26 de junho de 2023

A Jornada ao Oeste: Capítulo VIII

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO VIII:

PARA A OBTENÇÃO DA FELICIDADE SUPREMA, O SOBERANO BUDA CRIOU AS ESCRITURAS. GUANYIN RECEBE A ORDEM PARA IR ATÉ CHANG-AN


"Quem for capaz de refletir, ficará surpreso ao ver que uma vida de preocupações constantes só leva ao vazio, à velhice e à morte. É como tentar fazer um espelho polindo blocos de pedra ou estocar neve em celeiros. Quantos jovens são vítimas de um engano tão grosseiro! Pode uma pluma absorver a vastidão do oceano ou uma semente de mostarda conter o Monte Sumeru (2)? Diante dessas perguntas, o Dhuta Dourado (3) sorri com condescendência. Quem recebeu a iluminação está acima dos dez estágios e dos três vagões que cruzam os caminhos da reencarnação. Pelo contrário, aquele que não se esforça para alcançá-la está sujeito às quatro formas de nascimento (4) e às seis formas de reencarnação (5). Quem já ouviu sob um penhasco sem rochas ou uma árvore sem sombra o canto do cuco saudando o alvorecer da primavera? Perigosas são as estradas de Tzao-Chr (6) e escuras as nuvens que pairam sobre Chiou-Ling (7), onde as vozes são silenciosas, como a cachoeira de dez mil pés, a flor de lótus se abrindo ou a cortina encharcada de incenso pendurada em um antigo templo. Quem chegar a compreender o mistério das origens, poderá contemplar com os olhos os três tesouros (8) e o Rei Dragão."

A melodia que acompanha este poema é chamada de "Su Wu em ritmo lento".

Após despedir-se do Imperador de Jade, Tathagata voltou depressa para o Monastério do Trovão, o qual era habitado por três mil Budas, quinhentos arhats, oito reis de diamantes e incontáveis ​​bodhisattvas. Portando estandartes, baldaquinos bordados, objetos de valor inestimável e flores imortais, eles vieram em filas para dar-lhe as boas vindas sob as Árvores Śāla Gêmeas. Tathagata então desceu de sua nuvem sagrada e disse a eles:

— Estudei as Três Regiões com sabedoria e espírito de compreensão e cheguei à conclusão de que a essência de tudo o que existe é completamente sem consistência. Mesmo os seres imateriais não fogem a essa regra, pois nada possui uma natureza isolada. Ninguém pode entender, sem ir mais longe, a repressão do macaco rebelde. Afinal, origem, nascimento, nome e morte são características de todos os seres vivos.

Assim que terminou de falar, seu corpo irradiou uma luz beatífica (9), preenchendo o espaço com quarenta e dois arco-íris brancos, que formaram uma resplandecente ponte de luz de norte a sul. Ao vê-lo, todos os presentes prostraram-se por terra em sinal de submissa adoração. Tathagata então subiu em seu estrado de lótus, acima do qual não havia outro, e sentou-se com sua serenidade solene usual. Os três mil Budas, os quinhentos arhats, os oito reis diamantes e os quatro bodhisattvas cruzaram respeitosamente as mãos na altura do peito e se aproximaram de seu mestre.

Depois de se curvarem, mais uma vez, diante dele, perguntaram: 

— Quem foi o rebelde que mergulhou o Céu no caos e impediu a celebração do Festival dos  Pêssegos Imortais?

— Um macaco soberbo, nativo da Montanha das Flores e Frutos — respondeu Tathagata. — Sua maldade atingiu graus difíceis de imaginar, e seu poder alcançou níveis impossíveis de descrever. Tanto que todos os guerreiros celestiais não conseguiram dominá-lo. Embora Erlang Shen tenha conseguido capturá-lo e Lao-tzu tenha tentado refiná-lo como ouro, ninguém conseguiu infligir o menor dano a ele. Quando cheguei, ele fazia uma demonstração real de poder e força diante de um grupo desnorteado de deuses do trovão. Depois de parar a luta e perguntar sobre seu passado, ele respondeu que possuía poderes mágicos, os quais lhe permitiam se metamorfosear em qualquer ser que quisesse e percorrer cento e oito mil quilômetros com somente um salto nas nuvens. Apostei com ele que, apesar de tudo, ele não conseguiria escapar da minha mão e ele, fanfarrão como era, aceitou sem pensar duas vezes. Assim que o peguei na palma da mão, agarrei-o com força e fiz meus dedos se transformarem na Montanha dos Cinco Elementos, sob a qual ele agora está aprisionado. Assim que se inteirou do que eu tinha feito, o Imperador de Jade abriu os portões dourados de seu palácio para mim e ofereceu o Grande Banquete da Paz Celestial em minha homenagem, com a presença de inúmeros imortais. Acabei de deixar o trono para voltar para o seu lado.

Todos ficaram encantados com suas palavras. Depois de expressarem seus maiores elogios ao Buda, eles se retiraram de acordo com suas fileiras, retornando para seus vários deveres. Uma névoa sagrada se espalhou por toda a terra de Tianzhu (10), enquanto a luz do arco-íris envolveu o Venerável, também conhecido como o Primeiro do Oeste, o Mestre da Escola da Não-forma. Em seu reino de equilíbrio, macacos negros são frequentemente vistos oferecendo frutas, cervos de cauda longa segurando flores em suas bocas, fênixes azuladas dançando como donzelas, pássaros de mil cores cantando, tartarugas cheias de espírito se vangloriando de sua idade e garças divinas colhendo agárico. Juntos, desfrutam da paz que se respira na terra imaculada de Jetavana (11), no Palácio do Dragão e nas imensas margens do Ganges, onde as flores desabrocham todos os dias e os frutos amadurecem a cada hora. Ali eles trabalham o silêncio para voltar à existência plena e alcançar a perfeição. Eles não morrem, nem nascem, nem crescem, nem encolhem. Nesse mundo de bênçãos, as névoas se assentam e se dissipam, mas as estações são impedidas de entrar e o tempo não existe. O poema afirma:

"Aqui todos os movimentos são livres e fáceis e a dor e a tristeza deixaram de existir. Amplos e abertos são os campos do paraíso, onde as quatro estações jamais colocaram seus pés."

