۞ ADM Sleipnir
Arte de Moyi Zhang |
Depois de se despedir da Bodhisattva, o Peregrino desceu da nuvem, pendurou a túnica em um cedro próximo e adentrou a Caverna do Vento Negro. No entanto, não encontrou nenhum demônio. Todos haviam fugido apavorados assim que viram quem era a Bodhisattva e o terrível castigo que ela infligia ao seu senhor. Isso não diminuiu a sede de vingança do Peregrino. Espalhou uma grande quantidade de lenha por todos os corredores da caverna e ateou fogo. Em pouco tempo, a Caverna do Vento Negro se transformou na Caverna da Brisa Vermelha. Após concluir a tarefa, o Peregrino pegou a túnica, montou na nuvem e partiu para o norte.
- Mestre! - exclamou o Peregrino, jubiloso, prostrando-se no chão. - Aqui está sua túnica!
Sanzang ficou encantado, assim como os outros monges, que expressaram seu entusiasmo:
- Viva! Nossas vidas não correm mais perigo!
- Ao partir - repreendeu Sanzang, no entanto, dirigindo-se ao discípulo enquanto pegava a túnica -, você disse que estaria de volta após o café da manhã ou, no máximo, por volta do meio-dia. Pode me dizer por que demorou tanto? Imagino que tenha percebido que o sol já está se pondo.
O Peregrino então relatou como havia solicitado a ajuda da Bodhisattva e como juntos haviam dominado o monstro. Ao ouvir isso, Sanzang pegou um pouco de incenso e, virando-se para o sul, ofereceu-o em sinal de gratidão à sua benfeitora. Após a oferta, voltou-se para seu discípulo e ordenou:
- Agora que recuperamos a Túnica de Buda, vamos arrumar nossas coisas e partir o mais rápido possível.
- Por que tanta pressa? - replicou o Peregrino. - Está anoitecendo. Por que não esperamos até amanhã de manhã para continuar nossa jornada?
- O ancião Sun está certo - opinaram todos os monges, ajoelhando-se. - Está escurecendo. Além disso, temos uma promessa a cumprir. Agora que fomos libertados e você recuperou seu tesouro, gostaríamos de compartilhar nossa humilde refeição com vossas ilustres reverências. (1) Amanhã, poderão continuar sua jornada para o Oeste.
- Fantástico! - exclamou o Peregrino. - Uma ideia realmente excelente!
Os monges tiraram de suas bolsas tudo o que conseguiram salvar do incêndio e presentearam seus ilustres hóspedes. Em seguida, prepararam oferendas vegetarianas, queimaram papel-moeda para os espíritos e recitaram vários trechos das escrituras apropriados para evitar desgraças e assédios do mal. A cerimônia durou até bem tarde da noite. Na manhã seguinte, selaram o cavalo e carregaram as bagagens. Os monges os acompanharam por um longo trecho do caminho. O Peregrino liderava o grupo.
A primavera tinha chegado com todo o seu esplendor, e os cascos do cavalo deixavam um leve rastro de plantas esmagadas na grama. Os salgueiros estavam cobertos de orvalho, e os pessegueiros se repetiam como um bosque persistente. Vinhas selvagens cresciam delicadamente em todos os lugares. Bandos de patos tomavam sol nas margens dos rios, enquanto as flores mais perfumadas pareciam atrair borboletas. O outono havia passado, o inverno terminado, e a primavera estava em seu auge. Quando finalmente poderiam obter as autênticas escrituras?
Mestre e discípulo vagaram pela floresta por uma semana. Um dia, quase anoitecendo, avistaram uma vila ao longe, e Sanzang exclamou, jubiloso:
- Olhe, Wukong, um lugar habitado! O que acha de pedirmos abrigo e continuarmos a jornada amanhã?
- Antes de decidir - respondeu o Peregrino -, devemos saber se é um lugar bom ou ruim.
