۞ ADM Sleipnir
CAPÍTULO XXIII:
SANZANG NÃO ESQUECE SUAS ORIGENS. QUATRO BODHISATTVAS TESTAM O MONGE.
"Sua única obsessão era completar uma interminável jornada rumo às Terras do Oeste, enquanto as brisas do outono traziam ecos das flores congeladas do inverno. Para alcançar um objetivo tão elevado, é preciso controlar o macaco astuto e não deixá-lo escapar. Deve-se também evitar que o cavalo se descontrole e se lance em uma corrida desenfreada. É importante manter bem misturados e sob controle a madeira, o chumbo, o metal e o enxofre. Não existe mistério mais profundo que este: aquele que conseguir abrir a bola de ferro com a boca alcançará a perfeição total e a sabedoria absoluta (1)."
O principal objetivo deste capítulo é esclarecer que a busca pelas escrituras é exatamente igual à necessidade que todos temos de concentrar nossas energias nos aspectos mais essenciais da vida. Conscientes da ligação de todas as coisas, o mestre e seus quatro discípulos romperam os laços que os prendiam ao pó. Deixaram para trás a correnteza de areia e continuaram seu caminho para o Oeste, sem que nenhum obstáculo impedisse sua progressão inabalável em direção às terras sagradas. Escalaram inúmeras colinas verdejantes e atravessaram infinitas correntes de água azulada. Viram a grama selvagem crescer e testemunharam o silencioso amadurecimento das flores. O tempo prosseguia sua marcha implacável e logo o outono reapareceu. As folhas do bordo tingiam de vermelho toda a montanha, enquanto o canto da cigarra tornava-se cada vez mais melancólico e o lamento do grilo cada vez mais triste. As folhas de lótus, quebradiças como a ilusão dos pobres, pareciam leques de seda verde, e sua decadência contrastava com a plenitude dourada das laranjas. As fileiras de patos selvagens à distância davam a impressão de serem pontinhos que se expandiam lentamente pelo céu.
— Está ficando tarde — disse Sanzang, após olhar para o céu. — Onde vamos passar a noite?
— Não nos parece muito adequado perguntar isso — comentou o Peregrino. — Aqueles que renunciaram à família jantam ao ar livre, descansam junto às águas, dormem sob a lua e deitam-se sobre a geada. Portanto, qualquer lugar é nosso lar. Por que perguntar sobre onde vamos passar a noite?
— Irmão mais velho — disse Zhu Bajie — , parece que você só se importa em progredir na jornada o máximo possível, e não se preocupa com o fardo dos outros. Desde que atravessamos o Rio de Areia, não temos feito nada além de escalar montanhas e picos, e já estou cansado de carregar todo esse peso nas costas. O que há de errado em procurar uma casa e mendigar um pouco de chá ou arroz? Querendo ou não, precisamos recuperar as forças perdidas.
— Parece que você aceitou essa empreitada de má vontade — repreendeu o Peregrino. — Está muito enganado se acredita que ainda está no povoado dos Gao, onde desfrutava de todas as comodidades sem mover um dedo. Esqueça, de uma vez, a vida fácil. Quem aceitou a fé budista deve estar disposto a sofrer e a padecer. Só assim se tornará um discípulo autêntico.
— Você não faz idéia do quanto pesa essa bagagem! — protestou Bajie.
— Claro que não — admitiu o Peregrino. — Desde que o Monge Sha e você se juntaram ao grupo, não tive oportunidade de carregá-la.
— Então pense no que estamos carregando — replicou Bajie: — quatro esteiras de vime grosso, oito cordas de tamanhos diferentes, várias mantas impermeáveis contra a umidade e a chuva, o cajado de nove anéis de nosso mestre, com suas incrustações de cobre e ferro, e a túnica bordada. Pense também no peso da vara, tão escorregadia quanto gelo, e os pregos em suas duas extremidades. Em vez de me dar sermões, deveria ter um pouco de compaixão e perceber que durante todo o dia estou carregado. Você só se preocupa com o mestre, enquanto nós trabalhamos como escravos.
— A quem você está dirigindo todas essas queixas? — perguntou o Peregrino, soltando uma gargalhada.
— A você, é claro! — respondeu Bajie.
— Se você está protestando contra mim, você está cometendo um erro — concluiu o Peregrino. — Como você mesmo afirmou, minha única responsabilidade é a segurança do mestre, enquanto a sua e a do Monge Sha é cuidar da bagagem e do cavalo. Saibam que, se não forem diligentes com o que lhes foi confiado, poderão receber alguns golpes deste bastão na canela.
— Não fale assim, por favor! — pediu Bajie. — Assim você estaria apenas se aproveitando de nós valendo-se pura e simplesmente da força bruta. Sei que você tem uma natureza orgulhosa e travessa que o impede de carregar a bagagem. Mas observe o cavalo que carrega o mestre. Apesar de forte e vigoroso, ele carrega apenas um homem. O que lhe custa carregar um pouco da bagagem? Assim, estaria mostrando um pouco de consideração por nós.
— Então você acha que se trata de um cavalo comum?— questionou o Peregrino. — Pois saiba que está muito enganado, pois ele não é nada menos que o filho de Ao-Jun, o Rei Dragão do Mar Ocidental. Por incendiar o palácio e destruir muitas de suas pérolas, seu pai o acusou de grave desobediência e ele foi condenado à morte pelos Céus. Felizmente, a Bodhisattva salvou sua vida e ordenou que esperasse a chegada do mestre no Rio da Águia Afligida. Em certo momento, a própria Bodhisattva encarregou-se de remover suas escamas e chifres, transformando-o em um cavalo que levaria o mestre até o Paraíso Ocidental. Como pode ver, cada um de nós tem sua própria história e não deveríamos, portanto, nos intrometer na vida dos outros.
