30 de maio de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo LX

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang

CAPÍTULO LX:

O REI TOURO ABANDONA A BATALHA PARA PARTICIPAR DE UM ESPLÊNDIDO BANQUETE. O PEREGRINO TENTA, PELA SEGUNDA VEZ, OBTER O LEQUE DE FOLHAS DE PALMEIRA.

 Esse Rei Poderoso de quem falo é, na verdade, o Rei Touro — explicou o espírito da montanha. 

 Isso significa que é ele quem provoca essas chamas e que o nome Montanha de Fogo é tão falso quanto o leque que sua esposa me emprestou.

— Não, não é isso — corrigiu o espírito da montanha. — Não me atrevo a contar toda a história, a menos que prometa não se irritar comigo.

— Pode falar sem receios — encorajou o Peregrino.

— Esse fogo foi provocado por você — disse o espírito da montanha.

— Não diga besteiras! — exclamou o Peregrino, irritado. — Nunca estive neste lugar! Por acaso pareço um incendiário?

— Vejo que não me reconhece — prosseguiu o espírito da montanha. — Antes, não havia montanha alguma aqui. Tudo começou há aproximadamente quinhentos anos, quando você causou um caos total no Palácio Celestial e foi entregue a Lao-Tzu pelo sábio ilustre que o capturou (1)Como deve se lembrar, o Patriarca Taoísta o colocou no Braseiro dos Oito Trigramas para fazê-lo passar por um processo completo de purificação. No entanto, ao levantar a tampa, você saltou do forno do elixir e o derrubou no chão. Algumas brasas caíram exatamente naquele lugar e se transformaram na Montanha de Fogo que agora vê. Naquela época, eu era o encarregado do braseiro do Palácio Tushita. Lao-Tzu me acusou de negligência e me expulsou de sua presença. Sem ter para onde ir, acabei me tornando o espírito local desta montanha.

— Então você é um taoísta? — exclamou Bajie, franzindo o rosto. — Não me surpreende que esteja vestido dessa maneira.

— Continue contando a história — pediu o Peregrino, ainda desconfiado. — O que o Rei Touro tem a ver com isso?

— Embora ele seja o marido da Rakshasi — prosseguiu o espírito da montanha —, ele a abandonou há algum tempo e foi viver na Caverna que Toca as Nuvens, localizada na Montanha da Provisão de Trovões. Por mais de dez mil anos, essa caverna foi habitada por um Rei Raposa, que, infelizmente, faleceu, deixando uma filha chamada Princesa do Rosto de Jade e inúmeras propriedades, que ficaram abandonadas. Há cerca de dois anos, ao saber que o Rei Touro possuía poderes mágicos extraordinários, a princesa lhe ofereceu toda sua riqueza como dote e se casou com ele. Isso explica por que o Rei Touro não vive mais com a Rakshasi nem apareceu por aqui desde então. Ele ainda mantém em seu poder o verdadeiro leque de folhas de palmeira. Se conseguir encontrá-lo e convencê-lo a emprestar o leque, poderá realizar três boas ações: ajudar seu mestre a continuar a viagem, libertar as pessoas que vivem aqui desta maldição de fogo e garantir meu perdão por parte de Lao-Tzu, permitindo que eu finalmente retorne aos Céus.

— Onde fica a Montanha da Provisão de Trovões e a que distância está daqui? — perguntou o Peregrino.

— Sete mil e quinhentos quilômetros ao sul — respondeu o espírito da montanha.

O Peregrino ordenou a Bajie e ao Monge Sha que cuidassem do mestre. O espírito da montanha prontamente se ofereceu para fazer companhia durante sua ausência e se despediu do Peregrino, que desapareceu atrás das nuvens a uma velocidade impressionante. Após meia hora de viagem, ele se deparou com uma imensa montanha. Seu cume se perdia no azul do céu, enquanto sua base mergulhava profundamente nas entranhas da terra. A face sul estava coberta por uma densa vegetação tropical, enquanto a norte permanecia soterrada por uma camada de gelo, que nem o calor do verão conseguia derreter. Ali reinava um inverno perpétuo, com ventos gélidos e geadas implacáveis. Que contraste com a face onde o sol dominava! Ali, lagos onde dragões habitavam formavam uma rede de águas cristalinas, cujas margens eram adornadas por flores coloridas. Até nas tocas dos tigres, escondidas entre os penhascos, brotavam botões de flores prestes a desabrochar. Troncos de árvores se entrelaçavam sobre as rochas, como se quisessem admirar seu reflexo nas águas verde-jade. Tudo naquele cenário exibia uma proporção tão perfeita que a aspereza das pedras parecia se repetir nos troncos dos abetos e pinheiros. Mais do que um lugar real, o que os olhos contemplavam parecia uma pintura viva. As montanhas eram altíssimas, os penhascos inacessíveis aos pés humanos, os riachos corriam por gargantas profundas, as flores exalavam fragrâncias divinas, os frutos estavam no auge da maturidade, os áceres mantinham-se eternamente tingidos de vermelho, os pinheiros tinham um tom levemente azulado e os salgueiros rivalizavam em verdor com o jade. Nada mudava naquele paraíso extraordinário. As cores mantinham seus tons vivos há mais de dez mil anos.

Encantado com tamanha beleza, o Grande Sábio permaneceu por longos minutos no cume onde pousara. Depois, desceu em busca de orientação, tentando compreender aquele lugar que parecia saído de um sonho. Estava indeciso sobre que caminho seguir quando viu uma jovem surgir de um bosque de pinheiros. Ela segurava uma orquídea nas mãos e parecia tão imersa em seus pensamentos que o Grande Sábio não teve coragem de interrompê-la. Escondeu-se atrás de algumas pedras e a observou com atenção. 

