16 de junho de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo LXI

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang

CAPÍTULO LXI:

ZHU BAJIE AJUDA A DERROTAR O REI TOURO. PELA TERCEIRA VEZ, O PEREGRINO SE VÊ OBRIGADO A BUSCAR O LEQUE DE FOLHAS DE PALMEIRA.

Contávamos que o Rei Touro partiu em perseguição ao Grande Sábio. Ao vê-lo cruzando alegremente os céus, carregando o leque de folhas de palmeira nas costas, ficou impressionado e pensou consigo mesmo:

— Esse macaco é tão astuto que até mesmo descobriu como usar o leque. É óbvio que, se eu exigir que ele o devolva, ele se recusará. Além disso, se resolver usá-lo contra mim, poderá me lançar a mais de trezentos mil quilômetros daqui, deixando o caminho livre para ele. Ouvi dizer que, além dele, acompanham o monge Tang o espírito do Rio da Corrente de Areia e um Porco que, ao que parece, alcançou a perfeição. Conheço os dois, pois já os vi algumas vezes durante os banquetes que participei. Acho que o melhor a fazer é me passar por esse porco e tentar enganar esse macaco. Ele parece tão satisfeito com a vitória que, com certeza, baixou a sua guarda.


O Rei Touro dominava perfeitamente a arte das setenta e duas transformações, e suas habilidades marciais não ficavam atrás das do Grande Sábio, embora seu corpo fosse mais pesado e, por isso, menos ágil. Ele deixou as espadas de lado, recitou um feitiço e, sacudindo levemente o corpo, transformou-se numa cópia exata de Zhu Bajie. Depois, contornou o caminho e surgiu na estrada principal, onde encontrou o Grande Sábio face a face e o chamou:

— Irmão mais velho, estou aqui!

O Grande Sábio ficou muito contente ao vê-lo. Não à toa diziam os antigos: “o gato vitorioso ruge como um tigre”. Estava tão embriagado pela facilidade de seu triunfo, que nem sequer reparou nos detalhes da pessoa que corria em sua direção. Bastou-lhe a semelhança com Bajie para assumir que era ele mesmo.

— Para onde está indo, irmão? — perguntou-lhe o Grande Sábio, sorrindo

— Ao perceber que você estava demorando muito para voltar — respondeu o Rei Touro —, o mestre temeu que você estivesse enfrentando dificuldades para derrotar aquele demônio sozinho e que, por isso, não tivesse êxito em obter o leque. Por isso, ele pediu que eu viesse ajudá-lo. 

— Não há mais com o que se preocupar — respondeu o Peregrino, com um sorriso ainda mais brilhante. — Acabei de obtê-lo!

— Sério?! — exclamou o Rei Touro, fingindo surpresa — Como o conseguiu?

— O Rei Touro e eu cruzamos nossas armas por mais de cem vezes, sem que nenhum de nós conseguisse obter alguma vantagem — explicou o Grande Sábio, orgulhoso. — No auge da batalha, ele me deixou para trás e foi ao Lago da Onda Verdejante, na Montanha das Rochas Espalhadas, para participar de um banquete no palácio de um dragão. Segui-o até lá e, transformando-me em um caranguejo, roubei-lhe a criatura de olhos dourados que lhe serve de montaria. Então assumi a aparência do Rei Touro pra enganar a Rakshasi da Caverna da Folha de Palmeira.  Interpretei tão bem o papel de Rei Touro que aquela mulher insistiu em deitar-se comigo. Fingi concordar, mas, assim que consegui obter o leque, deixei-a para trás e voltei para cá.

— Depois de tanto esforço, você deve estar muito cansado — disse o Rei Touro. — Se quiser, posso carregar o leque um pouco para você.

Sem perceber que aquele diante dele era um impostor, e nem mesmo considerar a possibilidade disso acontecer, o Grande Sábio entregou-lhe de bom grado o leque. 

O Rei Touro, claro, sabia muito bem como fazê-lo crescer ou encolher à vontade. Assim que o pegou nas mãos, recitou um encantamento e, no mesmo instante, o leque se reduziu ao tamanho de uma folha de amendoeira. Recuperando então sua forma habitual, o Rei Touro gritou:

— Maldito macaco! Não me reconhece?

Assim que percebeu o que havia acontecido, o Grande Sábio se arrependeu amargamente de ter cometido um erro tão terrível. Com um grito de angústia, bateu os pés no chão e berrou:

— Como eu fui tolo! Eu, que passei a vida caçando gansos, acabei me tornando presa de um!

Tomado pela fúria, ele pegou seu bastão de ferro e desferiu um golpe brutal contra a cabeça do Rei Touro, mas este esquivou-se rapidamente e o abanou com o leque recém-recuperado. O que ele não sabia, porém, era que quando o Grande Sábio havia se transformado num pequeno grilo para entrar no estômago de Rakshasi, ele acabou engolindo a pílula do elixir que detêm o vento, a qual carregava em sua boca. Isso fez com que seu corpo adquirisse uma força descomunal, e sua pele e ossos tornaram-se tão pesados que, por mais que o Rei Touro o abanasse, não conseguia movê-lo do lugar. Alarmado, o Rei Touro guardou o leque dentro da própria boca e, empunhando novamente suas espadas, desferiu dois golpes formidáveis contra o adversário. Assim teve início uma batalha como poucas já vistas na história. Tanto o Grande Sábio, Sósia do Céu, quanto o Rei Touro, Devastador do Mundo, liberaram toda a força contida em seus músculos, lutando pela posse do leque de folhas de palmeira. 


Se o Grande Sábio tivesse sido mais cauteloso, o Rei Touro não lhe teria roubado o precioso tesouro, e agora não estariam travando esse combate. O bastão de ferro com extremidades de ouro e as espadas de lâminas azuladas caíam sem piedade, uma após outra, sobre seus corpos. Os dois guerreiros moviam-se com tamanha ferocidade que levantavam nuvens coloridas e raios brilhantes. Os gritos de esforço misturavam-se ao ranger de dentes de sua ira. Aquela era uma luta de vida ou morte entre dois inimigos mortais. Cada vez que seus pés tocavam o solo, rochas e areia voavam, obscurecendo o céu e a terra e fazendo os espíritos e os deuses estremecerem de medo.

— Como ousa tentar me enganar? — perguntava um.

—  Vou me vingar pelo que você fez à minha esposa! —  rugia o outro.

