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20 de novembro de 2023

A Jornada ao Oeste: Capítulo XV

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang

CAPÍTULO XV:


NA MONTANHA DA SERPENTE ENROSCADA, OS DEUSES OFERECEM SUA AJUDA SECRETA. NAS ÁGUAS AGITADAS DO NO RIO DA ÁGUIA AFLITA, O CAVALO DA VONTADE É DOMADO.


Por vários dias, o Peregrino e o monge caminharam sob um céu gelado típico do meio do inverno. Um vento frio soprava incessantemente, e em todos os lugares se viam as pontas dos pingentes de gelo. Seguindo um caminho sinuoso traçado entre precipícios e desfiladeiros, eles escalaram, um após o outro, os altíssimas cumes de uma cordilheira. Sanzang, que estava montado a cavalo, pareceu ouvir de repente o som distante de um rio. Ele se virou para o Peregrino e perguntou:

- De onde vem esse barulho, Wukong?

- Se não me engano - respondeu o Peregrino -, este lugar é chamado de Montanha da Serpente Enroscada. Nele está o Rio da Águia Aflita, e imagino que é o murmúrio de suas águas que estamos ouvindo.

Ele mal havia terminado de falar, quando alcançaram a margem de um curso d'água. Sanzang parou o cavalo e ficou admirando a esplêndida beleza do riacho. As águas que corriam pareciam surgir das nuvens. Seu murmúrio era tão intenso que podia ser ouvido à noite nos vales mais distantes. O sol pintava o rio de vermelho ao se pôr e o fazia parecer de jade ao amanhecer.

O monge e o macaco estavam observando atentamente as águas quando, de repente, um dragão emergiu delas, lançando-se como uma flecha em direção a Sanzang. 

Felizmente, o Peregrino agiu rapidamente, largando a bagagem no chão e lançando-se sobre seu mestre, arrastando-o ladeira acima. O dragão não conseguiu alcançá-los, mas engoliu o cavalo, com rédeas e tudo, e retornou tranquilamente às águas. O Peregrino deixou o monge em um local seguro e voltou em busca do cavalo e das bagagens. As bagagens estavam espalhadas pelo chão, mas não havia sinal do animal.

- Não há nenhum sinal desse maldito dragão - disse quando voltou ao lado de seu mestre. - O pior é que ele assustou o cavalo, e não o vejo em lugar nenhum.

- O cavalo, você diz? - exclamou Sanzang, alarmado. - Temos que encontrá-lo imediatamente.

- Acalme-se, por favor - replicou o Peregrino. - Ele não pode ter ido muito longe. Vou ver se o encontro - e saltou pelos ares com um pulo impressionante. 

Ele examinou toda a paisagem com seus olhos flamejantes, mas não encontrou nenhum rastro do animal. Então ele desceu das nuvens e informou seu mestre, dizendo:

- Não consegui ver nosso cavalo em lugar nenhum, então deduzo que ele deve ter sido devorado pelo dragão.

- Essas bestas têm uma boca tão grande assim? - perguntou Sanzang, incrédulo. - É impossível que ela tenha engolido o cavalo com arreios e tudo. Não, não! É mais provável que ele tenha se assustado e esteja correndo descontrolado pelo vale. Por que você não dá outra olhada?

- Você não têm ideia dos meus poderes - respondeu o Peregrino. - Meus olhos conseguem distinguir o bem do mal em um raio de mil quilômetros. A essa distância, eu posso até ver uma libélula abrir as asas. Pelo que eu saiba, um cavalo é muito maior, então posso lhe garantir que ele não está em nenhum vale.

- Como vou continuar a jornada sem o cavalo? - lamentou-se Sanzang. - Há milhares de colinas e riachos entre essas montanhas e as Terras do Oeste. Nunca conseguirei chegar a pé! - e começou a chorar.

Ao ver suas lágrimas, o Peregrino ficou furioso e o repreendeu, dizendo:

- Pare de chorar como uma criança! Sente-se aqui e não se mexa! Vou ver se encontro essa besta e pedirei a ela que nos devolva o cavalo. Assim, você deixará de se preocupar e se comportará como realmente deve.

E onde você irá procurá-lo? - exclamou Sanzang, agarrando-se nervoso a ele. - Imagine que ela apareça enquanto você estiver fora. Ela me devoraria sem piedade, e eu, além do cavalo, perderia também a vida.

Ao ouvir isso, o Peregrino ficou ainda mais furioso.

- Você é um covarde! Um verdadeiro covarde! - gritou com voz de trovão.  Você quer viajar a cavalo, mas ao mesmo tempo não me deixa partir em busca dele. Em vez disso, prefere sentar aqui e envelhecer cuidando de nossa bagagem?

Enquanto ele gritava mais alto, ouviu alguém dizer do alto:

- Não fique tão furioso, Grande Sábio, e não grite assim com o irmão do Imperador dos Tang. Somos um grupo de deuses enviados pela Bodhisattva Guanyin para protegê-los em sua missão de buscar as escrituras.

Ao ouvir isso, o monge se prostrou no chão, enquanto o Peregrino perguntava, sem se mover do lugar:

- Vocês se importariam de dizer seus nomes para que saibamos com quem estamos lidando?

- Nós - responderam imediatamente - somos os Seis Deuses da Luz e os Seis Deuses das Trevas, os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais, os Quatro Sentinelas e os Dezoito Protetores dos Mosteiros. Nos revezamos para que vocês não sofram nenhum mal.