Sua beleza era tão deslumbrante que poderia abalar impérios. Seus passos eram leves como fios de seda se desfazendo ao vento. A pureza de suas feições superava a de Wang Chiang (2) e da donzela de Qiu. Sua figura lembrava uma escultura de jade ou uma flor com o dom da fala. O coque negro que enfeitava seu penteado destacava ainda mais o brilho intenso de seus olhos. Sua saia de seda deixava à mostra seus pés extremamente delicados. As mãos, alongadas e elegantes, estavam descobertas, pois ela havia erguido as mangas até a altura dos pulsos. Era tamanha a perfeição de sua figura que as palavras falhavam em descrevê-la. Como poderia ser diferente, se seus dentes eram como pérolas, e o desenho de suas sobrancelhas lembrava a suavidade das curvas do rio Qin? Nem mesmo Wenjun (3) ou Xue Tao (4) poderiam ser comparadas a ela.

Quando a jovem se aproximou das pedras onde estava escondido, o Grande Sábio inclinou-se diante dela e perguntou, sorrindo:

— Para onde vai, Bodhisattva?

A jovem não havia percebido sua presença e, ao ouvir a voz que a chamava, levantou a cabeça, curiosa. Então, um arrepio percorreu seu corpo. Nunca em sua vida tinha visto alguém tão feio quanto o Grande Sábio, mas ele estava perto demais para que conseguisse fugir. Ela então reuniu coragem e perguntou, com a voz trêmula de medo:

— Está falando comigo? Pode me dizer de onde veio?

— Se eu mencionar o assunto das escrituras sagradas — pensou o Grande Sábio antes de responder — é bem provável que ela corra e conte tudo ao Rei Touro. É melhor fingir ser um de seus antigos súditos, vindo para convencê-lo a retornar.

Como ele permanecia calado, a jovem perdeu a paciência e tornou a perguntar, irritada:

— Quem você pensa que é para se atrever a me abordar assim, em pleno bosque?

— Venho da Montanha da Nuvem de Jade — respondeu o Grande Sábio, inclinando-se mais uma vez diante dela. — É a primeira vez que visito esta região e não sei exatamente onde estou. Pode me dizer se esta é a Montanha da Provisão de Trovões?

— Sim, é — confirmou a jovem.

— Sabe me dizer se há por aqui uma caverna chamada de  Caverna que Toca as Nuvens? — perguntou novamente o Grande Sábio.

— E por que quer saber? — retrucou a jovem, desconfiada.

— Fui enviado pela Princesa Leque de Ferro, da Caverna da Folha de Palmeira, na Montanha da Nuvem de Jade, para buscar o Rei Touro — respondeu o Grande Sábio.

Ao ouvir isso, a jovem ficou vermelha de raiva e começou a gritar:

— Aquela vadia imunda! Não existe criatura mais desprezível do que ela! Já faz dois anos que o Rei Touro está em minha casa, e eu já perdi a conta de quantas joias, pedras preciosas, peças de cetim e rolos de seda ela já lhe enviou. Em troca, ele a abastece com lenha para um ano e arroz para um mês! Mesmo sendo riquíssima, essa cadela aceita tudo de bom grado, achando que assim vai conseguir mantê-lo preso às suas saias. Ela não sente vergonha? E agora ainda manda alguém como você, achando que pode simplesmente arrastá-lo de volta, como se fosse um objeto sem sentimentos!

Ao ouvir tais palavras, o Grande Sábio percebeu que a jovem à sua frente era, na verdade, a Princesa do Rosto de Jade. Fingindo uma ira que não sentia, sacou o seu bastão de ferro com os extremos de ouro e rugiu:

— Sua descarada! Comprou o Rei Touro com suas riquezas e ainda tem a ousadia de dar lições de moral? Foi você quem o tratou como uma mercadoria! A única envergonhada aqui deveria ser você!


Ao ver tamanha fúria no semblante do Grande Sábio, a jovem perdeu toda a confiança e começou a tremer de medo. Sentia-se fraca, como se a vida já a tivesse abandonado. Ainda assim, reuniu o que lhe restava de forças e fugiu desesperada. O Grande Sábio correu atrás dela, gritando e insultando-a como se estivesse fora de si. Os dois atravessaram um bosque de pinheiros até que, de repente, surgiu diante deles a entrada da Caverna que Toca as Nuvens. Ofegante, a jovem correu para dentro e fechou as portas às pressas. 


O Grande Sábio interrompeu a perseguição e começou a observar atentamente o local em que a caverna estava situada. Ao redor, o bosque se tornava mais denso e os rochedos, mais íngremes. A sombra dos bordos desenhava um rendado de silhuetas móveis sobre as orquídeas, que exalavam um perfume ao mesmo tempo doce e sedutor. Um riacho de águas verde-jade cortava um bosque de bambus, cujos caules gemiam suavemente ao ritmo da brisa. As rochas pareciam descansar sobre um leito de pétalas e botões, enquanto as colinas ao longe se escondiam sob um véu branco de neblina. Acima delas, as nuvens flutuavam como biombos de luz, banhadas pelo brilho do sol e da lua. Em toda parte, ouviam-se as vozes dos dragões, os rugidos dos tigres, os grasnidos das garças e o canto hipnótico das orioles. De fato, aquele era um lugar de beleza extraordinária, onde as flores e a relva de jade brilhavam com uma serenidade perene. Ali, a santidade parecia mais presente do que nos montes Tiantai (5) ou nas ilhas de Penglai e Yingzhou (6).

O Peregrino se perdeu na contemplação daquela paisagem de pureza incomparável, e, por ora, não falaremos mais dele. Voltaremos nossa atenção para a jovem,  que havia se refugiado na caverna com o coração disparado e o corpo coberto de suor, como um cavalo após uma longa corrida.

O Rei Touro estava na biblioteca, meditando sobre os componentes do elixir, quando a jovem surgiu gritando e com o rosto transtornado. Seu aspecto era lamentável — havia começado a arranhar o próprio rosto e um fino fio de sangue escorria do lóbulo de suas orelhas. Apesar do estado em que ela se encontrava, o Rei Touro a recebeu com um sorriso calmo e disse, tentando tranquilizá-la:

— Não se aflija tanto assim, minha querida.  Pode me dizer por que está tão perturbada?

— Maldito monstro! — exclamou a jovem, pulando de raiva.  Quase morri por sua causa!

— Por que tanta ira contra mim? — questionou o Rei Touro, suavizando ainda mais a voz.

