۞ ADM Sleipnir
CAPÍTULO LVIII:
DUAS MENTES LANÇAM O UNIVERSO EM UM COMPLETO CAOS. É EXTREMAMENTE DIFÍCIL PARA QUALQUER SUBSTÂNCIA ALCANÇAR O REPOUSO ABSOLUTO.
Após se despedirem da Bodhisattva, o Peregrino e o Monge Sha montaram sobre dois feixes de luz e partiram apressados dos Mares do Sul. O Peregrino mal podia conter a vontade de ultrapassar o companheiro com seus saltos velozes, mas este o deteve, dizendo:
— Acho melhor seguirmos juntos. Não confio nem um pouco em você. Se você alcançar sua caverna antes de mim, é certo que armará algum plano para me enganar.
Embora o Grande Sábio estivesse agindo com as melhores intenções, o Monge Sha ainda carregava uma profunda desconfiança. Assim, continuaram lado a lado até avistarem, ao longe, a Montanha das Flores e Frutos. Eles desceram rapidamente das nuvens e começaram a observar ao redor. Bem diante da entrada da caverna, viram outro Peregrino sentado num estrado de pedra, bebendo despreocupadamente ao lado de uma verdadeira multidão de macacos.

Não havia diferença alguma entre aquele e o verdadeiro Grande Sábio. Tinha a mesma tiara dourada presa à cabeça, olhos flamejantes, e um brilho cortante nos olhos, como diamante. Usava uma túnica de seda, uma pele de tigre amarrada à cintura, e botas feitas de couro de cervo. Na mão, segurava o mesmo bastão de ferro com as extremidades douradas. No entanto, o que mais impressionava era o seu rosto coberto de pelos, com uma boca semelhante a de um deus do trovão, um queixo levemente retraído, orelhas pontudas, testa larga e os mesmos caninos proeminentes, projetados para fora de maneira ameaçadora.
Diante de tal visão, o Grande Sábio perdeu a paciência. Deixando o Monge Sha para trás, saltou à frente com o bastão de ferro em mãos e gritou, tomado pela fúria:
— Que tipo de monstro ousa tomar o meu lugar, aprisionar os meus súditos, invadir a minha caverna e agir com tamanha arrogância?

Assim que o impostor o viu, não disse uma só palavra. Apenas agarrou seu bastão de ferro e lançou-se contra ele. Os dois Peregrinos então travaram uma batalha feroz, sendo impossível saber qual deles era o verdadeiro e qual o impostor. Nunca se havia visto uma luta como aquela! E como poderia ser diferente? Eram dois bastões de ferro colidindo com fúria, sendo empunhados por dois macacos idênticos. Ambos afirmavam ser o verdadeiro protetor do monge Tang, disputando glória e reconhecimento. No entanto, havia uma diferença profunda entre os dois: o verdadeiro havia abraçado, com sinceridade, os princípios da fé verdadeira; o outro apenas os repetia da boca para fora. Apesar disso, seus poderes mágicos eram equivalentes, como se um fosse o reflexo do outro num espelho. Um era o Grande Sábio, Sósia dos Céus, mestre da respiração e das artes desde os primórdios; o outro, um espírito que cultivara o Tao por séculos, acumulando poderes vastos e incomuns. As armas que empunhavam também se equivaliam. Uma era o famoso bastão de ferro com as extremidades douradas; a outra era o bastão de ferro condescendente (1), tão poderoso quanto. Os dois combatentes desferiam ataques destrutivos e bloqueavam outros com igual habilidade, sem que nenhum deles conseguisse obter uma vantagem real.
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A luta começou na entrada da caverna, mas logo se estendeu pelos céus, levantando uma densa poeira de nuvens. O Monge Sha observava à distância, sem ousar interferir. Era impossível distinguir um do outro, e ele temia acertar o verdadeiro Peregrino por engano. Por muito tempo permaneceu indeciso, sem saber que decisão tomar. Por fim, decidiu sair do esconderijo e foi até a Caverna da Cortina de Água. Usando seu cajado, abriu caminho entre os muitos macacos que tentaram impedi-lo. Enfurecido, derrubou bancos de pedra, quebrou tigelas e vasos, mas não encontrou sinal algum das duas bolsas de lã contendo a bagagem roubada. O Monge Sha não sabia que a verdadeira caverna ficava oculta atrás da cascata, cuja queda d’água se estendia como uma imensa cortina branca — daí o nome: Caverna da Cortina de Água. Como desconhecia esse segredo, sua busca foi completamente em vão.

Sem saber o que fazer, voltou a montar numa nuvem e ficou observando, a meia altura, o desenrolar do combate. Percebendo sua hesitação, o verdadeiro Grande Sábio gritou:
— Já que não pode me ajudar, o melhor a fazer é voltar até o mestre e contar-lhe tudo o que aconteceu. Vou atrair esse impostor até a Montanha Potalaka, nos Mares do Sul, para que a Bodhisattva decida quem de nós é o verdadeiro.