Sanzang puxou as rédeas, e o Peregrino examinou a vila com seus olhos poderosos. As casas se agrupavam em aglomerados, protegidas por cercas de bambu. Na frente de cada porta, havia uma árvore que se erguia até o alto. Suas formas elegantes refletiam em um riacho que cortava a vila de um lado a outro. Os salgueiros que ladeavam o caminho exibiam orgulhosos suas copas verdes, competindo em suavidade com o aroma das flores em cada quintal. O crepúsculo rapidamente dava lugar às sombras, enquanto os pássaros não paravam de fazer barulho em seus ninhos. De cada lar subia uma coluna de fumaça branca, enquanto o gado voltava mansamente para os seus estábulos. Porcos e galinhas, lustrosos e bem alimentados, dormiam placidamente à sombra de cada casa. De uma delas emanava uma canção tão melancólica quanto a noite que estava prestes a cair.
- Acho que podemos seguir em frente, mestre - disse o Peregrino após sua rápida inspeção. - Parece uma vila habitada por pessoas boas. Portanto, acredito que é um bom lugar para passarmos a noite.
O monge esporeou o cavalo, e logo chegaram à trilha que levava diretamente à aldeia. Lá encontraram um jovem usando um chapéu de algodão e uma jaqueta azul. Ele segurava um guarda-chuva na mão e um fardo aparentemente pesado nas costas. As calças estavam arregaçadas, revelando um par de sandálias de palha com três laços. Quando o Peregrino o alcançou, ele vinha caminhando a passos largos, como se fosse uma pessoa decidida.
- Para onde você vai com tanta pressa? - perguntou Wukong. - Se não se importa, gostaria que nos dissesse o nome deste lugar.
- Não há mais ninguém nesta vila? - queixou-se o homem, tentando se libertar. - Por que você precisa perguntar isso justo a mim?
- Não fique zangado - aconselhou o Peregrino. - "Aquele que ajuda o outro está, na verdade, ajudando a si mesmo." Pode me dizer qual é o problema em me dizer o nome desta vila? Talvez eu possa ajudá-los a resolver os seus problemas.
Incapaz de se libertar do aperto do Peregrino, o homem estava tão enfurecido que pulava descontroladamente.
-Amaldiçoado! Estou amaldiçoado! ele gritou. - Como se eu já não tivesse problemas suficientes com os problemas da minha família, ainda tenho a infelicidade de encontrar um sujeito careca como você.
- Eu deixarei você ir se conseguir abrir minha mão - disse o Peregrino, divertindo-se.
O homem se contorceu para a esquerda e para a direita, mas não conseguiu nada. Era como se estivesse firmemente preso por um par de tenazes de ferro. Estava tão furioso que jogou o fardo e o guarda-chuva no chão e tentou, sem sucesso, socar e arranhar o Peregrino. Segurando-o com uma mão e segurando a bagagem com a outra, Wukong o manteve a uma distância segura para evitar ser atingido. Quanto mais ele tentava, mais forte o Peregrino apertava. O homem estava furioso.
- Não há ninguém vindo por aí? - perguntou Sanzang a Wukong. - Por que não pergunta para o próximo que passar e deixa este homem ir?. Não entendo por que você está tão irritado com ele.
- Não entende, mestre? - replicou o Peregrino, rindo. - Se eu deixá-lo ir, a diversão acaba.
Percebendo que era inútil continuar lutando, o homem respondeu finalmente:
- Este lugar é chamado Vila do Senhor Gao e está localizado no Reino do Tibete. A maioria das pessoas que vive nesta aldeia tem o sobrenome Gao, daí o nome. Agora, se não se importa, gostaria de continuar meu caminho.
- Você não está vestido para dar um passeio por aí - respondeu o Peregrino. - Então, me diga a verdade: para onde você está indo e com que objetivo? Se o fizer, prometo que o deixarei ir.