— Se busquei seu amor e proteção após a morte de meus pais — respondeu ela, ainda furiosa — foi porque todos diziam que era um sábio corajoso. Agora vejo que não passa de um covarde submisso!

— Pode me explicar o que fiz de errado? — replicou o Rei Touro, envolvendo-a em um abraço. — Conte-me com calma, e assim poderei me desculpar.

A jovem respirou fundo, tentando se acalmar.

— Há pouco — contou a jovem —, eu estava no bosque colhendo orquídeas, quando um monge apareceu. Seu rosto era peludo, como o de um deus do trovão. Ele se curvou com respeito, mas não queria me deixar passar. Tentei manter a calma e perguntei quem era. Ele disse que vinha a mando da Princesa do Leque de Ferro, pedindo que você retornasse para ela. Tentei lhe dar uma lição de moral, mas ele me chamou de sem-vergonha, me ofendeu e passou a me perseguir com um bastão de ferro nas mãos. Se eu não tivesse corrido com todas as minhas forças, ele teria me matado! Tudo isso é culpa sua!

O Rei Touro não perdeu a calma. Pelo contrário, continuou pedindo desculpas e redobrou suas demonstrações de afeto. Mesmo assim, a jovem ainda demorou a se acalmar. Foi então que o Rei Touro começou a perder a paciência e disse, irritado:

— Tudo isso me parece muito estranho. A Caverna da Folha de Palmeira é um lugar isolado, embora eu reconheça que possui certas vantagens que não se encontram em nenhum outro lugar. Minha esposa é uma imortal que, desde jovem, se dedicou à prática da virtude e alcançou a serenidade suprema do Tao. Além disso, o número de seus servos não é grande e, entre eles, não há nenhum homem, nem mesmo um menino. Como é possível que ela tenha enviado um homem com a aparência de um deus do trovão? Isso não faz sentido. O mais provável é que se trate de algum monstro que, usando o nome dela, esteja tentando se aproximar de mim. Acho melhor eu verificar isso pessoalmente.

O Rei Touro deixou a biblioteca e dirigiu-se para o salão principal da caverna, onde vestiu sua armadura. Após ajustá-la com cuidado, empunhou uma pesada barra de ferro fundido e saiu pela porta, gritando em tom desafiador:

— Quem é o idiota que se atreve a me perturbar em meu próprio lar?

O Peregrino o observou atentamente e notou que seu aspecto já não era o mesmo de quinhentos anos atrás. Ele usava um capacete de aço tão polido quanto uma pedra rolada e tão brilhante quanto prata pura. No peito, ostentava uma couraça dourada que deixava entrever uma camisa de seda ricamente bordada. Nos pés, calçava botas de camurça pontiagudas, cujas solas estavam recobertas por pedras afiadas. Na cintura, um magnífico cinto de seda, feito com três caudas de leões, realçava ainda mais sua presença marcial. Seus olhos brilhavam com tanta intensidade que pareciam dois espelhos refletindo o sol, sob sobrancelhas espessas como um bosque de bordos avermelhados. A boca feroz lembrava uma tigela cheia de sangue, e seus dentes, duros como lâminas de bronze, completavam a imagem assustadora. Sua voz era tão grave e poderosa que fazia os próprios espíritos da montanha estremecerem. E seus passos largos causavam temor entre os monstros, pois sabiam que, ao cruzar seu caminho, não haveria escapatória. Sua fama ecoava além dos quatro mares. Não era à toa que o chamavam de Destruidor do Mundo, embora também fosse conhecido como o Poderoso do Ocidente e o Rei Demônio.

O Grande Sábio ajeitou suas vestes o melhor que pôde e, caminhando em direção ao Rei Touro,  inclinou-se respeitosamente e o cumprimentou, dizendo:

— Já se esqueceu de mim, irmão?

— Não é você, Sun Wukong, o Grande Sábio, Sósia do Céu? — exclamou o Rei Touro, retribuindo o cumprimento com uma leve inclinação de cabeça.

— Sim, sou eu — respondeu o Grande Sábio. — Faz muito tempo que não tenho a honra de vê-lo. Nem sabia que vivia aqui. Precisei perguntar a uma jovem há pouco antes de poder revê-lo. E, pelo que vejo, parece mais majestoso do que nunca. Meus parabéns!


— Pare de me enrolar com essa conversa fiada — disse o Rei Touro, impaciente. — Ouvi dizer que, depois de causar um completo caos no Palácio Celestial, o Patriarca Budista o aprisionou sob a Montanha das Cinco Fases, de onde uma Bodhisattva o libertou sob a condição de acompanhar o monge Tang em sua jornada rumo ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras sagradas. Então, por que tentou prejudicar meu filho, o Santo Menino da Caverna da Nuvem de Fogo, que vive ao lado do Arroio do Pinho Seco, na Montanha Rugidora? Não devia ter vindo atrás de mim. Depois do que aconteceu, até o mais ingênuo saberia que estou furioso com você.

— Antes de se enfurecer, ouça o que realmente aconteceu — respondeu o Grande Sábio, inclinando-se com respeito. — Eu não levantei um dedo contra seu filho. Foi ele quem capturou meu mestre e tentou devorá-lo. Por sorte, a Bodhisattva Guanyin interveio e o convenceu a seguir o caminho da virtude. Agora ele tem o título de Jovem da Riqueza da Bondade, que é mais alto que o seu, e desfruta de uma felicidade que nem o tempo pode apagar. Há alguma razão para me odiar por isso?

— Você sempre teve uma lábia de ouro — retrucou o Rei Touro, com desprezo. — Embora eu não acredite em uma única palavra do que disse, vou deixá-lo viver, apesar de ter desonrado meu filho. Agora, explique: por que insultou minha segunda esposa e ainda tentou matá-la bem diante da minha porta?

— Porque não havia outra maneira de encontrá-lo — respondeu o Grande Sábio, soltando uma gargalhada. — Além disso, eu não sabia que ela era minha segunda cunhada. E, para piorar, foi ela quem me insultou primeiro. Acabei perdendo a paciência. Reconheço que fui grosseiro. Quando a vir, por favor, transmita minhas desculpas.