O Peregrino mal terminou de falar, e o outro Peregrino repetiu, palavra por palavra, exatamente o que ele havia acabado de dizer. O Monge Sha ficou espantado, pois eles não apenas eram idênticos na aparência, como também tinham o mesmo tom de voz. Ainda assim, achou sensato o conselho e partiu às pressas em busca do monge Tang, e por enquanto, não falaremos mais dele. Quanto aos dois Peregrinos, continuaram a batalha enquanto voavam em alta velocidade rumo aos Mares do Sul. Logo avistaram a Montanha Potalaka, mas nem mesmo a visão de um local tão sagrado foi capaz de interromper sua troca de golpes e insultos. O barulho da luta chegou aos ouvidos dos discípulos que montavam guarda nas redondezas. Alarmados, correram para dentro da Caverna do Som das Marés e anunciaram à Bodhisattva:
— Dois Sun Wukongs chegaram lutando! São tão idênticos que é impossível dizer qual é o verdadeiro e qual é o falso!
A Bodhisattva desceu às pressas de seu trono de lótus e saiu da caverna, acompanhada de Muzha, de Sudhana, e da Donzela Dragão.
— Malditas criaturas! — gritou, furiosa. — O que pensam que estão fazendo neste lugar sagrado?
— Esta criatura é uma cópia exata de vosso discípulo — respondeu um dos combatentes, sem interromper os ataques. — Começamos a lutar na entrada da Caverna da Cortina de Água, mas nenhum dos dois conseguiu obter vantagem. Somos tão iguais que nem mesmo Sha Wujing foi capaz de nos distinguir, o que o impediu de escolher um lado. Não me restou alternativa senão ordenar que voltasse ao mestre e lhe contasse tudo. Trouxe este impostor até esta montanha sagrada na esperança de que, com vossos olhos compassivos, possais distinguir o verdadeiro do falso, o bom do mau.
Antes que terminasse de falar, o outro Peregrino repetiu exatamente as mesmas palavras. A Bodhisattva e seus discípulos os observaram com atenção, mas ninguém conseguia identificar qual era o verdadeiro.
— Parem de lutar imediatamente e posicionem-se um diante do outro! — ordenou a Bodhisattva. — Preciso examiná-los com mais atenção.
Eles obedeceram, mas começaram a protestar quase ao mesmo tempo.
— Sou o verdadeiro! — afirmou um deles.
— O falso é ele! — retrucou o outro.
A Bodhisattva então chamou Muzha e Sudhana e, aproximando-se deles, sussurrou:
— Segurem-nos por trás, um de cada lado, enquanto recito o feitiço que aprendi com Tathagata. Aquele que sentir dor será o verdadeiro.
Os discípulos obedeceram, agarrando firmemente os dois Peregrinos. A Bodhisattva começou então a entoar as palavras mágicas. Para surpresa geral, ambos levaram as mãos à cabeça ao mesmo tempo e, caindo ao chão, suplicaram aflitos:
— Por tudo que é sagrado, pare de dizer essas palavras!
A Bodhisattva atendeu ao pedido e, no mesmo instante, os dois retomaram a luta e os insultos, que ecoavam por todo aquele lugar sagrado. Sem saber o que fazer, a Bodhisattva pediu a Muzha e aos outros discípulos que apoiassem o verdadeiro Peregrino, mas nenhum deles se atreveu a entrar na briga, temendo escolher o lado errado.
— Sun Wukong! — chamou a Bodhisattva, e ambos responderam ao mesmo tempo. — Quando foi nomeado guardião dos estábulos celestiais e causou tamanha confusão nos Céus — prosseguiu ela —, os guerreiros celestiais não tiveram dificuldades em reconhecê-lo. Portanto, sugiro que vá às Regiões Superiores e peça aos habitantes celestes que identifiquem o impostor.
O Grande Sábio agradeceu a sugestão da Bodhisattva, assim como fez o outro Peregrino. Sem parar de trocar golpes e insultos, ambos seguiram em direção ao Portão Sul dos Céus. Ao vê-los, o Devaraja Virupaksha ficou tão desconcertado que convocou imediatamente os Quatro Grandes Marechais Ma, Zhao, Wen e Guan, que bloquearam o caminho com suas armas, dizendo:
— Onde pensam que estão? Acham que este é um lugar para travar combates?

— Certamente que não — respondeu o Grande Sábio —, mas preciso informá-los sobre algo importante. Durante nossa jornada rumo ao Paraíso Ocidental, acompanhando o monge Tang em busca das escrituras sagradas, fomos atacados por bandidos. Para proteger meu mestre, fui obrigado a eliminá-los. Isso o enfureceu tanto que ele me expulsou do grupo. Sem alternativa, fui até a Montanha Potalaka levar minhas queixas à Bodhisattva Guanyin. Não sei em que momento esse impostor começou a se passar por mim. O que posso afirmar com certeza é que, na minha ausência, ele teve a audácia de deixar meu mestre à beira da morte e fugir com todos os seus pertences. Com o intuito de recuperar os pertences, o Monge Sha foi até a Montanha das Flores e Frutos, mas o impostor tentou capturá-lo com a ajuda dos meus antigos súditos, que também foram enganados. Diante disso, o Monge Sha decidiu buscar o auxílio da Bodhisattva. Quando ele viu sentado ao lado do trono de lótus, ele me acusou de ter usado magia para chegar antes dele e tentar enganar a Bodhisattva. Felizmente, com sua compaixão e sabedoria, ela se recusou a dar ouvidos àquelas acusações. Em vez disso, ordenou que ambos voltássemos à Montanha das Flores e Frutos para investigarmos Foi então que descobri esse impostor, cuja semelhança comigo é tamanha que até o estilo de luta é idêntico. Lutamos sem parar desde a Caverna da Cortina de Água até aqui. Nem mesmo a Bodhisattva conseguiu distinguir quem era quem. Por isso, teve a sábia ideia de nos mandar até este lugar, na esperança de que, com o discernimento dos senhores, seja possível identificar quem é o verdadeiro.