Certo dia, o Patriarca Budista reuniu todos os outros Budas, os Arhats, as divindades guardiãs, os Bodhisattvas, os Vajrapanis, os monges e monjas que viviam no Monastério do Trovão e lhes disse: 

— Desconheço o tempo exato que se passou desde que dominei o soberbo macaco e pacifiquei o céu. Eu estimo, no entanto, que sobre a terra deve ter se passado pelo menos um milênio. Hoje é o décimo quinto dia do primeiro mês do outono, e gostaria de compartilhar com vocês a tigela que preparei para celebrar a festa dos bem-aventurados. Eu a enchi com mais de cem tipos de flores exóticas e mil frutos estranhos. Espero que aceitem gentilmente minha humilde oferta.

Todos eles cruzaram as mãos sobre o peito ao mesmo tempo e se curvaram ante ao Buda três vezes seguidas. Tathagata então pediu a Ananda para coletar flores e frutos e distribuí-los entre os presentes com a ajuda de Kasyapa. Em prova de agradecimento, os bem-aventurados ofereceram seus poemas ao Venerável. O poema das bênçãos afirmava:

"A estrela da bênção brilha com força diante do Mais Venerável (12), o único capaz de gozar da felicidade eterna e total. Suas inúmeras virtudes duram tanto quanto o céu, de onde emana a fonte inesgotável de sua alegria. Seus campos ilimitados de bênçãos tornam-se ainda mais numerosos com o passar dos anos, enquanto a profundidade do oceano de sua felicidade permanece inalterada por séculos. O mundo está cheio de suas bênçãos e tudo o que existe se beneficia delas."

O poema da riqueza dizia:

"Suas riquezas, como o louvor das fênixes, superam as montanhas e proclamam sua longa vida em todos os lugares. Da mesma forma que seu corpo se torna cada vez mais saudável, sua fortuna aumenta sem cessar, espalhando o brilho de sua paz pelo mundo. Suas riquezas chegam aos céus, possuem o mesmo nome do mar, são cobiçadas por todos, não conhecem medida nem limite, e dão valor a inúmeras nações e terras."

O poema da longevidade afirma:

"A Estrela da Longevidade ofereceu seus presentes à Tathagata, de quem emana a luz que produz a vida sem fim. Os frutos da longevidade repousam sobre uma fruteira na qual se reflete a divindade. Seus botões, recém-colhidos, adornam o tronco do lótus. Quão belos e bem compostos são os poemas que a exaltam! As canções que a enaltecem só podem ser interpretadas por mentes privilegiadas. Sua duração supera a da lua e a do sol, a das montanhas e a do mar, com os quais às vezes é comparada."

Após apresentarem seus poemas, os bodhisattvas pediram a Tathagata que lhes revelasse o mistério das fontes e origens. Buda gentilmente abriu sua boca e se preparou para expor o grande dharma e proclamar a Verdade. Com a doçura serena que caracterizava todas as suas ações, falou-lhes da maravilhosa doutrina dos três meios, dos cinco skandhas (13) e do sutra ŚūrangamāEnquanto o fazia, dragões celestiais foram vistos circulando acima deles e, ao mesmo tempo, uma densa chuva de flores caiu sobre todos os presentes. Verdadeiramente, a doutrina do Zen é tão luminosa quanto o reflexo da lua em mil rios, e a própria essência das coisas é tão pura e ampla quanto o firmamento em um dia sem nuvens.

Terminando de doutrinar seus seguidores, Tathagata lhes disse:

— Observei cuidadosamente os Quatro Grandes Continentes e cheguei à conclusão de que a moralidade de seus habitantes varia muito de um lugar para outro. Aqueles que moram em Purvavideha, o continente oriental, adoram a Terra e o Céu e são pacíficos e honestos. Aqueles de Uttara-kuru, o continente do Norte, embora pareçam gostar de destruir toda forma de vida, eles o fazem por sua própria necessidade de subsistência. Na verdade, eles têm uma mente um tanto obtusa e uma vontade notavelmente apática, razão pela qual, no fundo, são incapazes de fazer mal a quem quer que seja. Os de Aparagodaniya, o continente ocidental, não são gananciosos nem mostram uma tendência desmedida para matar. São pessoas que controlam seus impulsos e dominam seus instintos. Não há, é claro, entre eles ilustres de primeira ordem, mas é certo que a grande maioria chegará a uma idade muito avançada. Por outro lado, aqueles que vivem em Jambudvipa, o continente do Sul, são propensos à lascívia, contenda, sacrifício de animais e todo tipo de transgressão. Eles são pegos na areia movediça da fofoca e no mar tempestuoso da difamação. No entanto, tenho em minha posse três grandes cestas de escrituras sagradas capazes de persuadir um homem a começar uma vida de virtude e boas obras.

Quando os bodhisattvas ouviram isso, eles cruzaram as mãos na altura do peito e, curvando-se respeitosamente, perguntaram:

— Sobre o que são os três cestos de escrituras de que você fala?

— Um — respondeu Tathagata — está cheio de vinayas, que tratam do céu; outro de sastras (14), que falam da terra; e o último, de sutras, que possuem a virtude de salvar os condenados. Eles contêm um total de trinta e seis divisões escritas em quinze mil cento e quarenta e quatro pergaminhos. São escrituras que incitam ao cultivo da verdade e constituem a porta que conduz à felicidade suprema. Eu mesmo iria levá-los aos habitantes das Terras Orientais, mas eles são tão estúpidos e zombam tanto da Verdade que desconhecem os princípios mais básicos de nossas leis e zombam abertamente da autêntica escola de Yoga. Precisamos, portanto, de alguém com peso moral suficiente para ir àquela parte do mundo e encontrar um verdadeiro crente, a quem pedirá o tremendo sacrifício de atravessar as mil montanhas e vadear os mil rios que o separam daqui para vir e recolher as escrituras. Assim, os habitantes do Oriente receberão a iluminação e poderão desfrutar de tantas bênçãos quanto os grãos de areia que compõem uma montanha ou as gotas d'água que compõem a imensidão de um oceano. Quem de vocês está disposto a empreender essa jornada?

Ele não havia terminado de dizer isso quando a Bodhisattva Guanyin subiu ao estrado de Lótus e, após prestar seus respeitos ao Buda, disse:

— Embora minhas luzes não sejam muitas e eu me considere a mais indigna de seus discípulos, ofereço-me para ir às Terras Orientais e encontrar o peregrino que você procura.