Mas palavras já não serviam para nada. Tanto o astuto Sósia do Céu quanto o irascível Rei Poderoso estavam decididos a destruir um ao outro, a qualquer custo. O bastão e as espadas cruzavam-se em golpes furiosos, num ritmo implacável. Um único descuido poderia levar qualquer um dos dois diretamente à presença do Rei Yama. Por enquanto, deixemos o duelo dos dois de lado. Falaremos, no entanto, do monge Tang, que permanecia sentado à beira do caminho, atormentado pela inquietação do calor e da sede. Sua aflição era tamanha que, por fim, virou-se para o espírito da Montanha de Fogo e perguntou:

— Esse Rei Touro de quem falavam... é realmente tão poderoso?

— Ele possui uma força incrível, e sua magia não deixa nada a desejar à do Grande Sábiorespondeu o espírito da montanha. — São, de fato, dois rivais muito bem equilibrados.

— Wukong é um viajante incansável — continuou o monge Tang, inquieto.Normalmente, percorre cinco mil quilômetros num piscar de olhos. Como pode ter passado um dia inteiro sem aparecer? Com certeza está lutando com esse Rei Touro! 

Então, voltando-se para Bajie e o Monge Sha, perguntou:

— Quem de vocês quer ir procurá-lo? Se ele estiver lutando, o melhor é que o ajudem, para que possamos conseguir logo esse maldito leque. Estou morrendo de ansiedade para atravessar, de uma vez por todas, essa montanha e seguir nossa jornada.

— Já está ficando tarde — respondeu Bajie. — Acho que vou eu mesmo. O problema é que não sei como chegar à Montanha da Provisão de Trovões.


— Não se preocupe com isso — tranquilizou-o o espírito da montanha. — Conheço bem o caminho. Irei acompanhá-lo com prazer, se o Marechal Que Levanta a Cortina concordar em ficar com o mestre.

— Não sei como agradecer por todo o incômodo que estão tendo por minha causa — disse Sanzang, mais animado. — Prometo que irei recompensá-los devidamente, quando tiver alcançado a recompensa por meus méritos.

Antes de elevar-se às nuvens e seguir em direção ao leste, acompanhado pelo Espírito da Montanha, Bajie ajustou bem sua túnica de seda negra e prendeu o ancinho nas costas. Mal haviam começado a voar quando ouviram gritos terríveis e o rugido de um vento extremamente forte. Imediatamente, pararam a nuvem em que viajavam e avistaram o Grande Sábio e o Rei Touro em meio a uma batalha feroz.


— Vamos, senhor! — exclamou o Espírito da Montanha, empolgado. — O que está esperando para ajudá-lo?

Bajie então agarrou com força o seu ancinho e gritou a plenos pulmões:

— Ei, irmão! Estou aqui!

— Você sempre estraga tudo o que faço — disse o Peregrino com desdém. — Quer me explicar por que veio ao meu encontro?

— Foi o mestre quem me pediu — respondeu Bajie. — Mas, como não sabia o caminho, o Espírito da Montanha se ofereceu para me guiar. A propósito, por que disse que eu sempre estrago tudo o que você faz?

— Não falei de você, e sim deste maldito touro — respondeu o Peregrino. — Depois de roubar o leque da Rakshasi, ele teve a audácia de se passar por você, dizendo exatamente o que você acabou de dizer. Ao vê-lo, fiquei tão contente que até lhe entreguei o leque. Então ele recuperou sua verdadeira forma e começamos a lutar. Foi isso que quis dizer quando falei que sempre estraga tudo o que faço.

— Maldita besta! — bradou Bajie, fora de si. — Como se atreve a se passar por mim, enganar meu irmão e ainda semear discórdia entre nós? — e lançou-se ao combate, desferindo uma chuva de golpes furiosos sobre o Rei Touro, que, após quase um dia inteiro de luta contra o Peregrino, já estava com as forças bastante reduzidas. Ao ver a fúria com que Bajie o atacava, percebeu que não podia mais manter sua posição e tentou fugir. O Espírito da Montanha  porém, bloqueou-lhe o caminho com um destacamento de fantasmas, advertindo-o com voz severa:

— É melhor que não fuja! Nenhum deus se oporia a que o monge Tang cruzasse seu território rumo ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras, pois todos sabem que ele goza dos favores do Céu. As Três Regiões estão a par de sua missão, e isso lhe garantiu o apoio de todos os que moram em cada um dos pontos cardeais. Por que insiste em não emprestar seu leque para apagar as chamas e permitir que prossiga sua jornada? Não compreende que o Céu pode julgá-lo culpado e decretar sua execução?

— Você não sabe do que está falando — respondeu o Rei Touro. — Esse maldito macaco desonrou meu filho, insultou minha concubina e enganou miseravelmente minha esposa. Meu ódio por ele é tamanho que eu não hesitaria em arrancar-lhe a pele e lançar sua carne aos cães. Como espera que eu empreste meu precioso tesouro a ele?  As ofensas que ele cometeu contra mim não são suficientes?

Mal tinha acabado de dizer isso, quando Bajie lançou-se sobre ele, gritando:

— Touro mentiroso! Entregue o leque agora mesmo, se não quiser que eu acabe com a sua vida!

O Rei Touro não teve outra escolha senão voltar-se contra Bajie, brandindo suas duas espadas, enquanto o Grande Sábio se preparava para prestar toda a ajuda possível ao seu companheiro. Assim teve início uma batalha ainda mais feroz do que a anterior. E não por acaso: ali se enfrentavam um espírito porco, um demônio em forma de touro e um macaco que mergulho os Céus no caos e alcançou o Caminho. A razão do combate, porém, era muito mais profunda, pois os cultivadores do Zen  deve passar por contínuo refinamento na grande forja do mundo. Somente através do esforço é possível alcançar a fusão com a causa primordial.Isso explica por que as nove pontas afiadas do ancinho buscavam interceptar os rápidos golpes das espadas gêmeas, enquanto o bastão de ferro golpeava com determinação e o deus da terra encorajva os combatentes Todos sabiam que não existia outra maneira de obter o elixir. Por isso, lutavam com tanto empenho, dando o melhor de si. Aquele que conseguir subjugar o touro e arar com ele os campos verá aumentar os seus tesouros. Quem, ao contrário, colocar o porco no forno sentirá, pouco a pouco, esvair-se a vitalidade de sua respiração. Como alcançar a perfeição do Tao, se a mente se dilui no nada? Para proteger o próprio espírito, é necessário manter o macaco sob controle. Por esses princípios, os três combatentes punham suas vidas em risco. O estrondo de suas armas, ao se chocarem, ressoava até os confins do cosmos, fazendo empalidecer as estrelas e mergulhando a lua em trevas. Todo o universo parecia envolto por uma névoa gélida que bloqueava toda a luz. Reunindo forças além do seu limite, o Rei Touro lutava com bravura, sem deixar de avançar em direção ao sudeste. Durante toda a noite mediu suas armas contra seus adversários, mas o resultado da batalha permanecia tão incerto quanto no seu início.