- Pertenço à família do velho Senhor Gao - explicou o homem, percebendo que não tinha escolha a não ser fazer o que lhe era exigido. - Me chamo Gao Cai. A filha mais nova do Senhor Gao tem vinte anos e nunca foi prometida em casamento a ninguém. No entanto, há cerca de três anos ela foi sequestrada por um monstro que a tomou como esposa. Ao Senhor Gao não agradou muito ter um monstro como genro, pois, como ele mesmo disse, a reputação de sua família sofreu um duro golpe e não há maneira de estabelecer relações com a família do marido de sua filha. Quem pode se orgulhar de ter amizade com um monstro? Durante todo esse tempo, ele tentou obter a anulação desse casamento, mas o monstro se recusou firmemente. Além disso, ele manteve a garota trancada nos fundos de sua casa e não a permitiu ver sua família por quase meio ano. Desesperado, o velho me deu algumas onças de prata e pediu que eu encontrasse alguém capaz de ajudá-lo a capturar o monstro. Desde então, não descansei um único dia, e tudo o que consegui foi me encontrar com três ou quatro monges sem valor e taoístas impotentes. Nenhum deles conseguiu dominar a besta. Naturalmente, acabei de levar uma boa reprimenda por minha incompetência. O pior é que só tenho meia onça de prata para continuar procurando. Como vê, só o que me faltava era esbarrar em você, mau presságio, que atrasou minha viagem. Enfim, isso é tudo o que eu queria dizer quando mencionei que os problemas de minha família eram praticamente insolúveis. Agora que contei a verdade, gostaria de seguir meu caminho.
- Você está com sorte - respondeu o Peregrino. - Seus problemas e meus poderes se complementam como o quatro e o seis no jogo de dados. A partir de agora, você não precisará mais continuar viajando nem desperdiçar seu dinheiro. Embora seja difícil acreditar, nós não somos monges sem valor nem taoístas impotentes. Temos, de fato, alguma experiência em capturar monstros. Como bem diz o ditado, "Agora você não só tem um médico atencioso, mas também curou seus olhos". Volte para o chefe de sua família e diga que teve a enorme sorte de encontrar dois monges enviados pelo Senhor das Terras do Leste ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras de Buda. Não preciso lembrá-lo que somos especializados em capturar monstros e demônios.
- Não zombe de mim, por favor! - exclamou Gao Cai - Estou farto disso. Espero que compreenda que, se me enganar e não tiver nenhum tipo de poder para capturar monstros, só vai aumentar meus problemas, em vez de resolvê-los.
- Garanto que tudo sairá bem - tranquilizou-o o Peregrino. - Leve-nos até sua casa, por favor.
Como não perdia nada em verificar se o que dizia era verdadeiro ou não, o homem pegou novamente a carga e o guarda-chuva e conduziu os dois viajantes até a porta de sua casa.
- Esperem aqui um momento, enquanto vou avisar o dono da casa - disse o homem.
O Peregrino o deixou em liberdade e, colocando a bagagem no chão, ajudou seu mestre a descer do cavalo. Enquanto esperavam pacientemente na porta, Gao Cai entrou na mansão e dirigiu-se à sala principal, que ficava bem no centro da casa. Lá ele se deparou com o senhor Gao, que exclamou, mal-humorado, ao vê-lo:
- Maldito descarado! Por que você não está procurando um domador de monstros? O que está fazendo de volta aqui?
- Permita-me informá-lo do que aconteceu - suplicou inseguro Gao Cai, colocando a carga no chão. - Justo no final da rua, encontrei dois monges muito estranhos. Um estava montado em um cavalo e o outro carregava um fardo nas costas. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, me agarraram e se recusaram a me soltar até que eu lhes dissesse para onde ia. No início, recusei-me categoricamente a atendê-los, mas eles se mostraram extremamente persuasivos e, além disso, eu não conseguia me livrar deles. Foi então que contei a desgraça que se abateu sobre nossa família. Aquele que me segurava ficou muito feliz e disse que ele se encarregaria de dominar a besta.
- De onde são esses monges? - perguntou, interessado, o senhor Gao.
- Um diz ser irmão do Imperador das Terras do Leste - respondeu Gao Cai - e estão indo para o Paraíso Ocidental para prestar seus respeitos a Buda e obter suas escrituras.
- Se eles chegaram até aqui vindos de tão longe - concluiu o senhor Gao -, isso significa, certamente, que possuem poderes muito especiais. Onde estão esses homens agora?
- Lá fora, esperando - respondeu Gao Cai.