Mal ele terminou de falar, o outro Peregrino repetiu exatamente o mesmo relato. Os deuses os observaram por um bom tempo, mas não conseguiram apontar qualquer diferença entre os dois.
— Está claro que não conseguem distinguir um do outro! — gritaram os dois ao mesmo tempo. — Deem-nos passagem! Queremos falar com o Imperador de Jade!
Sem alternativa, os deuses permitiram que atravessassem os portões do Céu. Nenhum dos dois agradeceu. Com expressões fechadas, seguiram diretamente para o Salão da Névoa Divina.
Ao vê-los, o Marechal Ma e os Quatro Conselheiros Celestes — Zhang, Ge, Xu e Qiu — correram para dentro do palácio e informaram ao Imperador de Jade:
— Lá fora estão dois Sun Wukongs. Eles chegaram lutando desde as Regiões Inferiores até os Portões Celestes, e desejam uma audiência com Vossa Majestade.
Eles mal haviam terminado de falar, quando os dois macacos entraram discutindo os gritos. O Imperador de Jade, surpreso, levantou-se imediatamente e aproximou-se deles, perguntando:
— Podem explicar por que entraram no palácio imperial sem permissão? E ainda pretendem ser ouvidos enquanto se comportam como arruaceiros?
— Vossa Majestade bem sabe — disse o Grande Sábio, com voz firme — que, desde que abracei a verdadeira fé e me tornei monge, jamais desrespeitei sua autoridade ou a dignidade celestial. Garanto que, se esse monstro não tivesse roubado minha identidade, eu jamais teria vindo incomodá-lo.
Em seguida, contou em detalhes tudo o que havia ocorrido.
— Suplico, portanto, que Vossa Majestade determine o que realmente nos diferencia.
Assim que terminou de falar, o outro Peregrino repetiu exatamente a mesma narrativa, palavra por palavra.

Sem se exaltar, o Imperador de Jade chamou o Devaraja Li e ordenou:
— Traga imediatamente o espelho revelador de monstros e obrigue esses dois a olharem para ele. Assim poderemos descobrir quem é o impostor, e ele receberá o castigo que merece.
O Devaraja cumpriu a ordem de imediato, e o Imperador de Jade, acompanhado pelos demais deuses, aproximou-se do espelho com grande expectativa. Para surpresa geral, refletiram-se duas imagens idênticas de Sun Wukong. Não havia qualquer diferença entre elas. Até mesmo as roupas e a quantidade de fios de cabelo eram exatamente iguais.
Percebendo que era impossível distingui-los, o Imperador de Jade ordenou que ambos fossem expulsos do palácio. O Grande Sábio soltou uma risada sarcástica, imediatamente acompanhada pelo outro Peregrino. Em seguida, agarraram-se pelo pescoço e retomaram a luta, dirigindo-se para onde estava o monge Tang, enquanto gritavam furiosamente:
— O mestre saberá quem é o verdadeiro! Ele não pode se enganar!

Enquanto isso, o Monge Sha, após uma longa e exaustiva jornada de três dias e três noites, percorreu a grande distância entre a Montanha das Flores e Frutos e a cabana onde o mestre repousava. Ao ouvir o relato do que havia acontecido, o monge Tang caiu em profunda tristeza e disse:
— Acreditei sinceramente que havia sido Sun Wukong quem me golpeou com o bastão e fugiu com nossos pertences. Como poderia imaginar que se tratava de um monstro disfarçado de Peregrino?
— Ele não apenas conseguiu fazer isso — explicou o Monge Sha —, como ainda teve a audácia de transformar um grupo de macacos em cópias perfeitas de nós. Com meus próprios olhos vi uma réplica sua, outra de Bajie carregando nossa bagagem, e até mesmo do cavalo branco. Não consegui conter a fúria ao me deparar com meu próprio sósia e o atingi com um golpe mortal do meu bastão. Foi assim que descobri que ele não passava de um macaco disfarçado. Corri imediatamente para contar tudo à Bodhisattva, que me aconselhou a voltar com nosso irmão mais velho à Caverna da Cortina de Água para investigar o que realmente havia acontecido. Quando chegamos lá, vimos que o impostor era uma cópia exata do Peregrino. Nem mesmo eu consegui distingui-los e, por isso, não pude ajudar. É por essa razão que resolvi retornar para lhe contar tudo.
Ao escutar essas palavras, Sanzang empalideceu e começou a tremer de medo. Bajie, por sua vez, caiu na risada e exclamou:
— Isso é inacreditável! E pensar que a dona desta casa estava certa o tempo todo! ela mencionou vários grupos de Peregrinos a caminho em busca das escrituras? Pois agora há mais um!
Ao ver o Monge Sha, os moradores da casa onde estavam hospedados saíram animados para recebê-lo e perguntaram:
— Onde esteve durante esses dias? Foi arrecadar dinheiro para continuarem a viagem?
— Nada disso — respondeu o Monge Sha, sorrindo. — Fui visitar nosso irmão mais velho na Montanha das Flores e Frutos, no continente de Purvavideha, e pedir que nos devolvesse o que havia levado. Depois, tive uma audiência com a Bodhisattva Guanyin na Montanha Potalaka, nos Mares do Sul. Em seguida, voltei à Montanha das Flores e Frutos e, por fim, retornei até aqui.
— Quantos quilômetros percorreu ao todo? —perguntou um ancião.
— Aproximadamente trezentos mil, entre ida e volta — respondeu o Monge Sha.
— E fez tudo isso em tão pouco tempo? — exclamou o ancião, incrédulo. — Para isso, deve ter viajado acima das nuvens, não?
— Com certeza! — confirmou Bajie. — De que outra forma ele atravessaria o mar?
— Isso nem se compara ao que nosso irmão mais velho é capaz de fazer — disse o Monge Sha. — Ele teria feito esse percurso em menos de dois dias.
Ao escutarem aquela conversa, todos os moradores da casa chegaram à conclusão de que aqueles andarilhos maltrapilhos só podiam ser imortais disfarçados.
— O que estão dizendo? — exclamou Bajie, ofendido. — Comparados conosco, os imortais são apenas jovens inexperientes!
A conversa seguia animada quando um estrondo imenso ecoou no céu. Todos correram para fora, curiosos para ver o que era. Os dois Peregrinos se aproximavam da cabana, trocando golpes e insultos no ar.
Ao avistá-los, Bajie esfregou as mãos, empolgado, e comentou:
— Deixa eu ver se consigo distingui-los!
Num salto, alçou voo e, ao se aproximar dos combatentes, gritou:
— Irmão! Vim para ajudar!
— Nesse caso — responderam os dois Peregrinos ao mesmo tempo —, me ajude a derrotar esse impostor!
— Então é verdade! — exclamou o ancião da casa, boquiaberto. — Nossos hóspedes são arhats! Eles voam acima das nuvens e andam sobre a névoa! Mesmo se um dia eu fizesse um voto de alimentar todos monges, jamais imaginaria encontrar pessoas como essas!
Sem medir esforços, preparou-se para servir mais chá e arroz. Mas logo reconsiderou, pensando consigo mesmo:
— Nada de bom sairá dessa luta. Esses dois vão virar o Céu e a Terra de cabeça pra baixo, e a desgraça cairá como uma nevasca de inverno.
Sanzang, percebendo os pensamentos conflitantes que agitavam a mente do ancião, aproximou-se dele com gentileza e disse:
— Não precisa se preocupar. Assim que eu conseguir convencer esse discípulo a abandonar o mau caminho, irei recompensá-lo generosamente por todo o transtorno que estamos causando.
— Não quero nem pensar nesse assunto — respondeu o ancião, balançando a cabeça em negação.
— Nesse caso, o melhor é manter o silêncio — concluiu o Monge Sha. — Sente-se aqui, mestre, enquanto vou ajudar Bajie. Vamos separá-los e trazê-los até aqui e então o senhor poderá recitar aquele feitiço. Aquele que sentir dor será o verdadeiro Peregrino. Está de acordo?
— Concordo plenamente — respondeu Sanzang.
O Monge Sha então elevou-se aos céus e gritou para os dois Peregrinos:
— Parem de lutar! O mestre quer vê-los, um de cada vez, para tentar descobrir quem é o verdadeiro!
O Grande Sábio imediatamente interrompeu a luta, assim como o outro Peregrino. O Monge Sha agarrou um deles e, voltando-se para Bajie, disse:
— Cuide do outro.
Em seguida, desceram das nuvens e caminharam até a cabana, onde Sanzang os aguardava. Assim que os viu, o mestre começou a recitar o feitiço. Mas, para sua surpresa, os dois gritaram ao mesmo tempo:
— Já não basta a batalha feroz que estamos travando? Como ainda ousa lançar esse feitiço sobre nós? Por tudo que é sagrado, pare com isso!

