentasse calmamente na praia, para espanto e consternação de todos os presentes. Guangrui abriu os olhos e, vendo a senhora Yin chorando, seu sogro, o primeiro-ministro e um jovem monge que ele não conhecia, perguntou:

- Por que vocês todos estão aqui? 


- Tudo isso começou - disse a senhora Yin - no momento em que os bandidos te espancam até a morte. Pouco tempo depois, dei à luz este nosso filho, que teve a enorme fortuna de ser educado pelo guardião do Monastério da Montanha de Ouro. Foi ele quem me apresentou e eu o mandei à procura do seu avô. Quando meu pai soube do ocorrido, foi à Justiça e conseguiu que um destacamento de tropas viesse prender os bandidos. Há menos de cinco minutos arrancamos o fígado e o coração do principal culpado e oferecemos a você como uma libação. Mas eu gostaria de saber como meu marido conseguiu voltar à vida?

- Tem a ver com a carpa dourada que comprei, quando nos hospedamos na Pousada das Dez Mil Flores. Como você deve se lembrar, eu a libertei. O que eu menos suspeitava é que aquele peixe era nada mais nada menos que o Rei Dragão. Assim que os bandidos me jogaram no rio, ele veio agradecido em meu socorro e agora restaurou meu espírito, enchendo-me de presentes preciosos, que trago aqui comigo. Eu não sabia que você tinha dado à luz. Quanto ao meu sogro, agradeço-lhe do fundo do coração por me vingar. A alegria que agora me invade é, francamente, inexprimível. Os tempos de sofrimento parecem ter passado, finalmente.

Quando os funcionários provinciais descobriram o que havia acontecido, eles se reuniram para parabenizá-lo. Agradecido, o primeiro-ministro ofereceu-lhes um esplêndido banquete, após o qual iniciou nesse mesmo dia a marcha de regresso, acompanhado de todas as suas tropas. Passando pela Pousada das Dez Mil Flores, o colaborador do imperador ordenou que o exército parasse, para que Guangrui e Xuanzang fossem procurar sua velha mãe. Na noite anterior, a mulher havia sonhado que uma árvore totalmente seca estava florescendo novamente e naquela mesma manhã ela ouviu as gralhas sussurrando incessantemente atrás de sua casa. Isso a fez pensar, animada:

- Será que meu neto está vindo me ver?

Ela mal tinha acabado de pensar nisso, quando pai e filho chegaram juntos. O jovem monge apontou para a anciã e disse, com um misto de orgulho e respeito:

- Aqui está minha avó.

Assim que Guangrui viu sua mãe, ele se curvou perante ela e a abraçou com ternura inexprimível. Mãe e filho choraram de alegria por muito tempo. Depois de contarem um ao outro o que havia acontecido, pagaram ao estalajadeiro o que lhe era devido e continuaram a viagem para a capital. A primeira coisa que Guangrui, sua esposa e sua mãe fizeram ao chegar à mansão do primeiro-ministro foi cumprimentar sua respeitável mulher, que  estava fora de si de tanta alegria. Ela chamou os criados e ordenou que preparassem um banquete como nunca havia sido visto em toda a cidade.

- É meu desejo - disse o primeiro-ministro na hora dos brindes - que este banquete receba o nome de Festa da Reunião, porque certamente o é e toda a nossa família participa de tão indescritível alegria.

Bem cedo na manhã seguinte, o Imperador dos Tang realizou sua audiência habitual e o ministro Yin se apresentou para informá-lo em tempo hábil sobre o que havia acontecido no curso de sua missão. Ele também recomendou que Guangrui recebesse um cargo compatível com suas muitas qualidades, com o que o imperador concordou, nomeando-o vice-chanceler do secretário de Estado. Dessa forma, ele acompanharia a corte aonde quer que fosse e se encarregaria de executar todas as suas decisões.

Xuanzang, determinado a trilhar os caminhos puros do Zen, foi enviado ao Monastério da Bênção Infinita para continuar sua vida de meditação e ascetismo. Em pouco tempo, no entanto, Wenjiao finalmente conseguiu consumar suas tentativas de suicídio, e Xuanzang voltou ao Monastério da Montanha Dourada para agradecer ao mestre Fa-Ming por tudo que havia feito por ele.

Não sabemos como as coisas se desenvolveram a partir de então. Quem quiser descobrir deve ouvir atentamente as explicações dadas no próximo capítulo.


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    Notas do Capítulo IX:

    1. A província de Shaanxi, onde ficava a antiga capital de Chang-An, é irrigada pelos rios Wei, Ching, Pa, Liao, Chü, Hao, Li e Chan, que perfazem um total de oito;
    2. Taizong foi o segundo imperador da dinastia Tang, extendendo seu reinado do ano de 627 até o ano de 649;
    3. Wei Zheng foi um dos grandes estadistas do início da dinastia Tang, famoso por discordar abertamente de algumas das decisões imperiais, o que não diminuiu a confiança de Taizong. Ele também foi o editor da história das dinastias Chou, Suei e Chi do Norte;
    4. Para obter o título de "ming-ching", ou entendido nos clássicos, era preciso passar por três testes diferentes. No primeiro, o candidato deveria decorar dez textos selecionados dos clássicos. No segundo, era necessário explicar oralmente o conteúdo de dez outros textos de origem confuciana. No terceiro, era necessário fazer uma apresentação de temas quentes da época ou relacionados, de alguma forma, à administração;
    5. Todos os documentos imperiais eram escritos em papel amarelo, pelo que esta cor passou a designar a mesma corte.
    6. Representante imperial. Para a eleição de tal cargo, eram levados em consideração tanto os conhecimentos jurídicos e administrativos quanto os conhecimentos literários;
    7. Na corte Tang haviam dois primeiros-ministros, um à direita e outro à esquerda do imperador.
    8. O número dez mil possui um sentido de totalidade;
    9. Quando os monges saíam para mendigar, sentavam-se à porta de potenciais doadores com uma tigela de arroz na cabeça;
    10. O Rei Dragão do Oceano possuía uma pérola mágica capaz de realizar todos os desejos;
    11. Segundo a lenda, não há seda de qualidade superior à tecida pelas sereias.


    • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
    • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
    fontes consultadas para a pesquisa:
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