Ao amanhecer, chegaram às portas da Caverna que Toca as Nuvens, no coração da própria Montanha da Provisão de Trovões. O estrondo da batalha era tão ensurdecedor que alertou a Princesa do Rosto de Jade, a qual ordenou às suas donzelas que saíssem para ver o que estava acontecendo. As moças retornaram apressadas para informá-la, dizendo:

— Nosso senhor está lá fora lutando contra aquele sujeito de rosto parecido com um deus do trovão que esteve aqui ontem! Também entraram na batalha um monge de focinho comprido e orelhas enormes, e o espírito da Montanha de Fogo com seus seguidores.

Preocupada, a Princesa do Rosto de Jade reuniu imediatamente todos os soldados e guardiões da caverna e ordenou que fossem ao auxílio de seu marido. Imediatamente, mais de cem soldados armados até os dentes saíram pela porta da caverna, brandindo espadas e lanças enquanto gritavam:

— Nossa senhora nos enviou para ajudá-lo! A vitória está do nosso lado!

— Sejam bem-vindos à luta! — exclamou o Rei Touro, visivelmente satisfeito.

Os espíritos não hesitaram e começaram a golpear para todos os lados. O ataque surpresa surtiu efeito, e Bajie precisou fugir, incapaz de enfrentar tantos adversários ao mesmo tempo. O Grande Sábio também se viu obrigado a realizar seu famoso salto nas nuvens para escapar do cerco que os seguidores do Rei Touro haviam armado ao seu redor. Os espíritos conseguiram uma vitória inesperada e, gritando de alegria, retornaram à caverna, fechando suas portas com força. Por ora, não falaremos mais deles. Falaremos, sim, do Grande Sábio que, ao recuperar o fôlego, virou-se para Bajie e o espírito da montanha, dizendo:

 Aquele touro é incrivelmente forte. Ontem, lutamos desde a hora de shen (1) até o anoitecer, e mesmo assim não consegui nenhuma vantagem. Mesmo após um dia e meio de batalha, suas forças não parecem ter diminuído, e olhem que vocês dois foram um reforço e tanto. O pior, no entanto, é que seus seguidores são tão aguerridos quanto ele. E agora, o que fazer, se todos se refugiaram na caverna e se recusam a sair?

— Irmão mais velho, você se despediu do mestre de manhã, mas só começou a lutar contra o monstro bem mais tarde — comentou Bajie. — O que você fez durante todo esse tempo?

— Depois de me despedir — explicou o Peregrino —, vim direto a esta montanha. Aqui, encontrei uma moça e a cumprimentei, sem saber que era a Princesa do Rosto de Jade, concubina do Rei Touro. Para descobrir onde moravam, precisei assustá-la com meu bastão de ferro. Ela fugiu em pânico e, sem querer, me levou até a caverna onde viviam. O Rei Touro logo surgiu, arrogante e tagarela como um vendedor de remédios. Lutamos por mais de duas horas, até que alguém chegou com um convite para um banquete e ele, de repente, abandonou a luta. Persegui-o até a Montanha das Rochas Espalhadas, mas ele havia desaparecido. Só depois descobri que ele havia mergulhado no Lago da Onda Verdejante. Sem hesitar, transformei-me em um caranguejo, roubei a criatura dos olhos dourados que ele usava como montaria e, assumindo sua aparência, voltei à Caverna da Folha de Palma, na Montanha da Nuvem de Jade. Não foi difícil enganar a Rakshasi, de quem consegui tomar o leque de folhas de palmeira. Ele é tão extraordinário que, recitando um feitiço,  o fiz crescer até um tamanho incrível. O problema foi que não soube como devolvê-lo ao tamanho natural e precisei carregá-lo nos ombros. Mas o Rei Touro logo me alcançou, fingiu ser você e arrancou das minhas mãos esse precioso tesouro. Por isso demorei tanto a voltar.

Isso é como afundar um barco cheio de tofu no meio do oceano — respondeu Bajie —: o que vai pela água, acaba voltando pela água (2). Como o mestre poderá atravessar a montanha, se é tão difícil conseguir esse leque? Acho que o melhor seria voltarmos até ele e tentarmos encontrar outro caminho.

— Não desanimem tão rápido, por favor — aconselhou o Espírito da Montanha. — Tentar encontrar outra rota é o mesmo que abandonar o caminho da virtude que iniciaram.  Para que abandonar esse caminho de perfeição depois de tantas calamidades superadas? Como muito bem afirmavam os antigos: “só existe um caminho principal”. Como poderiam, então, encontrar outro? Lembrem-se de que seu mestre espera que retornem com a vitória nas mãos, não com outro plano nos lábios.

— Você tem razão — exclamou o Peregrino, animado. Pare de dizer bobagens, seu idiota!  acrescentou, voltando-se para Bajie. — O espírito da montanha disse a única coisa sensata que se ouviu aqui o dia inteiro. Devemos obrigar aquele monstro a entrar novamente em combate conosco. Para que servem todos os poderes que possuímos? Até agora, mal usei minhas habilidades de metamorfose, porque não havia encontrado, em toda a jornada para o Oeste, alguém que realmente se igualasse a mim. O Rei Touro e o Macaco da Mente procedem do mesmo princípio (3). É preciso ir até ele e lutar com total entrega para recuperar aquele leque. Só ele é capaz de apagar as chamas. Isso lançará uma ponte entre as duas margens do vazio e será possível prosseguir a jornada rumo ao encontro com Buda. Quando finalmente virmos seu rosto face a face, alcançaremos a felicidade suprema e nos sentaremos com ele à mesa. Consegue imaginar as delícias que serão servidas nesse banquete?

— Vamos! — exclamou Bajie, inflamado pelas palavras que acabava de ouvir. — Não devemos perder mais tempo! O que importa se o Rei Touro se recusa a nos emprestar o leque? A madeira surgiu na hora de hai (4) e está relacionada ao porco, que obrigará o Touro a voltar para a terra. O macaco, por outro lado, nasceu na hora de shen, e por isso se mostra dócil e incapaz de ferir quem quer que seja. O leque de folhas de palmeira atua como a água: apaga o fogo e extingue as brasas. Quando isso acontecer, a perfeição se abrirá diante dos nossos olhos. É preciso perseverar nela, dia e noite, se desejamos alcançar nosso objetivo e participar do banquete de Ullambana (5).