Sanzang, movido por seu coração bondoso, parou a recitação. Contudo, sentiu-se triste por não conseguir distinguir o verdadeiro do impostor. Os dois Peregrinos, aproveitando a distração, escaparam das mãos do Monge Sha e de Bajie e voltaram a lutar com a mesma fúria de antes.
— Protejam o mestre! — gritou o Grande Sábio. — Irei com ele até o Rei Yama para ver se ele possui algum meio de nos distinguir.
O outro Peregrino repetiu exatamente as mesmas palavras antes de desaparecer entre as nuvens, travando uma batalha incessante contra seu oponente.
— Irmão Sha— disse Bajie —, quando viu o falso Zhu Bajie carregando a bagagem na Caverna da Cortina de Água, por que não a recuperou?
— Quando o monstro e seus cúmplices viram que destruí meu sósia com o meu cajado — respondeu o Monge Sha — , eles me cercaram e tentaram me capturar. Então tive que fugir para salvar minha própria vida. Depois, contei tudo à Bodhisattva e voltei com o nosso irmão até os arredores da caverna. Enquanto os dois Sun Wukongs lutavam nos céus, revirei os bancos de pedra e dispersei os macacos que haviam por perto. No entanto, tudo o que encontrei foi uma grande cascata desaguando em um riacho. Não consegui achar a entrada da caverna nem a bagagem. Por isso, voltei para o mestre de mãos vazias.
— Não tinha como saber disso — disse Bajie. — No ano passado, quando fui até lá tentar convencer o nosso irmão a voltar para o grupo, ele me recebeu na entrada da caverna, mas depois disse que precisava trocar de roupa e desapareceu atrás da cortina d’água. Aquela cachoeira é na verdade, a entrada da caverna. É bem provável que o monstro tenha escondido nossa bagagem lá.
— Se o que diz é verdade — concluiu Sanzang —, o melhor seria aproveitar a ausência do monstro para recuperar a bagagem. Assim poderemos seguir viagem rumo ao Paraíso Ocidental. E que fique claro: não aceitarei o Peregrino de volta, mesmo que ele implore.
— Está certo. Farei como pede — respondeu Bajie.
— Tem certeza do que está dizendo? — questionou o Monge Sha. — Há mais de mil macacos naquela caverna. Você realmente acredita que conseguirá enfrentá-los sozinho?
— Não se preocupe com isso — respondeu Bajie, sorrindo. Então, montando apressado em uma nuvem, partiu em direção à Montanha das Flores e Frutos em busca da bagagem.

