1 de novembro de 2024

A Jornada ao Oeste: Capítulo XXXII

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO XXXII:


O SENTINELA DO DIA LEVA UMA MENSAGEM À MONTANHA DO TOPO PLANO. A MÃE DA MADEIRA SE DEPARA COM A DESGRAÇA NA CAVERNA DA FLOR DE LÓTUS.
 

 

Contávamos que, uma vez reintegrado ao grupo, o Peregrino Sun, o monge Tang e seus demais discípulos continuaram a sua viagem em direção ao Oeste, tão unidos em corpo e espírito que pareciam um único ser. Depois de libertarem a princesa do Reino do Elefante Sagrado e receberem todas as honras do pai agradecido, eles caminharam sem parar por dias inteiros, alimentando-se apenas quando a fome e a sede se tornavam insuportáveis. Eles viajavam durante o dia, e descansavam ao pôr do sol.

Não demorou para que chegasse a temporada da Tríplice Primavera, uma época em que a brisa suave agita as folhas verdejantes dos salgueiros com a suavidade da seda, e tudo parece repleto de poesia. O ar estava cheio do canto dos pássaros e do perfume das flores, cujos botões se abriam sem parar. Era um tempo para aproveitar a beleza da primavera, quando as andorinhas voavam até as árvores hai-tang (1), como cortesãos convocados pelo imperador. As ruas da cidade imperial se cobriam de um pó avermelhado (2), e por toda parte se ouvia o som de flautas e outros instrumentos de corda. Os transeuntes vestiam suas melhores roupas de seda, e os becos estavam repletos de jogos e pessoas brindando alegremente.

Enquanto discípulos e mestre caminhavam lentamente, admirando a beleza tranquila da paisagem, depararam-se com uma montanha imensa, o que fez o monge Tang exclamar:

— Extrema cautela, por favor! Ou estou muito enganado, ou nessa grande montanha à nossa frente se escondem muitos lobos e tigres, prontos para nos impedir de seguir adiante.

— Mestre — replicou o Peregrino —, quem renunciou à família não deve falar como se ainda desfrutasse dela. Acaso já esqueceu as palavras do Sutra do Coração que o Monge do Ninho do Corvo lhe entregou? "Os obstáculos não têm entidade própria; por isso, o medo e o terror não fazem sentido. Quem age assim não conhece os caminhos do erro." Para alcançar um objetivo tão elevado, é preciso limpar completamente a mente das impurezas e lavar com cuidado o pó acumulado nos ouvidos. Você nunca será um homem entre os homens se não experimentar a dor mais insuportável. Não se preocupe, mestre, pois, com a minha companhia, tudo dará certo, mesmo que o mundo desapareça e os céus desmoronem. Então, por que temer tigres e lobos?

Desde a minha partida de Chang-An, atendendo ao desejo imperial — respondeu o mestre, puxando as rédeas do cavalo —, meu único propósito tem sido contemplar a imagem dourada de Buda que se ergue na sagrada pagoda de Sari e apreciar a serenidade de suas sobrancelhas de jade branco (3). Com esse fim, não hesitei em atravessar incontáveis rios e escalar montanhas jamais pisadas por pés humanos. As névoas penetraram em meus ossos, e as ondas me cobriram com sua espuma ao se quebrarem. Quando poderei descansar de tanto cansaço?

— Se o que deseja é descansar, nada é mais fácil de conseguir — respondeu o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Quando alcançar a perfeição, as Doze Causas (4) deixarão de existir para você, e o vazio reinará em todos os lugares. Então, o descanso virá até você da maneira mais natural possível.

Ao ouvir palavras tão reconfortantes, o monge Tang deixou de lado a inquietação que o consumia e esporeou seu cavalo. Assim, ele e seus discípulos começaram a subir a montanha, que era, de fato, abrupta e repleta de perigos. Seu cume se erguia altíssimo, formando um pico pontiagudo que contrastava com a profundidade de uma garganta escura, esculpida ao longo dos séculos por um riacho sinuoso. Suas águas levantavam montes de espuma, que se desfaziam em meio ao vazio. Acima dos penhascos, tigres balançavam suas caudas com tranquilidade, e, mais acima, o pico rochoso rasgava o céu esverdeado. O desfiladeiro abaixo, por outro lado, era tão profundo e sombrio quanto o próprio empíreo. Escalar uma montanha tão íngreme era como subir uma escada sem fim; descê-la era como se entregar a uma queda interminável. A elevação era tão íngreme que até mesmo os coletores de ervas medicinais tinham dificuldade em caminhar, e os lenhadores não conseguiam avançar sem esforço. As cabras montesas, os cavalos selvagens, as lebres e os touros da montanha precisavam se mover em bandos pelas escarpas, e a altura daquela massa rochosa era tamanha que frequentemente obscurecia o sol e as estrelas. Não era surpresa que lobos brancos e outras criaturas estranhas habitassem ali. O cavalo de Sanzang avançava com evidente dificuldade através da confusão de arbustos e rochas, esforçando-se tanto que parecia improvável que conseguiria levar seu dono ao Templo do Trovão para prestar homenagens a Buda.

Enquanto o mestre lutava para manter-se montado, ergueu o olhar e avistou um lenhador alguns passos à frente. Ele usava um velho chapéu de feltro azul para a chuva e uma túnica de monge feita de lã preta.  A vestimenta, pouco apropriada, mal o protegia do sol e da umidade. Além disso, onde já se viu um monge usar uma roupa tão incomum? Parecia mais uma zombaria do que um sinal de respeito. Ele carregava nas mãos um machado de aço, polido com extremo cuidado, e em seu cinto pendia um facão para cortar galhos. Pelo seu estilo de vida, não era difícil concluir que ele não se preocupava com as aflições do mundo, mas, ao contrário, desfrutava da bênção das Três Estrelas (5). Aquele era um homem que aceitava sua sorte e a quem não importavam as glórias ou os fracassos deste mundo.


O lenhador estava cortando troncos ao lado do caminho, quando, ao avistar o monge Tang se aproximando, deixou o machado de lado e correu em sua direção, gritando em alta voz:

— Detenha-se por um momento, mestre que se dirige ao Oeste, pois tenho algo importante para lhe dizer. Nesta montanha vive uma quadrilha de monstros cruéis, que devoram todos os viajantes que ousam passar por aqui a caminho do Ocidente.

