۞ ADM Sleipnir
Arte de Moyi Zhang |
Ao chegarem à caverna, os demônios ergueram a voz, gritando com satisfação:
— Conseguimos capturar um, senhor! Aqui está!
— Aproximem-no um pouco, para que eu possa vê-lo melhor — ordenou Chifre de Ouro.
— É todo seu — disse orgulhoso Chifre de Prata
— Receio que você tenha caçado o alvo errado — comentou Chifre de Ouro. — Este monge não serve para nada.
Ao ouvir isso, Bajie pensou que não podia deixar aquela oportunidade escapar e, dando um salto, exclamou ansiosamente:
— É um crime capturar algo que não tem valor algum, não acham? O melhor que o senhor pode fazer é deixá-lo livre novamente.
— Não lhe dê ouvidos — retrucou Chifre de Prata. — Ainda que não sirva para nada, ele é um dos acompanhantes do monge Tang, aquele que responde pelo nome de Zhu Bajie. Por isso, acho que a melhor coisa que podemos fazer é jogá-lo no tanque que fica nos fundos. Quando os pelos do corpo dele caírem, podemos cobri-lo de sal e deixá-lo secar ao sol. Assim, nos servirá como aperitivo depois. Deve ficar delicioso com vinho.
— Que azar o meu! — exclamou Bajie ao ouvir aquilo. — Quem diria que eu encontraria um monstro especialista em salgar carnes?
Apesar de suas reclamações, os demônios o carregaram até os fundos e o jogaram, sem qualquer consideração, em um tanque completamente cheio de água.
Enquanto isso, Sanzang se sentia cada vez mais inquieto. Embora não tivesse se movido do lugar, seu coração batia forte no peito e um suor frio cobria seu corpo. Não conseguindo suportar mais, levantou a voz e perguntou:
— Como é possível que Wuneng ainda não tenha voltado? Será que é tão difícil patrulhar esta montanha?
— Vejo que o senhor não conhece bem a mente dele — respondeu o Peregrino.
— O que quer dizer com isso? — perguntou novamente Sanzang.
— Se esta montanha estivesse realmente infestada de monstros — explicou o Peregrino —, ele nem teria dado um passo e teria voltado correndo para nos contar alguma história absurda. Deduzo, portanto, que não há sinal desses supostos monstros e que o caminho está tão livre que nosso irmão continuou em frente, sem se preocupar em voltar para nos dizer o que viu.
— Se for verdade o que você diz — concluiu Sanzang —, quando o veremos de novo? Esta região é muito selvagem e não se parece em nada com um vilarejo ou uma cidade.
— Não se preocupe com isso — tranquilizou-o o Peregrino. — Faça o favor de montar. Se der um pouco de estímulo ao seu cavalo, não duvido que possamos alcançá-lo mais rápido do que imagina. Aquele idiota é um preguiçoso incurável e se move com uma lentidão irritante. Você vai ver.
O monge Tang aceitou a sugestão, montou no cavalo, enquanto o Monge Sha carregava o equipamento e o Peregrino seguia à frente, guiando o caminho pela montanha acima.
Naquele momento, Chifre de Ouro comentava com Chifre de Prata:
— Se você capturou Bajie, significa que o monge Tang não deve estar longe. Vá patrulhar a montanha novamente e assegure-se de capturá-lo.
— Assim farei — respondeu Chifre de Prata, que imediatamente chamou cerca de cinquenta demônios para patrulhar a montanha com ele.
Enquanto caminhavam, avistaram um conjunto de nuvens brilhantes, e o monstro exclamou, contente:
— Ali está o monge Tang!
— Onde? — perguntaram os pequenos demônios, olhando em todas as direções. — Não vemos ninguém.
— Como vocês sabem — explicou Chifre de Prata —, a luz repousa sobre a cabeça de um homem virtuoso, enquanto um homem perverso emite uma espécie de éter negro que se eleva até o céu. O monge Tang, na verdade, é a reencarnação da Cigarra de Ouro, uma pessoa extremamente virtuosa que praticou a ascese por mais de dez existências seguidas. Por isso, é natural que seu corpo esteja envolto por essa aura de luz.
Ainda assim, os pequenos demônios não sabiam para onde olhar. O monstro precisou estender a mão e apontar na direção onde Sanzang estava, dizendo:
— Ele está ali. Não o veem?
Sanzang sentiu, de repente, um tremendo calafrio, que se repetiu outras três vezes, exatamente o número de vezes em que o monstro repetiu o gesto. Esse calafrio incomum trouxe uma estranha ansiedade ao mestre, que o fez perguntar aos discípulos:
— Vocês podem me explicar por que estou sentindo esses calafrios?