— Ele é realmente um dragão? — perguntou o Monge Sha, surpreso.
— Sim — respondeu o Peregrino.
— Ouvi dizer — comentou Bajie — que um dragão é capaz de soprar névoas e nuvens pela boca, levantar verdadeiros redemoinhos de terra e poeira e saltar sobre montanhas e picos. Além disso, ele possui o poder divino de agitar os mares e rios. Se tudo isso é verdade, por que ele está se movendo tão devagar agora?
-Se você quer vê-lo andar mais rápido - respondeu Wukong - , eu farei com que ele vá rápido para você.
O Grande Sábio empunhou o seu bastão de ferro, e incontáveis raios de luz coloridos começaram a surgir dele. Quando o cavalo viu Wukong com o bastão em mãos, pensou que seria golpeado e, em seu terror, disparou na velocidade de um relâmpago. Sanzang era fraco demais para contê-lo, enquanto o equino subia a íngrime encosta da montanha com toda a sua natureza indomável antes de diminuir o ritmo.Quando Sanzang começou a recuperar o fôlego, olhou para cima e viu algumas belas casas construídas sob a sombra de um bosque de bambu. Elas foram construídas em um refúgio de beleza incomparável, onde se misturavam pinheiros e cedros e não faltava o frescor das moitas de bambu. As paredes pareciam ter sido recentemente caiadas e sua brancura contrastava com o ocre dos tijolos do muro. Ao lado delas, viam-se crisântemos selvagens totalmente cobertos de geada e um pequeno riacho, onde se refletia o rubor eterno das orquídeas. Todo o conjunto tinha um ar nobre e carregado de paz. Não se via a presença de bois, ovelhas, galinhas ou cachorros em lugar algum. Era evidente que, após a colheita do outono, as tarefas no campo se tornaram mais leves.
Enquanto o mestre apreciava a beleza da paisagem, seus três discípulos chegaram correndo.
— Ainda bem que vocês não caíram do cavalo! — exclamou o Peregrino, aliviado.
— Hipócrita! — repreendeu Sanzang. — Como pode dizer isso, se foi você quem o assustou? Foi sorte eu ter conseguido me equilibrar.
— Não culpe somente a mim pelo que aconteceu — tentou se desculpar o Peregrino, sorrindo. — Tudo começou quando Bajie sugeriu que seu cavalo era muito lento. Para mostrar o quão errado ele estava, eu o fiz correr um pouco. Foi só isso.
— Estou exausto! — exclamou Bajie, no limite de suas forças. Tinha tentado alcançar o cavalo e agora estava ofegante como um animal ferido. — Veja como meu ventre está flácido. Me sinto tão fraco que mal consigo segurar este bastão. Além disso, por sua causa tive que correr atrás desse cavalo desenfreado.
— Vejam! — interveio então o mestre. — Se a vista não me engana, aquilo parece uma pequena vila. Pode ser que encontremos lá algum lugar para passar a noite.
O Peregrino olhou para o céu e viu que o local estava coberto por nuvens auspiciosas e névoas sagradas. Isso o fez perceber que aquele era um pequeno vilarejo edificado por Buda ou por algum Imortal, mas ele não ousou revelar aos companheiros o que havia descoberto. Apenas concordou com o plano do mestre e exclamou, entusiasmado:
— Isso é precisamente o que estávamos procurando. Vamos até lá pedir abrigo o mais rápido possível.
Assim que desmontaram, o mestre viu uma casa cujo portão de entrada era decorado com magníficos lótus esculpidos diretamente na madeira. Suas colunas também exibiam elementos ornamentais chamativos que realçavam o dourado impecável das vigas. O Monge Sha colocou a bagagem no chão, enquanto Bajie tomava as rédeas do cavalo e dizia, esperançoso:
— Esta deve ser uma família realmente rica.
O Peregrino estava pronto para entrar na casa, mas Sanzang o impediu, dizendo:
— Aqueles que dedicaram suas vidas à busca da perfeição devem agir com prudência em todos os momentos e nunca entrar em uma casa sem permissão. Vamos, portanto, esperar que alguém saia para nos receber e nos convide a passar a noite aqui.
Bajie amarrou o cavalo e sentou-se, encostado na parede. Sanzang, por sua vez, sentou-se em um dos bancos de pedra, enquanto o Peregrino e o Monge Sha se acomodaram aos pés da porta. Assim esperaram por um longo tempo que alguém aparecesse, mas ninguém saiu para dar-lhes as boas-vindas. Impaciente por natureza, o Peregrino se levantou depois de um tempo e se aventurou dentro do limiar. A poucos metros dele estavam três grandes salões voltados para o sul, com as cortinas totalmente fechadas. O dintel da porta estava adornado com uma pintura horizontal cheia de símbolos de vida e riqueza sem fim. Duas colunas lacadas serviam como montantes; nelas haviam sido coladas duas tiras de papel vermelho com versos em tinta dourada, que diziam:
"Ao crepúsculo, os frágeis salgueiros parecem flutuar como teias de aranha junto à ponte. No tranquilo jardim, a neve salpica a fragrância primaveril das ameixeiras."
No salão do centro havia uma pequena mesa lacada preta, sobre a qual repousava uma urna de bronze cuja forma era semelhante a uma besta. Perto dela, havia seis cadeiras com encostos totalmente retos. Nas paredes leste e oeste, penduravam-se pinturas que iam do chão ao teto.
Enquanto o Peregrino estava absorto em sua contemplação, ele ouviu passos que pareciam vir da parte de trás da casa. Ele se virou imediatamente e viu uma mulher de meia-idade, que lhe indagou com uma voz sedutora:
— Quem é você , que ousa entrar na casa de uma viúva sem permissão?