Ao ouvir isso, Sanzang sentiu as forças o abandonarem, como se seu espírito quisesse escapar do corpo. Estava tão abalado que mal conseguia se manter montado no cavalo. Ele então virou-se imediatamente para seus discípulos e perguntou:

— Vocês ouviram o que o lenhador disse sobre esses monstros que nos esperam mais à frente? Quem se atreve a investigar mais detalhes?

— Acalme-se, mestre — aconselhou o Peregrino. — Eu mesmo irei até ele e pedirei mais informações sobre esse aviso perturbador.

Adiantando-se aos irmãos, o Peregrino dirigiu-se ao lenhador chamando-o de “irmão mais velho” e saudou-o com um respeito inesperado. O lenhador retribuiu o cumprimento, dizendo:

— Posso saber o que os trouxe até aqui?

— Na verdade — respondeu o Peregrino —, recebemos do Senhor das Terras do Leste a missão de obter as escrituras do Paraíso Ocidental. Aquele que vê montado é meu mestre. Ele é uma pessoa bastante medrosa e, ao ouvir falar de demônios e monstros, começou a tremer, então me pediu que lhe perguntasse mais detalhes. Quantos anos essas criaturas vivem por aqui, por exemplo? São profissionais ou apenas aprendizes? Preciso saber para solicitar ao espírito local e ao deus da montanha que as afastem daqui, acorrentadas.

O lenhador ergueu os olhos para o céu e, soltando uma sonora gargalhada, exclamou:

— Parece que você está completamente louco!

— Eu não estou louco — protestou o Peregrino —, e o que acabei de dizer é a mais pura verdade. Deveria ter percebido que sou uma pessoa honrada.

— Não se elogie tanto, por favor — zombou o lenhador. — Se fosse tão honrado como diz, não estaria falando em acorrentar ninguém e afastá-los daqui.

— Você tem algum tipo de relação com esses monstros? — indagou o Peregrino.

— O que te faz pensar uma coisa dessas? — replicou o lenhador.

— A forma como exalta os poderes deles e como nos interceptou no caminho — respondeu o Peregrino. — Se não é parente dessas criaturas, então certamente deve ser vizinho ou amigo delas.

— Você está completamente louco! — repetiu o lenhador, intensificando as gargalhadas. — Não sabe nem o que está dizendo. Sou um homem que procura sempre fazer o bem. Por isso, trouxe a mensagem que já conhecem. É preciso que ajam com prudência e tomem todas as precauções possíveis. Pelo visto, você mal interpretou minhas intenções e, em vez de me agradecer, critica minha forma de agir. Enfim, suponhamos que eu conheça a origem desses monstros. Quer me explicar como pretende afastá-los?

— Se forem monstros celestes — respondeu o Peregrino —, eu ordenarei que vão ao Imperador de Jade. Se, por outro lado, forem de origem terrestre, mandarei que se dirijam ao Palácio da Terra. Assim, os do Oeste voltarão para junto de Buda, os do Leste regressarão para o lado dos sábios, os do Norte retornarão para Zhenwu (6), e os do Sul correrão ao encontro do Deus do Fogo (7). Se forem espíritos de dragões, serão enviados sem demora para os Senhores dos Oceanos, e, se forem ogros, deverão comparecer diante do próprio Rei Yama. Cada tipo de monstro tem o seu devido lugar, e posso garantir que conheço todos eles. Tudo o que preciso fazer é emitir uma ordem, e todos partirão imediatamente para seu destino, mesmo em plena noite e escuridão.

Em vez de cessar o riso do lenhador, essas palavras o fizeram rir ainda mais.

— Não tenho a menor dúvida! — exclamou o lenhador, mais uma vez. — Você está totalmente louco! O mais provável é que tenha visitado alguns lugares sagrados e aprendido alguns truques mágicos e alguns feitiços de água. Não nego isso. Aliás, até admito que seja capaz de dominar monstros e expulsar espíritos. Mas vou te advertir: em toda a sua vida, nunca encontrou criaturas tão cruéis quanto as que mencionei.

— O que te faz insistir tanto na crueldade delas? — indagou o Peregrino.

— Esta cordilheira — respondeu o lenhador — tem mais de seis mil quilômetros de extensão e é conhecida por todos como a Montanha do Topo Plano (8). Nela, há uma caverna chamada Caverna da Flor de Lótus, onde vivem dois monstros, verdadeiros mestres da enganação, que estão determinados a devorar o monge Tang. Se vocês vierem de uma região que não tenha ligação com aquele império, não têm nada a temer. Mas, se estiverem associados de alguma forma à palavra "Tang", tenham certeza de que não passarão daqui.

— Nossa jornada começou justamente na corte dos Tang — confessou o Peregrino.

— Então vocês são exatamente o banquete que eles aguardam para matar a fome — concluiu o lenhador.

— Não me diga! — exclamou o Peregrino, em tom de deboche. — Quer me explicar como eles planejam me devorar?

— Por que pergunta isso? — replicou o lenhador.

— Porque, se pensam em começar pela cabeça — respondeu o Peregrino —, a situação é menos grave do que se começarem pelos pés.

— Que diferença isso faz? — perguntou o lenhador, surpreso. — Começando por onde for, o resultado será sempre o mesmo.

— Dá para ver que você não entende muito disso — comentou o Peregrino. — Se começarem pela cabeça, após a primeira mordida não sentiremos mais dor, mesmo que nos fritem, assem ou cozinhem depois. Mas, se começarem pelos pés, passando para as pernas, depois para as panturrilhas e subindo até a pelve, mastigando e roendo, é bem provável que, quando chegarem à cintura, ainda estejamos vivos. Consegue imaginar o sofrimento que isso causaria? Como pode ver, há uma grande diferença.

— Não precisa se preocupar com isso — disse o lenhador. — Essas feras não são tão refinadas quanto você pensa. O que farão é amarrá-lo a um poste e colocá-lo direto no fogo. Quando estiver bem churrascado, vão comer tudo de uma vez, e assunto resolvido.

— Isso é melhor do que eu esperava! — exclamou o Peregrino, aliviado. — Muito melhor! Não vai doer nada. O único problema é que ficaremos um pouco duros e secos.

— Não seja tão descarado — aconselhou o lenhador. — Esses monstros possuem cinco tesouros que contêm grandes poderes mágicos. Mesmo que você seja o pilar de jade que sustenta os Céus ou a ponte de ouro que une as duas margens do oceano, essas criaturas vão fazer você perder o equilíbrio ao tentar atravessar seus domínios com o monge Tang a salvo.

— Quer me dizer quantas vezes vou me sentir tonto? — perguntou o Peregrino.

— Três ou quatro — respondeu o lenhador.