Enquanto isso, os dois Peregrinos, ainda lutando ferozmente, chegaram à Montanha da Sombra Perpétua. Os espíritos que guardavam o lugar começaram a tremer de medo ao ver tamanha violência. Alguns se esconderam como puderam; outros escaparam por um estreito corredor que levava ao mundo dos mortos e foram relatar o ocorrido ao Palácio das Trevas.
— Lá fora — disseram aos seus senhores —, nos arredores da Montanha da Sombra Perpétua, dois Grandes Sábios, Sósias do Céu, estão se enfrentando como se estivessem loucos!
Alarmado, o Rei Qin Guang, da Primeira Câmara, enviou a notícia a Chujiang, o "Rei do Rio das Origens", da Segunda Câmara. Este repassou a Songdi, o "Rei do Império Song", da Terceira Câmara, que por sua vez alertou Wuguan, o "Rei dos Cinco Ofícios", da Quarta Câmara. A mensagem seguiu para o Rei Yama, da Quinta Câmara, depois a Pingdeng, o "Rei das Feições Idênticas", da Sexta Câmara, a Taishan, o "Rei do Monte Tai", da Sétima Câmara, e a Dushi, o "Rei da Capital", da Oitava Câmara. Dali, foi transmitida a Biancheng, o "Rei das Transformações", da Nona Câmara, e por fim a Zhuanlun, o "Rei dos Cinco Caminhos da Reencarnação", da Décima Câmara.
Depois de percorrerem todas as câmaras, os Dez Reis reuniram-se em conselho e decidiram enviar um pedido ao Rei Ksitigarbha, para que comparecesse ao Palácio das Trevas. Ao mesmo tempo, ordenaram que todos os guerreiros do reino se mobilizassem para capturar os dois Peregrinos.
No entanto, antes mesmo que a ordem fosse cumprida, surgiu um vento furioso, levantando uma nuvem espessa de terra e poeira. Em meio à tempestade, os dois Peregrinos continuavam a trocar golpes com ferocidade.
Indignados, os Reis das Trevas aproximaram-se deles e perguntaram:
— Podem explicar por que vieram causar tamanha confusão em nosso reino?
— Após deixamos o Reino de Liang Ocidental — respondeu o Grande Sábio —, seguimos rumo à Montanha do Espírito, em busca das escrituras sagradas. No caminho, atravessamos uma região infestada por bandidos, os quais tentaram roubar os nossos pertences. Após confrontá-los, acabei eliminando alguns deles. Meu mestre ficou extremamente ofendido com isso e me expulsou de sua companhia. Então, não me restou alternativa senão buscar a ajuda da Bodhisattva dos Mares do Sul. Foi então que esse monstro se aproveitou da situação, tomou a minha forma e atacou o meu mestre pelas costas, deixando-o quase morto, além de roubar todos os seus pertences. Pensando que isso havia sido obra minha, Sha Wujing, o mais novo dos meus irmãos, foi até a montanha de onde venho para exigir de volta a bagagem roubada. Mas, ao invés de mim, encontrou esse impostor, que não só se negou a devolver o que roubou, como afirmou que iria em busca das Escrituras por conta própria, ao lado de um mestre tão falso quanto ele. Diante disso, Wujing fugiu até os Mares do Sul para contar tudo o que ocorreu à Bodhisattva, e me encontrou ao lado dela. Ela então nos orientou a ir até a Montanha das Flores e Frutos para esclarecer a situação. Foi assim que descobri que esse impostor estava se passando por mim. Lutamos sem parar até que o levei comigo até a morada da Bodhisattva, mas ele era tão idêntico a mim que nem mesmo ela conseguiu nos distinguir. Recorremos, então, aos Céus. Porém, nem mesmo os deuses conseguiram perceber a diferença entre nós. Nem mesmo o feitiço que meu mestre usa para me castigar quando o desrespeito serviu, pois a dor de cabeça que ele provoca também afetou o impostor. Por isso, viemos até as Regiões Inferiores, na esperança de que vocês, Reis do Submundo, consultem o Registro da Vida e da Morte e determinem a origem desse falso Peregrino. É preciso que aprisionem sua alma imediatamente, para que não haja mais confusão entre as duas Mentes.

Os Dez Reis do Submundo convocaram o juiz responsável pelos pelos Registros da Vida e da Morte para examiná-los cuidadosamente, do início ao fim, mas não havia ninguém registrado com o nome de "Falso Peregrino". Em seguida, consultaram o volume sobre criaturas peludas, mas o resultado foi o mesmo. Como se sabe, quando o Grande Sábio aprendeu os princípios do Tao e causou confusão no Submundo, ele mesmo apagou os nomes de cento e trinta espécies de macacos. Por isso, nenhuma delas aparece mais nos registros.
Após receberem o relatório do juíz, os Dez Reis do Submundo vestiram seus trajes cerimoniais em sinal de solenidade, e disseram aos dois Peregrinos:
— Grande Sábio! Tememos que, nestas regiões sombrias, não seja possível identificar o impostor. Se deseja descobrir a verdade, deverá ir ao Reino da Luz.
— Esperem um instante! — interrompeu o Bodhisattva Ksitigarbha. — Antes de partirem, desejo consultar o Ouvinte Penetrante.
O Ouvinte Penetrante era uma criatura que permanecia deitada aos pés de Ksitigarbha durante todo o dia. Deitada no chão, era capaz de perceber o verdadeiro e o falso em qualquer tipo de ser. Nada escapava à sua percepção: criaturas sem pelos, cobertas de escamas ou pelagens, aladas, rastejantes, celestiais, terrestres, humanas ou espirituais, vindas de cavernas sagradas, santuários, rios ou montanhas dos Quatro Grandes Continentes.