O senhor Gao trocou rapidamente de roupas e saiu, acompanhado de Gao Cai, para recebê-los, dizendo:
- Que prazer poder desfrutar da companhia de tão honrados monges!
Sanzang virou-se rapidamente e deparou-se com um anfitrião tão efusivo bem na frente de seus olhos. Era um homem já idoso vestindo um chapéu de seda negra, uma túnica branca de brocado de Sichuan, um par de botas de pele de boi da cor de arroz não polido e um cinto de seda preta. Sem parar de sorrir amavelmente, acrescentou:
- Aceitem minhas reverências, veneráveis viajantes.
Sanzang devolveu a saudação, mas o Peregrino não mexeu um músculo. Ao perceber, por sua vez, sua aparência estranha, o ancião não ousou falar com ele. O Peregrino se sentiu profundamente ofendido e confrontou-o, dizendo:
- Posso saber por que não me saúda?
Alarmado, o ancião virou-se para Gao Cai e o repreendeu, dizendo:
- Por que você fez isso comigo? Já temos em casa um monstro horrendo como genro que não conseguimos nos livrar, e você tinha que trazer um espírito do trovão para nos arruinar?
- De que adiantou chegar a uma idade tão avançada, se você é incapaz de distinguir o bem do mal? - repreendeu o Peregrino. - Não é sábio julgar as pessoas pela aparência. Eu posso ser muito feio, mas tenho poderes muito especiais. Vou capturar o monstro, depois vou exorcizá-lo e devolver sua filha. Isso é suficiente para você? Não entendo por que só se fixam nas aparências!
O ancião começou a tremer de medo, mas conseguiu reunir coragem suficiente para dizer:
- Entrem, por favor.
O Peregrino então pegou as rédeas do cavalo e pediu a Gao Cai que cuidasse da bagagem. Sem nenhum respeito pelas normas, pegou uma cadeira com a tinta descascada e convidou seu mestre a se sentar. Ele mesmo trouxe outra e se sentou, sem que ninguém pedisse.
- Parece que sabem como se sentir confortáveis não é? - exclamou o senhor Gao.
- Só me sinto confortável em um lugar quando passo pelo menos seis meses nele - replicou o Peregrino.
Depois de se sentarem, o senhor Gao perguntou:
- Fui informado que vocês vieram das Terras do Leste. É verdade?
-Sim, é verdade - admitiu Sanzang. - O imperador nos enviou ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras de Buda. Estamos há vários dias sem descanso e gostaríamos de passar a noite nesta aldeia. Nossa intenção é continuar a jornada amanhã de manhã.
- Se vocês dois só buscam um lugar para passar a noite, por que toda essa conversa sobre capturar monstros? - indagou, desapontado, o senhor Gao.
- Certamente estamos procurando um lugar para passar a noite - confirmou o Peregrino. - Mas isso não nos impede de capturar alguns monstros para nos divertirmos um pouco. A propósito, quantos você tem em sua casa?
- Céus! - exclamou o senhor Gao, levando as mãos à cabeça. - Quantos monstros eu tenho aqui? Tenho apenas esse monstro como genro, e já sofremos o bastante com ele!
- Conte-me tudo o que souber sobre ele - pediu o Peregrino -: como ele chegou a este lugar, que tipo de poderes ele tem... enfim, coisas assim. Conte tudo desde o início e não omita um único detalhe. É essencial conhecê-lo bem para poder capturá-lo.