— Isso não é nada! — exclamou novamente o Peregrino. — O que são três ou quatro vezes para quem se sente tonto setecentas ou oitocentas vezes por ano? Um leve desmaio e pronto! O perigo já terá passado para sempre!

O Grande Sábio, de fato, não sentia medo algum. Estava tão ansioso para guiar o monge Tang que deixou o lenhador para atrás e, com duas grandes passadas, chegou até onde o cavalo estava parado e disse ao mestre:

— Não é nada sério. Apenas dois monstros sem importância. O problema é que o pessoal daqui é muito medroso e se assusta com qualquer coisa. Além disso, eu estou aqui ao seu lado. Então, o melhor é que sigamos nosso caminho.

Sanzang não teve escolha senão continuar. Porém, ao passarem pelo lugar onde o lenhador estava, este desapareceu de repente. Assustado, perguntou:

— Como pode aquele homem que nos trouxe uma mensagem tão desalentadora sumir assim, do nada?

— Que azar o nosso! — reclamou Bajie. — Até em plena luz do dia nos deparamos com espíritos!

— Como você pode dizer tantas bobagens? — repreendeu o Peregrino. — O mais provável é que aquele homem tenha se enfiado na floresta para buscar lenha. Vou dar uma olhada.

O Grande Sábio abriu seus olhos de fogo e pupilas de diamante ao máximo, mas, apesar de examinar a montanha com grande cuidado, não encontrou nenhum sinal do lenhador. Surpreso, levantou a cabeça e viu o Sentinela do Dia sentado sobre uma faixa de nuvens. Num instante, ele subiu em sua própria nuvem e saiu em sua perseguição, gritando sem parar:

— Maldito espírito!

Ao alcançá-lo, o repreendeu, dizendo:

— Se tinha algo para nos avisar, por que não fez isso claramente? Por que esse disfarce e essa enganação?

O Sentinela estava tão assustado que apenas conseguiu inclinar a cabeça respeitosamente e responder:

— Perdoe-me, Grande Sábio, pela demora em transmitir a mensagem, mas esses monstros possuem poderes mágicos extraordinários e são capazes de se transformar no que quiserem. Agora cabe a vós usar sua inteligência prodigiosa para proteger seu mestre da melhor maneira possível. Eu vos aviso: se não agirem rapidamente, não conseguirão passar daqui e jamais alcançarão o Paraíso Ocidental.

O Peregrino deixou o Sentinela seguir seu caminho, mas prestou bastante atenção ao aviso. Ao retornar à montanha, viu o mestre, Bajie e o Monge Sha avançando com dificuldade entre as rochas, e refletiu:

— Se eu contar o que o Sentinela acabou de me relatar, com toda certeza, vão começar a chorar. O mestre tem um espírito tão frágil! Por outro lado, se eu não disser a verdade, ele poderá continuar sem tomar nenhuma precaução. Como diz o provérbio: “ao entrar em um pântano, ninguém sabe se é raso ou profundo.” Se o mestre cair nas mãos desses monstros, terei que gastar uma energia imensa para resgatá-lo. Acho que o melhor é mandar Bajie na frente para ver como esses monstros agem. Se ele vencer, toda a glória será dele. Mas, se fracassar e for capturado, terei tempo para libertá-lo depois. O fracasso dele me dará a chance de exibir meus poderes, o que aumentará ainda mais minha fama.

Enquanto traçava esses planos e ponderava sobre sua própria astúcia, voltou a pensar:

— Mas Bajie é tão preguiçoso que, com certeza, vai se recusar a ir na frente. E, além disso, o mestre o protege de uma maneira incrível. Vou precisar usar alguma artimanha para convencê-lo.

Decidido, o Grande Sábio esfregou os olhos por um bom tempo até que as lágrimas começassem a escorrer pelo rosto, e caminhou com passos inseguros até onde o mestre estava. Ao vê-lo tão abatido, Bajie exclamou imediatamente:

— Largue a vara no chão, Monge Sha, e coloque as bagagens ali. Acho que chegou a hora de dividirmos tudo.

— Pode me explicar por que devemos dividir? — perguntou, surpreso, o Monge Sha.

— Faça logo o que estou dizendo! — gritou Bajie. — Quando tiver sua parte, volte ao Rio de Areia e se transforme em um monstro novamente. Quanto a mim, vou voltar para a vila de Gao e ver como anda minha esposa. Vamos vender o cavalo e, com o dinheiro, comprar um caixão para o mestre. Chegou a hora de nos separarmos. Não faz sentido nos sacrificarmos para tentar chegar ao Paraíso Ocidental.

— Maldito preguiçoso! — bradou o monge Tang de cima do cavalo. — Ainda não concluímos a viagem. Pode me explicar de onde vem tanta tolice?

— Só crianças falam assim — rebateu Bajie. — Não estão vendo o Peregrino Sun vindo aí, chorando como uma donzela? Todos sabem que ele é um guerreiro destemido, que não teme nem machado, nem fogo, e que atravessa Céus e Terra sem hesitar. No entanto, veja só como ele vem abatido e sem ânimo algum. Um comportamento assim só pode ser explicado pelas dificuldades desta montanha e pelo perigo dos monstros que a habitam. Como querem que continuemos, sendo nós muito mais fracos do que ele?

— Já disse para parar de dizer essas tolices! — insistiu o mestre. — Não sabemos o que realmente está acontecendo com ele. Vamos perguntar antes de tomar qualquer decisão.

Quando percebeu que o Peregrino estava próximo o suficiente para ouvi-lo, o monge Tang ergueu a voz:

— Se há algo que o incomoda, seria bom compartilhar conosco. Pode me dizer por que está tão abatido? Não vai querer nos assustar com essa cara tão sombria, não é?

— Acabo de descobrir que o mensageiro que nos trouxe todas essas notícias trágicas não era ninguém menos que o Sentinela do Dia. Ele me confirmou que os monstros à nossa frente são tão cruéis que não deixam ninguém passar por seus domínios. Além disso, o terreno é tão íngreme que, até hoje, nenhum ser humano conseguiu atravessá-lo. Acho que nós também não conseguiremos, então talvez seja melhor deixarmos isso para outra ocasião.

Ao ouvir isso, o mestre ficou tão nervoso que agarrou, desesperado, a túnica de pele de tigre do Peregrino e disse:

— Já percorremos mais da metade da jornada! Como pode falar de forma tão desanimadora agora?