— Isso é apenas o estômago — arriscou prontamente o Monge Sha. — Deve estar preocupado com alguma coisa, e isso acaba causando esses tremores involuntários pelo corpo.
— Isso é besteira! — exclamou o Peregrino prontamente. — A subida é difícil, e o mestre apenas perdeu um pouco de confiança. Só isso. Não há o que temer. Para provar o que digo, vou mostrar a destreza do meu bastão de ferro.
Caminhando à frente do cavalo, Wukong começou a fazer uma série de movimentos com o seu bastão, manejando-o com precisão de cima para baixo, da esquerda para a direita, seguindo os princípios das artes marciais. Seus movimentos eram tão perfeitos que o mestre logo se sentiu mais tranquilo. Aquela demonstração de destreza, de fato, não podia ser comparada a nenhuma outra no mundo.
Isso fez com que Chifre de Prata, que o observava atentamente do alto da montanha, entrasse em pânico e, tremendo, comentasse com os demônios ao seu redor:
— Já ouvi falar muito sobre o Peregrino Sun, mas agora posso ver que a realidade supera em muito a fama.
— Ora, para que essa atitude de se diminuir diante dos outros? — tentaram animá-lo os pequenos demônios, aproximando-se dele. — Pode nos dizer de quem fala com tanto respeito?
— Do Peregrino Sun — respondeu Chifre de Prata. — É preciso admitir que ele possui poderes mágicos extraordinários; por mais que queiramos, não conseguiremos saborear a carne do monge Tang.
— Se acredita que sua força não é suficiente para enfrentá-lo — sugeriram os demônios —, por que não informamos o Grande Senhor e pedimos reforços? Com uma força maior, será fácil capturá-lo.
— Vocês viram o bastão de ferro que ele carrega? — perguntou Chifre de Prata. — É tão poderoso que, com um só golpe, ele pode mandar para o outro mundo mais de dez mil inimigos. Nossas forças, por outro lado, somam apenas quatro ou cinco mil soldados, um número ridiculamente pequeno diante de uma arma tão poderosa.
— Sendo assim — concluíram os pequenos demônios —, o monge Tang jamais nos servirá de alimento. E, talvez, capturar Zhu Bajie tenha sido um grande erro. Deveríamos libertá-lo o quanto antes.
— Nem pensar! — protestou de imediato Chifre de Prata. — Não cometemos erro algum e não vamos libertá-lo tão cedo. Nosso objetivo é capturar o monge Tang, e não desistiremos, ainda que seja necessário esperar um pouco mais.
— Quer dizer que teremos que esperar alguns anos? — perguntaram novamente os pequenos demônios.
— Nem tanto — respondeu Chifre de Prata. — Para capturar o monge Tang, mais do que força bruta, precisamos de uma boa dose de aparente virtude. Se tentarmos pela violência, não tocaremos nem um fio de cabelo dele. A única estratégia que temos é nos disfarçar como pessoas simples e virtuosas. Assim, ele confiará plenamente em nós, e poderemos capturá-lo no momento em que menos esperar.
— Pelo visto, o senhor já tem um plano em mente — comentaram os pequenos demônios. — Precisa de nossa ajuda para colocá-lo em prática?
— Não será necessário — disse Chifre de Prata. — Podem voltar ao acampamento, mas não digam uma única palavra disso ao Grande Senhor, pois, do contrário, meu plano estará perdido. Conheço muitas técnicas de transformação e posso garantir a vocês que me basto sozinho para pegá-lo.
Os pequenos demônios inclinaram-se diante dele antes de seguirem de volta ao acampamento. Chifre de Prata, então, deu um salto e, com uma leve sacudida no corpo, transformou-se em um velho taoísta. Usava um chapéu em forma de estrela que mal cobria os cabelos emaranhados e salpicados de fios brancos. Vestia uma túnica de plumas e tinha a cintura presa por uma faixa de seda. Seus sapatos de tecido amarelo destacavam sua figura ascética, enquanto seus traços finos e olhos brilhantes davam a impressão de estar possuído por uma aura divina. Apesar do corpo magro, sua saúde parecia firme como a Estrela da Longevidade. Embora fosse claramente idoso, sua aparência juvenil e vigorosa em nada deixava a desejar ao lendário Taoísta do Búfalo Verde (1). No entanto, tudo isso não passava de um disfarce: um véu de bondade que escondia as mais perversas intenções. Quão eficaz é a mentira, quando se veste de verdade!
O monstro deixou-se cair à beira do caminho, fingindo ter quebrado a perna. Havia ensaiado tão bem seu papel que não parava de lamentar-se, com voz chorosa, dizendo:
— Salvem-me, por favor! Tenham piedade deste velho taoísta!