Os dois monges avançaram, seguidos pelo Espírito da Montanha e por todos os seus guerreiros, contra os portões da Caverna que Toca as Nuvens, reduzindo-os a destroços com o ancinho e o bastão de ferro. 


O soldado que montava guarda correu em pânico para avisar seu senhor, dizendo:

— Sun Wukong acaba de destruir os portões da entrada e está vindo para cá à frente de todas as suas forças!

O Rei Touro estava, naquele momento, contando à Princesa do Rosto de Jade tudo o que havia ocorrido durante sua ausência, quando o soldado apareceu trazendo a terrível notícia. Enfurecido, ele vestiu às pressas a armadura e saiu ao encontro dos invasores, vociferando contra o Grande Sábio:

— Maldito macaco! Quem você pensa que é para vir até a minha porta e reduzi-la a pedaços?

— Cadáver sem olhos! — bradou, por sua vez, Bajie, avançando contra ele. — E quem você pensa que é para julgar os outros? Não fuja e prove o sabor do meu ancinho!

— Um brutamontes inchado feito você não assusta ninguém! — retrucou, no mesmo tom, o Rei Touro. — Mande aquele macaco vir aqui me encarar!

— Seu ruminante estúpido! — retrucou o Grande Sábio, com altivez. — Ontem, eu o considerava meu irmão; hoje, por causa da sua teimosia, tornou-se meu inimigo. Prepare-se, pois o farei engolir o meu bastão!

Corajoso, o Rei Touro enfrentou os dois ao mesmo tempo. Assim começou um combate ainda mais feroz do que o do dia anterior. Os três lançaram-se à batalha, confiantes na vitória. O ancinho e o bastão exibiam todo o seu poder, como generais que comandam a luta montados em seus cavalos. Com que bravura enfrentou-os o bastão de ferro fundido do Touro, cujos poderes mágicos eram tão vastos quanto o próprio Céu! Ao se chocarem, as três armas produziam um estrondo ensurdecedor, que estremecia todo o universo. Alternavam-se entre desviar golpes e desferi-los com uma maestria invejável. Os demais guerreiros pouco podiam fazer para separar a terra e a madeira — dois combatentes incansáveis, que avançavam e recuavam conforme o ritmo dos golpes.

— Por que se recusa a nos emprestar o leque de folhas de palmeira? — indagavam o Peregrino e Bajie.

— Como ousam enganar minha esposa? — replicava o Rei Touro. — Vingarei meu filho, minha segunda mulher e esta porta de pedra, cujos estilhaços agora pisamos.

— Pare de falar e enfrente o poder do meu bastão — advertiu o Grande Sábio. — Um simples toque fará sua pele em pedaços.

— E não se esqueça dos dentes do meu ancinho — acrescentou Bajie. — Cada golpe é capaz de abrir nove feridas em sua carne!

Mas o Rei Touro não se deixava intimidar com tais ameaças. Brandia com maestria absoluta o seu bastão de ferro fundido, aguardando o momento de desferir o golpe decisivo. Seus movimentos, ágeis e precisos, levantavam nuvens de poeira e provocavam ventanias que varriam tudo em seu redor. O ódio alimentava sua sede de vitória, levando-os a arriscar a vida repetidas vezes. Suas técnicas de combate, contudo, não poderiam ser mais perfeitas. Com agilidade surpreendente, protegiam tanto as costas quanto o peito, desferindo golpes capazes de pulverizar até mesmo o ser mais robusto. A bravura era a mesma, tanto nos dois monges quanto em seu único adversário. Não é de se surpreender que a batalha tenha se estendido do alvorecer ao crepúsculo. 

O destino do Rei Touro já estava selado e, mais cedo ou mais tarde, seria capturado como um mero ladrão. Após mais de cem assaltos, Bajie atacou com ainda mais fúria, certo de que a magia do Peregrino compensaria sua imprudência. O Rei Touro, sentindo que suas forças estavam o abandonando, resolveu fugir para o interior da caverna. Felizmente, o Espírito da Montanha e seus soldados bloquearam seu caminho, bradando em triunfo:

— Aonde pensa que vai, Rei Poderoso? Não vê que estamos aqui?

A situação do Rei Touro não poderia ser mais desesperadora. O acesso ao interior de sua morada estava bloqueado, e Bajie, juntamente com o Peregrino, haviam fechado todas as rotas que levavam ao exterior. Desesperado, retirou a armadura e lançou ao chão o bastão de ferro fundido. Em seguida, sacudiu levemente o corpo e, transformando-se num cisne, ergueu-se majestosamente pelos ares.


Percebendo a artimanha, o Peregrino voltou-se para Bajie e disse:

— O que está fazendo? Não vê que o Touro está fugindo?

Nem Bajie nem o Espírito da Montanha haviam se dado conta do ocorrido. Ficaram olhando de um lado para o outro, enquanto revistavam a Montanha da Provisão de Trovões de cima para baixo.

— Não o estão vendo voando ali em cima? — exclamou o Peregrino, apontando com o dedo para o alto.

— Está falando daquela ave? — perguntou Bajie, confuso. — É apenas um cisne.

— De maneira alguma! — exclamou o Peregrino. — Aquela é uma das transformações do Rei Touro!

— Nesse caso, o que faremos agora? — perguntou, preocupado, o Espírito da Montanha.

— Entrem no seu covil e eliminem todos os seus servos — respondeu o Peregrino. Assim, colocaremos fim em qualquer possibilidade de fuga. Enquanto isso, tentarei capturá-lo, usando meus próprios poderes de transformação.

Bajie e o Espírito da Montanha partiram imediatamente afim de executar o plano, e por por enquanto, não falaremos mais deles. Falaremos, porém, do Grande Sábio, que, ao deixar de lado o bastão com extremidades de ouro, sacudiu levemente o corpo e se transformou em um urubu da Manchúria, que subiu aos céus como uma flecha. Com suas poderosas asas, desenhou vários círculos no ar antes de se lançar sobre o cisne, com as garras apontadas para o pescoço e o bico mirando os olhos. 


O Rei Touro entendeu que se tratava de uma das metamorfoses do Peregrino e, esticando ao máximo as asas, transformou-se em uma águia de plumagem amarelada, voltando-se para enfrentar o urubu. Mas o Peregrino logo se metamorfoseou em uma fênix negra, o maior inimigo que uma águia pode ter. Ciente de sua inferioridade, o Rei Touro assumiu a forma de uma garça branca e, soltando um grasnido de triunfo, voou em direção ao sul. Por alguns segundos, o Peregrino ficou suspenso no ar e, sacudindo levemente as penas, tomou a forma de uma fênix avermelhada, emitindo o longo lamento de seu canto. 