- Quem está de serviço hoje? - perguntou o Peregrino novamente.

- Os Deuses da Luz e das Trevas - responderam eles. - Depois, será a vez dos Sentinelas e dos Protetores. Os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais estão sempre de serviço, com exceção do Guardião da Cabeça de Ouro.

- Nesse caso - concluiu o Peregrino -, que os Seis Deuses das Trevas, o Sentinela do Dia e os Guardiões continuem protegendo meu mestre. Os outros podem se retirar. Enquanto isso, irei em busca esse maldito dragão e pedir que nos devolva o cavalo.

Os deuses aceitaram a sugestão, e Sanzang pareceu finalmente acalmar-se. Ele sentou-se sobre uma rocha e implorou ao Peregrino que tivesse cuidado.

- Não se preocupe - replicou o Rei dos Macacos, arregaçando as mangas de sua túnica de seda e pele de tigre e dirigindo-se em direção ao riacho com o bastão de ferro nas mãos. Assim que chegou à margem, ele montou em uma nuvem e começou a gritar, suspenso sobre a água:

- Lagarto sem princípios, me devolva o cavalo imediatamente!

O dragão estava deitado no fundo do rio, cultivando seu espírito e nutrindo sua natureza, mas ao ouvir alguém exigindo de tal maneira a devolução do cavalo, não pôde conter seu orgulho e imediatamente se levantou. Como uma flecha, abandonou seu esconderijo aquático e perguntou, mal-humorado:

- Quem ousa me insultar dessa maneira?

- Devolva-me imediatamente o cavalo! - exigiu o Peregrino furioso, desferindo um golpe terrível com seu bastão de ferro na cabeça da besta. O dragão se esquivou e respondeu com um golpe não menos feroz de suas garras e mandíbulas.

Os séculos jamais testemunharam uma batalha mais violenta do que a que se desenrolou nas margens do riacho. O dragão manejava suas garras com maestria, encontrando seu equivalente na forma como o macaco usava o seu bastão de ferro. Ambos eram criaturas formidáveis, como evidenciavam os enormes bigodes do dragão, firmes e belos como fios de jade, e os olhos brilhantes do macaco, cintilando como lâmpadas ou como o reflexo do ouro. O dragão exalava uma espécie de fumaça multicolorida pelas narinas, que por sua vez era dissipada pelo vento levantado pelo macaco com seu bastão. Apesar de tudo, eles se assemelhavam como duas gotas d'água, pois um era um monstro que desafiara os deuses, e o outro era um ser amaldiçoado que trouxera desonra a seus pais.. Agora, ambos estavam determinados a obter a vitória, liberando seu poder indescritível.

Atacando e recuando, eles testaram repetidamente suas armas, até que finalmente o dragão se rendeu à exaustão e não pôde continuar lutando. Compreendendo que não havia mais nada a fazer, ele deu meia-volta e mergulhou na água como uma flecha, se refugiando no leito do riacho. Os insultos do Rei dos Macacos não adiantavam de nada. O dragão estava determinado a não sair novamente e fez de conta que estava surdo. 

O Peregrino não teve outra escolha senão retornar ao lado de Sanzang, dizendo:

- Fiz o que pude, mestre. Através de insultos, arranquei esse monstro de seu esconderijo, mas após lutar comigo por muito tempo, fugiu apavorado, refugiando-se no rio. Duvido que ele volte a sair, pois sabe que, se o fizer, encontrará uma morte certa.

- Você tem certeza de que ele devorou o cavalo? - perguntou Sanzang.

- Claro que sim! - afirmou o Peregrino com determinação. - Se não o tivesse feito, não teria medido forças comigo.

- Quando você matou o tigre - comentou Sanzang, zombeteiro -, disse que era capaz de domar dragões e bestas. Por que está encontrando tanta dificuldade em dominar este?

O macaco não estava acostumado a que duvidassem de seus poderes e, levantando-se, exclamou ofendido:

- Não diga mais nenhuma palavra! Agora mesmo vou mostrar a você do que sou capaz.

Com dois saltos, chegou à margem do rio e, usando sua magia para perturbar rios e mares, transformou as águas claras do Rio da Águia Aflita na turva corrente do Rio Amarelo durante a maré alta. Isso incomodou tanto o dragão que ele não conseguia repousar no fundo do rio por um único momento. Desanimado, pensou consigo mesmo:

- Assim como uma bênção nunca se repete, o infortúnio nunca vem sozinho! Faz apenas um ano que me refugiei aqui, fugindo da execução decretada contra mim pelo Céu, e agora me deparo com um monstro miserável que só busca a minha ruína.

Quanto mais pensava nisso, mais nervoso ficava. Finalmente, não conseguiu suportar mais e, rangendo os dentes ameaçadoramente, saltou para fora da água e perguntou, mal-humorado:

- Que tipo de monstro é você e de onde vem para estar empenhado em me arruinar?

- Isso não é da sua conta - respondeu o Peregrino. - Tudo o que desejo é que você me devolva o cavalo. Se fizer isso, juro que pouparei sua vida.

- Isso é impossível! - replicou o dragão. - Eu o engoli, e ele já está em meu estômago. Como posso devolvê-lo? Mesmo que quisesse, não poderia fazer isso.