Surpresos, os outros Budas levantaram a cabeça e viram que a Bodhisattva possuía uma inteligência refinada na prática das quatro virtudes (15): um corpo enobrecido pela sabedoria perfeita, uma franja de pérolas e jade, pulseiras aromáticas decoradas com pedras preciosas de mil e uma espécies, cabelos pretos presos em um coque impressionante que lembra um dragão descansando e uma faixa elegante que a brisa agitava como uma pena de fênix. Sobre sua túnica de seda branca, destacava-se o verde dos botões de jade, que competiam em beleza com sua saia de veludo, orlada de brocados de ouro. A linha de suas sobrancelhas tinha a curvatura da lua nova, seus olhos pareciam ter roubado o brilho das estrelas, seu rosto, pálido como jade, emitia lampejos de felicidade completa, e seus lábios frescos traziam à mente a lembrança impossível de dois relâmpagos vermelhos. Em suas mãos ela segurava um vaso imaculado, do qual o néctar fluía continuamente, e um broto novo de salgueiro, que a passagem do tempo jamais poderia murchar. Só ela era capaz de controlar as oito aflições e, assim, redimir o povo. Grande era sua compaixão pelos sofredores e sua fama se estendeu além dos mares do sul, onde ele havia estabelecido sua residência, nas encostas do Monte Tai. Se um pobre a invoca, ela vem em seu auxílio e o liberta de suas angústias. Seu coração de orquídeas encanta com a verdura fresca dos bambus e sua natureza casta encanta com a vista. Ela é a amante misericordiosa da Montanha Potalaka, a Imortal Guanyin da Caverna do Som das Marés.

Tathagata ficou encantado com sua oferta e disse:

— Não há pessoa mais qualificada do que você para fazer uma viagem como essa. Pouco antes de você se aproximar de mim, eu estava pensando: Grandes são os poderes mágicos da Honorável Guanyin. Como tudo correria bem, se ela fosse a encarregada de realizar uma missão tão transcendente!

— Deseja me fazer alguma recomendação para a viagem? — perguntou a Bodhisattva, ansiosa para partir. 

— Olhe atentamente para o caminho. Tente não viajar muito alto, ficando em algum lugar entre as nuvens e a névoa. Desta forma, poderá ver claramente as montanhas e os cursos de água e será mais fácil calcular as distâncias exatas. É necessário que você forneça todas as informações que puder à pessoa escolhida para vir buscar as escrituras. Mesmo assim, a jornada será extremamente difícil e perigosa para você, então acredito que meus cinco talismãs serão de grande ajuda para você.

Tathagata se voltou para Ananda e Kasyapa e ordenou-lhes que trouxessem uma túnica bordada e um cajado sacerdotal de nove anéisEntregando-os à Bodhisattva, ele acrescentou:

— Entregue-os à pessoa de sua escolha. Se ela permanecer firme em sua intenção de vir buscar as escrituras, a túnica a ajudará a não cair na infatigável Roda da Transmigração. Por outro lado, uma vez que ela segure o cajado, ela estará livre de todos os venenos e ferimentos.

A Bodhisattva se curvou e pegou os presentes em suas mãos. Tathagata então pegou três pequenas coroas douradas e acrescentou:

— Esses tesouros são para você. Embora pareçam iguais, seus usos são totalmente distintos e cada um possui uma magia diferente. Com esta, por exemplo, é necessário recitar o chamado feitiço de ouro, a esta é necessário aplicar o que se conhece como feitiço constritivo, e esta só se torna eficaz quando é acompanhada do feitiço proibitivo. Se você encontrar algum monstro com poderes mágicos pelo caminho, faça-o ver o erro de suas ações e convença-o a acompanhar o homem que virá em busca das escrituras em sua jornada.  Se ele se opuser a se tornar seu discípulo, coloque uma dessas coroas em sua cabeça e recite o encantamento apropriado. Isso será o suficiente. Sua cabeça irá inchar como uma bolha e ele sentirá tanta dor que o fará pensar que seu cérebro explodirá a qualquer momento. Isso certamente fará com que se renda as suas vontades e adote nossa religião.

A Bodhisattva curvou-se novamente em gratidão e saiu da sala. Assim que ela se foi, o Buda chamou seu discípulo Huei-An e ordenou que ele não se separasse dela em nenhum momento. Huei-An possuía um enorme bastão de ferro que pesava mais de mil quilos, e cumpria o desejo de sua mestra com tanta fidelidade que não saia do lado da Bodhisattva nem de dia nem de noite, tornando-se, de fato, seu guarda-costas. A Bodhisattva dobrou a túnica de seda e colocou-a nas costas; em seguida, guardou as faixas de ouro com cuidado, pegou o cajado sacerdotal e desceu a Montanha do Espírito. Assim, iniciou-se uma jornada que resultará no retorno do discípulo de Buda, determinado a cumprir sua promessa, enquanto o Ancião da Cigarra Dourada (16) segurará a candana (17) em suas mãos.

Chegando ao sopé da montanha, a Bodhisattva foi recebida com todas as honras no portão do Templo Taoísta de Yü-Chen por Jinding Daxian, o "Grande Imortal da Cabeça Dourada". Ele a convidou para tomar um pouco de chá, mas ela não queria demorar muito, então lhe disse: 

— Tathagata me ordenou que fosse às Terras Orientais para procurar uma pessoa que estivesse disposta a vir aqui em busca das sagradas escrituras.

—  Quando você acha que essa pessoa vai chegar? — perguntou o imortal.

—  Não sei exatamente - respondeu a Bodhisattva. — Acho que levará pelo menos dois ou três anos.

Ela então se despediu do imortal e levantou voo a uma altura que não era nem mais alta que as nuvens nem menor que a névoa. Dessa forma, poderia mais tarde se lembrar da rota com mais clareza e estimar a distância com precisão. Há um poema sobre sua viagem que diz:

"Sua busca se extendeu por mais de dez mil milhas. Não é fácil dizer de antemão quem será a pessoa escolhida para cumprir tão elevada missão. Nunca houve um selecionador de homens mais cuidadoso do que ela. Por que não posso ser o sortudo? Discutir o Tao quando você não acredita firmemente nele é tão vazio quanto falar sobre algo que você não conhece. Se o destino me reservasse um destino tão elevado, eu gritaria minha fé até que minha garganta fosse destruída e minha bile e fígado fossem vomitados."