— Se foi isso mesmo que aconteceu — disse o Rei Touro, soltando um suspiro —, perdoo sua vida em nome da amizade que um dia tivemos. Agora saia da minha frente.

— Jamais poderei agradecer o suficiente por tamanha generosidade — respondeu o Grande Sábio. — No entanto, ainda tenho mais um pedido a fazer.

— Você nunca sabe a hora de parar — retrucou o Rei Touro, irritado. — Já não basta eu ter poupado sua vida? O que mais quer agora?

— Como bem sabe — respondeu o Grande Sábio —, agora sou discípulo do monge Tang. Durante nossa jornada rumo ao Oeste, nosso caminho foi bloqueado pela Montanha de Fogo e fomos obrigados a interromper a viagem. Ao perguntamos às pessoas da região se havia alguma maneira de atravessá-la, descobri que a minha cunhada Rakshasi possuía um leque de folha de palmeira capaz de apagar as chamas. Então, fui até sua morada e implorei que ela me emprestasse o leque, mas ela se recusou a fazê-lo. Por isso, vim até aqui procurá-lo e suplico, em nome da amizade entre o Céu e a Terra, que venha comigo até a caverna de sua esposa e a convença a me emprestar o leque. Prometo que, assim que o monge Tang tiver atravessado a Montanha de Fogo em segurança, devolverei o leque imediatamente a vocês.

O Rei Touro não conseguiu conter a fúria que, de repente, explodiu em seu coração.

— Você diz que fez tudo isso sem intenção, mas a verdade é que só se importa em obter esse leque a qualquer custo — exclamou o Rei Touro, rangendo os dentes. — Tenho certeza de que, insultou minha esposa antes de vir aqui. E, não satisfeito com isso, desonrou a mulher com quem vivo agora. Como bem diz o provérbio: "Não se deve desrespeitar a esposa de um amigo, nem ofender sua concubina". Mas você humilhou uma e tentou matar a outra. Até onde vai sua insolência? Está na hora de provar o gosto da minha barra!

— Sabe muito bem que não fujo de uma luta — respondeu o Grande Sábio. — Mas não vim aqui para lutar, e sim para obter o seu favor. Por favor, eu lhe suplico! Empreste-me o leque!

— Se você for capaz de resistir a três assaltos contra mim  disse o Rei Touro — , pedirei à minha esposa que lhe empreste o leque. Mas se não conseguir, irei matá-lo, e assim terei minha vingança!

— De acordo — respondeu o Grande Sábio. — Faz tempo que não o visito, então não sei se sua habilidade marcial continua tão boa quanto no passado. Vamos praticar um pouco!

Sem dizer mais nada, o Rei Touro ergueu seu bastão de ferro fundido e desferiu um golpe com força contra a cabeça do Peregrino, que prontamente aparou o golpe com o seu bastão de ferro com extremos de ouro. Assim, os dois iniciaram uma batalha feroz, onde seus bastões selaram o fim de uma antiga amizade.


— A culpa é sua, por desonrar meu filho! — bradava o Rei Touro.

— Seu filho alcançou a perfeição do Tao. Não há motivo para tanto ódio — retrucava o Grande Sábio.

— Como ousa aparecer na minha porta? — questionava o Rei Touro.

— Não o faria se não tivesse um bom motivo — respondia Wukong, preocupado apenas com a segurança do monge Tang.

Mas o antigo irmão se recusava e a emprestar o leque mágico. A troca de ofensas destruiu a velha amizade, substituída por um rancor tão profundo quanto a raiz de uma cordilheira. A cada golpe trocado, o ódio entre eles só aumentava. O bastão do Rei Touro fazia os dragões tremerem, enquanto o bastão do Grande Sábio assustava espíritos e deuses. Eles começaram lutando aos pés da montanha, mas logo se ergueram além do cume, exibindo suas habilidades mágicas enquanto cavalgavam em nuvens multicoloridas. O choque entre os dois metais ecoava pelo céu, fazendo as portas celestiais estremecerem.

Mais de cem golpes foram trocados entre eles, mas nenhum dos dois conseguiu obter alguma vantagem. Quando a batalha parecia ter atingido o seu ápice, uma voz ecoou do alto da montanha, dizendo:

— Esqueceu o convite do meu senhor, Rei Touro? Não se atrase, para que o banquete possa começar o quanto antes!


Ao ouvir isso, o Rei Touro bloqueou o golpe do Grande Sábio com seu bastão e disse:

— Macaco, vamos parar por um momento. Preciso comparecer a um banquete na casa de um amigo.

Então, saltando das nuvens, ele retornou à caverna, onde encontrou a Princesa do Rosto de Jade e lhe disse:

— Minha querida! Aquele sujeito com rosto de deus do trovão que viu era na verdade o macaco Sun Wukongque fugiu assim que sentiu o peso do meu bastão. Agora que o perigo passou, fique aqui e descanse. Estou indo a um banquete na casa de um amigo.

O Rei Touro retirou sua armadura e pediu a um servo que lhe trouxesse uma esplêndida túnica de seda verde prateada. Em seguida, ordenou aos guardas que vigiassem bem a entrada e, montado numa besta aquática de olhos dourados, partiu em direção ao noroeste.


Do alto da montanha, o Grande Sábio observou o Rei Touro se afastando rapidamente, envolto por uma nuvem de poeira e neblina.

— Quem será esse amigo que ele mencionou? — murmurou para si mesmo. — Acho que vou segui-lo para descobrir onde está ocorrendo esse banquete tão importante.

Com um leve movimento, transformou-se em uma corrente de vento e, em pouco tempo, alcançou o Rei Touro. Pouco tempo depois, os dois chegaram a uma montanha, onde o Rei Touro desapareceu sem deixar nenhum rastroO Grande Sábio retomou sua forma habitual e olhou ao redor, avistando um lago de águas cristalinas e profundas. Em uma de suas margens, havia uma grande pedra onde estava gravada a seguinte inscrição: "Montanha das Rochas Espalhadas, Lago da Onda Verdejante".

— Aquele Touro deve ter mergulhado na água — concluiu o Grande Sábio. — O amigo que ele veio visitar deve ser algum monstro aquático ou o espírito de um dragão, de um peixe ou de uma tartaruga. Acho melhor eu mergulhar e investigar isso.