- Se você não devolver o cavalo - repetiu o macaco -, terá que lidar com este bastão de ferro. Imagino que você será capaz de encontrar uma solução, já que sua vida está em jogo.

Eles travaram um novo combate abaixo da crista da montanha. Porém, após trocarem alguns golpes, o dragão não conseguia mais suportar os ataques. Após sacudir o seu corpo, ele instantaneamente se transformou em uma pequena cobra d'água, e se contorceu entre a vegetação da margem. 

O Rei dos Macacos afastou a grama com o seu bastão de ferro, mas não conseguiu encontrar nenhum rastro do animal. Isso o enfureceu tanto que os Três Vermes (1) de seu corpo explodiram, e começou a expelir fumaça pelas sete aberturas de seu corpo. Ele recitou então um feitiço que começava com o mantra "om", e instantaneamente apareceram o espírito local e o deus da montanha. Após saudá-lo respeitosamente, disseram:

- Assim que nos foi possível, atendemos ao seu chamado.

- Isso é verdade - admitiu o Peregrino -, mas estou tão furioso que gostaria de bater cinco vezes nas palmas das mãos de vocês com meu bastão.

- Visto que não fizemos nada - suplicaram -, deveria ser mais benigno conosco. Além disso, Grande Sábio, temos algo para lhe dizer.

- Do que se trata? - perguntou o Peregrino.

- Nada realmente importante - responderam eles. - Apenas não sabíamos que você tinha sido libertado, e é por isso que não viemos antes para dar as boas-vindas. Pedimos, portanto, que perdoe tal descortesia.

- Está bem, está bem. Desta vez, não os castigarei - concluiu o Peregrino. - Mas gostaria de lhes fazer uma pergunta. Vocês sabem de onde vem o Dragão da Torrente da Águia Aflita e por que ele engoliu o cavalo do meu mestre?

- O que você quer dizer com isso de cavalo do seu mestre? - perguntaram os dois deuses, surpresos. - Você sempre foi um imortal de invejável posição e nunca se submeteu a ninguém no céu ou na terra. Como é que agora está mencionando um mestre?

- Ao que parece, vocês não estão cientes do que aconteceu - respondeu o Peregrino. - Nos últimos quinhentos anos, fui castigado pelo céu por ser orgulhoso e arrogante. Felizmente, a Bodhisattva Guanyin me fez voltar ao caminho certo e prometeu me libertar através de um monge da corte dos Tang, a quem devo acompanhar como discípulo até o Paraíso Ocidental para obter as autênticas escrituras de Buda. Precisamente, ao passar por aqui, meu mestre ficou sem cavalo.

- Isso explica tudo - exclamaram ambos os deuses ao mesmo tempo. - De qualquer forma, é estranho que seu mestre tenha perdido o cavalo aqui, porque este rio não está enfeitiçado. O único problema é que ele é muito largo e profundo, e suas águas são tão claras que se pode ver o fundo sem dificuldade alguma. Tanto que as águias e outras aves de grande porte não se atrevem a voar sobre ele, pois ao se verem refletidas na água, pensam que são outros animais da mesma espécie e se lançam contra o rio. É daí que vem o seu nome, pois presumimos que não ignorais que este é o Rio da Águia Aflita. No entanto, há alguns anos, a Bodhisattva Guanyin passou por aqui em busca de um Peregrino e, depois de salvar um dragão da morte, ordenou-lhe que esperasse por sua chegada, proibindo-lhe ao mesmo tempo fazer mal a alguém. Só lhe foi permitido chegar até a margem e caçar algumas aves ou antílopes quando estivesse com fome. O resto do tempo deveria ser gasto meditando e fazendo penitência. Estranha-nos que ele tenha sido descortês com você, Grande Sábio.

- No início - comentou o Peregrino -, ele mediu forças comigo, mas só conseguiu resistir a dois ou três ataques. Depois, ao perceber que estava em clara desvantagem, escondeu-se no rio e não ousou sair mais. Para tirá-lo do fundo, tive que usar a magia para perturbar rios e mares, mas depois de uma pequena luta, da qual, é claro, saí vencedor, ele se transformou em uma serpente d'água e desapareceu entre a grama. Imediatamente tentei agarrá-lo, mas não pude encontrar nem rastro dele.

- Deverias saber, Grande Sábio - informou o espírito local -, que ao longo destas margens há inúmeros buracos e pequenos desaguadouros, pelos quais o rio se comunica com muitos de seus afluentes. O mais provável é que o dragão tenha entrado em um deles. Se quiserdes capturá-lo, o melhor que podeis fazer, em vez de ficar irritado inutilmente, é pedir a Guanyin que venha, e eu vos asseguro que a besta se renderá sem necessidade de mais lutas.

Ao ouvir isso, o Peregrino os conduziu até Sanzang e contou ao monge o que eles haviam dito.

- Mas, se você vai em busca da Bodhisattva - replicou Sanzang, tremendo de inquietação -, é muito provável que eu morra de fome ou de frio. Porque  imagino que irá demorar bastante para voltar, não é?

Mal tinha terminado de dizer isso, quando o Guardião da Cabeça de Ouro levantou a voz e disse do alto:

- Não há necessidade de que você vá, Grande Sábio. Eu irei buscar a Bodhisattva.

- Obrigado por tomar essa providência - gritou o Peregrino, satisfeito. - De qualquer forma, agradeceria se você se apressasse um pouco.