— Eu, senhora — murmurou o Grande Sábio, respeitosamente - sou um insignificante monge originário do Grande Reino dos Tang, nas Terras do Leste, e estou indo para o Oeste em busca dos ensinamentos de Buda. Na verdade, não faço essa jornada sozinho, mas na companhia de outros três irmãos na religião. Ao chegarmos à sua nobre região, já estava ficando tarde, e por isso nos aproximamos de sua mansão, divina patrona, para implorar por hospedagem para passarmos a noite.
— Onde estão seus outros três companheiros? — perguntou a mulher novamente, sorrindo docemente. — Por favor, diga-lhes para entrar.
— Mestre — gritou então o Peregrino em voz alta — , estamos convidados a entrar!
Não tardou a aparecer Sanzang seguido por Bajie e o Monge Sha, este último puxando o cavalo com uma mão e segurando a bagagem com a outra.
A mulher os recebeu, sob o olhar lascivo de Bajie, que não conseguia tirar os olhos dela. Parecia particularmente atraído por sua túnica de seda verde, totalmente coberta de bordados. Ela também usava uma leve blusa rosa, combinando com a palidez amarelada de uma saia ricamente bordada. Entre as dobras, podia-se apreciar a delicadeza de dois pequenos sapatos de salto alto. Um laço negro adornava seu penteado, destacando o intrincado artifício de suas tranças, que pareciam dois dragões entrelaçados. Dois grampos de ouro seguravam em sua cabeça um penteado de marfim, de onde se originava uma cascata de cabelos negros que caíam pelas costas. Seus brincos eram feitos de pérolas finas, parecendo competir em delicadeza com o rubor de suas bochechas. Toda a sua postura possuía uma beleza e um charme mais próprios de uma donzela do que de uma mulher madura. Sua coqueteria era tal que, ao ver os três viajantes, sorriu com a delicadeza das flores e os convidou a entrar no salão principal, onde lhes foi servido chá. Uma jovem donzela surgiu inesperadamente de trás de um biombo com uma bandeja de ouro e várias xícaras de jade branco. O ar se encheu instantaneamente com o aroma quente do chá e a fragrância inesperada de frutas exóticas.
A mulher arregaçou um pouco as mangas, revelando dedos tão delicados e longos quanto os caules de cebolinha na primavera. Então, ela encheu as xícaras e as ofereceu, com uma leve inclinação de cabeça, a cada um dos seus hóspedes. Não satisfeita com isso, deu as instruções adequadas para que lhes fosse servida uma refeição vegetariana.
— Podem nos dizer vossos nomes e qual o nome desta respeitável região? — perguntou Sanzang, inclinando-se com respeito.
— Este lugar — respondeu a mulher — pertence ao Continente Ocidental de Aparagodaniya. Meu nome de solteira era Jia, embora agora eu carregue com orgulho o sobrenome de meu marido, que não é outro senão Mo. Foi uma pena que todos os seus familiares tenham morrido pouco depois de nos casarmos, o que nos legou uma fortuna que ultrapassava as dez mil onças de prata e os quinze mil acres de terras de primeira qualidade. Mas tais riquezas não foram suficientes para nos fazer felizes, porque tivemos três filhas e não vimos nosso sonho de ter um filho realizado. Há exatamente dois anos, a desgraça voltou a se abater sobre mim. Justo quando tudo parecia estar indo bem, meu marido morreu e me tornei viúva. Acabei de completar o período de luto e devo admitir que gostaria de me casar novamente, mas, não tendo herdeiros, é extremamente difícil me desfazer de toda essa riqueza. É uma sorte, portanto, que tenham aparecido, pois, sendo quatro, vocês podem desposar minhas três filhas e a mim. O que acha da ideia?
Sanzang ficou mudo de espanto ao ouvir tal proposta. Sentiu-se tão perturbado que tudo começou a girar ao seu redor. No entanto, ele fechou os olhos e, dessa forma, conseguiu acalmar sua mente. Seu silêncio era tão absoluto que a mulher, um pouco nervosa, acrescentou:
-Possuímos mais de trezentos acres de arrozais, quatrocentos e sessenta dedicados a outros cultivos e cerca de quinhentos de bosques e pomares. Quanto ao gado, temos mais de mil cabeças de búfalos, rebanhos inteiros de cavalos e mulas, e inúmeras manadas de porcos e rebanhos de ovelhas. Para alimentar tantos animais, dispomos de mais de setenta estábulos e celeiros estrategicamente distribuídos por toda a propriedade. O grão que armazenamos em nossos celeiros é suficiente para alimentar todos vocês por oito ou nove anos, a seda que guardamos em nossos armários seria suficiente para vestí-los por mais de uma década, e a prata e o ouro que descansam em nossos cofres poderiam proporcionar-lhes uma existência de luxo e lazer durante todos os dias de vossa vida. Pode haver algo melhor do que nossas cortinas e lençóis de seda, que possuem, a propósito, a virtude de manter sempre jovens os corpos que nelas repousam? Isso é essencial, tendo em vista que terão à vossa disposição inúmeras escravas e concubinas. Se decidirem fazer parte de nossa família, todo esse luxo e conforto será exclusivamente de vocês. Não é infinitamente melhor do que as calamidades que lhes esperam ao longo de sua jornada para o Oeste?