- Desde tempos antigos - começou a explicar o senhor Gao - esta vila jamais teve problemas com fantasmas, monstros ou demônios. Minha única desgraça foi não ter nenhum filho homem. Meus três descendentes foram, infelizmente, mulheres. A mais velha se chama Orquídea Perfumada, a do meio, Orquídea de Jade, e a terceira, Orquídea Verde. Desde a mais tenra infância, as duas primeiras foram prometidas a pessoas desta mesma aldeia, mas eu esperava que a terceira pudesse se casar com um homem que concordasse em viver sob este teto e desse aos seus filhos o meu sobrenome. Em troca, ele se tornaria meu herdeiro e cuidaria de mim quando eu perdesse as forças. Há cerca de três anos, aproximadamente, apareceu um jovem de bela aparência. Ele disse ser da montanha de Fu-Ling e afirmou chamar-se Zhu. Explicou que não tinha pais nem irmãos e que, portanto, não se importaria de levar meu sobrenome. Eu o aceitei imediatamente, pensando que alguém sem laços familiares era a pessoa mais adequada para realizar meu plano. No início, devo admitir, ele foi muito cortês e diligente. Trabalhou duro nos campos, arando-os até mesmo sem a ajuda de um búfalo. Quando chegou a época da colheita, ele recolheu a safra sem usar uma foice. Chegava tarde em casa à noite e levantava-se muito cedo. Não é de surpreender que todos estivéssemos muito satisfeitos com ele. O único problema é que sua aparência começou a mudar.
- Explique-me essas mudanças - instigou o Peregrino.
- Bem... - continuou dizendo o senhor Gao -, no começo ele era moreno e robusto, mas depois se transformou em um verdadeiro imbecil com orelhas muito grandes, um nariz proeminentemente protuberante e uma crista de cerdas muito fortes atrás da cabeça. O pior é que seu corpo seguiu uma evolução semelhante, transformando-se em algo pesado e totalmente desprovido de atrativos. Ele se parece, na verdade, com um porco. Não é de surpreender que ele tenha um apetite insaciável. Em cada refeição, ele consome entre três e cinco arrobas de arroz; para ele, um pequeno lanche consiste em mais de cem bolinhos e tantos biscoitos. Ainda bem que ele segue uma dieta vegetariana! Se ele resolvesse devorar carne e vinho, tenho certeza de que acabaria com todas as minhas posses em menos de meio ano.
- Talvez ele tenha tanto apetite porque, como você mesmo reconheceu, ele trabalha demais - comentou Sanzang.
- Isso não é o maior problema - replicou o senhor Gao. - O mais preocupante é que ele gosta de cavalgar no vento e não é raro vê-lo desaparecer pelos ares montado em uma nuvem. Além disso, ele levanta pedras e sujeira com tanta frequência que minha casa e meus vizinhos não têm um momento de paz. Para piorar, ele trancou minha filha, Orquídea Verde, na parte de trás da casa, e como não a vemos há mais de meio ano, não sabemos se ela ainda está viva. Não temos dúvidas de que ele é um monstro. Por isso, decidimos exorcizá-lo e expulsá-lo daqui.
- Não há nada difícil nisso- disse o Peregrino. - Fique tranquilo. Ainda esta noite, vou capturá-lo e vou exigir que ele assine um documento de anulação e devolva sua filha. O que acha disso?
Extremamente satisfeito, o velho senhor Gao disse:
- Um documento assinado por ele não serviria para nada, considerando que ele arruinou minha boa reputação e afastou muitos dos meus parentes de mim. Fico contente apenas com a captura dele. Quem se importa se você obtiver um documento assinado por ele? Só quero me livrar dele.
- Isso é muito fácil - repetiu o Peregrino. - Assim que a noite chegar, você verá.
O idoso estava radiante. Imediatamente, ele ordenou que a mesa fosse posta e um banquete vegetariano fosse servido a eles. A noite já havia caído quando terminaram de comer.
- Que tipo de armas e quantas pessoas vocês precisarão? - perguntou o idoso então -. É melhor estarmos preparados.
- Tenho minhas próprias armas - respondeu o Peregrino.
- Sério? - respondeu o idoso, surpreso -. A única coisa que vocês dois têm é esse bastão clerical. Não me diga que pretende enfrentar o monstro com isso.
O Peregrino então retirou uma agulha da orelha, segurou-a com cuidado nas mãos e, após agitá-la uma única vez ao vento, transformou-a em um bastão com a espessura de uma tigela de arroz.
- Olhe para este bastão! - ordenou ao Senhor Gao -. Existe uma arma melhor do que ele? Não acha que ele será suficiente para enfrentar esse monstro?
- Suponho que sim - reconheceu o Senhor Gao. - De qualquer forma, precisará de reforços.