Sem perder tempo, o Guardião montou em uma nuvem e voou diretamente para os Mares do Sul. O Peregrino então pediu ao deus da montanha e ao espírito local que protegessem seu mestre enquanto o Guardião do Dia procurava alguma comida vegetariana, e ele vigiava a margem do rio.

O Guardião da Cabeça de Ouro não demorou a chegar aos Mares do Sul. Após descer da nuvem, dirigiu-se diretamente para a gruta de bambu vermelho que se abria na Montanha Potalaka e pediu a Muzha e aos guardiões que anunciassem imediatamente sua chegada.

- Pode-se saber por que vieste? - perguntou a Bodhisattva.

- O monge Tang teve seu cavalo devorado no Rio da Águia Afligida, localizado na Montanha da Serpente Enroscada, e o Grande Sábio enfrenta um problema de difícil solução - respondeu o Guardião. - Ele deseja punir o responsável, mas os deuses do lugar informaram que quem devorou o cavalo foi um dragão enviado vosso e eles não ousam dar-lhe o castigo merecido. Ele solicita, portanto, vossa colaboração para continuar com a jornada.


- Esse dragão - comentou a Bodhisattva - é um dos filhos de Ao-Jun, o senhor do Oceano Ocidental. Seu próprio pai o acusou de traição por ter incendiado o palácio em que viviam e destruído todas as pérolas que haviam nele. Um tribunal celestial o condenou à morte, mas eu consegui que o Imperador de Jade o perdoasse, para que ele ajudasse o monge Tang em sua longa jornada para o oeste. Não entendo como, em vez disso, ele devorou o cavalo. Acho que é melhor eu ir ver o que aconteceu.

A Bodhisattva desceu do seu pedestal de lótus e saiu da gruta. Ela então montou na mesma nuvem que o Guardião e cruzou com ele os Mares do Sul. Desta extraordinária façanha, nos restou um poema que diz:
"Buda pregou a Verdade Suprema, que a Deusa posteriormente proclamou na venturosa cidade de Chang-An. Seu conteúdo era tão maravilhoso que o Céu e a Terra tremeram de alegria. Que outra doutrina poderia, de fato, salvar os espíritos dos condenados? A Cigarra de Ouro caiu na Roda da Transmigração, mas Xuanzang redimiu em dobro seus erros passados. Ao passar pelo Rio da Águia Aflita, o filho de um dragão bloqueou seu caminho. No entanto, a besta se transformou em cavalo e encontrou o perdão de seus pecados anteriores."
A Bodhisattva e o Guardião não demoraram a chegar à Montanha da Serpente Enroscada. Da nuvem, viram o Peregrino proferindo insultos ao rio. A Bodhisattva pediu ao Guardião que fosse buscá-lo, e ele obedeceu sem hesitar. Descendo da nuvem e colocando-se exatamente acima dele, anunciou:

- A Bodhisattva acaba de chegar!

O Peregrino elevou-se no ar com um salto e enfrentou-a, dizendo:

- Não entendo como te chamam de Mestra dos Sete Budas e a Fonte da Misericórdia. Se fosse verdade, você não teria tentado me prejudicar com truques.


- Seu insolente pi-ma-wen, ignorante de traseiro vermelho! - exclamou a Bodhisattva. Com muito esforço, selecionei o homem ideal para ir em busca das escrituras, a quem pedi para salvar sua vida, e você, em vez de agradecer, reclama como se eu não tivesse lhe  feito nenhum favor.

- Você salvou minha vida. Eu reconheço - admitiu o Peregrino. - Mas, se realmente quisesse me libertar, teria deixado eu me divertir à minha maneira, sem me torturar como a um criminoso. Outro dia, por exemplo, quando estávamos sobre o oceano, você poderia ter me aconselhado a servir ao monge Tang com mais dedicação, e isso teria bastado. Por que teve que trazer essa maldita coroa de ouro aqui e obrigá-lo a colocá-la em mim com o único propósito de me fazer sofrer? Você sabia que ela iria enraizar na minha cabeça. Mas isso não foi o suficiente para você! Ensinaste ao meu mestre um feitiço para que me atormentasse quando quisesse. Se isso não é tentar me prejudicar, me diga o que é.

- Cuidado com o que diz! - exclamou a Bodhisattva, rindo. - Você não ouves ninguém e não se interessa pelos frutos da verdade. Se eu não tivesse concebido essa forma de te controlar, certamente a essa altura você já teria se rebelado novamente contra o Céu e ninguém poderia te dominar. Além disso, a dor lhe será de grande ajuda para entrar no templo do Yoga.

- Está bem - replicou o Peregrino. - Sem dúvida, tudo tem seu aspecto positivo. No entanto, por que trouxeste esse maldito dragão aqui? Não sabia que ele podia engolir o cavalo do meu mestre? Tudo o que aconteceu é culpa sua. Afinal, quem colabora com um criminoso é tão digno de punição quanto ele.


- Eu mesma pedi ao Imperador de Jade que perdoasse esse dragão com o único propósito de que ele ajudasse o monge - defendeu-se a Bodhisattva. - Até agora, pelo que eu saiba, nenhum cavalo mortal foi capaz de atravessar dez mil rios e escalar mil cordilheiras. Como vocês pensavam em chegar à Montanha do Espírito, às próprias terras de Buda, com um simples cavalo? É absolutamente impossível! Apenas um dragão transformado em cavalo pode fazer isso. Agora você entende por que eu o trouxe aqui?