Sanzang parecia incapaz de articular uma única palavra, como se tivesse perdido a razão ou se tornado mudo. Isso encorajou a mulher a continuar:
— Eu nasci na hora do galo, no terceiro dia do terceiro mês do ano Dinghai. Isso significa que, considerando que meu marido era três anos mais velho do que eu, minha idade atual é de quarenta e cinco anos. Quanto à minha filha mais velha, ela se chama Zhenzhen e acabou de completar vinte anos. A segunda, Aiai, é dois anos mais nova que ela, e a última, Lianlian, tem exatamente quatro anos a menos que a primeira. Não preciso dizer que nenhuma delas jamais foi prometida a ninguém. Sua beleza está além de todas as mulheres da região. Mas suas virtudes não param por aí, pois dominam perfeitamente a agulha de bordar e todas as outras artes femininas. Isso não significa que não sejam bem instruídas. Como não tínhamos filhos homens, meu marido as educou, na verdade, como se fossem meninos, ensinando-lhes os clássicos confucionistas e a difícil arte da versificação. Apesar de morarmos nas montanhas, não são de forma alguma pessoas vulgares. Além disso, considero que todas elas são capazes de fazer felizes qualquer um de vocês. Não tenho dúvidas de que, se abandonarem suas inibições e deixarem crescer o cabelo novamente, serão os senhores de toda esta casa. Os brocados e sedas que adornarão seus corpos não são infinitamente superiores aos trajes pretos, sandálias de palha e chapéus de ervas que agora vestem?
Sentado no lugar de honra, Sanzang parecia um jovem atingido por um raio ou um sapo sendo arrastado pela correnteza. Seus olhos esbugalhados pareciam incapazes de permanecerem por mais um minuto na cadeira e dava a impressão de que cairia no chão a qualquer momento. Bajie, por sua vez, ao ouvir falar de tanta riqueza e beleza incomparável, estava impaciente para aceitar o mais rápido possível uma proposta tão vantajosa. Movia-se incessantemente na cadeira, como se alguém estivesse espetando-o com uma agulha nas nádegas. Chegou a um ponto em que não pôde mais aguentar e, se aproximando de seu mestre, perguntou, enquanto puxava sua manga:
— Como você pode ignorar completamente o que esta dama lhe disse? Acho justo que considerarmos a oferta.
— Maldita besta! — bradou Sanzang com tanta força que Bajie retornou rapidamente ao seu lugar anterior. - Não compreendes que somos pessoas que abandonaram nosso lar? Como podemos ceder às promessas de riqueza ou às tentações da beleza?
— Pode explicar-me o que há de bom em abandonar o lar? — perguntou a mulher, soltando uma risada.
— E você — replicou Sanzang — , pode me dizer o que há de tão desejável em permanecer nele?
— Já que me perguntou — replicou a mulher — , vou lhe dizer as vantagens de não renunciar à família. Para que não diga que meus pontos de vista são arbitrários demais, vou me valer de um poema que diz: "Quando a primavera floresce, visto-me de seda. No verão, me enfeito com rendas e me deleito com a beleza dos lírios. O outono traz consigo a fragrância do vinho de arroz recém-fermentado, e no inverno minhas bochechas se tornam tão vermelhas quanto as chamas sob a influência da bebida. Desfruto abundantemente dos frutos dos quatro climas e das incontáveis delícias das oito estações. As camas e mantas de seda do meu leito matrimonial superam em muito os cantos budistas e a vida mendicante".
— É certo — admitiu Sanzang — que aqueles que não abandonam o lar podem desfrutar de riquezas e glória, de iguarias saborosas e roupas luxuosas. Podem até mesmo desfrutar da presença dos filhos. Ninguém nega que seja uma vida verdadeiramente feliz. Mas, mesmo que não acredite, carece de certas vantagens que possuímos nós, os que abandonamos o lar. Como testemunho, eu também trago um poema que afirma: "Não é comum abandonar o lar, pois implica o desmantelamento da fortaleza do amor. Mas aquele que o faz encontra a parede e, no interior de seu corpo, o yin e o yang se equilibram de forma invejável. Depois, quando acumula mérito suficiente, pode encarar o Arco de Ouro de frente e voltar com a mente iluminada para seu verdadeiro Lar. Aquele que, pelo contrário, permanece em casa leva uma vida de avareza e luxúria, vendo seu corpo murchar com o passar dos anos e sua carne se tornar cada vez mais fétida".
— Como se atreve a ser tão insolente? — exclamou a mulher, muito irritada. — Se eu não soubesse que você veio das distantes Terras do Leste, eu expulsaria você desta casa agora mesmo. Estou lhe pedindo que faça parte de nossa família e, em troca de tantas comodidades e riquezas, não lhe ocorre nada além de me insultar com toda a desfaçatez. Reconheço que aceitaste os mandamentos e fizeste a promessa de nunca mais voltar à vida secular, mas pelo menos um de vós poderia aceitar minha proposta. Para que tanta rigidez?
— Por que você não fica aqui, Wukong? — perguntou Sanzang, um pouco intimidado com a energia demonstrada pela mulher.
— Lamento — desculpou-se o Peregrino — , mas desses assuntos não sei absolutamente nada. Seria mais sensato que Bajie ficasse. Não concorda?
— Não brinque comigo, por favor — pediu Bajie . — Se um de nós deve ficar, o mais natural é discutirmos isso entre todos.
— Se nenhum dos dois quer fazê-lo — concluiu Sanzang — , que Wujing aceite a proposta da dama.
— Estranho que fale assim — protestou o Monge Sha.— Depois de ser convertido pela Bodhisattva, não fiz outra coisa senão esperar por você. Como vou cair agora na tentação das riquezas, se faz apenas dois meses que o sigo e ainda não adquiri nenhum mérito? Seguirei para o Paraíso Ocidental, mesmo que perca a vida tentando. Estou decidido a não me dedicar jamais a nada que não seja puro e santo.