Como a fênix é o rei e senhor das aves, a garça branca não ousou atacá-la. Então, abriu completamente as asas, mergulhou em queda livre sobre um penhasco e, com um leve sacudir do corpo, transformou-se em um cervo, que começou a pastar desconfiado entre a alta grama que cobria a encosta da montanha. O Peregrino rapidamente o reconheceu e, pousando no chão, transformou-se em um tigre faminto, que partiu em perseguição ao cervo com a intenção de devorá-lo. 


Assustado, o Rei Touro conseguiu se transformar a tempo em um enorme leopardo de manchas negras, que se voltou para atacar o tigre. O Peregrino girou na direção do vento e, movendo levemente a cabeça, assumiu a forma de um leão asiático de olhos dourados, com um rugido tão impressionante quanto o estrondo do trovão e uma cabeça tão poderosa quanto o bronze, lançando-se valentemente contra o leopardo. O Rei Touro tremeu de medo ao ver sua sombra, mas conseguiu se transformar em um urso gigante, que tentou capturar o leão com suas enormes garras. Caindo no chão, o Peregrino assumiu a forma de um elefante de pele rugosa, com a tromba tão forte quanto uma píton e os dentes tão grossos e flexíveis quanto um tronco de bambu. Agitando a tromba com habilidade, tentou agarrar o urso, mas o Rei Touro, soltando uma gargalhada estrondosa, revelou sua verdadeira forma: um touro branco gigantesco, com a cabeça tão grande quanto uma montanha escarpada e olhos brilhando como relâmpagos. Seus chifres pareciam duas pagodas de aço torcidas e seus dentes eram como adagas extremamente afiadas. Da testa à cauda, media mais de trinta metros e meio, e sua altura superava facilmente os três metros.


— Maldito macaco! — gritou em tom triunfante. — Como pretende me enfrentar agora?

O Peregrino também recuperou sua forma habitual e, sacando o seu bastão com extremidades de ouro, gritou com voz potente:

— Cresça!

Enquanto o seu bastão adquiria proporções incríveis, ele próprio se transformou numa criatura de trezentos metros de altura, com a cabeça tão grande quanto o Monte Tai, olhos tão brilhantes quanto o sol e a lua, uma boca que lembrava um lago cheio de sangue e dentes que pareciam os portões de um palácio. 


Após erguer o bastão com força, o deixou cair sobre a cabeça do touro, que desviou o golpe com a ajuda de seus chifres afiados. A batalha que se seguiu abalou as cordilheiras e montanhas, mergulhando o Céu e a Terra em pavor. Sobre ela, há um poema que diz:
"Ainda que o Macaco da Mente se eleve a dez mil pés de altura,
o Tao permanece com um.
Para apagar o fogo que queima a montanha,
é preciso o leque sagrado, que emana o frescor da pureza.
Mesmo que a Bruxa Amarela cerque o caminho do mestre,
a Madeira rompe a névoa, dissipando os monstros.
E quando as Cinco Fases se harmonizam,
tudo flui, límpido, rumo ao Oeste."
Usando seus extraordinários poderes mágicos, os dois monstros se envolveram numa batalha aterrorizante em pleno ar, que deixou em alerta os deuses que habitam o vazio: o Guardião da Cabeça Dourada, os Seis Deuses da Luz, os Seis Deuses das Trevas e os Dezoito Protetores dos Monastérios. Todos eles vieram apressadamente para participar da batalha e se posicionaram ao redor do Rei Touro, que não se sentiu intimidado por sua presença. Com velocidade incrível, olhava ora para o leste, ora para o oeste, investindo repetidas vezes com seus brilhantes chifres de aço. Suas patas levantavam nuvens de poeira que obscureciam o norte e o sul, enquanto os pelos rígidos de sua cauda desenhavam, à direita e à esquerda, uma dança aterrorizante. O Grande Sábio o atacava de frente, enquanto os outros deuses o pressionavam pelos flancos. 


Percebendo que não resistiria por muito tempo aquela situação, o Rei Touro deu várias voltas pelo chão e, depois de tomar sua forma original, fugiu em direção à Caverna da Folha de Palma. O Peregrino imediatamente diminuiu de tamanho e lançou-se atrás dele, seguido de perto pelos outros deuses. 


O Rei Touro conseguiu entrar na caverna e fechou firmemente as portas, recusando-se a sair. Os deuses cercaram a Montanha da Nuvem de Jade. Quando se preparavam para atacar, ouviram a ruidosa chegada de Bajie, do Espírito da Montanha, e de seus espíritos soldados.

Ao vê-los, o Peregrino perguntou:

— E então? O que aconteceu na Caverna que Toca as Nuvens?

— Matei a concubina do Rei Touro com meu ancinho — respondeu Bajie, sorrindo. — Ao tirar todos os seus adornos, vimos que ela era, na verdade, uma raposa de rosto branco. Os  demônios que a serviam eram na verdade burros, jumentos, vacas, cavalos, texugos, raposas, cervos, cabras, antílopes, dentre outros animais. Acabamos com todos eles e queimamos a caverna. O espírito da montanha me avisou que ele possui outro esconderijo nessa montanha, e por isso, viemos até aqui para terminarmos o serviço.

— Parabéns, irmão! — exclamou o Peregrino, satisfeito. — O que você fez tem grande mérito. Quanto a mim, ainda não consegui subjugar esse monstro, apesar de ter usado todas as minhas artes de transformação. No fim, ele se transformou em um touro branco de proporções enormes, e eu precisei tomar a forma que imitava o poder do Céu e da Terra. Enquanto travávamos numa batalha formidável, vários deuses tiveram a gentileza de vir em meu auxílio e o cercaram por todos os lados. Logo ele entendeu que nada poderia fazer contra eles e refugiou-se dentro daquela caverna.

— Essa é a Caverna da Folha de Palmeira? — perguntou Bajie.

— Exatamente — confirmou o Peregrino. — É aí que habita a Rakshasa.

— Nesse caso — concluiu Bajie, impaciente —, por que não invadimos logo a caverna, e exigimos que ela nos entregue o leque?  Que sentido faz deixá-lo lá, ganhando tempo para se recuperar e aproveitar a companhia da esposa?

Tensionando todos os músculos, Bajie ergueu o ancinho acima da cabeça e o deixou cair com toda a força contra a porta. O golpe foi tão brutal que tanto a porta quanto as laterais da entrada desabaram. Uma das criadas que montava guarda correu para dentro da caverna para informar o ocorrido, dizendo:

— Senhor! Alguém destruiu o portão de entrada!