Realizando um gesto mágico com os dedos, ele sacudiu levemente o corpo e recitou um feitiço. Transformou-se, então, em um caranguejo, nem grande nem pequeno, pesando cerca de dezesseis quilos. Sem perder tempo, lançou-se na água, afundando até o fundo do lago. Logo avistou uma entrada adornada por um pórtico com telhado esculpido em desenhos intrincados. A besta aquática de olhos dourados estava amarrada logo abaixo de um dos arcos. Curiosamente, do outro lado da entrada, não havia uma gota d’água.


O Grande Sábio atravessou a porta e observou o ambiente. Ouviu uma música estranha e virou-se para a direção de onde vinha o som. Diante dele, erguiam-se construções com muros de coral, vermelhos como o pôr do sol, e arcos de madrepérola. Não havia no mundo um palácio como aquele. As telhas eram de ouro, os batentes das portas e janelas, de jade branco, os balcões e corrimãos, de ramos de coral, e os biombos, de carapaças de tartaruga. No interior, havia um trono de lótus, sobre o qual pairava uma nuvem de bênçãos tão densa que parecia suspensa entre as Três Luminárias (7) e a Via Láctea. Embora não pertencesse ao Céu nem aos tesouros incomparáveis do mar, aquele lugar rivalizava em beleza com a ilha de Penglai. Em um dos salões, uma multidão de convidados se reunia. A maioria era composta por oficiais de diferentes categorias, com esplêndidas pérolas enfeitando seus chapéus cerimoniais. Entre eles, jovens servas de jade, carregando bandejas de marfim, moviam-se graciosamente, enquanto a beleza das cantoras ecoava em seus rostos. As melodias mais harmoniosas saíam das bocas das baleias, acompanhadas pelas flautas das lagostas, pelos tambores dos lagartos marinhos e pelo ritmo cadenciado dos caranguejos. Do teto, pendiam lâmpadas de pérolas, iluminando os pratos e os biombos decorados com cenas da natureza. Os corredores estavam cheios de cortinas feitas de fios de bigodes de camarões, esvoaçando ao sabor do vento. Por toda parte, ouvia-se o som harmônico dos oito instrumentos (8), cujas melodias pareciam alcançar o próprio céu. Não era difícil distinguir grupos de percas de cabeças esverdeadas tocando a cítara e salmões de olhos vermelhos soprando flautas. Perto deles, jovens dragões usando presilhas de ouro em forma de fênix ofereciam tiras de carne de cervo aos convidados. Sobre as mesas, não faltava nenhum dos oito manjares preparados nas cozinhas celestiais, nem os deliciosos licores armazenados nas adegas do Palácio Vermelho. O Rei Touro ocupava o assento reservado ao convidado de maior prestígio, cercado, à direita e à esquerda, por várias damas-dragão. Diante dele estava um dragão ancião, rodeado por inúmeros filhos, netos, esposas e filhas. 

Quando o Grande Sábio entrou no salão do banquete, os convidados brindavam com um vinho tão doce quanto néctar. O primeiro a notá-lo foi o dragão ancião, que imediatamente ordenou:

— Capturem aquele caranguejo selvagem!

Todos os filhos e netos do dragão ancião que estavam presentes no local se lançaram sobre o Grande Sábio, que então assumiu a fala humana e,  fingindo desespero, começou a gritar:

— Poupem-me! Poupem-me! Tenham piedade de mim!

— De onde você veio, e como ousou entrar na sala do banquete sem ser convidado? — perguntou o dragão ancião, irritado. — Fale imediatamente, se quiser que eu poupe sua vida!

— Eu, senhor — respondeu o Grande Sábio, adotando um tom humilde —, embora pesque neste lago, vivo em uma caverna afastada da margem. Sou conhecido como o Vigia-que-caminha-para-trás. Como vivo entre o barro e a vegetação, nunca aprendi a andar como as outras criaturas. Além disso, por viver tão isolado, desconheço completamente as regras deste palácio. Suplico, senhor, que tenha compaixão da minha ignorância e não me castigue severamente.

Ao ouvirem essas palavras, os espíritos presentes ao banquete se curvaram diante do dragão ancião e disseram:

— É a primeira vez que o Vigia-que-caminha-para-trás vem a este palácio, e por isso, desconhece completamente as normas de etiqueta real. Suplicamos a Vossa Excelência que o perdoe.

O dragão ancião aceitou o pedido e então ordenou a um dos guardas:

— Libertem-no. Registrem uma advertência contra seu nome e façam com que ele aguarde fora do palácio até que o banquete termine.

O Grande Sábio agradeceu pela generosidade e deixou a mansão do dragão. Assim que passou pelo portão ornamentado, pensou consigo mesmo:

— O Rei Touro adora beber. Seria tolice esperar até que ele termine. E mesmo que ele decida voltar logo para casa, nada garante que ele me emprestará seu precioso leque. O melhor que posso fazer é capturar essa besta de olhos dourados, assumir a forma do Rei Touro e tentar enganar a Rakshasi. Assim, meu mestre poderá atravessar a montanha sem que eu precise lutar novamente com meu antigo companheiro.


Depois de recuperar sua verdadeira forma, o Grande Sábio desamarrou a criatura e montou nela, ajustando-se à sela ornamentada como se estivesse em um trono real. Cavalgando com habilidade, logo emergiu das águas do lago e, ainda à beira da margem, assumiu a aparência do Rei Touro. Então, esporeou a besta e elevou-se acima das nuvens, dirigindo-se  à Caverna da Folha de Palmeira


Assim que alcançou a Montanha da Nuvem de Jade, gritou com firmeza:

— Abram os portões!

As duas criadas encarregadas de recepcionarem os visitantes obedeceram sem hesitar. Ao reconhecerem o Rei Touro, correram para informar sua senhora, dizendo:

— O Senhor acaba de chegar!

Ao ouvir isso, a Rakshasi ajeitou os cabelos o melhor que pôde e saiu, radiante, para encontrá-lo. O Grande Sábio desmontou da besta de olhos dourados e se dirigiu até ela, confiante em sua capacidade de enganá-la. Para a sua sorte, a Rakshasi estava tão entusiasmada que o via apenas com os olhos da carne. 