Compreendo seu ponto de vista - concordou o Peregrino. - Mas ele ficou tão assustado que não ousa sair do esconderijo onde se refugiou. Você pode me dizer o que podemos fazer para fazê-lo sair? 

A Bodhisattva se virou para o Guardião e ordenou:

- Vá até a margem do rio e diga simplesmente isto: "Saia, filho do Dragão Ao-Jun. Aqui está a Bodhisattva dos Mares do Sul e quer vê-lo".

O Guardião assim fez, e instantaneamente as águas do rio pareceram ganhar vida. O dragão saltou para a margem e assumiu a forma de um homem. Em seguida, montou em uma nuvem e, aproximando-se da Bodhisattva, cumprimentou-a, dizendo:

- Agradeço novamente por ter salvado minha vida. No entanto, até agora, a pessoa que você me anunciou ainda não passou por aqui.


- Você está enganado, dragão - corrigiu-o a Bodhisattva. - Aquele que você vê ali é seu discípulo, então ele não pode estar muito longe.

- Aquele? - exclamou o dragão, incrédulo. - Aquele é meu inimigo. Ontem eu estava com muita fome e comi o cavalo dele. Ao vê-lo, ele ficou tão furioso que tentou me matar. Eu me defendi o melhor que pude, mas sua força é extraordinária e ele acabou me derrotando. O que mais eu podia fazer para salvar minha vida além de me esconder? Eu não sabia que ele tinha alguma ligação com você. Ele nunca mencionou nada sobre escrituras.

- Como eu faria isso se você nem sequer perguntou como me chamo? - repreendeu-o o Peregrino.


- Isso não é verdade! - defendeu-se o dragão. - Eu perguntei, mas você me respondeu que não era da minha conta, que a única coisa que você queria era que eu devolvesse o cavalo. Pelo que me lembro, você nunca mencionou a palavra Tang.

Este macaco só confia em si mesmo! - exclamou a Bodhisattva. - Quando você vai começar a confiar um pouco mais nos outros? Lembre-se - acrescentou, virando-se para o Peregrino - que ao longo da jornada, duas ou três outras pessoas se unirão a você. Então, se você quiser evitar problemas, é melhor mencionar o assunto das escrituras assim que lhe perguntarem o nome. Entendido?

O Peregrino aceitou o conselho de bom grado. A Bodhisattva então se aproximou do dragão e arrancou o colar de pérolas brilhantes que ele usava no pescoço. Em seguida, inseriu o galho de salgueiro que sempre carregava na mão em seu vaso de orvalho, doce como a ambrosia, e aspergiu o corpo do dragão. Por último, soprou sobre ele e ordenou:

- Transforme-se!


O dragão se transformou instantaneamente em um cavalo exatamente igual ao que havia engolido, e a Bodhisattva ordenou, severa:

- Você deve fazer o que estiver ao seu alcance para superar todos os obstáculos que encontrará. Lembre-se de que, se não poupar esforços, deixará de ser um dragão comum e seu corpo se transformará em ouro, assim como os Frutos da Verdade.


Em sinal de concordância, o dragão balançou a cabeça e mordeu a rédea. A Bodhisattva pediu então a Wukong que o levasse até Sanzang e se despediu dele, dizendo:

- Parece que é hora de eu voltar ao meu oceano. 

Mas o Peregrino agarrou-a e exclamou, angustiado:

- Não posso continuar! Não posso fazer isso! O Caminho para o Oeste está cheio de grandes perigos e esse monge é tão lento que não sei quando chegaremos. Além disso, há tantas desgraças nos esperando que é provável que eu perca a vida nesta viagem. E tudo isso para quê? Não! Eu não quero continuar!


- Há muitos anos - respondeu a Bodhisattva -, quando você ainda não havia adquirido forma humana, estava ansioso para receber a iluminação. Não entendo como você pode mostrar tão pouco interesse pela verdade agora que, finalmente, escapou do castigo divino. Você deve saber que o nirvana que proclamamos em nossos ensinamentos não pode ser obtido sem fé e perseverança. Se, em algum momento da jornada, sua vida estiver em perigo, não hesite em recorrer ao paraíso, e eu garanto que ele o libertará. Não esqueça que até a Terra virá em seu auxílio, e, se isso não for suficiente, eu mesma correria para resgatá-lo. Aproxime-se, que vou conceder a você poderes maiores do que já possui.

Ela então arrancou três folhas de seu galho de salgueiro e, após colocá-las no pescoço do Peregrino, gritou:

- Transformem-se! - e imediatamente eles se transformaram em três fios de cabelo com o poder de proteger a vida.


- Quando se encontrar em uma situação desesperadora - acrescentou, compassiva -, use-os, e eu garanto que você será  libertado instantaneamente.

O Peregrino agradeceu emocionado pelo valioso presente, mas antes que pudesse dizer uma palavra, um redemoinho de vento perfumado levou a Bodhisattva de volta para Potalaka.


Quando o Peregrino se recuperou de sua surpresa, pegou as rédeas do cavalo e entregou a Sanzang, dizendo:

- Aqui está sua montaria, mestre.

- Onde você o encontrou? - perguntou Sanzang. - Além disso, como é possível que ele esteja mais gordo e mais forte do que antes?