Atendendo ao pedido de Ksitigarbha, a criatura se arrastou até o Palácio das Trevas, levantou a cabeça e declarou:
— Descobri o nome do monstro, mas não posso revelá-lo na presença dele, nem posso ajudar a capturá-lo.
— O que aconteceria se revelasse seu nome diante dele? — perguntou Ksitigarbha.
— Se eu o fizesse — respondeu o Ouvinte Penetrante —, o monstro espalharia confusão neste recinto sagrado e destruiria a paz que reina neste Mundo das Sombras.
— E por que razão não pode ajudar na captura dele? — questionou novamente Ksitigarbha.
— Porque os poderes mágicos desse monstro são idênticos aos do Grande Sábio — explicou o Ouvinte Penetrante. — Nem mesmo os deuses do inferno têm poder contra ele. Por isso, capturá-lo seria praticamente impossível.
— Então o que podemos fazer para derrotá-lo? — insistiu Ksitigarbha, visivelmente preocupado.
— Apenas o poder de Buda é ilimitado — declarou o Ouvinte Penetrante.

Ksitigarbha então voltou-se para os Peregrinos e disse:
— Vocês são tão parecidos e têm poderes tão semelhantes que parecem ser a mesma pessoa. Se querem descobrir o que os diferencia, precisam ir até o Monastério do Trovão, onde Sakyamuni estabeleceu sua morada.
— Tem razão — responderam os dois Peregrinos ao mesmo tempo. — Iremos a esse lugar sagrado e pediremos ao Patriarca do Paraíso Ocidental que resolva, de uma vez por todas, esse enigma.
Os Reis das Trevas das Dez Câmaras os acompanharam até os portões do Inferno. Enquanto isso, Ksitigarbha retornou às pressas ao Palácio da Nuvem de Jade, e os espíritos guardiões fecharam com firmeza todas as passagens que levavam ao Mundo das Sombras. Por enquanto, não falaremos mais sobre eles. Voltemos nossa atenção aos dois Peregrinos, que seguiam rumo ao Paraíso Ocidental enquanto lutavam com a fúria de inimigos mortais. Sobre esse episódio, existe um antigo poema que diz:
"Se alguém possui duas mentes, desastres irá semear;
Dúvidas e suposições lançará ao longe e ao perto.
Busca um bom cavalo ou o mais alto posto,
Ansiando pela proeminência na corte real.
Guerreará sem cessar no norte e no sul;
Não cessará seus ataques tanto a leste quanto a oeste.
Deve-se aprender a não ter mente no portal do Zen,
E assim permitir que o santo embrião (3) se forme em silêncio".
Sem interromper a luta nem por um instante, os dois logo avistaram o Monastério do Trovão, imponente no alto da Montanha do Espírito, no coração do Paraíso Ocidental. Naquele exato momento, os Quatro Grandes Bodhisattvas, os Oito Grandes Guardiões do Diamante, os Quinhentos Arhats, os Três Mil Protetores da Fé, além de monges, monjas, upasakas e upasikas (4), estavam reunidos diante do trono de lótus feito das sete pedras preciosas, ansiosos por ouvir os ensinamentos de Tathagata.
Ele discursava, dizendo:
— Aquilo que existe está contido no que não existe; e o que não existe, no que não pode existir. O que tem forma está no informe; e o vazio, no que parece estar cheio. O inexistente é, em sua essência, o existente; e o que não pode existir é exatamente o que não existe. A forma se encontra no informe, e o vazio está naquilo que não é vazio. Ainda assim, o vazio é realmente vazio — e o que tem forma, de fato a possui. Mas como a forma não tem essência própria, ela é considerada vazia. O vazio, por sua vez, não é fixo em sua vacuidade, e por isso também é forma. Conhecer o vazio é conhecer o não-vazio; assim como compreender a forma é perceber o informe. Somente quando nomes e ações se harmonizam, é que se alcança a verdadeira e completa iluminação.
Ao ouvirem essas doutrinas sublimes, todos os presentes inclinaram a cabeça e repetiram em harmonia os ensinamentos que Buda acabara de transmitir. Agradecido, Tathagata fez chover sobre eles uma chuva de pétalas celestes e, com um leve tom de satisfação, declarou:
— Todos aqui possuem uma única mente. Observem agora a luta entre duas mentes que se aproximam.
Todos levantaram os olhos e viram os dois Peregrinos ainda travando um combate feroz, mesmo já pisando nas terras sagradas do Trovão. Diante de tal cena, os Oito Grandes Guardiões do Diamante se indignaram profundamente e tentaram impedir sua entrada, exclamando ao mesmo tempo:
— Para onde pensam que estão indo?
— Um monstro usurpou a minha identidade — respondeu um dos Peregrinos. — Quero que Tathagata, do alto de seu inatingível trono de lótus, determine quem de nós dois é o verdadeiro.
Apesar dos esforços, os Oito Grandes Guardiões do Diamante não conseguiram detê-los. Os dois macacos continuaram lutando ferozmente, até chegarem diante do estrado adornado com as sete pedras preciosas.
— Como é do conhecimento de todos — disse o Grande Sábio, ajoelhando-se diante do Grande Patriarca Budista —, dediquei minha vida a proteger o monge Tang durante sua longa jornada até estas terras, em busca das escrituras sagradas. Para cumprir essa missão, enfrentei inúmeros perigos, derrotei monstros e venci demônios, sem jamais poupar minhas forças. No entanto, recentemente fomos atacados por bandidos, e fui obrigado a matar alguns deles. Isso enfureceu o meu mestre, que me expulsou de sua companhia e me impediu de vir prestar reverência à vossa figura sagrada. Sem ter a quem recorrer, busquei ajuda junto à Bodhisattva Guanyin, dos Mares do Sul. Mal podia imaginar que, nesse intervalo, um monstro tomaria minha forma e minha voz, enganando o monge Tang, deixando-o quase morto e roubando todos os seus pertences. Sha Wujing, o mais jovem dos meus irmãos, seguiu a criatura até a montanha de onde venho e descobriu que ela planejava usar um falso monge para se apoderar das escrituras. Por sorte, ele escapou e correu até a Bodhisattva, que então sugeriu trazer o impostor até sua presença. Mas nem ela, nem os deuses celestiais, nem o próprio monge Tang, tampouco os Reis das Trevas conseguiram identificar qual de nós era o verdadeiro. Por isso, tomei a liberdade de vir até vós e implorar que, com vossa compaixão sem limites, nos ajude a separar o bem do mal. Assim, poderei me reunir novamente ao monge Tang, concluir nossa missão, obter as escrituras e levá-las de volta às Terras do Leste, para que todos possam conhecer a grandeza dos vossos ensinamentos.