Confiando na proteção do Grande Sábio e do Monge Sha, Sanzang seguia tranquilamente seu caminho, mas, ao ouvir os gritos angustiantes de socorro, parou o cavalo de imediato e exclamou:
— Santo céu! Não há um único vilarejo nesta montanha. Como é possível que alguém esteja se queixando assim? Alguém deve ter caído nas garras de um tigre ou leopardo.
Sanzang puxou as rédeas com força e, elevando a voz, perguntou:
— Quem sofre dessa forma? Por que não se mostra?
Chifre de Prata arrastou-se entre alguns arbustos e começou a bater a testa no chão, mantendo os olhos fixos no cavalo do mestre. Ao perceber que se tratava de um velho taoísta, Sanzang compadeceu-se dele. Desmontou de seu cavalo e o ajudou a levantar-se, dizendo:
— Levante-se, por favor.
— Dói demais! — queixou-se Chifre de Prata.
Sanzang notou que a perna dele sangrava abundantemente e perguntou, preocupado:
— De onde vem, e como se machucou dessa forma?
— A oeste desta montanha — explicou o monstro com uma voz calma e serena — há um templo taoísta, do qual sou o responsável.
— Se é verdade o que diz — interrompeu Sanzang —, por que não está em sua pagoda queimando incenso e recitando os textos sagrados? O que o fez abandonar a paz de seu retiro?
— Há dois dias — explicou Chifre de Prata —, um dos grandes senhores que vive ao sul desta montanha pediu que eu fosse até sua mansão para invocar as estrelas e trazer paz e prosperidade ao seu lar. Na volta, meu discípulo e eu nos deparamos com um tigre no fundo de um desfiladeiro. Com incrível destreza, a fera atacou meu companheiro e o arrastou montanha acima. Fiquei tão aterrorizado que tentei fugir por entre as pedras, mas acabei quebrando a perna ao cair sobre algumas rochas. Isso me desorientou completamente, e fui incapaz de continuar meu caminho. Felizmente, o Céu quis que nossos destinos se cruzassem, trazendo você diretamente até mim, enquanto eu estava aqui quase sem forças para me mover. Imploro que tenha piedade de mim e salve minha vida. Juro que, assim que chegarmos ao meu templo, retribuirei generosamente sua bondade, mesmo que precise me vender como escravo.
Sanzang tomou aquelas palavras literalmente e exclamou apressado:
— Não fale assim, por favor. Embora eu seja um monge e você um taoísta, nossos propósitos são os mesmos. O que importa se nossas vestimentas são diferentes, se nossas práticas ascéticas e nossos princípios são, na essência, iguais? Se eu recusasse ajudá-lo, não seria digno de ser contado entre aqueles que renunciaram à vida familiar. Vamos ver se consegue andar um pouco.
— Como vou caminhar, se nem mesmo consigo me manter em pé? — protestou Chifre de Prata.
— Está bem, está bem — concluiu Sanzang. — Se não pode caminhar, eu posso carregá-lo. Suba no meu cavalo, e o devolverá quando chegarmos ao seu templo.
— Não imagina o quanto agradeço sua gentileza — disse Chifre de Prata. — Porém, a parte de baixo da minha coxa dói muito, e temo que não conseguirei cavalgar.
— Entendo — respondeu Sanzang, compreensivo. Em seguida, voltou-se para o Monge Sha e acrescentou:
— Coloque a bagagem no cavalo e carregue este ancião.
— Como desejar — respondeu o Monge Sha.
Mas o monstro lançou um olhar rápido e apressou-se em dizer:
— Como podem imaginar, o tigre me deu um susto terrível, e ainda não me recuperei completamente. Não me levem a mal, mas esse monge tem um ar muito sombrio, e me assusta a ideia de ser carregado por ele.
— Nesse caso — concluiu Sanzang —, que Wukong o carregue.
— Será um prazer — respondeu o Peregrino prontamente. — Vou carregá-lo nas minhas costas.
O monstro pareceu satisfeito com a decisão e não disse mais nada. O Monge Sha não conseguiu conter o riso e exclamou:
— Como é ingênuo! Prefere ser carregado por ele, mas eu garanto que, assim que o mestre não estiver olhando, ele vai esfregá-lo nas pedras até lhe romper os tendões.