-Você realmente não está ciente do que está acontecendo ao seu redor! - exclamou o Peregrino. - Você não tem olhos? Claro que este é outro cavalo! O Guardião da Cabeça de Ouro foi buscar a Bodhisattva, que transformou o dragão neste animal, idêntico ao que você tinha antes, exceto pelos arreios, que se perderam para sempre.


- Onde está a Bodhisattva? - perguntou Sanzang novamente. - Pelo menos devo agradecê-la.

- Não se preocupe com isso - aconselhou o Peregrino. - É provável que a Bodhisattva já tenha chegado aos Mares do Sul.

Decepcionado, Sanzang pegou um punhado de terra e, inclinando-se para o sul, o espalhou no chão como se fosse incenso. 


Enquanto isso, o Peregrino se despediu do deus da montanha e do espírito local e deu as devidas ordens aos Guardiões e Sentinelas para continuarem a viagem. Ele então tentou ajudar o mestre a montar, mas Sanzang protestou, dizendo:

- Como vou montar em um cavalo sem arreios? Acho que o mais sensato é que atravessemos o rio e decidamos depois o que devemos fazer.

- Você é a pessoa menos prática que já vi em minha vida, mestre! - exclamou o Peregrino, zombeteiro. - Você pode me dizer como vai encontrar um barco em um lugar como este? Se quiser atravessar o rio, o mais normal é fazê-lo montado em seu cavalo. Ele viveu aqui por muito tempo e conhece perfeitamente essas águas. Não acha?

Sanzang teve que admitir que ele estava certo, então não teve outra opção senão montar no cavalo sem sela. Enquanto fazia isso, o Peregrino pegou a bagagem e se dirigiu à margem do rio, onde viram um velho pescador remando rio abaixo em uma jangada de troncos. Wukong sacudiu as mãos e gritou:

- Ei, pescador, venha aqui! Somos das Terras do Leste e estamos em busca das escrituras sagradas. Meu mestre não se atreve a cruzar o riacho, então agradeceríamos se você nos levasse para a outra margem em sua jangada.

O pescador conduziu a embarcação até a margem, e o Peregrino ajudou seu mestre a subir nela, embarcando a bagagem e o cavalo em seguida. O velho pescador remou com força, e a jangada se lançou como uma flecha através do Rio da Águia Aflita, atracando pouco tempo depois na outra margem. Agradecido, Sanzang pediu ao Peregrino que pegasse algumas moedas de uma das bolsas e as desse ao pescador, mas o mesmo recusou aceitá-las, dizendo enquanto enfiava a vara novamente na água:

- Eu não quero dinheiro. Na verdade, eu não preciso - e desapareceu rio abaixo. Apesar disso, Sanzang continuou com as mãos cruzadas em sinal de gratidão. O Peregrino olhou para ele, surpreso, e disse:

- Não há necessidade de ser tão cerimonioso, mestre. Ou será que você não o reconheceu? Ele é o deus deste rio e estava nervoso por não ter vindo nos dar as boas-vindas antes. O traquina temia que eu fosse dar uma surra nele, por isso não aceitou o dinheiro. É lamentável, mas neste mundo ninguém faz nada desinteressadamente.

Sanzang não sabia se acreditava ou não. Montou novamente no cavalo e continuou seu caminho, pronto para chegar o mais rápido possível à Montanha do Espírito. O sol logo se pôs, e gradualmente as sombras cobriram a paisagem. A lua começou a surgir por entre o véu das nuvens, revelando um céu carregado de geada e frio. O uivo do vento se juntava às baixas temperaturas, fazendo tremer os corpos. Os pássaros voltavam para seus ninhos, tremendo como se fossem folhas secas. Ao longe, o crepúsculo tingia de vermelho as montanhas, enquanto a força do vento arrancava gemidos dos galhos nas florestas próximas. De vez em quando, ouviam-se os gritos de um macaco solitário. A solidão parecia ter se apoderado, de fato, de toda a terra. Nenhum viajante se aventurava a transitar nessas horas pelos caminhos, e no mar não havia mais nenhum barco.

Montado no cavalo, Sanzang analisou a distância e conseguiu vislumbrar ao longe a inconfundível silhueta de um vilarejo.

- Wukong - disse entusiasmado -, um pouco mais à frente há um grupo de casas. Podemos nos aproximar delas e pedir abrigo para esta noite.

- Essas não são casas comuns - comentou o Peregrino, olhando para cima.

- O que faz você pensar assim? - perguntou Sanzang.

- Se fossem - respondeu o Peregrino -, não teriam essas decorações de peixes voadores e bestas reclinadas. Deduzo, portanto, que seja um templo ou um mosteiro.

Falando dessa forma, logo chegaram à porta principal daquele harmonioso conjunto. Ao desmontar, Sanzang viu que no dintel estava escrito em letras grandes: "Santuário de Li-She". Entraram e logo se depararam com um ancião que usava um rosário no pescoço. O monge juntou as mãos em sinal de cumprimento e os recebeu, dizendo:

- Entre, mestre, e sente-se.

Depois de retribuir a saudação, Sanzang dirigiu-se à sala principal para prestar seus respeitos aos deuses. Enquanto isso, o ancião ordenou a um jovem que servisse o chá.

- Por que esse lugar se chama Santuário de Li-She? - perguntou Sanzang, após concluir suas orações.