Logo chegaram à região do Rio da Corrente de Areia (18). Do alto, a Bodhisattva viu uma grande massa de água e, voltando-se para Huei-An, comentou: 

— Este lugar é muito difícil de atravessar. A pessoa selecionada para vir em busca das escrituras há de ter ossos quebradiços e carne mortal. Como ela fará para atravessar um rio tão largo assim?

— Quantos quilômetros de largura você acha que esse rio tem? — perguntou Huei-an.

A Bodhisattva parou sua nuvem e olhou de perto. Assim, ela descobriu que aquele imenso rio alcançava as praias arenosas pelo leste, unia os reinos bárbaros pelo oeste, chegava às terras de Wu-I pelo sul e se aproximava da nação dos tártaros pelo norte. Tinha mais de oitocentas milhas de largura e vários milhares de comprimento. A água corria por seu canal como se a terra tivesse sofrido um tremendo choque. Em alguns pontos, sua correnteza era tão violenta que as ondas que levantava lembravam uma montanha lutando para se erguer. Aquele era um corpo de água vasto, infinito, imenso e imensurável. O som produzido por sua torrente podia ser ouvido a muitos quilômetros de distância. Suas águas eram tão violentas que nem mesmo a balsa de um deus poderia atravessá-las. Mesmo uma simples folha de lótus não seria capaz de flutuar sobre elas. Por seu leito corriam apenas caules macerados de ervas sem vida. Como se a própria natureza compreendesse toda a magnitude de sua força destruidora, o sol era coberto, nos locais por onde passou, por uma massa de nuvens amareladas que escureciam significativamente suas margens. Como passariam por ali as caravanas mercantes? Ou como os pescadores atracariam suas embarcações? Gansos selvagens jamais desceram em seus bancos de areia, nem os macacos chegaram perto deles, preferindo beber em lugares mais distantes. Apenas algumas ervas silvestres com flores avermelhadas cresciam em lugares tão perigosos, salpicadas, de vez em quando, pela brancura das lentilhas d'água.

A Bodhisattva olhava desconsolada para o espetáculo oferecido pelo rio, quando de repente ouviu-se um barulho violento e um monstro terrível e assustador saltou da água. Ele tinha um rosto preto-esverdeado de tez sombria e um corpo vigoroso, nem muito curto nem muito longo. Seus olhos brilhavam como as chamas de um braseiro; sua boca, pontiaguda e ameaçadora, lembrava uma bacia de açougueiro cheia de sangue; seus dentes salientes pareciam facas afiadas; seus cabelos, totalmente desgrenhados, tinham uma arrepiante coloração avermelhada; e seus pés descalços lembravam a frieza dos mortos. Ele rugiu uma vez, e seu berro soou tão ameaçador quanto um trovão, enquanto suas pernas se moviam tão rápido que pareciam um redemoinho.


Com um cajado nas mãos, essa criatura diabólica correu para a margem e tentou agarrar a Bodhisattva. Felizmente, Huei-An se meteu em seu caminho e, brandindo seu bastão de ferro, gritou com autoridade:

— Detenha-se!

O monstro não recuou, erguendo seu cajado para enfrentá-lo. Os dois se envolveram em uma batalha feroz e terrível, como nunca havia sido visto no Rio da Corrente de Areia. Enquanto o bastão de ferro de Muzha se erguia para defender a justiça e a lei, o cajado do monstro o fazia para mostrar seu enorme poder. Ambos eram como duas serpentes de prata movendo-se rapidamente ao longo das margens do rio. 

Enquanto um queria fazer valer seus direitos como Senhor da Corrente de Areia, o outro queria apenas proteger Guanyin e assim aumentar seus já incontáveis ​​méritos. Um levantava tempestades de espuma e formava ondas gigantescas, enquanto o outro expira neblina e cospe vento. O céu e a terra sucumbem à sua influência e o sol e a lua, escurecidos por tão portentosos fenômenos, perdem parte de sua luminosidade benéfica. O cajado do monstro era feroz como um tigre branco saindo da montanha; o bastão de ferro, por outro lado, parecia um dragão amarelo se interpondo em seu caminho. O primeiro arranca a grama do solo, penetrando tão fundo nele que expõe as tocas das cobras. O segundo encurta o vôo dos milhafres ao derrubá-los e corta em dois os altos pinheiros da floresta. 

O confronto se estendeu até que a escuridão se tornasse espessa e as estrelas começassem a brilhar no céu. A essa altura, uma densa névoa se instalou sobre a terra, mergulhando tudo o que nela se instala em um mundo sem contornos. Mas isso não parecia importar nem ao perene habitante das águas, experiente e feroz lutador, nem ao eterno habitante da Montanha do Espírito, que busca neste combate o seu primeiro triunfo. Os dois lutaram por vinte ou trinta assaltos, mas nenhum deles obteve uma vantagem notável. Desconcertada, a fera interrompeu momentaneamente seus ataques e perguntou ao seu oponente:

— De onde você é? Certamente não são muitos os que se atrevem a me confrontar.

— Eu — respondeu Huei-An — sou o segundo filho do Devaraja Li-Jing. Embora meu nome seja Muzha, sou mais conhecido como Huei-An, como sou chamado no mundo religioso ao qual pertenço. Estou justamente acompanhando minha mestra às Terras Orientais em busca de alguém que queira ir até a Montanha dos Espíritos para coletar as escrituras sagradas.

— Agora eu me lembro! — exclamou o monstro, reconhecendo-o. — Há muito você segue os ensinamentos de Guanyin, levando uma vida de austeridades nos bosques de bambu dos mares do sul. Posso saber como você chegou aqui?

— Você não percebe que é exatamente dessa mestra que eu estava falando antes? — respondeu Muzha. — Se você olhar de perto, verá que a mulher parada na orla é a própria Guanyin.