Todos os presentes ouviram, perplexos, os dois Peregrinos proferirem exatamente as mesmas palavras, com o mesmo tom de voz. Era impossível distinguir o verdadeiro do impostor. Apenas Tathagata possuía o poder de discernimento necessário para fazê-lo. Ele se preparava para pronunciar seu julgamento, quando, subitamente, uma nuvem rosada surgiu vinda do sul, trazendo consigo a Bodhisattva Guanyin. Ela se inclinou respeitosamente diante de Buda, com as palmas unidas em sinal de reverência. Mas, antes que pudesse dizer algo, foi o próprio Tathagata quem falou, perguntando-lhe:
— É capaz de distinguir qual dos dois é o verdadeiro Peregrino?
— Alguns dias atrás — respondeu a Bodhisattva —, eles vieram até mim com esse mesmo dilema. Mas fui incapaz de descobrir o que os distibguia um do outro. Sugeri que fossem ao Palácio Celestial e à Mansão das Trevas, mas nem mesmo lá puderam encontrar uma resposta. Por isso, venho hoje suplicar, em nome do verdadeiro Peregrino, que nos revele a verdade.

— Embora todos vocês possuam um dharma poderoso e sejam capazes de observar os eventos de todo o universo — disse Tathagata, sorrindo — não podem conhecer todas as coisas que nele existem, nem têm o conhecimento de todas as espécies.
A Bodhisattva então pediu que ele explicasse com mais detalhes, e Tathagata prosseguiu:
— Existem cinco tipos de imortais no universo: os celestes, os terrenos, os que participam da natureza divina, os que têm origem humana e os que pertencem ao mundo espiritual. Da mesma forma, existem cinco categorias de seres: os de pelos curtos, os de corpo com escamas, os que se protegem com peles, os que cruzam os céus e os que rastejam sobre o pó. No entanto, esse impostor não pertence a nenhuma dessas categorias. Isso acontece porque existem quatro tipos de macacos que transcendem essas classificações.
— Poderia me explicar quais são esses tipos de macacos a que se refere? — perguntou novamente a Bodhisattva.
— O primeiro — respondeu Tathagata — é o macaco de pedra, que possui uma inteligência tão avançada que aprendeu a arte das metamorfoses. Ele é capaz de observar as mudanças das estações, conhece os tesouros ocultos pela terra e pode alterar as órbitas das estrelas e planetas. O segundo é o macaco mandril de nádegas avermelhadas, que compreende os mistérios do yin e do yang, entende as questões humanas, é responsável em suas ações e luta com todas as suas forças para evitar a morte e prolongar sua vida indefinidamente. O terceiro é o gibão de braços nus, cujos braços são tão longos que pode alcançar a lua e o sol, diminuir a altura de montanhas e interpretar os sinais favoráveis, distinguindo-os dos desfavoráveis, brincando livremente com o universo. O quarto é o macaco de seis ouvidos, cujas percepções são tão aguçadas que ele compreende os princípios fundamentais da existência, conhece o passado e o futuro, e penetra no mistério de tudo o que é. Esses quatro tipos de macacos não se encaixam nas dez classes de seres nem nas inúmeras espécies que habitam os céus e a terra. Na minha opinião, esse falso Sun Wukong deve ser um macaco de seis ouvidos (3), pois ele é capaz de saber o que acontece a dez mil quilômetros de distância e ouvir com clareza o que é dito em lugares ainda mais distantes. Por isso, me referi a ele como um ser de percepções tão aguçadas que pode compreender os princípios do universo, entender o passado e o futuro, e penetrar nos mistérios da existência. Esse macaco, com o mesmo corpo e a mesma voz de Wukong, é, de fato, um macaco de seis ouvidos.
Ao ouvir o preciso veredito de Tathagata, o macaco começou a tremer de medo. Desesperado, ele deu um salto e tentou fugir pelos ares, mas Tathagata ordenou que os Quatro Bodhisattvas, os Oito Grandes Guardiões do Diamante, os Quinhentos Arhats, os Três Mil Protetores da Fé, os monges e monjas mendicantes, os upasakas, as upasikas, Guanyin e Muzha o cercassem para que não escapasse.
O Grande Sábio quis se juntar à caça, mas Tathagata o impediu, dizendo:
— Não se mova de onde está, Wukong. Eu mesmo me encarregarei de capturá-lo.
Percebendo que não escaparia, o macaco foi tomado pelo terror, ao ponto de seus pelos se arrepiarem por completo. Mesmo assim, ele sacudiu o corpo e, num instante, transformou-se em uma abelha, que se elevou calmamente para o alto. Sem perder tempo, Tathagata lançou sua tigela de ouro, usada para pedir esmolas, para cima.
A tigela capturou a abelha e a depositou suavemente no chão. Nenhum dos presentes percebeu o que havia acontecido. Todos acreditaram que o macaco havia conseguido escapar. Percebendo a tristeza deles, Tathagata os chamou para perto e, sorrindo, disse:
— Não se lamentem. O monstro não escapou. Ele está debaixo da minha tigela de esmolas.
Todos se aproximaram e levantaram a tigela com cuidado. O macaco de seis ouvidos apareceu diante deles, com sua forma habitual.
Furioso, o Grande Sábio ergueu seu bastão de ferro acima da cabeça e, com um único golpe, reduziu o macaco a pó. Desde então, nunca mais se viu nenhum exemplar dessa espécie de macaco.