— Estou completamente comprometido com sua causa — afirmou o Peregrino —, mas temo que esses monstros sejam muito mais fortes do que nós. Não poderemos enfrentá-los sem ajuda. Como diz o ditado: “mesmo com o ferro dentro do forno, nunca se sabe quantos parafusos ele vai nos dar”.

— Isso é verdade — admitiu o mestre. — É muito difícil para uma pessoa sozinha sair vitoriosa de uma situação como essa. Como dizem os livros de táticas militares, “poucos não podem derrotar um exército inteiro”. Mas aqui somos quatro. Você tem também Bajie e o Monge Sha ao seu lado. Dou-lhe permissão para dispor deles como achar melhor. Imagino que serão de grande ajuda protegendo seus flancos. Enfim, você entende dessas coisas muito mais do que eu. O importante é que todos colaboremos para atravessar esta montanha sem maiores problemas. Não seria mais um passo rumo ao sucesso de nossa missão?

Toda a encenação do Peregrino tinha o propósito de arrancar precisamente essas palavras do mestre. Satisfeito com seu triunfo, ele secou as lágrimas e disse:

— Se realmente desejam atravessar esta montanha, Zhu Bajie precisa aceitar as missões que tenho em mente para ele. Só assim teremos uma chance de sucesso. Se ele, ao contrário, se recusar a ajudar, então podemos esquecer o assunto.

— Não, não! — protestou Bajie, balançando a cabeça. — É melhor cada um voltar por onde veio. Não entendo por que agora você quer me enrolar.

— Não seja tão impulsivo, por favor — aconselhou o mestre. — Vamos primeiro entender o que Wukong deseja que você faça.

— Está bem — respondeu Bajie, virando-se para o Peregrino. — Quais são essas duas missões de que você fala?

— A primeira — respondeu o Peregrino — é que você cuide do mestre, e a segunda, que você patrulhe a montanha.

— Não me parecem muito compatíveis — opinou Bajie. — Cuidar do mestre significa ficar sentado aqui, enquanto patrulhar exige que eu me afaste dele. Você não quer que eu fique sentado por alguns minutos e ande por outros, quer? É impossível fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Você não entende isso?

— Claro que sim — reconheceu o Peregrino. — No entanto, ninguém pediu isso. Você deve escolher uma das duas.

— Isso é fácil de decidir — comentou Bajie, sorrindo. — Mas antes preciso saber exatamente o que devo fazer para cuidar do mestre ou para patrulhar a montanha. Quem não conhece suas obrigações de antemão não pode afirmar que será capaz de cumpri-las.

— Cuidar do mestre — explicou o Peregrino — implica ficar ao seu lado quando ele precisar ir ao banheiro, acompanhá-lo quando ele quiser se mover e ir buscar algo para ele comer quando sentir fome. Mas lembre-se: se você não se mostrar diligente, levará uma boa surra. E se sua pele perder um pouco da cor ou se suas forças começarem a falhar, a surra será ainda maior.

— Mas isso é extremamente difícil! Dificilíssimo! — protestou Bajie, alarmado. — Não me separar dele em nenhum momento é uma dificuldade enorme. Mesmo que eu tenha que carregá-lo de um lado para o outro, isso não me custaria tanto. Mas se ele me mandar mendigar comida e eu encontrar alguém que não reconheça um monge em busca de escrituras sagradas, minha vida pode estar em grave perigo. Afinal, sou um porco saudável e de uma corpulência notável. Quem não tentaria me caçar com forcados e estacas ao me ver tão rechonchudo e bem alimentado? O mais certo é que, depois de me matarem, me levariam para suas casas e me deixariam secar, para que eu pudesse servir de alimento por um ano inteiro. Isso não seria colocar-me na boca do lobo?

— Nesse caso — concluiu o Peregrino —, você deverá sair para patrulhar.

— E isso implica o quê? — indagou Bajie.

— Adentrar a montanha e tentar descobrir quantos monstros se escondem nela — respondeu o Peregrino. — Assim, poderemos planejar como atravessá-la sem problemas.

— Isso não é nada para mim — reconheceu Bajie, aliviado. — Agora mesmo vou sair em patrulha — e, pegando sua túnica e o ancinho, dirigiu-se, decidido, para o interior da montanha.

Ao vê-lo partir com tanta despreocupação, o Peregrino não conseguiu evitar um sorriso sarcástico, o que lhe rendeu uma reprimenda do mestre, que exclamou, ofendido:

— Maldito macaco sem escrúpulos! Você vê seu irmão marchando diretamente para a morte e ainda se diverte com isso. Quando vocês vão parar de se invejar? É vergonhoso que você tenha usado essas artimanhas para obrigá-lo a sair no que você chamou de patrulha. Por que você tem que ser tão astuto, usando palavras e enganos? Mas, em vez de se contentar com isso, você ri e zomba dele. Como você pode ser assim?

— Eu não estou zombando de ninguém — defendeu-se o Peregrino. — Minha risada, na verdade, se deve a outros motivos. Embora Bajie tenha acabado de partir, eu lhe garanto que ele nem patrulhará a montanha nem enfrentará qualquer monstro. O que ele fará será se esconder em algum lugar seguro e, depois, voltará para nos contar alguma história absurda que ele mesmo tenha inventado.

— Como você pode afirmar uma coisa dessas? — retrucou o mestre mais uma vez.

— Algo me diz que é isso que ele fará — respondeu o Peregrino. — Se não me acreditam, podem ir atrás dele e conferir por si mesmos. De qualquer forma, é melhor que eu faça isso. Se, por acaso, ele encontrar algum monstro, posso ajudá-lo e, ao mesmo tempo, verificar se seu compromisso de servir a Buda é verdadeiro.

— Me parece uma excelente ideia — disse o mestre, mais calmo. — Mas, por favor, procure não zombar mais dele.

O Peregrino prometeu que assim o faria e começou a correr montanha acima. Em seguida, sacudiu ligeiramente o corpo e se transformou em uma pequena vespa. Suas asas se moviam sem esforço no vento, contrastando sua força com a delicadeza de sua cintura, tão fina quanto um alfinete. A velocidade de seus movimentos era tal que ele se deslocava entre os juncos e plantas com a rapidez de um cometa. Seus olhos brilhavam suavemente, harmonizando-se perfeitamente com o quase imperceptível zumbido de seu voo. Apesar de ser um dos menores insetos que existem, ele possui a inteligência de outros muito maiores. Quando se detém para descansar nos recantos mais remotos da floresta, quase ninguém percebe sua presença nervosa. O Peregrino bateu as asas com força e logo alcançou Bajie. Depois, pousou em seu pescoço e, em seguida, foi para as cerdas duras que ele tinha na extremidade das orelhas. Bajie nem percebeu que alguém havia pousado em seu corpo. 