O Rei Touro ainda não tinha se recuperado do esforço da batalha. Ele contava à Rakshasi, com a respiração ofegante, como havia roubado o leque do Peregrino, quando ouviu a notícia. A fúria voltou a dominá-lo e, tirando o leque da boca, entregou-o à esposa. Ao pegá-lo nas mãos, a Rakshasi começou a chorar e disse:

— Vamos entregar o leque àquele macaco! Assim ele recuará com suas tropas e não correremos mais perigo.

— Não é pelo leque que continuo a lutar — respondeu o Rei Touro — , mas pelo ódio que me consome. Fique aqui, enquanto eu saio para enfrentá-los mais uma vez.


Ele vestiu a armadura novamente e saiu ao encontro dos invasores, brandindo suas duas espadas. Bajie limpava com o ancinho os escombros que bloqueavam a entrada, quando o Touro o viu e lançou-se contra ele, sem nenhum aviso. Por sorte, Bajie conseguiu desviar e bloqueou o golpe, levantando o ancinho a tempo. Assim que saíram ao ar livre, juntou-se a eles o Grande Sábio com seu temível bastão de ferro. O Rei Touro saltou sobre a caverna, montado num redemoinho de vento, e enfrentou seus perseguidores no topo da Montanha da Nuvem de Jade. Os deuses, o Espírito da Montanha e seus seguidores o cercaram antes que ele pudesse fazer qualquer outro movimento. Assim começou uma batalha verdadeiramente extraordinária. A ferocidade do combate era tanta que o mundo ficou envolto em densas nuvens, o cosmos mergulhou numa névoa espessa, e um vento carregado de rochas e areia aterrorizou todos os habitantes da terra. A respiração dos combatentes fazia as ondas crescerem, tornando pequenas até as montanhas mais altas. Não poderia ser diferente: o ódio que guiava a mão que brandia as espadas, afiadas como dentes de lobo, era mais profundo que o próprio mar. Sua ira havia se transformado definitivamente em sede de vingança. Para alcançar a glória, o Grande Sábio, Sósia do Céu, enfrentava agora aquele que, durante séculos, foi um de seus melhores amigos. Bajie, por sua vez, dava o melhor de si para conseguir o leque o mais rápido possível, enquanto os deuses enfrentavam o Rei Touro com o único propósito de restabelecer o respeito à Lei. Que bravura extraordinária! Com que vigor eles bloqueavam e desferiam golpes para todos os lados! Todos os combatentes estavam dispostos a continuar lutando até que as aves perdessem as asas e não pudessem mais voar, até que os peixes deixassem de mergulhar e renunciassem à proteção de suas escamas, até que os espíritos cessassem suas queixas e o Céu e a Terra perdessem seu vigor imortal, até que tigres e dragões se tornassem covardes e a luz do sol se apagasse.

Com incrível temeridade, o Rei Touro enfrentou seus adversários durante mais de cinquenta ataques seguidos. Mas, a partir daí, suas forças começaram a falhar, e teve que recuar, derrotado. 


Em sua fuga desesperada para o norte, ele se deparou com o Protetor Diamantino da Difusão do Dharma, dono de extraordinários poderes mágicos e Senhor do Penhasco do Espírito Misterioso, na Montanha dos Cinco Estrados, que lhe gritou com autoridade:

— Para onde pensa que vai, Touro? Fui enviado por Sakyamuni, o Patriarca Budista, para capturá-lo com estas redes cósmicas!

Mal havia terminado de falar quando o Peregrino, Bajie e os outros deuses surgiram cortando o céu em uma velocidade incrível. Tomado pelo pânico, o Rei Touro disparou em direção ao sul, mas foi interceptado pelo Protetor Diamantino da Vitória Final, senhor de um poder dhármico incomensurável e Senhor da Caverna do Frio Puro, no Monte O-Mei, que lhe gritou com severidade:

— Fui encarregado pelo Buda em pessoa de capturá-lo!

O Rei Touro sentiu que suas pernas se recusavam a obedecê-lo e que as forças estavam se esvaindo, mas, em um esforço supremo, conseguiu escapar em direção ao leste. Não demorou a ser detido pelo Protetor Diamantino da Força Insuperável, um asceta mendicante vindo da Cordilheira-que-Toca-o-Ouvido, no Monte Sumeru, que lhe gritou em tom de reprovação:

— Para onde você pensa que vai, Touro? Vim prendê-lo por ordem expressa de Tathagata!

Sem saber para onde fugir, o Rei Touro voltou-se então para o oeste, mas foi bloqueado pelo Grande Protetor Diamantino Sempiterno, um imortal indestrutível originário dos Cumes do Raio Dourado, no Monte Kunlun, que lhe gritou com tom desdenhoso:

— Para onde você pensa que vai? Estou aqui por ordem pessoal do Honrável Buda do Monastério do Trovão, no Paraíso Ocidental, para impedir sua fuga. Como acha que vai escapar?

O Rei Touro nem sequer teve tempo de se arrepender. Ao virar a cabeça, viu avançar contra ele os guerreiros budistas e os generais celestes com as redes cósmicas estendidas. Sabia que era praticamente impossível escapar delas, mas, ao ouvir as vozes do Peregrino e dos soldados sob seu comando, montou numa nuvem e tentou fugir para o alto. Para sua surpresa, foi interceptado pelo Devaraja Li e pelo Príncipe Nezha, que vinham acompanhados pelo Vajrayaksa do Ventre do Peixe e pelo General do Espírito Poderoso.

— Para onde vai com tanta pressa? — gritaram em tom marcial. —Viemos prendê-lo por ordem do Imperador de Jade! 

Desesperado, ele sacudiu levemente o corpo e voltou a se transformar em um enorme touro branco, que tentou atingir o Devaraja com seus chifres de aço. Por sorte, ele se afastou e desviou o golpe com a ajuda da sua cimitarra. 


Ao ver o Peregrino aparecer, o Príncipe Nezha levantou a voz e disse:

— Perdoem-nos por não saudá-los com o respeito que merecem, mas essas pesadas armaduras nos impedem. Ontem, meu pai e eu fomos visitar Tathagata e ele nos pediu para informar ao Imperador de Jade que a viagem do monge Tang sofreu um atraso imperdoável na Montanha do Fogo, por culpa da teimosia do Rei Touro. Ele também mencionou que vocês encontraram mais dificuldades do que o previsto para prendê-lo e que precisavam de toda a ajuda que pudéssemos oferecer. Ao tomar conhecimento do ocorrido, o Imperador de Jade  nos enviou com todas as nossas tropas para auxiliá-los.

— Vocês tem algum plano? — perguntou o Peregrino. — Esse sujeito possui poderes mágicos realmente extraordinários. Vejam em que criatura repugnante ele se transformou.