Enquanto o Peregrino se preparava para carregar o monstro nas costas, começou a sorrir de forma estranha e a murmurar:
— Malditos demônios! Como ousa me provocar dessa maneira? Antes de fazer isso, deveria ter se informado dos anos que passei dominando monstros. Pode até enganar o monge Tang, mas comigo não terá a menor chance. De onde tirou a ideia de que poderia zombar de mim tão facilmente? Sei muito bem que é um dos monstros desta montanha e que seu único objetivo é devorar o meu mestre. Por que deseja atacá-lo, sendo ele uma pessoa tão comum? De qualquer forma, isso é problema seu. Mesmo assim, deveria saber que não vou deixá-lo fazer isso tão facilmente.
— Mestre — disse Chifre de Prata, nervoso, elevando a voz —, eu não sou um monstro. Venho de uma boa família e dediquei minha vida à prática da virtude. Estou aqui sozinho apenas porque, como já disse, tive o azar de encontrar um tigre hoje.
— Se tem tanto medo de tigres e lobos — retrucou o Peregrino —, por que não recita o Clássico do Melro do Norte (2)?
— Macaco atrevido! — repreendeu-o Sanzang, que acabara de subir no cavalo. — “Salvar uma vida vale dez mil vezes mais do que construir uma pagoda de sete andares.” Carregue-o de uma vez e deixe de lado o Clássico do Melro do Norte ou do Sul.
— Que sorte tem esse monstro! — exclamou o Peregrino. — Não posso negar que meu mestre é uma pessoa compassiva e completamente dedicada à prática da virtude, mas se deixa levar demais pelas aparências. Ele é incapaz de perceber a verdadeira natureza das pessoas. Se eu não carregar você, ele vai me repreender, e não quero que isso aconteça. Mas vou deixar uma coisa bem clara: se precisar se aliviar, avise antes. Não quero que faça isso nas minhas costas, porque por aqui não há lugar para me lavar, e o cheiro ficaria impregnado na roupa por muito tempo.
— Acha que, na minha idade, eu faria algo assim? — tentou tranquilizá-lo Chifre de Prata. — Eu não sou alguém tão desrespeitoso!
Mais calmo, o Peregrino decidiu finalmente carregar o monstro e continuar o caminho para o Oeste, junto com o mestre e o Monge Sha. Não demoraram a chegar a um ponto em que a trilha se tornou, de repente, pedregosa e extremamente sinuosa. Wukong, então, tomou o cuidado de diminuir o ritmo, deixando que o monge Tang fosse à frente. Depois de quatro ou cinco quilômetros, o mestre e o Monge Sha desapareceram após uma curva na montanha, e o Peregrino, visivelmente irritado, pensou:
— O mestre é tão ingênuo que às vezes duvido que seja um homem adulto. Caminhar por essas trilhas já é bastante cansativo, e ainda tenho que carregar um monstro. Dá vontade de jogá-lo pela encosta abaixo, mas é melhor não dizer nada. Mesmo que fosse uma boa pessoa, não sobreviveria de jeito algum. Deveria jogá-lo no chão e acabar com ele aqui mesmo. Para que continuar com isso?
Quando o Grande Sábio estava prestes a colocar seu plano em prática, Chifre de Prata percebeu suas intenções e decidiu usar sua magia de mover montanhas e secar oceanos. Sem descer das costas do Peregrino, fez um gesto com os dedos e recitou o feitiço correspondente. Imediatamente, o Monte Sumeru ergueu-se nos ares e desabou sobre a cabeça do Peregrino.
Um pouco atordoado com o golpe, o Grande Sábio inclinou a cabeça para o lado e equilibrou a montanha sobre seu ombro esquerdo. Em seguida, soltou uma gargalhada e exclamou:
— Pode me dizer que tipo de magia está usando para tentar me esmagar? Acho ótimo que de vez em quando pratique suas habilidades, mas devo avisar que carregar um peso desequilibrado nos ombros é bem desconfortável.
— Então uma montanha é incapaz de esmagá-lo, hein? — murmurou Chifre de Prata. — Pois agora ele vai ver.
Recitou novamente o feitiço e, em seguida, a Montanha O-Mei elevou-se aos ares. Como da outra vez, o Peregrino inclinou ligeiramente a cabeça, e a imensa montanha repousou sobre seu ombro direito.
Isso, no entanto, não o impediu de seguir o mestre com a velocidade de um meteoro. Ele se movia com tamanha velocidade que até o monstro ficou assustado e pensou, suando dos pés à cabeça:
— Esse homem é inacreditável! Jamais imaginaria que fosse capaz de carregar montanhas com tanta facilidade.
Mesmo assim, Chifre de Prata não se deu por vencido e recitou o feitiço mais uma vez. O Monte Tai (3) caiu, então, sobre a cabeça do Peregrino, pressionando-o com uma força indescritível. O Grande Sábio começou a sentir suas forças fraquejarem e seus músculos cederam. O peso que suportava era tão descomunal que seus três vermes internos explodiram, fazendo-o sangrar pelos sete orifícios.