Ao ouvir isso, o monstro se desculpou o melhor que pôde e deixou o cajado de lado. Então ele deixou Muzha pegá-lo pelo pescoço e conduzi-lo docilmente diante da serena figura da Bodhisattva. Ele se curvou respeitosamente diante ela e, sem ousar erguer os olhos do chão, disse:

— Peço-lhe gentilmente que me perdoe. Permita-me explicar-lhe por que fiz isso. Embora pareça o contrário, eu não sou um monstro, mas o Marechal Que Levanta a Cortina, encarregado de sair para receber a carruagem do Imperador de Jade no Salão da Névoa Divina. Durante a celebração do Festival dos Pêssegos Imortais, cometi o erro de quebrar uma taça de cristal, e o Imperador me sentenciou a receber oitocentas chicotadas, depois me baniu para as Regiões Inferiores e me transformou na besta que sou agora. Mas isso não é tudo. A cada sete dias ele envia uma espada voadora contra mim, que perfura meu peito e meu lado mais de cem vezes, antes de retornar ao local de onde partiu. Por isso, encontro-me no estado infeliz que você vê. O mais difícil de suportar, porém, é o frio e, sobretudo, a fome, que me obriga a sair da água de vez em quando em busca de um andarilho para devorar. O que menos imaginei é que era você e seu discípulo que hoje tentavam atravessar meu rio.

— Você foi expulso do céu por seu pecado — repreendeu-o a Bodhisattva. — Ao invés de se arrepender, você continuou a destruir vidas, então pode-se dizer que a única coisa que você fez todo esse tempo foi adicionar ofensa ao pecado. Como meu discípulo explicou a você, por ordem de Buda, estou indo para as Terras Orientais em busca de uma pessoa que queira ir e recolher as escrituras sagradas. Por que você não se refugia em mim, se ampara nas boas obras e acompanha, como discípulo, o escolhido, quando ele ir ao Paraíso Ocidental para pedir as escrituras ao Buda? Se o fizer, darei ordem à espada voadora para parar de incomodá-lo. Além disso, isso ajudará você a acumular méritos, o que fará com que o Imperador de Jade esqueça seu pecado e restitua sua antiga posição. O que você acha do que eu acabei de te dizer?

— Estou ansioso para recomeçar uma vida virtuosa — confessou o monstro. — Mas devorei tantos seres humanos neste lugar que acredito que o perdão não é mais possível para mim. Inúmeras pessoas passaram por aqui procurando as sagradas escrituras e eu devorei todas. Suas cabeças estão no fundo desse rio de areia, pois você já sabe que suas águas são tão especiais que nada consegue boiar nelas. Ainda assim, houveram nove que permaneceram à tona, totalmente relutantes em afundar. Este é um fato milagroso, que deveria ter me feito refletir. Mas, em vez disso, amarrei-as com uma corda e agora, e quando estou entediado e não sei o que fazer, me divirto brincando com elas. Se isso se tornar conhecido, tenho que nenhum peregrino ousará passar por aqui. Isso não vai comprometer meu próprio futuro?

— Que absurdo! Como não ousaria vir até aqui? — exclamou a Bodhisattva. — O que você tem que fazer é pendurar essas cabeças no seu pescoço. Encontraremos alguma utilidade para elas quando a pessoa que escolhermos chegar.

— Nesse caso — concluiu o monstro, mais calmo — , aceito receber seus ensinamentos.

A Bodhisattva então colocou as mãos em sua cabeça e administrou-lhe as regras monásticas. Tomando a areia como testemunha, Guanyin deu-lhe o nome religioso de Sha Wujing (19), passando assim a fazer parte do mundo dos iluminados. 

Depois que a Bodhisattva partiu, ele lavou seu coração e assim ficou purificado. Nunca mais matou ninguém, dedicando-se a partir de então a esperar impacientemente a chegada do homem das escrituras.

Enquanto isso, a Bodhisattva e Muzha continuaram sua longa jornada. Depois de algum tempo, encontraram uma montanha muito alta, de onde emanava um odor tão fétido que era impossível escalá-la a pé. Enquanto eles se preparavam para subir em suas nuvens para voar através dela, um vento muito forte surgiu de repente e outro monstro de aparência feroz apareceu diante deles. Ele possuía lábios carnudos e torcidos como folhas de lótus secas, orelhas grandes como leques de junco, olhos brilhantes e perversos, dentes escancarados e afiados como limas de aço puro e uma boca longa e larga como uma panela. Na cabeça trazia um gorro preso ao queixo com tiras de couro, que, como os que prendiam a armadura ao corpo, pareciam ser de pele de cobra. Em sua mão ele segurava um ancinho, que recordava a pata aberta de um dragão. De sua cintura pendia um arco em forma de meia-lua, dando-lhe um ar ao mesmo tempo orgulhoso e terrível. Sua aparência era a de um lutador tão implacável e cruel que até os próprios deuses teriam se intimidado ao vê-lo.

Ele avançou contra os dois viajantes com a rapidez da brisa e, sem aviso, ergueu seu ancinho e tentou golpear a Bodhisattva. Felizmente, Huei-An desviou o golpe com o bastão de ferro, enquanto gritava furioso:

— Maldito monstro! Como você pode ser tão insolente? Se você quiser lutar, estou disposto a fazer você testar o poder do meu bastão.

— Você não sabe com quem está falando, monge estúpido! — respondeu o monstro. — Você deveria ser um pouco mais prudente, pois meu ancinho é invencível.

Os dois entraram em combate com uma ferocidade que fez tremer a própria encosta da montanha. Seu encontro foi um dos mais magníficos que a história já testemunhou. Se o monstro exalava bravura, Huei-An não ficava muito atrás. O bastão de ferro mirava o coração de seu inimigo, enquanto o ancinho se esforçava para rasgar o rosto de seu atacante. Seus movimentos rápidos como um raio levantavam lama e nuvens de poeira que escureceram o céu e a terra. 

Os deuses e demônios ficaram apavorados com tamanha violência. O ancinho emitia um barulho de morte, girando sem parar no ar, brilhante como o cintilar de uma estrela. O bastão de ferro, por outro lado, negro como o coração da noite, voava nas mãos de um príncipe. O filho de um Devaraja, defensor da fé em Potalaka, enfrentava o espírito de um grande marechal, que vivia numa caverna transformado em monstro. Seus méritos guerreiros eram tão semelhantes que ninguém podia dizer quem venceria e quem perderia.

Quando a batalha parecia ter atingido o seu ápice, Guanyin deixou cair do céu algumas flores de lótus, e instantaneamente o ancinho e o bastão se separaram. 

Espantado com tal presságio, o monstro perguntou apressadamente:

— De onde você vem? Devo admitir que o truque das flores é francamente extraordinário.

— Maldita besta de olhos cegos e corpo mortal! — exclamou Muzha. — Eu sou um discípulo da Bodhisattva dos Mares do Sul, e estas são flores de lótus lançadas pela minha mestra. Você não a reconhece?