Ao ver que ninguém aceitava sua proposta, a mulher desapareceu rapidamente atrás do biombo, batendo a porta com força. Assim, o mestre e os discípulos ficaram totalmente sozinhos, sem ninguém para servi-los com mais chá ou arroz. Bajie perdeu a paciência e começou a culpar o monge Tang, dizendo:
— Está bem claro que nenhum de vocês sabe lidar com esses assuntos. Com sua maneira de falar, arruinaram tudo. Poderiam ter sido um pouco mais compreensivos e oferecido uma resposta mais vaga. Pelo menos agora teríamos algo para comer e passaríamos uma noite agradável. A única coisa que conseguiram com sua inflexibilidade foi fechar todas as portas. Tenho certeza de que ninguém mais virá nos servir. Podem explicar como passaremos a noite entre essas cinzas e essas estufas apagadas?
— Se é isso que pensa - repreendeu-o Wujing -, por que não fica aqui e se torna o genro dessa dama?
— Não zombe de mim! Vamos discutir o assunto com mais atenção — replicou Bajie.
— Não há nada para discutir — afirmou o Peregrino. — Se quer viver bem, o mestre e essa mulher serão parentes, e você se tornará o genro deles. Com as riquezas que essa família possui, receberás um dote esplêndido e um banquete nupcial digno de príncipes, do qual, é claro, todos nós participaremos. Não há dúvida de que teu retorno à vida secular será benéfico para todas as partes envolvidas.
- Você diz isso - respondeu Bajie - mas para mim é uma questão de fugir da vida secular apenas para retornar à vida secular, de deixar minha esposa apenas para tomar outra.
— Então você tem uma esposa? — indagou o Monge Sha, surpreso.
— Não sabia? — perguntou-lhe o Peregrino. — Era o genro do senhor Gao, um rico proprietário de terras da aldeia do mesmo nome, situada no Reino do Tibete. Depois de ser derrotado por mim, não teve escolha a não ser aceitar os mandamentos e tornar-se discípulo do mestre. É precisamente por isso que abandonou sua esposa, comprometendo-se a vir conosco em busca das escrituras. Imagino que essa separação não tenha sido fácil para ele. Aliás, acredito que tem meditado nisso continuamente, e agora que se falou tão claramente sobre casamento, não pôde deixar de sentir-se tentado a aceitar seu antigo modo de vida. Por que não se casa com uma dessas mulheres? Garanto que, desde que sejas respeitoso comigo, não receberás da minha parte a menor repreensão.
— Bobagens! — exclamou o Idiota. — Todos nós experimentamos a mesma tentação. Afinal, como diz um provérbio, "os monges são um verdadeiro saco de paixões". Quem de nós pode afirmar que não se sentiu atraído pela proposta dessa mulher? Agora, graças a falta de tato de vocês, não temos ninguém para nos servir ou acender as lâmpadas. Podemos passar uma noite sem comer, mas duvido que o cavalo seja capaz de resistir tanto tempo sem se alimentar. Afinal de contas, amanhã ele terá que carregar o mestre nas costas, e, se não comer, logo ficará um bagaço. Então, fiquem aqui enquanto eu o levo para pastar um pouco.
Sem hesitar, Bajie soltou as rédeas e levou o animal para fora.
— Fique aqui acompanhando o mestre — ordenou o Peregrino ao Monge Sha. — Vou ver se é verdade que ele vai levar o cavalo para pastar.
— Faça o que quiser, mas por favor não o ridicularize— aconselhou Sanzang.
— Tenha certeza de que não o farei — respondeu o Peregrino, saindo do salão principal.
Assim que se viu na escuridão, o Grande Sábio sacudiu levemente o corpo e se transformou em uma libélula avermelhada, que saiu voando pela porta principal. Lá precisamente alcançou Bajie, que levava o cavalo para um recanto onde parecia haver grande abundância de grama.
No entanto, ele não o deixou pastar ali. Sem parar de gritar como um carroceiro, o levou até a porta dos fundos da mansão, onde encontrou a mulher e as três moças, que tinham saído para apreciar a beleza dos crisântemos.
Assim que viram Bajie se aproximar, as moças correram para se refugiar dentro de casa. Apenas a mulher permaneceu em pé junto à porta e lhe perguntou ironicamente:
— Posso saber para onde vai?
— Oh, olá! — exclamou Bajie, soltando as rédeas e se aproximando dela. — Pensei que não faria mal algum levar o cavalo para pastar um pouco.
— Vosso mestre parece um tanto exigente — comentou a mulher. — Não acha que, se aceitasse fazer parte de nossa família, ficaria muito melhor do que realizando essa viagem ridícula para o Oeste?
— Bem — tentou defendê-lo Bajie — , vocês devem compreender que isso foi ordenado pelo próprio Imperador dos Tang. Quem pode se opor ao mandato de um príncipe? Essa é a razão pela qual tanto ele quanto meus outros irmãos estão determinados a levar a cabo uma missão tão descabida. Eu não sou como eles. Por isso estiveram rindo de mim na entrada de sua casa. De qualquer forma, temo que, tendo um focinho e orelhas tão grandes, vocês não me considerem suficientemente atraente para me aceitar como marido.
—Sendo sincera — replicou a mulher — , não havia reparado nisso. De qualquer forma, sempre é melhor ter um chefe de família do que não ter nenhum. No entanto, não garanto que minhas filhas o achem tão atraente quanto eu.
— Deve ensiná-las a escolher homens de verdadeira valia — disse Bajie apressadamente. — A beleza não é, de fato, a melhor garantia de fidelidade. Não nego que haja homens muito mais bonitos do que eu, mas posso afirmar que poucos me superam em diligência e dedicação. Acima de tudo, senhora, sou uma pessoa de princípios.
— Sobre quais princípios está falando? — perguntou a mulher.