Assim que conseguiu se livrar do Peregrino, Chifre de Prata montou em um vento furioso e logo alcançou o monge Tang. Esticou ao máximo os braços para derrubá-lo do cavalo, mas foi impedido pelo Monge Sha, que lançou ao chão a bagagem e brandiu, ameaçador, seu cajado domador de feras. O monstro percebeu que era hora de lutar para valer e rapidamente desembainhou sua Espada das Sete Estrelas. O combate que se seguiu foi verdadeiramente formidável. As duas armas eram tão extraordinárias que emanavam raios de luz mortal. Não era por acaso que um dos combatentes parecia um deus da morte, e o outro já havia ocupado o cargo de Marechal Que Levanta a Cortina.
O monstro lutava com todas as forças para capturar o monge Tang, enquanto o discípulo, determinado a proteger seu mestre, dava tudo de si para afastar a ameaça. Os dois se entregaram com tamanha paixão à batalha que o som de seus golpes foi ouvido no próprio Palácio Celeste, e o pó que levantavam chegava às estrelas mais distantes. A luta se estendeu até que o sol começou a adquirir uma coloração avermelhada e, aos poucos, foi perdendo seu brilho. A essa altura, os dois guerreiros já haviam cruzado forças oito ou nove vezes. Infelizmente, a sorte não estava do lado do Monge Sha, e todos os seus esforços foram em vão para evitar a derrota.
O monstro era extremamente feroz. Os golpes de sua espada caíam com precisão incansável, como uma chuva de meteoros, desgastando o Monge Sha pouco a pouco até que ele não conseguiu mais resistir. Percebendo que tudo estava perdido, tentou fugir, mas foi imediatamente capturado por uma enorme mão que o prendeu sob o braço esquerdo do monstro.
Com todos os obstáculos eliminados, Chifre de Prata agarrou o monge Tang com a mão direita, pegou a bagagem com a ponta dos pés e mordeu as crinas do cavalo. Recitou então um feitiço e os levou para a Caverna da Flor de Lótus montado em um vento furioso.
Ao chegar na caverna, ergueu a voz e anunciou sua presença:
— Acabo de capturar todos os monges!
— Traga-os aqui, para que eu possa vê-los — disse, satisfeito, Chifre de Ouro.
— São esses? — perguntou depois, um tanto decepcionado. — Lamento desapontá-lo, mas você capturou os monges errados.
— Como assim, errados? — protestou Chifre de Prata . — Não é aquele o monge Tang?
— Claro que é — admitiu Chifre de Ouro. — Mas você deveria ter capturado também o Peregrino Sun. Não podemos nos banquetear com a carne do monge Tang enquanto ele estiver à solta. Não percebe? Aquele macaco possui poderes mágicos extraordinários e é um mestre em transformações. O que acha que ele fará se devorarmos seu mestre e matarmos seus irmãos? Ele virá atrás de nós, e nunca mais teremos paz.
— Só você para elogiar as virtudes dos outros com tanto entusiasmo — zombou Chifre de Prata, soltando uma gargalhada. — Pelo que acaba de dizer, parece que não há outro macaco como ele em todo o universo. Mas eu te garanto, os poderes dele não são tão grandes, nem sua força é tão invencível assim.
— Está querendo dizer que você também o capturou? — perguntou Chifre de Ouro, incrédulo.
— Exatamente — confirmou Chifre de Prata. — Esse Peregrino está agora sob três montanhas altíssimas que eu mesmo joguei sobre ele. São tão pesadas que ele mal consegue se mover. Como você acha que eu teria trazido até aqui o monge Tang, o Monge Sha e o cavalo com toda a bagagem?
— Que sorte incrível! — exclamou Chifre de Ouro, visivelmente satisfeito. — Se o que diz é verdade, então nada nos impede de saborear o monge Tang imediatamente.
Em seguida, virou-se para um grupo de pequenos demônios e ordenou:
— Tragam um pouco de vinho e ofereçam ao nosso querido amigo como sinal de reconhecimento.
— É melhor não bebermos ainda — sugeriu Chifre de Prata. — Antes, precisamos tirar Zhu Bajie da água e deixá-lo secando.
Pouco tempo depois, Zhu Bajie estava pendurado na parte leste da caverna, enquanto o Monge Sha ocupava a parte oeste, e o monge Tang pendia lastimosamente do centro. Já o cavalo branco foi levado ao estábulo, onde recebeu imediatamente uma generosa porção de feno.