— A Bodhisattva dos Mares do Sul? — repetiu o monstro. — Você quer dizer Guanyin, aquela que afasta as três calamidades de nós e nos salva dos oito perigos?

— Quem mais poderia ser? — respondeu Muzha, mal-humorado. A besta instantaneamente jogou o tridente no chão, abaixou a cabeça e, curvando-se respeitosamente, disse:

— Você pode me dizer, respeitável irmão, onde está a Bodhisattva? Se você tiver a gentileza de me apresentar a ela, eu seria infinitamente grato.

Muzha ergueu a cabeça e apontou para cima, dizendo:

— Você não está vendo-a ali? 

O monstro se jogou de cara no chão e, sem parar de bater com a testa no chão, implorou em voz alta:

— Perdoe-me, Bodhisattva! Perdoe-me!

Guanyin imediatamente desceu de sua nuvem e, aproximando-se dele, perguntou:

— De onde você é e por que ousou se meter no meu caminho, porco selvagem ou sei lá o quê?

— Eu não sou uma besta qualquer — respondeu o monstro, humildemente — , mas o ex-Marechal dos Juncos Celestiais (20). O Imperador de Jade ordenou que eu fosse espancado mais de duas mil vezes seguidas com uma marreta e depois me baniu para este mundo de poeira e sombras, porque em certa ocasião me embebedei e comecei a flertar com a Deusa da Lua (21). Isso me obrigou a procurar um novo corpo para reencarnar. Mas, sem saber como, me perdi e fui parar no ventre de uma porca. Não é de admirar que você tenha me confundido com um porco selvagem. Eu mesmo fiquei tão assustado com minha aparência, que mordi a porca que me deu à luz e o resto da ninhada até a morte. Mais tarde, assumi esta montanha e passei meus dias devorando pessoas. Mas eu jamais esperei que um dia lhe conheceria. Tenha pena de mim, Bodhisattva! Eu te imploro!

— Como se chama esta montanha? — perguntou-lhe a Bodhisattva.

— O Monte Abençoado, senhora — respondeu ele. — Nele existe uma gruta conhecida como Caminhos Nublados, na qual viveu uma velha chamada Luán. Assim que ela soube que eu era um mestre de artes marciais, veio imediatamente pedir-me para tomar conta do local como seu marido. A pobrezinha morreu depois de um ano, deixando-me a caverna inteira como herança. Como lhes disse, vivo neste lugar há muito tempo, mas como não aprendi a me sustentar, fui forçado a devorar inúmeras pessoas. Peço-lhe que me perdoe um pecado tão horrendo, senhora!

— Existe um velho provérbio que diz: "Quem deseja ter um amanhã, deve agir com retidão em todos os momentos." — disse-lhe Guanyin. — Você não apenas colocou as Regiões Superiores contra você, mas, acima de tudo, se dedicou a matar todos os seres vivos que tiveram a infelicidade de passar por aqui. Você não entende que crimes tão horrendos não podem ficar impunes?

— O amanhã? O que importa para mim o amanhã? — exclamou a besta. — Se eu te ouvir, o mais provável é que acabe me alimentando do ar. Se bem me lembro, existe outro provérbio que diz: "Se você seguir as regras do tribunal, provavelmente morrerá por espancamento; se respeitar as leis de Buda, saiba com certeza que morrerá de fome". Então é melhor você me deixar ir. Prefiro continuar comendo viajantes do que virar um esqueleto vivo. O que me importa, afinal, mais dois crimes, ou três, ou mil, ou dez mil? Dá no mesmo!

— Existe outro provérbio —  respondeu a Bodhisattva — , que afirma: "O céu ajuda aquele que está cheio de intenções corretas". Garanto-lhe que, se você decidir voltar ao caminho da virtude, nunca passará fome e seu corpo será mais saudável e gordo do que agora. No mundo existem cinco tipos diferentes de grãos, capazes de aliviar a fome. Eu não entendo porque você tem que se alimentar de seres humanos.

Ao ouvir essas palavras, a besta se sentiu como quem acorda de um sonho e disse, com tristeza:

— Você não sabe o quanto eu gostaria de seguir o caminho da verdade! Mas ofendi tanto o céu que minhas orações perderam todo o valor.

— Se estou aqui — tentou consolá-lo a Bodhisattva — é porque Buda me mandou ir às Terras Orientais em busca de uma pessoa para recolher as sagradas escrituras. Se você concordar em se tornar seu discípulo e acompanhá-lo ao Paraíso Ocidental, tenha certeza de que seus pecados serão perdoados e você nunca mais sofrerá nenhum dos infortúnios que agora o afligem.

— Claro que concordo! Com certeza o seguirei! — exclamou a besta, animada.

A Bodhisattva então colocou as mãos em sua cabeça e administrou-lhe as regras monásticas. Então, tomando seu próprio corpo como testemunha, deu-lhe o nome religioso de Zhu Wuneng (22). A partir de então, ele tornou-se um fervoroso budista, jejuando o máximo que podia e seguindo minunciosamente uma dieta vegetariana, abstendo-se firmemente de cinco refeições proibidas (23) e os três alimentos impuros (24), e aguardando impacientemente a chegada do viajante das escrituras.

Satisfeitos com o trabalho realizado, a Bodhisattva e Muzha se despediram de Zhu Wuneng e continuaram seu vôo de meia altitude através das nuvens e névoa. Após um tempo, eles viram um jovem dragão pedindo ajuda e, aproximando-se dele, a Bodhisattva perguntou-lhe, surpresa:

— Quem é você e por que está aqui?


— Eu sou o filho de Ao-Jun, o Rei Dragão do Oceano Ocidental — , respondeu ele. — Sem perceber, queimei o palácio e muitas das pérolas mais valiosas escondidas nos mares queimaram com ele. Enfurecido, meu pai enviou um relatório à Corte Celestial, acusando-me de desobediência grosseira, e o Imperador de Jade me pendurou no céu e me deu trezentas chicotadas. O mais desesperador, porém, é que ele planeja me executar em alguns dias. Por favor, salve-me, Bodhisattva!

Sem perder tempo, Guanyin e Muzha seguiram a toda velocidade em direção ao Portão Sul do Palácio Celestial, onde foram recebidos pelos preceptores Chiou e Chang, que lhes perguntaram:

— Podemos saber onde vocês estão indo?

— Esta humilde monja — respondeu a Bodhisattva — gostaria de ter uma audiência com o Imperador de Jade.