Após caminhar cerca de sete ou oito quilômetros, ele deixou cair seu pesado ancinho, virou-se abruptamente em direção ao monge Tang e, sem parar de agitar os braços e as pernas de forma cômica, começou a amaldiçoar sua sorte, dizendo:

— Que sorte a do meu louco mestre, do inconsequente "pi-ma-wen" e do afeminado do Monge Sha! Eles estão se divertindo, enquanto eu sou obrigado a percorrer estes caminhos sem parar! Todos esperamos alcançar a perfeição e acumular méritos para conquistar as escrituras sagradas, mas sou apenas eu quem tem que se sacrificar, saindo para patrulhar estas montanhas. Se realmente existem monstros terríveis por aqui, o que deveríamos fazer era passar despercebidos. Mas não, isso não é suficiente para eles! Sem pedir minha opinião, me obrigam a ir em busca dessas feras. Estão muito bem arrumados comigo, porque agora mesmo vou me deitar para tirar uma soneca! Quando eu acordar, contarei a eles a primeira coisa que me vier à mente, e tudo estará resolvido.

Tudo parecia conspirar a favor de Bajie. A poucos passos de onde estava, avistou um manto de grama avermelhada e se dirigiu para lá, arrastando o ancinho. Imediatamente, deixou-se cair no chão e exclamou, estirando-se voluptuosamente:

— Que conforto! Nem mesmo um "pi-ma-wen" pode desfrutar de prazeres tão requintados como este!

O Peregrino, que continuava segurando uma das cerdas atrás da orelha, não conseguiu se conter ao ouvir tamanhas tolices e voou para cima, determinado a estragar seus planos. Sacudiu o corpo levemente e, instantaneamente, se transformou em um pequeno pica-pau. O bico duro como aço contrastava com o brilho e a delicadeza de suas penas. Suas unhas, por outro lado, eram tão afiadas quanto pregos de aço. Ele as usava para se agarrar firmemente aos troncos dos quais se alimentava, embora, para ser sincero, preferisse aqueles que já haviam sido consumidos por insetos e os que cresciam, solitários e velhos, em algum lugar afastado. Seus olhos redondos, a cauda em forma de leque, o jeito de se empoleirar nos galhos e o ruído monótono do seu picoteio eram inconfundíveis.

O pássaro em que o Peregrino se transformou não era nem muito grande nem muito pequeno, pesando apenas algumas onças. Com seu bico vermelho, duro como bronze, e suas garras escurecidas, resistentes como ferro, lançou-se do alto sobre o desprevenido Bajie. Ele já estava roncando com a cabeça para cima quando recebeu um picote tão violento no nariz que se levantou imediatamente, gritando como um louco:

— Um monstro! Um monstro me atingiu com sua lança! Santo céu, como dói meu nariz!

Ele se esfregou com uma mão e percebeu que estava sangrando. Isso o fez reclamar de sua sorte, dizendo:

— Que azar! Sempre acontece a mesma coisa comigo! Será que a fortuna nunca vai querer sorrir para mim?

Mas, apesar do sangue que manchava suas mãos, nada se movia ao seu redor. Tudo parecia tão tranquilo como antes.

— Que estranho! — exclamou novamente. — Não vejo nenhum monstro. Se não foi uma besta, quem poderia ter me dado um golpe na boca?

Nesse momento, ele levantou a cabeça e avistou um pequeno pica-pau voando sobre as árvores. Rangendo os dentes de raiva, gritou, enfurecido:

— Maldita criatura! Como se não bastassem os maus-tratos do "pi-ma-wen", você ainda vem me importunar. Agora entendi! Esse pássaro deve achar que não sou humano, confundindo meu nariz com um tronco carcomido e cheio de vermes. Não tenho dúvida de que está atrás de insetos e, por isso, me deu esse picote. Melhor esconder logo a cara no peito! — e, dizendo isso, deixou-se cair novamente ao chão para continuar dormindo.

Mas o Peregrino lançou-se contra ele do alto, dando-lhe um tremendo picote bem na base da orelha. Bajie deu um pulou e exclamou, mais uma vez, furioso:

— Maldita besta! Parece que você está me perseguindo! Deve ter o ninho por aqui e achou que vim roubar seus ovos ou filhotes. Isso explica sua obsessão em me atacar. Está bem, está bem! Vou embora! Irei procurar um lugar mais sossegado para dormir em outro lugar.

Ele pegou o ancinho e, deixando a tranquilidade do prado de grama vermelha para trás, voltou ao caminho. O Peregrino, por sua vez, estava se divertindo, rindo e dizendo a si mesmo:

— Que idiota! Nem com os olhos bem abertos foi capaz de me reconhecer!

Ele voltou a sacudir o corpo e se transformou em um pequeno gafanhoto, que se agarrou com força às impressionantes cerdas que Bajie tinha atrás da orelha. Depois de caminhar por quatro ou cinco quilômetros na montanha, Bajie chegou a um vale onde se erguiam três espigões quadrados de rocha verde, do tamanho de uma mesa comum. Ele então deixou o ancinho de lado e se inclinou respeitosamente diante das pedras. O Peregrino não conseguiu conter a gargalhada, dizendo para si mesmo:

— Ele está realmente maluco! Como se essas rochas fossem pessoas capazes de falar e responder ao cumprimento! Para que se inclinar diante delas? Não faz sentido mostrar tanto respeito!

Mas Bajie estava se comportando como se aqueles blocos de pedra fossem, na verdade, o monge Tang, o Monge Sha e o Peregrino. Tratava-se, na verdade, de um ensaio para o que ele planejava dizer ao grupo quando voltasse.

— Quando eu voltar para junto do mestre — afirmou ele —, direi que há infinitos monstros. Se me perguntarem sobre esta montanha, responderei que foi moldada com argila, coberta com barro, envolvida em estanho e cobre, e finalmente pintada, não sem antes tapar os buracos com papel e polvilhar um pouco de farinha. Se acharem isso tolice, direi que é uma montanha muito íngreme. Aí, com certeza, vão querer saber que tipo de caverna os monstros habitam, e eu direi que está bem protegida por rochas quase inacessíveis. Querendo saber que tipo de portas tem, responderei que são feitas de chapas de aço com pregos enormes. Isso vai reavivar a imaginação deles, e vão perguntar sobre a profundidade da caverna. Direi que ela tem três níveis bem definidos. E se insistirem nos detalhes, como quantos pregos cada porta tem, direi apenas que estava nervoso demais para notar esses detalhes insignificantes. Agora que o plano está pronto, é hora de enganar novamente aquele convencido "pi-ma-wen".