- Esta região - respondeu o ancião - faz parte do Reino de Hamil, que, como vocês sabem, é governado pelos bárbaros ocidentais. Atrás do santuário há uma pequena aldeia, que deve sua existência aos habitantes que são tão piedosos que venderam tudo o que tinham para construí-la. O caractere Li refere-se precisamente à terra onde a aldeia está situada, e She é o nome do deus local. Os camponeses semeiam na primavera, aram no verão, colhem no outono e armazenam no inverno, mas no início de cada estação todas as famílias trazem uma vaca, uma ovelha, um porco (2) e incontáveis flores e frutas, e os oferecem aos deuses. Dessa forma, eles conseguem acumular boa sorte e obter colheitas abundantes, juntamente com esplêndidos exemplares de animais domésticos (3).

Sanzang balançou a cabeça em sinal de aprovação e disse:

- O ditado está certo ao afirmar: "A três quilômetros de sua casa, os costumes são totalmente diferentes". Na região de onde viemos, as famílias não são tão piedosas quanto aqui.

- De onde você é, mestre? - perguntou o ancião.

- Fomos enviados pelo Grande Imperador dos Tang ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras de Buda - respondeu Sanzang. - Ao passar por seu santuário, já estava escurecendo, então decidimos pedir abrigo em um lugar tão sagrado como este. Assim que amanhecer, continuaremos nossa jornada.

- Sejam bem-vindos a este humilde recinto! - exclamou o ancião, encantado. Ele chamou então o jovem e ordenou que preparasse algo para comer, o que Sanzang agradeceu imensamente.

O Peregrino, muito prático, viu uma corda de roupas pendurada perto do beiral. Ele a pegou sem pedir permissão, cortou-a ao meio e usou uma das pontas para amarrar o cavalo.

- Onde você roubou esse cavalo? - perguntou novamente o ancião, soltando uma risada.

- Tenha cuidado com o que diz, ancião - repreendeu o Peregrino. - Somos monges a caminho das terras de Buda e não costumamos roubar nada.

- Se você não roubou - insistiu o ancião -, por que ele não tem arreios? Além disso, você não pode negar que acabou de se apropriar da minha corda de secar roupas.

- Este meu discípulo é sempre impulsivo assim - disse Sanzang, tentando se desculpar. - Se você queria amarrar o cavalo - acrescentou, virando-se para Wukong -, por que não pediu uma corda a este cavalheiro? Por que precisava pegar a corda que ele usava para pendurar as roupas?

Depois de repreender o Peregrino, ele se desculpou com o ancião, dizendo:

- Peço que não o leve a mal. Ontem, ao chegar ao Rio da Águia Aflita, vindo do leste, eu tinha um cavalo completamente equipado, mas apareceu um dragão e o engoliu com rédeas e tudo. Felizmente, meu discípulo tem poderes especiais e deu um jeito de trazer a Bodhisattva Guaniyn e dominar a besta. Foi ela quem transformou o dragão, fazendo-o assumir a forma que meu cavalo tinha, caso contrário teria sido praticamente impossível para mim continuar a jornada para o Paraíso Ocidental. Como o rio do qual estou falando fica a menos de um dia de seu santuário, ainda não tivemos tempo de encontrar outros arreios.

- Não se preocupe - respondeu o ancião. - Velhos como eu gostam de tirar sarro das pessoas. De qualquer forma, eu não fazia ideia de que seu discípulo levava tudo tão a sério. Quando jovem, eu tinha algum dinheiro e aproveitei ao máximo o prazer de cavalgar. Depois, a desgraça cruzou meu caminho, e entre mortes e incêndios, fiquei sem nada. Ainda bem que agora sou encarregado deste santuário e vivo com o que as pessoas da aldeia me oferecem quando vêm queimar incenso. Aliás, ainda guardo alguns arreios, que valorizo muito e dos quais nunca quis me desfazer, apesar da pobreza. Não os venderia por nada neste mundo. No entanto, uma vez ouvido como a Bodhisattva os libertou das armadilhas desse dragão e depois o transformou em um cavalo para que pudessem continuar a jornada de vocês, eu acho que a melhor coisa que posso fazer é presenteá-los. Amanhã eu os buscarei, porque agora já está um pouco tarde.

Sanzang não sabia como agradecê-lo. Pouco tempo depois, o jovem trouxe o jantar, e todos se sentaram à mesa. Enquanto saboreavam a comida, o jovem acendeu tochas e preparou as camas. Os viajantes estavam tão cansados que não demoraram a deitar-se. Na manhã seguinte, o Peregrino disse a seu mestre assim que se levantou:

- Não se esqueça de pedir ao ancião os arneses que ele prometeu ontem. Seria uma pena renunciar a eles.

Ele mal havia terminado de falar quando o ancião apareceu com uma sela, rédeas e tudo o mais necessário para cavalgar. Com muito cuidado, ele colocou tudo no chão e disse:

- Mestre, aqui estão os arneses que prometi a você. São todos seus.

Sanzang aceitou, satisfeito, o presente e pediu ao Peregrino que selasse o animal. Wukong pegou os arreios e os examinou um por um minuciosamente. Eram magníficos, de fato. A sela havia sido cuidadosamente trabalhada e estava cravejada de estrelas de prata. Sua porção superior brilhava de uma maneira muito peculiar, pois fora confeccionada com fios de ouro. As mantas eram de lã finíssima, e as rédeas eram feitas de três cordões grossos de seda roxa. O couro das bridas, por sua vez, tinha a forma de flores, das quais pendiam pequenas figurinhas de ouro representando bestas dançantes. O aço dos anéis e do freio era de primeiríssima qualidade e era adornado com borlas de um tecido tão especial que jamais se molhavam.