- Não preciso de nenhum reforço - afirmou o Peregrino. - Tudo o que quero é que meu mestre não fique sozinho. Pode chamar alguém virtuoso o suficiente para conversar com ele enquanto estou ausente. Capturarei o monstro e farei com que ele prometa publicamente que pretende ir embora. Assim, vocês se livrarão dele para sempre.
O idoso imediatamente enviou um de seus servos em busca de alguns parentes e amigos íntimos, que logo apareceram. Após as apresentações, o Peregrino disse ao seu mestre:
- Aqui você estará seguro. Agora devo partir.
Com o bastão erguido, ele agarrou o Senhor Gao e ordenou:
- Leve-me para os fundos, onde o monstro reside, para que eu possa dar uma olhada.
O idoso o conduziu até a porta e o Peregrino adicionou:
- Traga-me a chave.
- Por que você mesmo não dá uma olhada? - replicou o idoso. - Se eu tivesse a chave daqui, não precisaria da sua ajuda!
- Como você é tolo! - exclamou o Peregrino. - Apesar de você ser bastante velho, nem mesmo consegue reconhecer uma piada! Eu estava apenas brincando um pouco, mas você interpretou minhas palavras literalmente.
Imediatamente, ele avançou e tocou na fechadura. Ela tinha sido soldada com cobre derretido, e não havia maneira de abri-la. O Peregrino derrubou a porta com seu bastão e encontrou a mais densa escuridão além dela.
- Velho Gao, chame sua filha para ver se ela está ai dentro- sugeriu o Peregrino.
- Filha! - gritou o idoso, reunindo coragem.
- Pai! - respondeu a moça fracamente, reconhecendo sua voz. - Estou aqui!
O Peregrino atravessou a escuridão, e com suas pupilas douradas brilhando intensamente, viu que o cabelo da mulher parecia uma nuvem de tempestade, tão desgrenhado e sujo. Seu rosto, que já possuía a doçura do jade, aparecia sem expressão e coberto de sujeira. Embora ainda fosse possível apreciar alguma delicadeza nela, ela parecia cansada e triste. Seus lábios, antes vermelhos como cerejas, agora estavam sem cor. Seu corpo estava curvado e encolhido. Devido à ociosidade e à tristeza, suas sobrancelhas, delicadas como as asas de uma borboleta, tinham uma estranha palidez (2). Além disso, ela tinha perdido tanto peso que sua voz soava extremamente fraca. Com passos vacilantes, ela chegou até a porta e, ao ver que era seu pai, abraçou-o e começou a soluçar.
- Pare de chorar! - instou o Peregrino. - Onde está o monstro?
- Não sei para onde ele foi - respondeu a moça. - Ultimamente, ele sai de manhã e só volta bem tarde da noite. Sempre está envolto em névoa e nuvens e nunca me diz o que pretende fazer durante o dia. A única certeza é que, desde que sentiu que meu pai está tentando se livrar dele, começou a tomar muitas precauções. É por isso que ele retorna à noite e se ausenta assim que amanhece.
- Não preciso saber mais - concluiu o Peregrino. Então ele se voltou para o Senhor Gao e acrescentou: - Velho, Leve sua filha e aproveite a companhia dela o quanto quiser. Eu ficarei aqui esperando. Se o monstro não aparecer, não me culpe por nada. Mas, se ele vier, tenha certeza de que vou erradicar todos os seus problemas pela raiz.
Louco de felicidade, o Senhor Gao levou sua filha para a parte da casa onde moravam, enquanto o Peregrino sacudia o corpo e, usando o poder de sua magia, transformou-se na imagem exata da moça. Depois, sentou-se para esperar o monstro.