Satisfeito com seu plano, Bajie pegou o ancinho e voltou lentamente pelo caminho. Ele mal sabia, no entanto, que o Peregrino ouvira tudo, escondido atrás de sua orelha. Antecipando o desenrolar dos eventos, Wukong abriu suas asas e foi levado pelo vento até seu mestre. Retomando a forma habitual, cumprimentou seus dois irmãos.

— Então você já voltou — comentou o mestre. — Por que Wuneng não veio com você?

— Ele estará aqui dentro de muito pouco tempo — respondeu o Peregrino, lutando para conter o riso. — Ele se atrasou um pouco inventando algumas mentiras.

— Uma pessoa como ele, que tem os olhos cobertos pelas orelhas, só pode ser um tolo — disse o mestre. — Posso saber que mentiras são essas? Espero que não façam parte de algum plano para ridicularizá-lo diante de mim.

— Por que o senhor sempre tenta encobrir todos os defeitos dele? — queixou-se o Peregrino. — Não estou inventando nada do que vou contar. Ouvi tudo diretamente da boca dele.

E então ele relatou com todos detalhes como Bajie havia se deitado na grama para tirar uma soneca, como o inoportuno ataque do pássaro pica-pau o havia impedido, como ele se inclinara diante das rochas do vale e tinha elaborado aquela absurda história sobre os monstros da montanha e a caverna com portas de aço onde habitavam.

Não havia terminado de falar quando avistaram, ao longe, Bajie se aproximando. Ele vinha com a cabeça baixa, repetindo mentalmente o que tinha planejado dizer, pois temia esquecer algum detalhe do que havia inventado.

— Você pode me dizer o que é isso que está murmurando? — gritou o Peregrino, de forma zombeteira.

Bajie imediatamente levantou as orelhas e respondeu, olhando ao redor:

— Nada, é sempre um prazer reencontrar aqueles que formam nosso lar.

Em seguida, ele se jogou aos pés do mestre, que o levantou do chão, dizendo:

— Não precisa ser tão educado. Imagino que você deve estar muito cansado.

— É verdade — reconheceu Bajie prontamente. — Não há nada mais exaustivo do que subir e descer montanhas.

— E você descobriu se há algum monstro? perguntou o mestre.

— Sim, sim — respondeu Bajie apressadamente. — Há uma verdadeira legião deles.

— E como eles te trataram? — insistiu o mestre.

— Muito bem — mentiu Bajie. — Me trataram como se eu fosse um de seus antepassados, chamando-me respeitosamente de Avô Porco. Até prepararam um pouco de comida vegetariana e uma sopa de macarrão, comprometendo-se a nos escoltar enquanto atravessássemos esta montanha.

— Você ouviu isso enquanto estava dormindo deitado na grama? — questionou o Peregrino, de forma zombeteira.

Bajie ficou tão surpreso com a pergunta que encolheu ao menos dois centímetros.

— Como você soube que eu estava dormindo? — balbuciou, confuso.

Irritado, o Peregrino se aproximou segurando-o pela roupa, e exclamou:

— Venha cá, quero lhe fazer umas perguntas!

Isso alarmou ainda mais Bajie, que respondeu, tremendo da cabeça aos pés:

— Você pode me perguntar o que quiser, mas não precisa me segurar desse jeito.

— Que tipo de montanha é essa? — indagou o Peregrino, com uma séria expressão..

— Muito íngreme — respondeu Bajie, tentando manter a calma.

— E o que me diz sobre a caverna dos monstros? — perguntou o Peregrino.

— Protegida por rochas praticamente inacessíveis — respondeu Bajie, um pouco mais tranquilo.

— Que tipo de portas ela possui? — insistiu o Peregrino.

— De ferro reforçado com pregos muito largos — respondeu novamente Bajie.

— Qual é a profundidade dessa caverna? — prosseguiu o Peregrino.

— Muito grande — esclareceu o Idiota. — Na verdade, ela possui três partes bem distintas.

— Não precisa dizer mais nada — concluiu o Peregrino. — Eu lembro do resto com bastante clareza. Deixe que eu conto tudo por você para garantir que o mestre acredite.

— Não consigo entender como você pode ser tão arrogante! — exclamou Bajie, indignado. — Como você vai terminar meu relatório se você nem mesmo foi comigo?

— Quantos pregos havia nas portas? — perguntou de repente o Peregrino, soltando uma risada. — Ah! Deixa pra lá, você devia estar nervoso demais para se lembrar disso agora com clareza, não é mesmo?

Bajie ficou tão atônito que caiu no chão. O Peregrino continuou seu ataque, dizendo:

— Você acha bonito se inclinar diante de um monte de rochas e falar com todo respeito, como se estivesse se dirigindo a nós três? Diga! Você acha que isso é justo? Além disso, por que você teve que dizer: "Agora que já tenho minha história, posso voltar a enganar aquele arrogante do 'pi-ma-wen'"? Quer me explicar o que é isso?

— Do jeito que você fala — murmurou Bajie, batendo a testa no chão repetidamente —, deduzo que você não se afastou de mim nem um segundo enquanto eu patrulhava a montanha.

— Seu preguiçoso! — repreendeu-lhe o Peregrino, fora de si. — Este é um lugar muito especial. Se não fosse, não teríamos enviado você para patrulhá-lo. Mas, em vez de fazer isso, você decidiu tirar uma soneca tranquilamente. Se o pássaro pica-pau não tivesse se distraído com seu nariz, com certeza você ainda estaria roncando a essa hora. No entanto, você não se contentou com isso; ainda inventou essa mentira que acabou de nos contar. Você não percebe que quase arruinou uma missão tão importante quanto a nossa? Levante a túnica, porque vou te dar cinco golpes nas pernas como castigo.

— Mas seu bastão é duro demais! — exclamou Bajie, horrorizado. — Um leve toque e minha pele desaba; um pequeno empurrão e meus tendões estouram. Cinco golpes significam a morte certa para mim!

— Por que você mente, se tem tanto medo do castigo? — questionou o Peregrino.

Prometo que não farei isso nunca mais — disse Bajie, com a voz embargada.

— Está bem — cedeu o Peregrino. — Desta vez, serão apenas três golpes.