— Não se preocupe com isso — respondeu o Príncipe, sorrindo. — Observe com atenção e veja como eu o capturo em um instante. Transforme-se! — gritou em seguida e se transformou em um ser com três cabeças e seis braços.

Com uma agilidade incrível, ele saltou sobre o dorso do Touro e desferiu um tremendo golpe no pescoço com sua espada de degolar monstros, decapitando-o. A cabeça da besta rolou pelo chão como se fosse uma fruta madura. O Devaraja voltou-se, triunfante, para o Peregrino com a cimitarra erguida, mas, naquele exato momento, uma nova cabeça cresceu no pescoço no Touro. Seu aspecto não podia ser mais aterrorizante: sua boca exalava um vapor negro e de seus olhos saíam raios de tom dourado.

Imperturbável, Nezha ergueu novamente sua espada e cortou essa cabeça com a mesma precisão da anterior. Mas, assim que ela tocou o chão, surgiu outra ainda mais aterradora. Dez vezes o Príncipe teve que repetir sua façanha. Na décima primeira, ele pegou suas rodas flamejantes e as pendurou nos chifres do Touro. Logo, elas começaram a liberar chamas intensas, de fogo verdadeiro dos imortais, que ardiam e devoravam a sua carne. 


O Touro mugiu, desesperado, e começou a sacudir a cabeça e a cauda, tentando se livrar daquele tormento. Para escapar da dor, tentou usar seus poderes metamórficos, mas o Devaraja Li voltou para ele seu espelho de refletir monstros, impedindo-o de se transformar em qualquer coisa. 


Compreendendo que não havia escapatória, começou a gritar:

— Não me matem! Prometo que, se pouparem a minha vida, eu irei me submeter aos princípios budistas!

— Se seu arrependimento for sincero — respondeu o Príncipe Nezha —, entregue-nos imediatamente o leque e então o pouparemos.

— O leque não está comigo! Ele está com a minha esposa! — gritou o Touro.

Então, Nezha pegou sua corda para amarrar espíritos rebeldes, prendeu-a firmemente no pescoço do Touro e enfiou-a pelas narinas do mesmo, permitindo puxá-lo com uma só mão. Sob as ordens do Grande Sábio, reagruparam-se os Quatro Protetores Diamantinos, os Seis Deuses da Luz e os Seis Deuses das Trevas, os Protetores dos Monastérios, o Devaraja Li, o General do Espírito Poderoso, Bajie, o Espírito da Montanha e todas as suas tropas de soldados. Puxando o freio do Touro, dirigiram-se juntos à Caverna da Folha de Palmeira.

Ao chegarem, o Touro bradou, suplicante:

— Mulher! Traga o leque e salve minha vida!

A Rakshasi tirou rapidamente todas as suas joias e suas roupas de seda. Depois, penteou-se como as sacerdotisas taoístas faziam e, vestindo a túnica de uma monja budista, saiu da caverna com o leque de três metros e meio nas mãos. Ao ver os Protetores Diamantinos, os dois Devarajas e os outros sábios, prostrou-se no chão e começou a bater com a testa no solo, dizendo:

— Eu lhes suplico, Bodhisattvas! Poupem nossas vidas! Oferecemos de boa vontade o leque ao nosso irmão Sun, para que ele possa cumprir sua missão.


Sem perder tempo, o Peregrino pegou o leque e todos partiram rumo ao leste, montados em suas nuvens. Enquanto isso, Sanzang e o Monge Sha aguardavam, impacientes, o retorno do Peregrino, ora sentados à beira do caminho, ora andando inquietos como animais enjaulados. Não conseguiam entender por que ele demorava tanto a voltar. De repente, viram aparecer no céu uma legião de nuvens brilhantes, que emanavam uma luz ofuscante. 
O mestre então voltou-se para o Monge Sha e perguntou, preocupado:

— Por que esses guerreiros celestes estão vindo em nossa direção?

— Não se preocupe, mestre — respondeu o Monge Sha, reconhecendo-os instantaneamente. — São os Quatro Protetores Diamantinos, o Guardião da Cabeça Dourada, os Seis Deuses da Luz, os Seis Deuses das Trevas, os Protetores dos Monastérios e outros deuses mais. O que vem à frente deles é o Príncipe Nezha, e aquele outro que carrega um espelho é o Devaraja Li, o Portador da Pagoda. Junto deles vem nosso irmão mais velho com o leque de folhas de palmeira, e um pouco mais adiante vejo nosso segundo irmão e o Espírito da Montanha. Todos os demais são guerreiros do exército celeste.

Ao ouvir isso, Sanzang vestiu sua túnica sacerdotal e seu chapéu Vairocana, e deu as boas-vindas a tão inesperados visitantes, inclinando a cabeça e dizendo, respeitosamente:

— A que devo a honra de sábios tão respeitáveis visitarem um ser tão insignificante como eu? Não é vosso o reino da imortalidade?

— Somos nós que deveríamos nos sentir honrados em vê-lo, pois está prestes a concluir sua alta missão — responderam em coro os Quatro Protetores Diamantinos. — Viemos por ordem de Buda para prestar toda a ajuda que precisar e para dizer que deve perserverar no caminho da perfeição, sem jamais desanimar.

Em sinal de respeito e obediência, Sanzang bateu novamente a testa no chão. O Peregrino, entretanto, pegou o leque e dirigiu-se à Montanha de Fogo. Agitou-o com força uma única vez e imediatamente as chamas se extinguiram, restando apenas algumas brasas. Ao agitá-lo pela segunda vez, uma brisa suave espalhou-se pela região, carregada de um agradável frescor. Quando o fez pela terceira vez, o céu se encheu de nuvens cinzentas, que derramaram uma chuva torrencial. Sobre o ocorrido, há um poema que diz:
"Por centenas de milhas, as montanhas de fogo
Iluminavam o céu e a terra com suas chamas infames.
Quando o fogo consome os cinco desejos, o elixir não pode ser criado.
Quando a chama arde nas três passagens, o Caminho se torna impuro.
Pra baixar a chuva com o leque de folhas de palmeira,
Os deuses celestiais tiveram que ajudar com seu poder espiritual.
Quando o touro é levado até o Buda, precisa abandonar o mal.
Quando a água e o fogo se aliam, a natureza se acalma".