Os dois entraram na caverna de mãos dadas, enquanto as criadas se apressavam para servir o chá. Assim que souberam da chegada do senhor, todas as criadas e servas saíram para lhe prestar respeito. Mas os dois só tinham olhos um para o outro.

— Quanto tempo se passou desde a última vez em que nos vimos! — exclamou, com galanteio, o falso Rei Touro.

— Que o céu derrame dez mil bênçãos sobre sua cabeça respondeu a Rakshasi, inclinando-se respeitosamente. — Está tão dedicado à nova esposa que parece ter esquecido a antiga. Pode me dizer o que o trouxe até aqui hoje?

— Como pode dizer isso? — replicou o falso Rei Touro, sorrindo com doçura. — Jamais me esqueci de você. Se estive ausente por tanto tempo, foi apenas por causa dos inúmeros assuntos domésticos que precisei resolver. As posses da Princesa do Rosto de Jade estavam em um estado lamentável e exigiram toda a minha atenção.  De qualquer forma, ouvi dizer que Sun Wukong está prestes a chegar à Montanha de Fogo, acompanhado do monge Tang, rumo ao Paraíso Ocidental. Temo que ele venha até aqui lhe pedir o seu leque emprestado. Você sabe o quanto eu o odeio, e ainda não vingamos as ofensas cometidas contra nosso filho. Quando ele aparecer, envie alguém imediatamente para me avisar. Prometo que irei capturá-lo e transformá-lo em picadinho, e assim vingaremos nosso filho.

Ao ouvir isso, a Rakshasi começou a chorar e disse:

— Como diz o velho ditado: “Um homem sem esposa não tem quem cuide de suas riquezas, e uma mulher sem marido é escrava da pobreza”. Talvez você não acredite, mas aquele macaco quase me derrotou.

— Quer dizer que ele conseguiu atravessar a montanha? — exclamou o falso Rei Touro, fingindo indignação.

— Não, ainda não — respondeu a Rakshasi. Ontem mesmo ele esteve aqui para me pedir o leque emprestado, mas, ao me lembrar da desgraça que ele trouxe ao nosso filho, vesti minha armadura e o ataquei com minhas espadas. Ele não só suportou os meus golpes, como teve a ousadia de me chamar de cunhada, alegando que, certa vez, vocês fizeram um pacto de irmandade.

— Nisso ele não mentiu admitiu o falso Rei Touro. — Éramos, de fato, sete irmãos que selaram uma aliança fraternal há cerca de quinhentos anos.

— No começo — continuou a Rakshasi —, por mais que eu o insultasse e golpeasse com as minhas espadas, ele se manteve extremamente cortês e nem sequer levantou a mão contra mim. Diante de tanta submissão, não tive escolha a não ser abaná-lo e expulsá-lo daqui. Mas ele encontrou algum tipo de magia para resistir ao vento e voltou no dia seguinte.  Usei o leque outra vez, mas desta vez não consegui movê-lo nem um centímetro, então fui forçada a lutar com as espadas. Desta vez ele deixou a cortesia de lado e me atacou com um bastão de ferro pesadíssimo. Fiquei tão assustada que corri para dentro da caverna, trancando a porta com força. Não sei como nem por onde ele conseguiu entrar, mas acabou rastejando para dentro do meu ventre e quase tirou minha vida. Para fazê-lo ir embora, precisei chamá-lo várias vezes de cunhado e entregar-lhe o leque.

— Não devia ter feito isso! — exclamou o falso Rei Touro, batendo no peito enquanto fingia novamente estar com raiva — Como pôde entregar o nosso tesouro àquele macaco? Estou com tanta raiva que acho que vou morrer!

— Por favor, não se desespere — disse a Rakshasi, soltando uma gargalhada —. Dei a ele um leque falso. O que mais eu poderia fazer?

— E onde está o verdadeiro? — perguntou o falso Rei Touro

— Não se preocupe — disse a Rakshasi, ainda rindo —. Ele está comigo.

Chamou então algumas criadas e ordenou que trouxessem um pouco de vinho. Ela mesma ofereceu uma taça ao falso marido, dizendo:

— É possível que a nova esposa esteja lhe proporcionado muitas alegrias, mas duvido que superem as que encontrou ao meu lado. Aceite esta taça do licor que eu mesma preparei.

O Grande Sábio não pode recusar. Na verdade, não teve outra alternativa a não ser aceitar. Mas, ao brindar, sorriu com uma doçura irresistível e disse:

— É melhor que você beba primeiro. Enquanto isso, se não se importar, gostaria de ver como estão as nossas coisas, embora não duvide que, durante minha ausência, elas foram cuidadas com mais dedicação do que eu mesmo poderia oferecer. Sinceramente, não sei como lhe agradecer por isso.

Satisfeita, a Rakshasi pegou a taça e bebeu. Porém, logo a encheu novamente e, entregando-a mais uma vez ao falso Rei Touro, disse:

— Não há o que agradecer. Como bem dizem os antigos, as esposas são excelentes administradoras, mas os maridos são os provedores do lar.