— Você não entende? — gritou Bajie, desesperado. — Nem mesmo meio golpe eu conseguirei suportar!

Compreendendo que não tinha como escapar, Bajie agarrou o mestre e suplicou:

— Pelo que há de mais sagrado, interceda em meu favor!

— Quando Wukong me contou que você havia criado essa farsa — respondeu o mestre —, recusei-me a acreditar. Mas agora que a verdade foi revelada, você merece um castigo exemplar. De qualquer forma, estamos tentando atravessar esta montanha e precisamos de toda a ajuda possível. Portanto, Wukong — acrescentou, dirigindo-se ao Peregrino —, é aconselhável que, por enquanto, você o perdoe. Quando tivermos atravessado esta região, faça com ele o que achar melhor. Tudo bem?

— Os antigos diziam — respondeu o Peregrino — que “obedecer aos próprios pais é uma expressão de piedade filial.” Se o mestre não quer que você seja açoitado, não o farei por enquanto. Mas você deve voltar a patrulhar a montanha e tenha em mente que, se você voltar a cochilar ou complicar as coisas, não diminuirei nem um golpe do que planejo te dar.

Diante disso, Bajie não teve escolha a não ser se levantar e, mais uma vez, percorrer o caminho. Desta vez, enquanto caminhava, sentia como se o Peregrino seguisse cada um de seus passos, transformado em algo que ele mesmo não conhecia. Ao encontrar algo novo, imediatamente pensava que era Wukong. Assim, percorreu sete ou oito quilômetros, até se deparar com um tigre enorme, que corria montanha acima. Sem perder a compostura, levantou o ancinho e perguntou com certo desdém:

— Por que você teve que me seguir para ouvir minhas mentiras? Não prometi que, desta vez, cumpriria com minhas obrigações?

Um pouco mais à frente, um golpe de vento derrubou uma árvore já seca, que rolou em sua direção. Prestes a perder a paciência, Bajie bateu no próprio peito, dizendo:

— Por que você fez isso? Não disse que não ia mais te enganar? Por que você teve que se transformar em uma árvore e me assustar dessa forma?

Bajie continuou caminhando e, a poucos passos, avistou no ar um corvo de pescoço branco que grasnava insistentemente, e exclamou novamente:

— Você não tem vergonha? Eu te disse que não iria mais mentir. Por que você se transformou em um corvo? É incompreensível esse seu desejo de escutar secretamente tudo o que digo.

Mas desta vez o Peregrino não o seguiu. Tudo era fruto de sua imaginação e suspeitas, por isso, por ora, não falaremos mais sobre ele. Contudo, abordaremos a montanha que estava prestes a explorar. Conhecida como a Montanha do Topo Plano, nela se encontrava a Caverna da Flor de Lótus, que servia de morada a dois monstros. Um era conhecido como o Grande Rei do Chifre de Ouro (9) e o outro, o Grande Rei do Chifre de Prata (9).

Naquele dia, ambos estavam sentados tranquilamente na caverna, quando Chifre de Ouro disse de repente a Chifre de Prata:

— Quanto tempo faz que não saímos para patrulhar a montanha?

— Pelo menos, meio mês — respondeu Chifre de Prata.

— Nesse caso prepare-se, pois vamos fazer isso hoje — concluiu Chifre de Ouro.

— Por que exatamente hoje? — protestou Chifre de Prata.

— Ultimamente, ouvi rumores — explicou Chifre de Ouro — de que o Imperador dos Tang, cujo império abrange as Terras do Leste, enviou seu irmão, o monge Tang, ao Oeste em busca dos escritos sagrados de Buda. Pelo que sei, ele está acompanhado de três monges, que atendem pelos nomes de Peregrino Sun, Zhu Bajie e Monge Sha. Se contarmos com o cavalo, são um total de cinco pessoas. Seria incrível se eles passassem por aqui perto e você pudesse capturá-los para mim.

— Se o que você deseja é comer carne humana, pode caçar os homens que quiser em outro lugar — aconselhou Chifre de Prata. — Para que incomodar esses pobres monges? Deixe-os seguir seu caminho em paz.

— Parece que você não está ciente da importância desses viajantes — comentou Chifre de Ouro. — Ao deixar as Regiões Superiores, ouvi dizer que o monge Tang é, na verdade, a reencarnação da Cigarra de Ouro, um homem que se dedicou à prática da ascese por mais de dez vidas e que nunca desperdiçou um único grama de yang. Portanto, se alguém conseguir provar um pedaço de sua carne, verá sua vida se prolongar significativamente.

— Se o que você diz é verdade — perguntou Chifre de Prata, agora mais interessado na empreitada —, qual é a necessidade de praticarmos exercícios, lutar para conciliar o dragão e o tigre, e nos esforçarmos para unir os princípios masculinos e femininos? Basta devorar esse monge. Vou capturá-lo agora mesmo.

— Não seja tão impulsivo — aconselhou Chifre de Ouro. — Em assuntos como esse, o importante é não se precipitar. Se você sair por aquela porta e agarrar o primeiro monge que encontrar, estará violando a lei sem necessidade. A propósito, ainda lembro como é esse monge Tang. Vou mandar fazer alguns retratos dele e de seus discípulos para que você não tenha problemas em identificá-los. Quando você vir algum monge, compare seu rosto com as pinturas e, se se parecer, traga-o imediatamente para cá.

Logo os retratos ficaram prontos, e Chifre de Ouro acrescentou seus nomes correspondentes. Chifre de Prata guardou-os cuidadosamente no bolso e abandonou a caverna, seguido por não menos de trinta pequenos demônios.

A má sorte de Bajie fez com que ele se deparasse rapidamente com eles. Quando estava mais despreocupado, viu-se cercado por um grupo de demônios, que o questionaram com firmeza:

— Quem é você? Pare e nos diga seu nome.

Surpreso, ele levantou a cabeça e imediatamente deixou as orelhas caírem para trás. Ao perceber que eram demônios, começou a tremer de medo e pensou, muito agitado:

— Se eu disser que sou um monge em busca de escrituras, com certeza eles irão me capturar em em um piscar de olhos. Então, o melhor é que eu diga que sou apenas um andarilho comum.

Os demônios ouviram sua resposta sem surpresa e voaram para informar seu senhor, dizendo:

— Trata-se de um simples andarilho, senhor.

Mas, entre aqueles que não conseguiram reconhecer Bajie, havia outros que acharam seu rosto bastante familiar e, apontando-o com insistência, afirmaram, muito exaltados:

— Esse monge se parece demais com o retrato de Zhu Bajie. Não acha, senhor?