— Embora, certamente, não seja muito favorecido — respondeu Bajie — , desconheço a preguiça. Sou capaz de arar mil acres de terra sem precisar de animais ou arado. Para isso, me basta o meu tridente. O mais surpreendente, no entanto, é que tenho o poder de provocar chuva em tempos de seca e fazer o vento soprar quando necessário. Sou tão trabalhador que, se encontrar sua casa um pouco baixa, construirei sobre ela os andares que forem necessários. Tenha certeza de que não hesitarei em limpar e desbravar as terras. Não há tarefa, por mais complicada que seja, que eu não saiba fazer, seja construir canais ou simplesmente tirar água. Se é tão habilidoso quanto diz — concluiu a mulher — , deveria discutir novamente o assunto com seu mestre. Se ele não se opuser, o aceitaremos como chefe desta casa.
— Meu mestre não tem voz nem voto em minhas decisões, já que não é parente meu — explicou Bajie.— Posso fazer, portanto, o que melhor me convier.
— Está bem — disse novamente a mulher. — Nesse caso, só me resta ir consultar minhas filhas — e imediatamente se retirou para dentro da mansão, batendo a porta com força.
Bajie não deixou o cavalo continuar pastando e o levou de volta para a frente da casa. Nem suspeitava que o Grande Sábio ouvira tudo o que havia dito à mulher. Sem abandonar a forma de libélula, o Peregrino estendeu as asas e voltou voando junto ao monge Tang.
— Mestre — disse, recuperando sua forma habitual — , Wuneng está prestes a voltar com o cavalo.
— Não esperava menos dele — respondeu o monge Tang. — Se ele tivesse deixado o animal escapar, lhe daria um castigo que jamais esqueceria.
O Peregrino soltou uma risada e contou em detalhes tudo o que a mulher e Bajie haviam dito. Sanzang, no entanto, não sabia se acreditava ou não. Por isso, ao ver Bajie aparecer com o cavalo nas rédeas, perguntou:
— Ele pastou muito?
— Receio que não haja muita grama por aqui — respondeu Bajie. — Está tudo tão desolado que nem há espaço para um animal pastar.
— Vamos — disse o Peregrino com intenção —, aqui a grama é escassa, mas as casamenteiras (2) abundam como as pedras.
Ao ouvir esse comentário, Bajie logo percebeu que Wukong estava ciente de seu segredo. Baixou a cabeça, mortificado, e se afastou um pouco do grupo. Depois franziu a testa e não disse mais nenhuma palavra. Logo, eles ouviram a porta lateral se abrir com um rangido, e de lá surgiram um par de lanternas vermelhas e um par de queimadores de incenso. O perfume se elevava pelo ar em espirais graciosas; no entanto, o que mais atraiu a atenção dos quatro monges foram os sons tintilantes de jade. Levantando, desconcertados, os olhos, viram a mulher com suas três filhas, que imediatamente se curvaram respeitosamente diante dos quatro buscadores de escrituras. Zhenzhen, Aiai e Lianlian eram, de fato, verdadeiras beldades. Suas sobrancelhas lembravam borboletas com seus delicados tons azulados, que mantinham um difícil equilíbrio com a suavidade de sua maquiagem. Que beleza sedutora a delas, que charme em sua postura! Seus delicados enfeites destacavam sua graça de tal forma que as faziam parecer criaturas de outro mundo. Ao sorrir, seus lábios lembravam cerejas maduras, e, ao se moverem devagar como a lua, espalhavam um fino aroma de orquídeas por todo lado. As pérolas e o jade de seus enfeites pareciam brotar da negrura de seus cabelos, assim como o leve tremor de seus incontáveis alfinetes de ouro. Seus corpos exalavam um aroma delicado que fazia empalidecer a elegância de suas túnicas totalmente confeccionadas com fios de ouro. Seu encanto superava, em definitivo, o das damas de Chu, incluindo a própria Xi Shi (3). Eram como fadas que decidiram abandonar os céus ou como a própria princesa Chang'e no momento exato de sair de seu Palácio Lunar.
Ao vê-las, Sanzang inclinou a cabeça e juntou as mãos à altura do peito. O Grande Sábio, por sua vez, ficou mudo, enquanto o Monge Sha se afastava timidamente para o lado. Somente Bajie, preso à paixão e à luxúria, teve força suficiente para balbuciar:
— Que grande honra é desfrutar da companhia de damas tão distinguidas! Por favor, peça as suas filhas que se retirem.
As três moças desapareceram imediatamente atrás do biombo, deixando no salão as duas lanternas.
— Já decidiram quem de vocês se casará com minhas filhas?
— Discutimos profundamente sobre esse assunto — respondeu Wujing — , e chegamos à conclusão de que o mais indicado para se tornar parte de sua família é Bajie.
— Não zombe de mim, por favor — pediu Baje. — Ainda não terminamos de discutir sobre isso.
— O que mais há para dizer? — exclamou o Peregrino. — Você mesmo arranjou tudo com esta mulher na porta dos fundos de sua casa. Para que continuar fingindo? O mestre será o representante do noivo, a senhora agirá em nome da noiva, eu serei a testemunha e o Monge Sha será o intermediário. Nem será necessário consultar o calendário, pois hoje é precisamente um dos dias propícios para casar em todo o ano. Então se aproxime e incline-se diante do mestre. Depois você pode se tornar o genro desta mulher.
— Nem pensar! — protestou Bajie. — Não entendo seu interesse em que eu me case!
— Pare de fingir de uma vez! — aconselhou o Peregrino. — Você se dirigiu a esta mulher como genro sei lá quantas vezes. O que quer dizer com isso de que não quer nem ouvir falar sobre o assunto? Aceite de uma vez, e assim poderemos desfrutar de um bom banquete de casamento.
Antes que pudesse reagir, Wukong agarrou Bajie e a mulher e disse:
— Leve seu genro, senhora.