Enquanto as criadas preparavam algo para comer, eles continuaram a conversar com cortesia. O Grande Sábio não ousou quebrar sua dieta vegetariana, comendo apenas frutas para manter as aparências. A Rakshasi, por sua vez, bebeu mais do que deveria, e, aos poucos, a chama da paixão cresceu dentro dela. Com suavidade, foi se aproximando do Grande Sábio, começou a roçar-se contra ele, segurando suas mãos e sussurrando palavras carregadas de uma ternura irresistível. Não satisfeita, forçou-o a beber da mesma taça e a morder, ao mesmo tempo, a mesma fruta. O Grande Sábio, é claro, fingia toda aquela ternura, embora não tivesse escolha a não ser rir e divertir-se as investidas apaixonadas daquela mulher. De fato, não há nada melhor do que o vinho para dissipar as preocupações da alma e aquecê-la com o fogo da inspiração (9)Ciente desses efeitos tão surpreendentes, o Grande Sábio decidiu agir com a máxima discrição. A mulher, por sua vez, entregou-se completamente ao desejo e começou a rir de tal forma que seu rosto ficou tão vermelho quanto um pêssego maduro. Seu corpo se movia com a leveza de um jovem salgueiro sacudido pelo vento. Suas palavras, por vezes, transformavam-se em murmúrios incompreensíveis, que apenas intensificavam o ardor de suas carícias. Suas mãos longas enredavam-se, com insistência, nos cabelos do falso marido, enquanto os pés delicados procuravam entrelaçar-se às pernas dele. Jogava a cabeça para trás, num gesto cheio de charme, revelando a brancura do pescoço e a suave raiz dos cabelos. As mangas desenhavam no ar uma dança, como garças jovens em pleno acasalamento. E que movimento havia em sua cintura, enquanto dos lábios escorriam cascatas de fogo numa confissão apaixonada. Aos poucos, foi desabotoando a túnica, até que a delicada forma de um dos seios se revelou. Sua mente, completamente entorpecida pelos efeitos do licor, mal conseguia manter a lucidez. E que surpresa haveria no brilho úmido de seus olhos ou no peito que se agitava em ondas de suspiros?

O Grande Sábio percebeu que ela estava completamente à sua mercê e, com uma ternura que contrastava com o conteúdo de suas palavras, perguntou:

— Onde foi que você escondeu o leque verdadeiro? É melhor guardá-lo bem, porque aquele Peregrino é astuto, e é capaz de se transformar em qualquer coisa e roubá-lo num piscar de olhos.

Rindo como uma jovem donzela, a Rakshasi tirou de sua boca um leque um pouco menor que uma folha de amendoeira e o entregou ao Grande Sábio, dizendo:

— Não é este o tesouro que tanto o preocupa?


Ao segurá-lo nas mãos, o Grande Sábio mal pôde acreditar no que via e pensou consigo mesmo:

— Como algo tão pequeno poderia apagar chamas tão grandes? Deve ser tão falso quanto o anterior!

Ao vê-lo contemplar o leque com tanta atenção, a Rakshasi aproximou seu rosto maquiado  no rosto do Peregrino e exclamou:

— Deixe o leque de lado e beba um pouco. No que está pensando?


— Como pode algo tão pequeno apagar chamas com mais de mil e quinhentos quilômetros de altura?

Como o vinho já havia praticamente dominado sua verdadeira natureza, Rakshasi não sentiu qualquer necessidade de se conter e logo revelou a verdade:

— Dá para ver que, nesses últimos dois anos, você se entregou completamente ao prazer. Dedicou-se tanto à Princesa do Rosto de Jade, que sua inteligência se diluiu como tinta na água. É incrível que tenha esquecido tão rápido como este tesouro funciona. Não se lembra de que deve pressionar com o polegar esquerdo a sétima fita vermelha do cabo e recitar as palavras mágicas Hui-xu-he-xi-xi-chui-hu (10) para que ele alcance uma extensão de três metros e meio? Esse leque possui, como bem sabe, poderes metamórficos extraordinários. Por mais altas que sejam as chamas, nenhum fogo resiste à sua força.

O Grande Sábio memorizou bem aquelas palavras e colocou o leque dentro da boca. Em seguida, retomou sua forma habitual e, esfregando o rosto com um ar triunfante, disse:

— Acha mesmo que sou seu marido? Olhe bem para mim, Rakshasi! Como pôde me importunar com todas essas atitudes vergonhosas? Você deveria se envergonhar!


A mulher ficou tão atordoada que começou a se debater no chão, derrubando mesas e cadeiras com os pés. A vergonha corroía seu coração, e ela passou a gritar, desesperada:

— Quero morrer! Quero morrer!

O Grande Sábio não deu mais atenção a ela. Livrou-se com desdém de seus braços e, com apenas dois passos largos, saiu da Caverna da Folha de Palmeira. Havia escapado vitorioso das armadilhas da sedução, e seu coração transbordava de alegria. Ele montou rapidamente em uma nuvem e se elevou até o topo da montanha, onde se preparou para testar o poder mágico do leque. Pressionou a sétima fita vermelha do cabo com o polegar esquerdo, exatamente como a Rakshasi havia instruído, e recitou as palavras: 

— Hui-xu-he-xi-xi-chui-hu!

Imediatamente, o leque cresceu até ultrapassar os três metros e meio. O Peregrino o examinou atentamente e percebeu que estava completamente diferente de como era antes. Emitia uma aura tão luminosa quanto a dos imortais e era tecido com trinta e seis tipos diferentes de fios, todos vermelhos. O Peregrino constatou, satisfeito, que a Rakshasi não havia mentido. No entanto, ele se esqueceu de perguntar a fórmula para reduzir o leque ao tamanho original. 


Depois de tentar por um bom tempo, sem conseguir reduzir o tamanho do leque, o Grande Sábio não teve alternativa senão carregá-lo sobre o ombro e seguir de volta pelo caminho de onde viera. em direção ao mestre. Por ora, não falaremos mais dele.


Voltemos, então, a falar do Rei Touro, que havia terminado o banquete no Palácio do Lago da Onda Esmeralda. Ao sair pela porta, acompanhado por outros espíritos aquáticos, percebeu que a sua besta de olhos dourados havia desaparecido. O dragão ancião reuniu todos os espírito aquáticos presentes e perguntou, em tom severo:

— Quem roubou a besta de olhos dourados do Rei Touro?

Todos os espíritos se prostraram no chão e responderam respeitosamente:

— Nenhum de nós jamais ousaria fazer algo assim. Estávamos todos oferecendo vinhos e servindo as bandejas antes do banquete, enquanto outros cantavam e tocavam música. Não havia ninguém do lado de fora.

— Tenho certeza de que ninguém da minha casa seria capaz de fazer uma coisa dessas — disse o dragão, voltando-se para o ilustre convidado. — Será que algum estranho entrou no palácio?

— Se não me falha a memória — disse um dos filhos do dragão ancião —, logo após nos sentarmos, um espírito de caranguejo apareceu na sala do banquete. Ele era, de fato, um estranho.