— Jamais imaginei que fosse tão habilidoso! — disse Chifre de Ouro, sorrindo para Chifre de Prata. — Em apenas duas saídas, você capturou nada menos que três monges. Apesar de o Peregrino Sun estar soterrado sob o peso dessas montanhas, acho que seria conveniente trazê-lo até aqui e deixá-lo secando com os outros.
— Se é isso que quer — concluiu Chifre de Prata, satisfeito —, não há necessidade de sairmos desta caverna. Sente-se e mande um par de demônios colocá-lo em dois dos preciosos objetos que guardamos em nosso tesouro.
— A quais você se refere? — perguntou Chifre de Ouro.
— À minha Cabaça de Ouro (4) e ao seu Jarro de Jade (4) — respondeu Chifre de Prata.
Chifre de Ouro então trouxe esses preciosos tesouros e perguntou novamente:
— Quem devemos enviar?
— Ao Demônio Sorrateiro e ao Verme Astuto — respondeu Chifre de Prata.
Ambos foram chamados à presença dos monstros e receberam a seguinte ordem:
— Levem estes tesouros e escalem o pico mais alto das três montanhas. Quando estiverem no topo, virem os recipientes de cabeça para baixo e gritem com toda a força o nome do Peregrino. Se ele responder, será imediatamente sugado, e vocês só precisarão tampar o recipiente com esta tira de papel, onde está escrito: “Que Lao-Tzu cumpra rapidamente esta ordem (5)”. Em menos de uma hora e quinze minutos, o Peregrino Sun estará reduzido a uma pasta muito parecida com pus.
Os dois demônios inclinaram respeitosamente a cabeça e partiram para cumprir a missão que lhes foi dada.
Enquanto isso, o Grande Sábio mal conseguia respirar, esmagado pelo peso daquelas montanhas altíssimas. Mas a angústia não o impediu de lembrar-se de Sanzang, e ele exclamou com profunda tristeza:
— Você se lembra, mestre, de quando foi à Montanha das Duas Fronteiras e levantou a tabuleta que me mantinha aprisionado? Graças a esse gesto tão altruísta, consegui escapar do terrível castigo que estava sofrendo e pude abraçar a pobreza total. A Bodhisattva me entregou, então, um decreto dharma, pelo qual você e eu jamais nos separaríamos e juntos nos dedicaríamos à busca da perfeição. Dessa forma, nossa iluminação e conhecimento da Verdade seriam praticamente idênticos, e cada vez mais nos pareceríamos. Como eu poderia suspeitar na época que acabaria sendo aprisionado novamente sob a imensidão dessas montanhas? Que má sorte a nossa, de nos depararmos com monstros tão poderosos! Por não ter prestado atenção aos avisos do Sentinela, tanto você quanto Bajie, o Monge Sha e o pequeno dragão, que não hesitou em se transformar em cavalo para tornar sua viagem mais confortável, acabarão morrendo de uma forma indigna da sua virtude. Com razão se diz: “As árvores atraem o vento e este as embala com incrível suavidade. Mas, embora a fama de um homem sempre o preceda, tarde ou cedo acaba por destruí-lo.”
Ao terminar de falar, lágrimas escorriam por suas bochechas como torrentes descontroladas. Mas seus lamentos tocaram profundamente o deus da montanha e o espírito local, que não tinham a menor ideia da identidade de quem os proferia. Os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais e o Guardião da Cabeça de Ouro vieram revelar sua identidade.
— De quem são essas montanhas? — perguntou o Guardião da Cabeça de Ouro..
— Nossas — respondeu o espírito local.
— Vocês sabem o nome de quem está aprisionado nelas? — insistiu o Guardião.
— Não, não sabemos — respondeu novamente o espírito local.
— Então vocês não sabem?! — exclamou o Guardião. — Pois não é outro senão o Grande Sábio, Sósia do Céu, o Peregrino Sun Wukong, que, há cerca de quinhentos anos, mergulhou o Céu em um caos indescritível. Após cumprir sua punição, ele abraçou o verdadeiro caminho e se tornou discípulo do monge Tang. Como vocês tiveram a audácia de emprestar suas montanhas a um monstro para aprisioná-lo novamente? Preparem-se. Vocês acham que ele não vai exigir contas de vocês se algum dia conseguir sair desse cárcere? O mínimo que pode acontecer a você, espírito local, é ser enviado como criado a uma hospedaria qualquer, e a você, deus da montanha, ser convocado, onde lhe serão atribuídas as tarefas mais pesadas e perigosas.