Bajie se dirigiu à porta com passos indecisos, enquanto a mulher dizia a um dos criados:
— Traga algumas mesas e cadeiras, limpe-as bem e sirva um jantar vegetariano para esses três parentes nossos. Eu vou levar nosso novo senhor para dentro.
Antes de desaparecer pela porta, ordenou que preparassem um banquete de casamento para o dia seguinte, e os criados correram para cumprir prontamente seus desejos. Assim que os três Peregrinos terminaram de se instalar, retiraram-se para o quarto de hóspedes.
Enquanto isso, Bajie seguiu com passos indecisos sua sogra para dentro da casa. Os degraus e corredores se sucediam com uma frequência inesperada, e Bajie, completamente desconcertado, perdeu o equilíbrio mais de uma vez.
— Não poderia andar um pouco mais devagar? — suplicou nervosamente a sua sogra. — Não estou familiarizado com esta mansão e temo me perder.
— Estes são os celeiros, os armazéns e as despensas — explicou a mulher. — Você precisa se apressar, pois ainda nem chegamos às cozinhas.
— Sério? — exclamou Bajie, surpreso. — Não imaginava que esta casa era tão grande.Sem parar de tropeçar aqui e ali, Bajie continuou caminhando por um longo tempo até finalmente chegarem a uma das salas internas da casa.
— Um de seus irmãos disse que hoje era um dos dias mais propícios para casar — disse então a mulher. — Foi por isso que o aceitei às pressas. No entanto, não acho certo que não tenhamos consultado nenhum astrólogo, nem tenhamos feito nenhum preparativo para a adoração nupcial ao Céu e à Terra. Até mesmo negligenciamos a cerimônia de espalhar grãos e frutas por toda a cama nupcial. Não acha, então, que seria conveniente que você se inclinasse oito vezes diante do céu?
— Você está certa — respondeu Bajie. — Além disso, é preciso que eu me incline também diante de você. Dessa forma, minha adoração ao Céu e à Terra será igualmente uma expressão de minha gratidão para com você. Não quero que depois aconteça algo por não cumprir tudo o que a tradição prescreve.
— Como quiser — respondeu a mulher, sorrindo. — Você parece ser um genro que conhece bem suas obrigações. Vou me sentar agora para que você me preste seus respeitos.
Enquanto Bajie fazia isso, as velas brilhavam de uma maneira muito peculiar em seus castiçais de prata. Uma vez concluído o ritual, Bajie ergueu a cabeça e perguntou à sua sogra:
— Qual de suas filhas você pretende me oferecer?
— Essa decisão está sendo muito difícil para mim — respondeu a mulher. — A princípio eu pretendia lhe oferecer minha filha mais velha, mas logo percebi que, se fizesse isso, a segunda ficaria muito zangada. Por outro lado, se eu a desposasse com você, é lógico que a terceira ficaria furiosa. Você dirá então que a menor é a candidata mais aceitável. Mas, sendo a mais nova, as outras duas protestarão, na minha opinião, com toda a razão. Estou, como vê, diante de um dilema muito difícil de resolver.
— Se você está tentando evitar um confronto familiar — concluiu Bajie — , o melhor que pode fazer é me entregar todas. Dessa forma, evitará muitas disputas, que podem muito bem arruinar a harmonia que deve reinar em toda casa.
— Você quer dizer que está disposto a se casar com minhas três filhas? — perguntou a mulher.
— Quem hoje em dia não tem três ou quatro esposas? — replicou Bajie. — Aceitarei com prazer suas três filhas, e mais se você tiver. Quando jovem, aprendi certas técnicas amorosas e garanto que estou apto a satisfazer todas elas.
— Não, não. Isso não seria correto — opinou a mulher. — Vou te dizer o que faremos. Aqui tenho um lenço bastante grande. Vou cobrir sua cabeça com ele, depois vou tapar seus olhos e farei minhas filhas desfilarem na sua frente. Você se casará com a que conseguir agarrar primeiro. Está bem? Assim o destino decidirá.
Bajie aceitou a ideia e deixou que sua cabeça fosse coberta pelo lenço. Sobre esse momento, temos um poema que diz:
"O tolo desconhece as verdadeiras causas de tudo o que existe. Não sabe que a espada da beleza pode destruir tudo o que se propuser. O Senhor de Zhou estabeleceu há muito tempo todos os ritos e cerimônias. No entanto, até hoje o noivo continua cobrindo a cabeça."
— Você pode mandar suas filhas saírem agora — disse Bajie, assim que percebeu que não enxergava nada.
— Zhenzhen, Aiai, Lianlian, - gritou a mulher — venham aqui imediatamente! Decidimos que seja o destino a determinar quem vai se casar com este homem.
Logo se ouviu o tilintar do jade, e um aroma de orquídeas se espalhou pelo quarto. Dava a impressão de que um grupo de fadas havia aparecido de repente. Bajie estendeu suas mãos tentando agarrar uma das moças, mas, por mais que tentasse, não conseguiu por as mãos em nenhuma delas. Tinha a sensação de que elas se moviam ao seu redor sem parar e que era justamente a delicadeza de seus gestos que as tornava totalmente inapreensíveis.
Como um louco, ele se lançou para o leste e só conseguiu agarrar o mastro de uma coluna. Depois se lançou para o oeste e bateu de cara em uma parede de madeira. A fúria de seus movimentos logo o fez perder o equilíbrio, e ele acabou caindo várias vezes no chão. Em uma ocasião, tropeçou em um dos degraus e bateu a cabeça em uma parede de tijolos. Assim, acabou sentado com a cabeça cheia de contusões e a boca inchada.
— Nunca imaginei que suas filhas fossem tão escorregadias! — exclamou finalmente Bajie, ofegante. — Não fui capaz de agarrar nenhuma delas. Você pode me dizer o que devo fazer agora?