O Rei Touro, então, compreendeu o que havia acontecido e exclamou:

— Não precisam dizer mais nada! No momento em que recebi o seu convite, eu estava lutando contra Sun Wukong, um discípulo do monge Tang, que está indo para o Oeste em busca das escrituras sagradas de Buda. Ao chegar à Montanha de Fogo, as chamas impediram o seu progresso, e então ele veio até mim pedir que eu lhe emprestasse meu leque de folhas de palmeira. Ao recusar o seu pedido, ele ficou furioso, e então fui forçado a cruzar armas com ele. Estávamos no meio de uma luta, em que nenhum de nós conseguia obter vantagem sobre o outro, quando finalmente consegui me desvencilhar dele e então pude comparecer ao vosso banquete. Aquele macaco é extremamente astuto e possui poderes extraordinários. Provavelmente, ele se transformou em um caranguejo e, depois de observar atentamente nossos movimentos, foi até minha esposa para tentar enganá-la e roubar o leque do qual falei.

— Esse Sun Wukong é o mesmo que causou um grande tumulto nos Céus? — perguntaram os espíritos, tremendo da cabeça aos pés.

— Exatamente — confirmou o Rei Touro. — Aconselho que não o enfrentem enquanto ele estiver a caminho do Oeste.

— Se ele é tão perigoso quanto dizem — perguntou o velho dragão —, o que pretende fazer para recuperar sua montaria?

— Não se preocupem com isso — respondeu o Rei Touro, esboçando um sorriso. — Voltem para o palácio. Eu mesmo irei atrás desse ladrão.

Sem perder tempo, ele abriu caminho entre as águas e deixou o lago. Em pouco tempo, já estava montado em uma nuvem, dirigindo-se para a Caverna da Folha de Palmeira, na Montanha da Nuvem de Jade. 


Os lamentos e gritos da Rakshasi ecoavam por todos os lados. Ao abrir a porta da caverna, viu as paredes tremendo devido aos golpes de peito e às patadas desesperadas da mulher. A besta dos olhos dourados parecia assustada diante daquele tumulto.

— Onde está Sun Wukong? — gritou o Rei Touro, enfurecido.

— O senhor voltou! — exclamaram as servas, prostrando-se no chão.

A Rakshasi lançou-se sobre o Rei Touro e começou a bater a testa contra ele, enquanto gritava, tomada pela fúria:

— Seu maldito imbecil! Como pôde deixar que aquele macaco roubasse sua montaria, assumisse sua aparência e viesse aqui para me enganar? Tudo isso é culpa sua!

— Para onde aquele maldito macaco foi? — perguntou novamente o Rei Touro, rangendo os dentes de ódio.

— Depois de roubar nosso precioso tesouro — respondeu a Rakshasi, esmurrando o próprio peito —, aquele macaco voltou à sua forma original e foi embora. Ah, eu acho que vou morrer!


— Pare de dizer tolices! — aconselhou o Rei Touro. — Recomponha-se enquanto eu lido com isso. Assim que eu o encontrar, arrancarei o leque de suas mãos, o esfolarei e triturarei todos os seus ossos. Depois, só pelo prazer da vingança, arrancarei seu coração e o jogarei aos cães!

Em seguida, dirigiu-se às servas e ordenou:

— Tragam minha arma!

— Mas, senhor — respondeu uma delas —, sua arma não está aqui.

— Nesse caso — concluiu o Rei Touro —, tragam as armas de sua senhora.


Sem demora, as servas entregaram-lhe duas espadas de lâminas azuis. Ele retirou a túnica de seda verde que havia usado no banquete e apertou o cinto. Com o rosto em chamas de raiva, saiu da Caverna da Folha de Palmeira com uma espada em cada mão, caminhando em direção à Montanha de Fogo. Assim, um homem ingrato sentiu na própria pele o engano do qual sua esposa, ingênua, havia sido vítima. E partiu como um demônio, decidido a perseguir o discípulo fiel. Se ele conseguiu ou não alcançar seu objetivo, ainda não sabemos. Quem quiser descobrir terá de ouvir com atenção as explicações que serão oferecidas no próximo capítulo.


CLIQUE NO BANNER ABAIXO PARA AVANÇAR AO

OU

CLIQUE NO BANNER ABAIXO PARA RETORNAR AO



Notas do Capítulo LX
  1. Este episódio é narrado nos capítulos VII e VIII;
  2. Wang Chiang era o nome completo de Wang Chaojung, a cortesã que acabou se casando com um chefe Xiongnu;
  3. Xe Wenjun foi uma viúva de extraordinária beleza, que se entregou ao seu amante, encantada pela maestria dele na arte da interpretação musical;
  4. Xue Tao (768-833) foi uma célebre cortesã da dinastia Tang, notável por seu talento excepcional para a poesia. Esse dom lhe proporcionou a amizade de renomados poetas, como Yuan Zhen, Bai Juyi e Du Mu, todos ativos no início do século IX;
  5. O monte Tiantai, localizado na província de Zhejiang, era famoso pelo grande número de imortais que, segundo a tradição, viviam em suas encostas;
  6. Duas das ilhas habitadas por imortais situam-se na região oriental do Mar da China;
  7. As Três Luminárias referem-se ao Sol, à Lua e às estrelas;
  8. Os instrumentos musicais eram classificados em oito categorias, conforme a natureza do material que produzia o som: seda, bambu, metais, pedra, madeira, barro ou argila, peles curtidas e cabaças ou outras frutas ocas;
  9. Há aqui uma alusão a um poema escrito por Su Dongpo (1037-1101), no qual o vinho é considerado tanto o anzol da beleza quanto o dissipador da tristeza;
  10. A expressão "expira, inspira, sopra e ronca" está relacionada às práticas respiratórias realizadas pelos alquimistas. De fato, muitos feitiços eram expressões típicas da arte da alquimia.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:

PARTICIPE! Deixe seu comentário, elogio, crítica nas publicações. Sua interação é importante e ajuda a manter o blog ativo! Para mais conteúdo, inclusive postagens exclusivas, siga o Portal dos Mitos no seu novo Instagram: @portaldosmitosblog
Ruby