Imediatamente, os dois preceptores foram anunciar sua chegada e o próprio Imperador de Jade saiu alguns segundos depois para recebê-la. Após cumprimentá-lo com o respeito que lhe era costumeiro, a Bodhisattva disse:

— Esta humilde monja está viajando por ordem de Buda até as Terras Orientais, para encontrar uma pessoa que esteja disposta a recolher as escrituras sagradas. Acabei de encontrar um dragão pendurado no céu e vim pedir-lhe que poupe a vida dele e, em vez de executá-lo, entregue-o a mim. Poderia ser um meio de transporte esplêndido para o peregrino que estou procurando.

Ele não tinha acabado de dizer isso, quando o Imperador de Jade concedeu o perdão ao prisioneiro, ordenando às sentinelas celestiais que o libertassem e o entregassem à Bodhisattva. Guanyin agradeceu o gesto do imperador, enquanto o jovem dragão caiu de cara no chão e bateu com a testa no chão, jurando obediência e submissão eternas. A Bodhisattva o enviou para viver em um riacho da montanha com a ordem de que, quando o Peregrino que ela procurava passasse, ele se transformaria em um cavalo branco e o levaria ao Paraíso Ocidental. O jovem dragão prontamente obedeceu à ordem, mergulhando no local que lhe fora ordenado.

A Bodhisattva e Muzha deixaram a montanha para trás e continuaram sua jornada para o leste. Em pouco tempo, eles se depararam com dez mil raios de luz dourada e mil camadas de vapor brilhante. Profundamente impressionado com sua beleza, Muzha virou-se entusiasmado para sua mestra e disse:

— Esse lugar esplêndido deve ser a Montanha dos Cinco Elementos. Na verdade, posso ver daqui as palavras que o Tathagata escreveu nele.

— Então é lá que está aprisionado o Grande Sábio, Sósia do Céu, que semeou o caos nas alturas e impediu a celebração da Festa dos Pêssegos Imortais? — perguntou a Bodhisattva.

— Sim, é — confirmou-lhe Muzha.

Curiosos, eles chegaram ao topo e viram o pergaminho no qual estavam escritas as palavras mágicas "Om mani padme hum". A Bodhisattva suspirou e recitou o seguinte poema:

"Tenha pena do macaco ímpio, que desrespeitou a lei e procurou imprudentemente se tornar um grande herói. Escravo do orgulho, ele destruiu o Festival e causou confusão no Palácio Tushita. Nenhum dos dez mil soldados celestiais era rival digno dele, o eterno semeador de terror nas nove esferas do Céu. Quando ele retornará, prisioneiro do Soberano Tathagata, para provar o mel da liberdade e testar novamente a força de seu poder?"

Essas palavras pareceram perturbar a silenciosa meditação do Grande Sábio, que, erguendo a voz, perguntou do fundo da montanha:

— Posso saber quem está aí em cima compondo versos que falam tão claramente dos meus erros?

A Bodhisattva então deixou a segurança do cume e começou a observar, curiosa. Junto a uma saliência rochosa, ela viu sentado o espírito local, o deus da montanha e as sentinelas celestiais encarregadas da custódia do Grande Sábio. Assim que notaram sua presença, levantaram-se de seus assentos e correram para cumprimentá-la, curvando-se respeitosamente diante dela. Em seguida, eles a levaram para o local onde o Grande Sábio estava trancado. Ela abaixou a cabeça e viu que ele estava confinado em uma espécie de caixa de pedra que, embora lhe permitisse falar claramente, o impedia totalmente de se mover.

— Ei você! Você me reconhece? — perguntou-lhe a Bodhisattva.

— Como não te reconheceria? — respondeu o Grande Sábio, balançando a cabeça e abrindo ao máximo seus olhos ferozes com pupilas de diamante. — Você é a Poderosa Intercessora, a Misericordiosa Bodhisattva Guanyin da Montanha Potalaka dos Mares do Sul. Obrigado, muito obrigado por se lembrar de mim e vir me ver. Neste lugar, o tempo passa muito devagar e os dias duram como anos, porque nenhum conhecido meu se atreveu a vir aqui me visitar. Você se importaria de me dizer de onde você vem?

— Recebi uma ordem de Buda para ir às Terras Orientais procurar uma pessoa que esteja disposta a vir e recolher as escrituras sagradas — respondeu a Bodhisattva— Passando por aqui, lembrei-me que você estava trancado nesta montanha e resolvi fazer-lhe uma visita e aproveitar para descansar um pouco.

— Tathagata me enganou — disse o Grande Sábio com amargura. — Passei mais de quinhentos anos sob esta montanha, sem poder se mover ou falar com ninguém. Peço-lhe que tenha um pouco de compaixão e me livre deste tormento.

— Você tem que admitir que seus pecados foram muitos — comentou a Bodhisattva. — Além disso, se eu deixar você ir, temo que você voltará a usar seus velhos truques, e então sua sorte será pior do que agora.

— Não, não — negou decisivamente o Grande Sábio. Agora eu sei o significado da palavra penitência. Tenha pena de mim e mostre-me o caminho certo, pois atualmente meu único desejo é me entregar totalmente às práticas religiosas.

Verdadeiramente, "quando uma ideia floresce no coração de um homem, ela chega imediatamente ao conhecimento do Céu e da Terra. Se o bem e o mal não são recompensados e punidos, o mundo está fadado a injustiça".

Quando a Bodhisattva ouviu suas palavras, ela foi tomada por uma imensa alegria e disse ao Grande Sábio:

— A escritura diz: "Uma palavra justa sempre recebe uma resposta, enquanto uma injusta só encontra oposição." Se você realmente tem o propósito que acabou de me expressar, espere até que eu chegue à Nação dos Tang, nas Terras Orientais, e encontre o homem que virá em busca das escrituras. Eu direi a ele para libertá-lo quando ele passar, e você se tornará seu discípulo. Você respeitará os ensinamentos e recitará incessantemente os mil nomes de Buda, iniciando assim uma nova vida de recolhimento e mortificação. Você está disposto a fazer isso?

— Claro! — exclamou o Grande Sábio.

— Se você irá se dedicar à prática da virtude — continuou a Bodhisattva — , é necessário que você tenha um nome religioso.


— Eu já tenho um — respondeu-lhe o Grande Sábio. — Na religião, sou conhecido como Sun Wukong.