— Não sabíamos que se tratava dele! — exclamaram em uníssono o deus da montanha e o espírito local, bastante alterados. — Ouvimos o monstro recitar o feitiço para transportar montanhas e simplesmente fizemos o que nos foi ordenado. Como poderíamos suspeitar que se tratava do Grande Sábio Sun?
— Nesse caso — tentou acalmá-los o Guardião —, não temam. A lei estabelece que “não pode ser condenado quem desconhece a existência de uma norma”. Acredito que o melhor será analisarmos a situação com calma e tentarmos encontrar uma forma de libertá-lo. Assim, quem sabe, conseguiremos evitar que ele nos ataque.
— Mas isso é ridículo! — protestou o espírito local. — Como ele poderia nos agredir após ser libertado?
— Vocês não têm ideia de seu caráter — explicou o Guardião. — Ele é extremamente colérico e, para piorar, possui um bastão com extremidades em ouro que ninguém jamais conseguiu vencer. Um golpe resulta em morte certa, e um simples toque provoca feridas praticamente incuráveis. Para ele, nem a pele, nem os tendões, nem os músculos são obstáculos; ao tocar, eles se tornam apenas trapos.
Cada vez mais inquietos, o deus da montanha e o espírito local decidiram discutir toda a situação com os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais. Eles se dirigiram até onde estavam as três montanhas e, elevando a voz, disseram:
— Somos o deus da montanha, o espírito local e os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais, e viemos falar com você, Grande Sábio.
Embora momentos antes o Peregrino pudesse parecer um simples tigre derrotado, ele rapidamente recuperou sua postura e respondeu com voz firme:
— O que vocês querem de mim?
— Permita-me explicar da melhor maneira, Grande Sábio — respondeu o espírito local. — Desejamos solicitar sua permissão para levantar as montanhas que o mantêm aprisionado, assim você poderá recuperar a liberdade. Esperamos que, ao fazê-lo, você seja benevolente conosco por não termos reconhecido sua identidade e por termos seguido as instruções do monstro que o capturou.
— Se devolverem estas montanhas ao seu lugar — prometeu o Peregrino, solenemente —, tenham a certeza de que não lhes farei nenhum mal.
Uma promessa como essa soava como um anúncio de perdão oficial. Mais tranquilos, os dois deuses começaram a recitar uma série de feitiços, e as montanhas retornaram instantaneamente às suas antigas posições. Assim que se sentiu livre, o Peregrino saltou, sacudiu a poeira cuidadosamente e ajustou sua túnica. Em seguida, tirou o bastão que tinha atrás da orelha e, dirigindo-se ao deus da montanha e ao espírito local, disse:
— Mostrem-me imediatamente as suas nádegas, pois vou dar-lhes dois golpes, para que, de alguma forma, eu possa descontar o sofrimento pelo que acabei de passar.
— Mas você acabou de nos prometer que não iria nos punir! — protestaram os dois deuses. — Como pode mudar de ideia tão rapidamente? Por que essa obsessão em nos castigar?
— A questão é que vocês têm mais medo dos monstros do que de mim — respondeu o Peregrino.
— Não podemos negar que sentimos um grande respeito por eles — confirmou o espírito local. — Esses monstros possuem poderes mágicos extraordinários, aos quais somos incapazes de enfrentar. Utilizando feitiços e encantamentos, eles nos fazem ir até suas cavernas, onde somos obrigados a prestar serviços inusitados.
Ao ouvir isso, o Peregrino pareceu profundamente perturbado. Levantou a cabeça para o alto e exclamou com uma voz poderosa:
— Após a separação do caos e a criação do Céu e da Terra, vi a luz na Montanha das Flores e Frutos. A partir desse momento, busquei com afinco em todo o mundo alguém que me ensinasse as fórmulas secretas da imortalidade. Minha sorte me levou a encontrar um mestre que não guardava o menor segredo sobre a longevidade, e com ele aprendi a me tornar vento, domar tigres e dominar dragões. Meus conhecimentos eram tão vastos que cheguei a mergulhar o Palácio Celestial em grande confusão, arrogando-me, inclusive, o título de Grande Sábio. Mas, apesar de todas essas loucuras, nunca me permiti a insolência de dar ordens a um espírito local ou a um deus da montanha. Quão desprezíveis são, de fato, esses monstros! Como podem ser tão arrogantes a ponto de forçar esses dignos espíritos a se tornarem seus escravos? Como é possível, santo céu, que, tendo-me dado a vida, tenham feito o mesmo com criaturas tão desprezíveis como essas?