Embora não tenha dito nada, o Peregrino sentiu-se profundamente satisfeito com o esplêndido presente. Começou a selar o animal e constatou que os arneses pareciam ter sido feitos sob medida. Enquanto isso, 
Sanzang inclinou-se em agradecimento ao ancião, que apressou-se em obrigá-lo a levantar a cabeça, dizendo:

- Não precisa me agradecer. Afinal, o que é isso para uma pessoa como você?

O ancião, de qualquer forma, não insistiu para que ficassem no monastério. Pelo contrário, instou Sanzang a partir o mais rápido possível. Não querendo parecer descortês, o monge se dirigiu até a porta e subiu na sela, enquanto o Peregrino o seguiu com a bagagem nas costas. Inesperadamente, o ancião tirou uma fusta da manga, com a empunhadura forrada de couro e a correia feita com ligamentos de tigre, e, correndo em direção ao caminho, ofereceu-a a Sanzang, dizendo:

- Eu tinha esquecido da fusta. Espero que você não a recuse.

- Muito obrigado pelo seu presente -
respondeu Sanzang, aceitando-o. 

Ele mal terminou de falar quando o ancião desapareceu. Surpreso, o monge virou-se para o Santuário de Li-She e viu apenas um terreno plano e totalmente vazio.

- Monge santo -
ouviu-se dizer então do céu -, lamento não poder recebê-los melhor. Sou o espírito local da Montanha Potalaka e fui enviado pela Bodhisattva para presenteá-los com os arneses. Sejam diligentes em sua jornada e continuem a viagem para o Oeste.

Sanzang ficou tão desconcertado que desceu imediatamente do cavalo e, inclinando-se para o céu, desculpou-se, dizendo:

- Perdoem-me por não ter reconhecido em vocês a face da divindade, mas não esqueçam que meus olhos e meu corpo são mortais. Desculpem minha cegueira e agradeçam à Bodhisattva por mim - e começou a bater repetidamente com a testa no chão.

Em pouco tempo, o Grande Sábio soltou uma gargalhada e, aproximando-se de seu mestre, ajudou-o a se levantar, dizendo:

- Pode me dizer o que está fazendo? Esse deus já foi embora há muito tempo. Por que continuar batendo a cabeça no chão? Ele nem pode ouvir você, então pare com tantas reverências.

- Você está certo -
admitiu Sanzang, quando se recuperou de sua surpresa. - No entanto, eu gostaria que você me explicasse por que você não inclinou a cabeça nem uma vez, enquanto eu me machucava na testa com as pedras.

- Você tem certeza de que não sabe a razão?
- replicou o Peregrino. - Esse deuszinho merecia uma surra por brincar conosco da maneira que fez. Se eu não o fiz, foi por causa da Bodhisattva. Então você deveria me agradecer, em vez de reclamar se eu me inclinei ou não diante dele. Além disso, desde jovem, sempre fui um herói e nunca me inclinei diante de ninguém. Mesmo quando vi Lao-Tse e o Imperador de Jade, apenas os cumprimentei e pronto.

- Pare de dizer tolices, por favor! -
repreendeu-o Sanzang. - Temos uma missão a cumprir, e não podemos nos dar ao luxo de perder mais tempo - montando novamente no cavalo e continuando sua jornada para o Oeste.

Por cerca de dois meses, desfrutaram de uma viagem tranquila, encontrando apenas bárbaros, tigres, lobos e leopardos. O tempo passou rápido, e, sem perceber, a primavera chegou. A montanha se cobriu de um verde que lembrava jade, e a grama começou a brotar. Já fazia tempo desde que as flores da ameixeira caíram, e os salgueiros começaram a se encher de brotos frágeis e verdes. Enquanto mestre e discípulo admiravam o maravilhoso renascimento da primavera, o sol se pôs completamente. Sanzang puxou as rédeas do cavalo e, olhando atentamente, conseguiu avistar à distância a silhueta escura de alguns edifícios e torres.

- Veja aquelas construções, Wukong -
disse ao macaco. - Que lugar será aquele?

- Tenho certeza que não é nem um templo nem um monastério -
respondeu o Peregrino, esticando o pescoço o máximo que pôde para ver melhor. - Vamos até lá pedir abrigo.


Sanzang aceitou, satisfeito, a sugestão e esporeou o cavalo-dragão. Não sabemos que tipo de lugar era aquele. Quem quiser descobrir terá que ouvir as explicações que serão oferecidas no próximo capítulo.


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Notas do Capítulo XV

  1. Segundo o taoísmo, no estômago, na cabeça e na testa dos homens habitam espíritos conhecidos como os "Três Vermes".  
  2. A vaca, a ovelha e o porco, apesar de pertencerem à categoria de animais domésticos, constituíam um grupo separado chamado as "três bestas". Por isso, são destacados no texto. 
  3. Os chineses distinguem seis classes de animais domésticos: vaca, ovelha, porco, cachorro, galinha e cavalo.

  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
Peço desculpas pela parte final não ter tido imagens para ilustrar. Procurei mas não encontrei nada, e a fonte que utilizo pulou esse trecho da história.

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