— Antes de você — comentou a Bodhisattva — houveram outras duas pessoas que, ao abraçar nossa fé, receberam justamente nomes que giravam em torno do caractere "Wu". Seu nome vai concordar com o deles perfeitamente, e isso é realmente esplêndido. De qualquer forma, não tenho mais nada para lhe dizer no momento. Sinto muito, mas tenho que continuar meu caminho.

Assim, o Grande Sábio retornou ao credo budista, tornando-se um iluminado. A Bodhisattva e Muzha levantaram vôo e seguiram para o leste. 

Em poucos dias, eles chegaram em Chang-An, a capital da Grande Nação Tang. Deixando de lado as nuvens que os trouxeram até lá, eles se disfarçaram como dois monges mendicantes cobertos de feridas purulentas (25) e assim entraram na cidade. Fazia pouco tempo que o sol havia se posto. Passando por uma das ruas, eles avistaram o templo do espírito local e entraram nele. Alarmados, os demônios que guardavam os seus portões e o próprio espírito caíram com o rosto no chão e, sem cessar de bater com a testa no mesmo, respeitosamente os acolheram. O espírito local então correu para relatar sua presença ao deus guardião da cidade e às divindades dos outros templos de Chang-An. Assim que descobriram de quem se tratava, correram em massa para prestar suas homenagens, dizendo:

— Perdoe-nos, Bodhisattva, por demorarmos tanto para vir recebê-los.

— Tudo bem, tudo bem — respondeu a Bodhisattva. — Vocês estão perdoados, mas ninguém deve revelar minha presença nesta cidade. Eu vim aqui, por ordem expressa do Buda, em busca de um homem que queira coletar as sagradas escrituras. Então, receio ter que ficar com você até encontrar a pessoa certa. Estimo, no entanto, que não levará mais do que dois ou três dias.

Mais tranquilos, os deuses retornaram às suas residências habituais, mas enviaram o espírito local para a residência da divindade guardiã da cidade, para que a Bodhisattva e o seu discípulo permanecessem incógnitos no templo do espírito. Não sabemos que tipo de pessoa a Bodhisattva escolheu para cumprir a elevada missão que o Buda lhe confiou. Quem quiser descobrir terá que ouvir com atenção o que é dito no próximo capítulo.


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    Notas do Capítulo VIII:

    1. Chang-An, mais tarde conhecida como Xi-An, foi a capital do império durante a dinastia Tang (618-906).
    2. Para os budistas não há nada menor que o grão de mostarda nem maior que o Monte Sumeru, onde fica o paraíso de Indra. Assim, exemplifica-se a afirmação filosófico-mística de que o menor contém o maior.
    3. O Dhuta Dourado de Mahakasyapa, é um dos principais discípulos de Buda, considerado o primeiro compilador do cânone budista. A ele também é creditada a criação do Zen, método de meditação que o próprio Sakyamuni lhe transmitiu pessoalmente, ao colher uma flor.
    4. O budismo divide os seres vivos em quatro categorias, de acordo com suas diferentes formas de vir a este mundo: os que nascem do ventre de suas mães, os que saem de ovos, os que emergem da umidade e os que passam a existir por meio de um processo metamórfico.
    5. Existem seis possibilidades diferentes de reencarnação: como seres infernais, como espíritos famintos, como espíritos malignos, como animais, como homens e como seres celestiais.
    6. Tzao-Chr é o nome de um rio na província de Kwantung, em cujas margens Huei-Nang, o sexto patriarca do Zen, ensinou suas doutrinas durante a dinastia Tang.
    7. Chiou-Ling, ou Pico do Abutre, é o lugar onde o Buda deu a conhecer o Sutra do Lótus.
    8. Os três tesouros referem-se ao "trisarana", ou as três realidades que o budismo considera mais valiosas: Buda, a lei e a comunidade dos monges.
    9. Refere-se à luz "sari", que envolve, como uma auréola, o corpo do Buda, tornando-o mais luminoso que o próprio sol.
    10. A Índia era anteriormente conhecida entre os chineses pelo nome de Tien-Chu.
    11. A terra ou parque de Jetavana, localizada nas proximidades de Sravasti, foi um dos lugares favoritos do Buda histórico, onde ele expôs muitas de suas doutrinas.
    12. O "Mais Venerável" é um dos muitos epítetos aplicados ao Buda.
    13. Os cinco "skandhas" são as capacidades com as quais os seres inteligentes são dotados: forma, percepção, pensamento, ação e conhecimento.
    14. Tanto o "vinaya" quanto o "sastra" são dois tipos diferentes de escritos budistas, nos quais se misturam princípios filosóficos, religiosos e culturais.
    15. Enquanto para os confucionistas as quatro virtudes essenciais eram compostas por piedade filial, respeito fraterno, lealdade e honestidade, para os budistas eram compostas por permanência, alegria, identidade e pureza.
    16. O Mestre da Cigarra Dourada ( Jinchan zi , 金蟬子) é o segundo discípulo fictício do Buda. O monge Xuanzang é visto como sua reencarnação.
    17. Instrumento feito com uma variedade de sândalo que cresce no sul da Índia e que é conhecida pelo mesmo nome.
    18. Rio da Corrente de Areia é o nome dado à bacia Chou-Shuei, na província de Kansu.
    19. Seu nome significa, literalmete, "a areia que abre os olhos para a pureza".
    20. De acordo com o taoísmo popular, o Marechal dos Juncos Celestiais é um dos quatro imortais que servem como conselheiros do Imperador de Jade.
    21. Chang'e, a Deusa da Lua, era a esposa de Hou Yi, o arqueiro que abateu com suas flechas nove dos dez sóis que então brilhavam no firmamento. Depois de beber o elixir que Xi Wang Mu havia dado ao seu marido, ela se tornou imortal e buscou refúgio na lua.
    22. Seu nome significa "o porco que abre os olhos para o poder".
    23. Os cinco alimentos proibidos podem referir-se ou a carne de cavalo, cão, novilho, ganso e pombo, ou a vegetais fortes como alho-poró, alho, cebola, cebolinha e cebolinho.
    24. O taoísmo, por sua vez, considerava impura a carne de patos selvagens, cachorros e peixes pretos.
    25. Era uma constante na literatura popular os santos se disfarçarem de monges mendicantes sofrendo de doenças repulsivas.



    • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
    • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
    fontes consultadas para a pesquisa:

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