Pouco tempo depois, levantou-se um vento tão forte que arrancava pedras e produzia nuvens de poeira sufocantes. No início, era apenas uma brisa leve e suave, mas logo se transformou em um verdadeiro ciclone, que ninguém conseguia deter. As flores e os galhos das árvores pareciam pássaros arrancados de seus ninhos, enquanto plantas e árvores cediam à sua força como se fossem recém-cortadas. Era tão furioso que o mar se agitava, enchendo de terror deuses e espíritos, e rochas e montanhas se partiam ao meio, mergulhando o Céu e a Terra em um pavor indescritível. Os veados que comiam flores não conseguiam encontrar o caminho de volta para suas tocas. O mesmo acontecia com os macacos que colhiam frutas, perdidos, como cegos, na fúria do vendaval. A pagoda de sete andares desabou sobre a cabeça de Buda, e as bandeiras que tremulavam em seus oito lados caíram sobre o templo, causando danos irreparáveis. Vigas de ouro e colunas de jade caíram no chão, enquanto telhas voavam como bandos de pardais. Os barqueiros estavam tão apavorados que fizeram a promessa de sacrificar todos os seus animais domésticos. Até mesmo o espírito local abandonou seu santuário. Os Reis Dragões dos quatro mares apresentaram suas preces ao céu ao perceberem que o barco de Yaksa encalhou e mais da metade dos muros da Grande Muralha desabaram. Finalmente, quando o vento destrutivo diminuiu, o monstro mais feio que se possa imaginar apareceu voando. Tinha um rosto totalmente coberto por cerdas negras, um focinho muito proeminente e orelhas enormes. Vestia uma túnica de algodão azul-esverdeado, embora fosse difícil determinar sua cor exata, e tinha um lenço de algodão manchado amarrado na cabeça.
- Então, este é o cara com quem tenho que lidar - pensou o Peregrino. Não disse nada quando o viu entrar, nem mesmo uma saudação. Permaneceu deitado na cama, fingindo estar doente e se queixando incessantemente. O monstro não pareceu se importar. Aproximou-se dele e, pensando que era sua esposa, exigiu um beijo.
- Parece que ele quer brincar um pouco comigo - disse novamente o Peregrino, prestes a rir. Usando um de seus truques, agarrou o focinho do monstro e o torceu violentamente, fazendo-o cair no chão.
Depois de se levantar como pôde, o monstro apoiou-se na cama e perguntou:
- Por que você está tão zangada comigo hoje? É porque cheguei mais tarde do que o de costume?
- Quem disse que estou zangada? - replicou o Peregrino.
- Se não está, pode me dizer por que me deu esse soco? - perguntou novamente o monstro.
- Não entendo como você pode ser assim! - reclamou o Peregrino. - Você vê que não estou me sentindo muito bem hoje e exige que eu te abrace e te dê um beijo. Se eu não estivesse doente, teria esperado você em pé e teria aberto a porta para você. Você pode tirar suas roupas e ir para a cama.
O monstro tirou as roupas sem desconfiar de nada. O Peregrino pulou da cama e se sentou no penico no momento em que ele se jogava na cama. Após tatear ao redor e não encontrar ninguém, ele perguntou preocupado:
- Onde você está, querida? Tire suas roupas e venha dormir comigo.
- Você pode dormir se quiser - instou o Peregrino. - Ainda não terminei de fazer minhas necessidades."
O monstro se esticou e se apropriou da cama. Quando estava prestes a pegar no sono, o Peregrino exclamou com um suspiro:
- Estou com pouca sorte!
- Pode me dizer o que está te preocupando? - perguntou o monstro, surpreso. - Por que você diz que está com pouca sorte? É verdade que consumi bastante comida e bebida desde que entrei em sua família, mas também trabalhei bastante. Pense em tudo que fiz por vocês: Limpei os campos, abri valas, cozinhei tijolos e telhas, construí muros e preparei argamassa, arei e rastelei as terras e plantei mudas de arroz e trigo. Resumindo, cuidei de toda a propriedade e com muito proveito, por sinal. Caso contrário, como você usaria brocados e ornamentos de ouro? Você desfruta das flores e frutas das quatro estações, e tem vegetais frescos na mesa em todas as oito épocas. O que te deixa tão insatisfeita a ponto de suspirar e lamentar, dizendo que está com pouca sorte?
- Não é bem assim - respondeu o Peregrino. Hoje eu pude ouvir meus pais através da parede, repreendendo-me enquanto quebravam tijolos e telhas.