— Elas não são escorregadias — corrigiu-lhe a mulher, tirando-lhe a venda dos olhos. — É que elas são muito tímidas e não se atreviam a se deixar pegar.
— Se elas não estão dispostas a se casarem comigo, por que você não me toma como marido?— sugeriu Bajie.
— Meu querido genro — exclamou a mulher, soltando uma gargalhada — , você não tem o menor respeito pela idade. Quem é que quer se casar com a própria sogra? Minhas filhas valem muito mais do que eu. Vou te dizer o que faremos. Cada uma delas bordou uma camisa de seda com pérolas. Vista-as e escolha a dona da que melhor lhe cair. O que acha?
— Ótimo — concordou Bajie. — Traga essas camisas para que eu possa vesti-las o mais rápido possível. Mas quero deixar uma coisa bem clara: se todas me servirem, me casarei com suas três filhas!
A mulher sorriu e foi buscar as roupas. Pouco depois, apareceu com uma camisa esplêndida e entregou-a a Bajie. Ele logo tirou a sua camisa, pegou a que a mulher oferecia e a vestiu sem pensar duas vezes.
Antes que terminasse de abotoá-la, caiu no chão como se fosse um veado ferido. A camisa se transformara em um verdadeiro emaranhado de cordas que o prenderam fortemente ao chão, e o apertavam tanto que ele mal conseguia respirar. Enquanto Bajie jazia ali em uma dor insuportável, as mulheres desapareceram.
O dia começava a clarear a leste, e Sanzang, o Peregrino e o Monge Sha despertaram pesadamente em suas camas. Abriram os olhos e descobriram com espanto que os salões e edifícios haviam desaparecido. Nada restava das vigas esculpidas nem das colunas douradas. Na verdade, haviam passado a noite toda na floresta sob as copas de cedros e pinheiros. Aterrorizados, Sanzang e o Monge Sha começaram a gritar:
— Estamos perdidos! Os fantasmas nos enganaram o quanto quiseram!
— Do que estão falando? — perguntou o Grande Sábio, percebendo o que havia acontecido e sorrindo, compreensivo.
— Como assim do que estamos falando? — protestou o monge Tang. — Você não vê onde estivemos dormindo?
— Não há lugar mais pacífico do que uma floresta de pinheiros — comentou o Peregrino. — Fico me perguntando como terá sido a prova daquele idiota.
— Você pode me explicar de quem está falando? — indagou o mestre.
— As mulheres desta casa — explicou o Peregrino — eram bodhisattvas que queriam nos ensinar uma lição. Pelo que vejo, parece que partiram durante a noite. Infelizmente, Zhu Bajie caiu em suas armadilhas e deve estar pagando por isso agora.
Sanzang juntou as mãos no peito e fez uma promessa. Foi então que viu, agitado pelo vento, um pedaço de papel pendurado em um velho cedro. Monge Sha o pegou rapidamente e entregou ao seu mestre. Era um poema de oito linhas, que dizia:
"A Dama do Monte Li (4), embora não desejasse, deixou sua morada por convite expresso de Guanyin. Ela foi acompanhada por Manjusri e Samantabhadra , que aceitaram de bom grado se tornar donzelas em idade de se casar. Suas tentações apenas serviram para fortalecer a casta virtude do monge santo e mostrar o aspecto mundano da personalidade de Bajie. Portanto, ele deve aquietar seu coração com arrependimento e dominar sua preguiça com uma vida de total diligência."
Eles mal haviam terminado de ler o poema, quando gritos arrepiantes ecoaram pela floresta, dizendo:
— Essas cordas estão me matando! Por favor, Mestre, me salve! Prometo que nunca mais farei isso!
— Essa não é a voz de Wuneng? — perguntou Sanzang, surpreso.
— Sim, é — confirmou o Monge Sha.
— Não se preocupem com ele! Sigamos nosso caminho! — sugeriu o Peregrino.
— Embora reconheça que Bajie seja estúpido na mente e na natureza — admitiu Sanzang — , ele é um sujeito honesto e tem braços muito fortes. Sem ele, não seríamos capazes de transportar toda a bagagem. Vamos libertá-lo para que possa continuar a jornada conosco e, assim, alcançar o destino que inicialmente lhe foi designado pela Bodhisattva. Estou certo de que ele nunca mais cairá em tentações desse tipo.
O Monge Sha recolheu as esteiras e arrumou a bagagem, e o Grande Sábio, por sua vez, desamarrou o cavalo e o conduziu pelo caminho enquanto guiava o monge Tang rumo ao coração da floresta para investigar o que realmente havia acontecido. Este incidente mostra claramente que quem quer que entre no Mundo do Espírito deve ser cuidadoso na busca pela retidão e na purificação de todos os seus desejos.
Por enquanto, não sabemos qual destino aguardava Zhu Bajie. Aqueles que desejam descobrir terão que ouvir a explicação oferecida no próximo capítulo.
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Notas do Capítulo XXIII
- Alusão ao processo completo da alquimia interna, já que, por sua forma esférica, a bola simboliza o cosmos, e a boca, a maior das nove aberturas corporais, representa todo o corpo;
- No original, é dito "tomar as rédeas do cavalo", uma expressão usada popularmente para designar o trabalho das casamenteiras. Para evitar possíveis confusões, a expressão foi substituida por "casamenteiras".
- Xi Shi foi uma das concubinas de Fuchai, Senhor de Wu, e famosa por sua extraordinária beleza, sendo considerada uma das Quatro Belezas da China Antiga.
- Embora em tempos antigos a Dama do Monte Li, Lishan Laomu, fosse um simples espírito fluvial, neste capítulo ela é elevada à categoria de deusa.
- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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