— Oh, céus! Oh, céus! — exclamou Tathagata, movido pela compaixão.
— Não deveria sentir pena dele — respondeu o Grande Sábio. — Ele tentou matar meu mestre e roubou sua bagagem. Pela lei, é culpado de assalto e roubo em plena luz do dia, e esses crimes são punidos com a morte.
— Retorne imediatamente ao lado do monge Tang — retrucou Tathagata — e ajude-o a chegar aqui o mais rápido possível. Não podemos mais adiar a obtenção das escrituras.
Tocando o chão com a testa em sinal de gratidão, o Grande Sábio disse a Tathagata:
— Preciso informá-lo que o mestre se recusa a me aceitar de volta. Se eu for até ele agora e ele me rejeitar, será apenas um esforço em vão. Por isso, peço que recite o feitiço para que essa tiara de ouro se solte da minha cabeça e eu possa retornar à minha vida secular.
— Deixe de falar tolices, e não seja desrespeitoso! — aconselhou Tathagata. — Se Guanyin o levar até o mestre, tenha certeza de que desta vez ele não o afastará. Procure ajudá-lo em tudo o que ele precisar, e quando tiverem completado a jornada e chegado à terra do nirvana, você mesmo se sentará em um trono de lótus.
Ao ouvir essas palavras, Guanyin juntou as palmas das mãos em sinal de gratidão a Tathagata. Em seguida, subiu em uma nuvem ao lado de Wukong, seguida por Muzha e por sua cacatua branca. Logo chegaram à cabana onde o monge Tang descansava. Ao avistá-los, o Monge Sha correu para dentro e, visivelmente agitado, pediu ao mestre que saísse para recebê-los.
— Aquele que lhe bateu no outro dia — explicou a Bodhisattva com sua habitual doçura — não era o Peregrino, mas um macaco de seis ouvidos que se passou por ele. Felizmente, Tathagata conseguiu desmascará-lo, e Wukong o eliminou. É necessário que aceite o Peregrino de volta, pois ainda há muitos obstáculos a serem enfrentados antes de alcançarem o destino final. Sem ele, não chegará à Montanha do Espírito nem poderá pedir a Buda que lhe entregue as escrituras. Não guarde mais ressentimentos contra ele.
— Está bem — respondeu Sanzang, inclinando-se até o chão. — Farei como pede.
Antes que terminasse de falar, um vento forte soprou do leste, e Bajie surgiu montado em uma nuvem, carregando duas bolsas de lã azul nas costas. Assim que viu a Bodhisattva, ajoelhou-se e disse:
— Acabo de retornar da Caverna da Cortina de Água, na Montanha das Flores e Frutos, para onde fui, por ordem expressa do mestre em busca da nossa bagagem roubada. O mais surpreendente foi que encontrei lá um falso monge Tang e um Bajie que nada tinha a ver comigo. Derrotei ambos com um só golpe, e descobri que na verdade, eles eram apenas dois macacos. Em seguida, entrei na caverna e recuperei nossa bagagem. Verifiquei tudo e não faltava nada. Então, montei em uma nuvem e voltei para cá. Por falar nisso, o que aconteceu com os dois Peregrinos?
A Bodhisattva explicou novamente como Tathagata havia revelado a verdadeira identidade do impostor e como o Grande Sábio o havia derrotado, deixando Bajie feliz e satisfeito. A alegria tomou conta dos peregrinos, que se prostraram em sinal de gratidão à Bodhisattva por toda a ajuda. Guanyin, então, seguiu em direção aos Mares do Sul, enquanto os monges, unidos em mente e coração, despediram-se da família que os acolheu com carinho em sua cabana, arrumaram sua bagagem e prepararam o cavalo para retomar sua jornada rumo ao Oeste. Não restava qualquer vestígio de mágoa ou rancor entre eles.

Sobre esse momento, um poema diz:
"Cada vez que se põem em marcha, as Cinco Fases passam por uma transformação profunda,
E os monstros que derrotaram se fundem com a luz primordial.
O espírito, então, retorna ao seu lar, e o Zen alcança sua paz absoluta.
Somente quando os seis sentidos estão sob controle, é possível destilar o elixir".
Ainda não sabemos se o monge Tang conseguiu ver Buda face a face ou se obteve as escrituras. Quem desejar saber deve ouvir atentamente as revelações que serão feitas no próximo capítulo.
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Notas do Capítulo LVIII
- Em chinês, 隨心鐵桿兵" (Suíxīn Tiě Gǎn Bīng). Suixin (隨心) é um trocadilho com o bastão Ruyi (如意) de Wukong, significando que o Macaco de Seis Ouvidos copia tudo, até a arma de Sun Wukong;
- A literatura alquímica chamava de “santo embrião” ou “criança recém-nascida” a fase final da conquista da imortalidade. Nesse estágio, recupera-se a respiração fetal e o corpo atinge um estado de regeneração contínua;
- Conforme indicado na explicação seguinte, o “macaco de seis ouvidos” não se refere a uma espécie desconhecida de primatas, mas sim a indivíduos com uma capacidade auditiva extraordinária, que os tornava livres das limitações do tempo e do espaço;
- Upasakas e upasikas, de acordo com o Budismo Mahayana, referem-se aos seguidores seculares de Buda, sendo upasakas homens e upasikas mulheres. Esses indivíduos defendem os ensinamentos e a moral budistas enquanto vivem em família, representando uma assembleia inclusiva de seguidores seculares.
- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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