Livre do calor, Sanzang sentiu desaparecer todas as suas angústias; sua mente se purificou e sua vontade se acalmou. Agradecidos, os quatro viajantes reafirmaram seus votos de fidelidade aos Protetores Diamantinos, que retornaram rapidamente ao seu lugar de origem. Os Seis Deuses da Luz e os Seis Deuses das Trevas, por sua vez, elevaram-se e se prepararam para prestar contínua proteção aos peregrinos. Os demais deuses também retornaram aos seus postos, exceto o Devaraja Li e o Príncipe, Nezha, que levaram o touro até a presença de Buda. O Espírito da Montanha mal se despediu deles, pois mantinha os olhos fixos na Rakshasi, que permanecia de pé a um lado, com a cabeça baixa.

— Posso saber o que você está fazendo aí? — perguntou o Peregrino. — Pretende ficar assim para sempre?


— Eu peço ao Grande Sábio que tenha compaixão e me devolva o leque — suplicou a Rakshasi, ajoelhando-se.

— Sua miserável! — gritou Bajie, furioso. — Parece que você não tem limites! Não basta termos poupado sua vida? Você acha que vamos abrir mão desse leque assim, depois de tanto esforço para consegui-lo? Talvez o troquemos por comida mais tarde. O melhor que você pode fazer é ir embora. Aqui não há mais nada para você. A chuva logo irá inundar tudo.

— Mas você mesmo disse que me devolveria o leque assim que o fogo fosse apagado! — protestou a Rakshasi, voltando-se para o Grande Sábio. — No começo, não acreditei em você, embora agora reconheça que é tarde demais para lamentar as terríveis batalhas que aqui ocorreram. De qualquer forma, quero que entendam que, mesmo que ainda não tenhamos dado todos os frutos esperados, já demos os primeiros passos em direção ao caminho reto. Agora que contemplamos a manifestação do verdadeiro corpo em sua longa peregrinação para o Oeste, não podemos voltar atrás em nossa decisão. Por isso, imploro que me devolvam o leque, para que eu possa começar uma nova vida em busca da perfeição.

— Creio, Grande Sábio — disse então o Espírito da Montanha — que, já que esta mulher conhece o segredo para apagar para sempre o fogo desta montanha, seria bom pedir que ela o faça antes de lhe devolver o leque. Eu ficarei aqui cuidando de todos os seus habitantes e vivendo das oferendas que quiserem me apresentar. Dessa forma, fariam a todos nós um imenso favor.

— Você acha mesmo possível apagar este fogo para sempre? — perguntou o Peregrino. — Quando conversei com as pessoas daqui, elas disseram que quando o fogo se extingue, só conseguem colher arroz suficiente para um ano.

— Se deseja apagar para sempre estas chamas — respondeu a Rakshasi — você deve abanar a montanha quarenta e nove vezes seguidas. Assim, o fogo jamais voltará a surgir.

Sem perder tempo, o Peregrino pegou o leque e o abanou com todas as suas forças quarenta e nove vezes seguidas. Logo caiu uma chuva torrencial que inundou toda a montanha. O fenômeno foi mais extraordinário do que poderia parecer à primeira vista, porque a água só caía onde havia fogo. Onde não havia nenhum rescaldo, continuava tão seco quanto um pedaço de deserto. 



Os discípulos e o mestre permaneceram naquele lugar até que o fogo ser totalmente extinto. Nem uma gota d’água caiu sobre eles. Passaram a noite ali e, após arrumar os pertences e preparar o cavalo, o Peregrino entregou o leque à Rakshasi, dizendo:

— Se eu não o devolvesse, começaria a dizer por aí que o Macaco não é um homem de palavra. Volta para a sua morada e não cometa mais maldades. Pouparei sua vida porque, como você mesma disse, já começou a trilhar o caminho do bem.

A Rakshasi pegou o leque e, depois de recitar o respectivo encantamento, o guardou em sua boca —  ele havia tornado a ser do tamanho de um folha de amendoeira. Ela despediu-se dos peregrinos, inclinando a cabeça em agradecimento, e então se retirou para meditar em um lugar isolado. Com o tempo, também alcançou os frutos da perfeição e tornou-se versada no conhecimento dos sutras. Depois de se despedir do Espírito da Montanha, Sanzang, o Peregrino, Bajie e o Monge Sha continuaram seu caminho com o corpo purificado e os pés cobertos por uma fresca sensação de umidade. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, "uma vez que a água e o fogo adquiriram seu equilíbrio, os opostos se fundem e surge o Tao".


Não sabemos, por enquanto, quando os peregrinos poderão retornar às Terras do Leste. Quem quiser descobrir deverá ouvir com atenção as explicações que serão oferecidas no próximo capítulo.

CLIQUE NO BANNER ABAIXO PARA AVANÇAR AO

OU

CLIQUE NO BANNER ABAIXO PARA RETORNAR AO



Notas do Capítulo LXI

  1. A hora de shen corresponde ao período entre três e cinco da tarde;
  2. Para que o tofu — um tipo de coalhada feita com leguminosas — se mantenha fresco, é necessário conservá-lo mergulhado em água. Isso explica o comentário de Bajie;
  3. Todo o capítulo possui um componente alegórico, pois tanto o Rei Touro quanto o Peregrino e Bajie aparecem relacionados, nos processos alquímicos, à atuação das Cinco Fases (ou Cinco Elementos);
  4. Como já foi indicado na nota 7 do capítulo V, hai é uma das divisões horárias, correspondendo ao período entre nove e onze da noite. Está associada ao Porco e ao elemento madeira. Já shen, que vai das três às cinco da tarde, está relacionado ao Macaco e ao elemento metal ou ouro;
  5. Ullambana é a festividade budista dedicada aos mortos. Durante sua celebração, são oferecidos diversos tipos de dádivas aos espíritos, especialmente aos pretas — os espíritos famintos — que ocupam o nível mais baixo na hierarquia espiritual.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
PARTICIPE! Deixe seu comentário, elogio, crítica nas publicações. Sua interação é importante e ajuda a manter o blog ativo! Para mais conteúdo, inclusive postagens exclusivas, siga o Portal dos Mitos no seu novo Instagram: @portaldosmitosblog

2 comentários:



Seu comentário é muito importante e muito bem vindo, porém é necessário que evitem:

1) Xingamentos ou ofensas gratuitas ao autor e a outros comentaristas;
2)Comentários racistas, homofóbicos, xenófobos e similares;
3)Spam de conteúdo e divulgações não autorizadas;
4)Publicar referências e links para conteúdo pornográfico;
5)Comentários que nada tenham a ver com a postagem.

Comentários que inflijam um desses pontos estão sujeitos a exclusão.

De preferência, evite fazer comentários anônimos. Faça login com uma conta do Google, assim poderei responder seus comentários de forma mais apropriada, e de brinde você poderá entrar no ranking dos top comentaristas do blog.



Ruby