- Por que eles te repreenderam? - indagou o monstro.
- Eles disseram que você é um genro sem maneiras - disse o Peregrino. - Para começar, é difícil apresentar alguém tão feio quanto você, e não podemos conhecer seus cunhados nem cumprimentar os outros parentes. Além disso, como agora se dedica a cavalgar sobre a neblina e as nuvens, não sabemos a que família você realmente pertence nem qual é seu verdadeiro nome. De fato, você arruinou a reputação da nossa família. Foi por isso que eles me repreenderam, e é por isso que estou chateada.
- Eu posso ser um pouco desagradável à vista - disse o monstro - mas se você quiser que eu seja bonito, posso resolver isso sem dificuldade. Quando cheguei pela primeira vez, conversei com seu pai, e ele me aceitou sem uma única reclamação. Por que ele está se queixando agora? Minha família é originária da Caverna dos Caminhos Nublados, que fica na montanha de Fu-Ling. Além disso, meu nome correto é Zhu Ganglie, "porco de cabelo de ferro" . Se lhe incomodarem novamente, diga a eles o que acabei de te dizer. Está bem?
- Este monstro é bastante sincero - pensou o Peregrino, satisfeito. - Ele fez uma confissão completa sem a necessidade de eu recorrer à tortura. Depois de conhecer seu nome e o local de onde ele vem, não será difícil dominá-lo. Ele então levantou a voz e acrescentou: - Meus pais estão tentando encontrar alguém capaz de derrotar você.
- Vá dormir, vá - disse o monstro, rindo. - Não se preocupe com isso. Posso me transformar no que quiser e tenho um ancinho invencível de nove dentes. Como vou ter medo de sacerdotes, taoístas e monges? Mesmo que seu pai seja religioso o suficiente para trazer o Patriarca Destruidor de Monstros do Nono Céu, vou conseguir me passar por parente dele, e ele não ousará fazer nada comigo.
- Tudo bem com isso - replicou o Peregrino. - Mas eles me disseram que estão trazendo alguém chamado Sun, também conhecido como o Grande Sábio, Sósia do Céu, que causou um grande tumulto no Palácio Celestial há cerca de quinhentos anos. Pelo que entendi, pediram a ele que venha capturar você.
- Se o que você diz for verdade - concluiu o monstro, alarmado -, vou embora agora mesmo. Não podemos continuar vivendo como marido e mulher.
- Mas como você vai embora tão rápido? - protestou o Peregrino.
O monstro virou-se e, horrorizado, viu os dentes saltados, a boca ameaçadora, os olhos cintilantes, as pupilas acesas, a cabeça pontiaguda e a cara peluda do Peregrino, que parecia um autêntico deus do trovão. O monstro ficou tão aterrorizado que as forças o abandonaram e mal conseguia se manter em pé. No entanto, reagiu rapidamente e, transformando-se novamente em um vento furioso, conseguiu escapar do Peregrino, rasgando sua própria túnica.
Wukong saiu correndo atrás dele, golpeando incessantemente o vento com seu bastão de ferro. O monstro então se transformou em uma miríade de línguas de fogo que fugiram a toda pressa em direção à sua montanha.
O Peregrino então montou em uma nuvem e o perseguiu, gritando:
- Para onde você está indo? Se você subir ao Céu, eu irei te perseguir até o Palácio da Estrela Polar, e se você descer à Terra, eu irei te seguir até o coração do Inferno!
Que perseguição extraordinária! Não sabemos para onde a perseguição os levou ou qual foi o resultado da luta. Quem quiser descobrir terá que ouvir o que é dito no próximo capítulo.
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Notas do Capítulo XVIII
- A expressão tem um sentido cultural, referindo-se, de fato, à prática ainda vigente nos dias de hoje, de distribuir entre os presentes as iguarias que foram previamente oferecidas no altar durante diversas cerimônias;
- As descrições dos rostos das mulheres incidiam, repetidas vezes, nos mesmos tópicos: doçura de jade, lábios de cereja, sobrancelhas delicadas como asas de borboleta...
- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
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