O velho demônio ordenou que pendurassem a pintura para poder examiná-la com mais atenção. Assim que Bajie a viu, pensou, muito angustiado:

— Agora entendo por que ando me sentindo tão fraco ultimamente. Essas bestas trancafiaram meu espírito dentro desse retrato!

Enquanto os demônios seguravam a pintura pendurada em suas lanças, Chifre de Prata a estudou atentamente, murmurando para si mesmo:

— Aquele que está montado em um cavalo branco é o monge Tang, e aquele outro que tem o rosto todo peludo é o Peregrino Sun.

— Olhem, eu não estou ai! — exclamou, um tanto aliviado, Bajie. — Se me deixarem partir, eu lhes darei três cabeças de porco e mais de vinte e quatro jarros do melhor vinho que vocês possam imaginar.

Bajie continuou prometendo o que lhe vinha à mente, mas o monstro não lhe deu a menor atenção.

— Aquele outro — prosseguiu, como se não tivesse sido interrompido —, a julgar pelo cabelo extremamente longo, é o Monge Sha, e aquele lá não pode ser ninguém além de Zhu Bajie. Seu focinho e suas orelhas são francamente inconfundíveis.

Ao ouvir isso, Bajie abaixou ao máximo o focinho, tentando inutilmente escondê-lo no peito.

— Por que você esconde a boca dessa forma? — interrogou o monstro. — Estique-a um pouco para que possamos vê-la bem.

— Não posso — mentiu Bajie. — É um defeito de nascimento. Espero que compreenda, grande senhor.

Imperturbável, o monstro ordenou a seus subordinados que pegassem alguns ganchos e o forçassem a sair. Bajie rapidamente afastou o focinho e se desculpou:

— Toda a minha família tem uma aparência como essa. Se vocês gostam tanto de olhar, é só me avisar. Para que usar ganchos? Estou à disposição, grande senhor!

Ao perceber que se tratava de Bajie, o monstro sacou sua espada mágica e desferiu um golpe terrível contra ele, que, por sorte, conseguiu desviar, dizendo:

— Não seja tão impulsivo, rapaz, e preste atenção no meu ancinho!

— Para mim, homens que se tornam monges na meia-idade não me metem medo — zombou o monstro, soltando uma gargalhada.

— Veja só o garoto! — exclamou Bajie no mesmo tom. — Parece que ele tem um pouco de inteligência. Quem te disse que eu me tornei monge já com uma certa idade?

— Se você sabe usar esse ancinho — respondeu o monstro com desprezo —, é porque o roubou depois de arar incontáveis jardins e campos.

— Você está muito enganado, garoto — retrucou Bajie. — Essa maravilha nunca trabalhou na terra. Olhe bem e você vai se convencer. Suas pontas têm a forma de garras de dragão e são de um ouro puríssimo. Se a beleza de sua forma é admirável, sua eficácia em combate não fica atrás, pois é capaz de levantar um vento gélido e lançar projéteis de chamas luminosas. Já derrotou mil monstros em sua jornada para o Oeste, sempre a serviço do destemido monge Tang. Quando é segurado nas mãos, emite uma névoa que obscurece a lua e o sol. Se for levantado acima da cabeça, a escuridão que gera é tão densa que rouba todo o brilho da estrela polar. É capaz de derrubar o Monte Tai, aterrorizando todos os monstros que lá habitam, e de revirar os oceanos, fazendo os dragões tremerem de medo. Não duvido que você possua poderes muito especiais, mas asseguro que esse ancinho abrirá nove feridas horríveis em seu corpo repugnante.

Apesar da veemência de suas palavras, o monstro não recuou. Pelo contrário, brandiu sua espada de sete estrelas e lançou-se contra Bajie. A montanha foi testemunha de seu cruel embate. Mais de vinte vezes eles mediram forças, sem que um vencedor claro emergisse. Bajie demonstrou uma ferocidade crescente e um desprezo total pela própria vida, o que fez seu oponente sentir um medo progressivo. 

Todos ficaram impressionados com a maneira como ele movia suas enormes orelhas, com a corrente de saliva que escorria de sua boca e com os gritos incessantes que proferia. Assim, o monstro decidiu abandonar o campo de batalha, incumbindo os demônios de continuar a luta. 

Se eles tivessem enfrentado Bajie um a um, teriam saído derrotados, mas eram muitos para um único oponente. Bajie entendeu isso, virou-se e tentou fugir rapidamente. No entanto, o terreno era muito acidentado e ele tropeçou em várias videiras e espinhos ao longo do caminho, aumentando ainda mais sua ansiedade. Finalmente, um dos demônios conseguiu agarrá-lo pelas pernas, fazendo-o cair de cabeça no chão, como um cachorro tentando comer sujeira. Os outros demônios caíram sobre ele como um enxame, segurando suas pernas e puxando-o sem qualquer respeito pelo rabo, pelas orelhas e pelos pelos. Assim, carregaram-no e o levaram para a caverna. Que má sorte a dele! Quando os demônios se apoderam de um corpo, não há quem possa derrotá-los. Ninguém é capaz de expulsá-los, embora seja raro que não deixem a pessoa tomada por mais de dez mil doenças.

Não sabemos quais perigos Bajie teve que enfrentar. Quem quiser descobrir terá que ouvir atentamente as explicações que serão dadas no próximo capítulo.


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Notas do Capítulo XXXII

  1. Árvore identificada como Malus balliana;
  2. A poesia clássica aplicava o termo "vermelhos" aos caminhos que atravessavam os jardins da residência imperial. Por essa razão, passou a significar, posteriormente, "o prazer da contemplação das flores na primavera";
  3. Diziam que Buda possuía sobrancelhas de jade branco, capazes de conceder serenidade àqueles que tivessem a sorte de contemplá-las;
  4. Segundo o budismo Mahayana, as doze causas, também conhecidas como "nidanas", explicam tudo o que existe;
  5. As Três Estrelas são as da Longevidade, da Riqueza e da Felicidade;
  6. Shenwu, o Senhor do Norte, conhecido como Hsúan-Wu até o início da dinastia Sung, é uma divindade taoísta famosa por ter sob seu comando os generais Tartaruga e Serpente, símbolos do yin e do yang;
  7. O Deus do Fogo era, na verdade, o planeta Marte;
  8. Em chinês, Pingdingshan (平頂山);
  9. Seus nomes em chinês são respectivamente  銀角大王, "Yín jiǎo dàwáng" e 金角大王, "Jīn jiǎo dàwáng".


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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