Enquanto se queixava, Wukong levantou os olhos e avistou ao longe raios de luz intensa, que provinham de um dos pequenos vales que se abriam na montanha. Voltou-se então para o deus e o espírito locais e perguntou:
— Que tipo de objetos emitem essa luz tão poderosa? Vocês devem saber, já que, segundo a própria confissão de vocês, estiveram naquela caverna inúmeras vezes.
— Com certeza, devem ser os tesouros mais valiosos dos monstros — respondeu o espírito local. — Imagino que eles os tenham confiado a seus demônios mais valentes, para que venham dominá-lo.
— Que interessante! — exclamou o Peregrino. — Vocês podem me dizer com que tipo de pessoas esses monstros se reúnem em sua caverna?
— Com os taoístas da Seita da Verdade Absoluta — respondeu o espírito local. — Eles têm um carinho especial por eles, pois o que mais gostam de fazer essas bestas é refinar elixires e preparar poções à base de ervas.
— Agora entendo por que um deles se disfarçou de taoísta para conquistar a confiança do meu mestre — disse o Peregrino. — Muito bem, deixaremos o seu castigo para outra ocasião. Agora, se desejarem, podem ir embora. Acho que chegou a hora de dar a esses desgraçados o que merecem.
Visivelmente aliviados, os deuses elevaram-se pelo ar e desapareceram. O Grande Sábio, por sua vez, sacudiu levemente o corpo e se transformou em um velho buscador do caminho da Verdade. Usava dois coques desleixados na cabeça e vestia uma túnica de monge. Nas mãos, portava uma carraca de bambu em forma de peixe (6) e trazia na cintura uma faixa no estilo do mestre Lü (7). Rapidamente, escondeu-se em um recanto do caminho e aguardou ansiosamente a chegada dos monstros, que não tardaram a entrar em seu campo de visão. Quando eles se aproximaram, ele esticou o bastão com as extremidades de ouro, e um dos demônios tropeçou, caindo dolorosamente ao chão.
Ao se levantar, viu o Peregrino e exclamou, furioso:
— Maldito abusado! Tenha certeza de que, se nossos dois grandes senhores não fossem tão aficionados à sua arte, eu o faria em pedaços agora mesmo.
— Por que tanta preocupação? — replicou o Peregrino. — Nem somos inimigos! Olhando bem, nós taoístas formamos uma família.
— Pode saber por que você se jogou no chão e me deu uma rasteira? — perguntou o demônio, irritado.
— Por uma razão muito simples — respondeu o Peregrino. — Quando um taoísta jovem como você encontra outro tão velho quanto eu, deve imediatamente prestar seus respeitos. Digamos, portanto, que sua queda foi uma espécie de saudação obrigatória, um presente de boas-vindas.
— Nossos senhores exigem apenas algumas onças de ouro — comentou, surpreso, o demônio. — Não me diga que, de onde você vem, as quedas são mais valorizadas do que o ouro. Se for assim, seus costumes são bem estranhos. Você é daqui por perto?
— Em parte sim, e em parte não — respondeu o Peregrino. — Na verdade, sou das montanhas de Penglai.
— Mas Penglai é uma ilha que se encontra no Reino dos Imortais — exclamou o demônio.
— Exatamente — confirmou o Peregrino. — Se eu não sou um imortal, diga-me você quem é.
O demônio imediatamente transformou sua raiva em docilidade e, aproximando-se dele, disse em tom bajulador:
— Peço desculpas, imortal, por não tê-lo reconhecido. Deve entender que meus olhos são de carne e só veem o que está à sua frente. Se o ofendi com minhas palavras impensadas, peço que me perdoe.
— Não se culpe pelo que aconteceu — tentou tranquilizá-lo o Peregrino. — Como bem diz o ditado, “os imortais raramente abandonam sua morada para visitar os mortais”. Por que você haveria de saber que eu venho de Penglai? A razão pela qual vim a esta montanha é porque desejo transmitir a alguém meus conhecimentos e, assim, torná-lo imortal. Quem de vocês está disposto a seguir a luz do Tao?
— Eu, mestre — responderam de uma só vez o Demônio Sorrateiro e o Verme Astuto .
Embora já soubesse a resposta, o Peregrino voltou a perguntar:
— De onde vocês vêm?
— Da Caverna da Flor de Lótus — respondeu um dos demônios.
— Ótimo — insistiu o Peregrino —, mas para onde vocês estão indo?
— Nossos senhores nos enviaram para capturar o Peregrino Sun — respondeu o mesmo demônio.
— Capturar quem? — exclamou o Peregrino com falsa surpresa.
— O Peregrino Sun — repetiu o demônio.
— Você se refere ao monge que acompanha o monge Tang em busca das escrituras? — perguntou mais uma vez o Peregrino.
— Esse mesmo — confirmou o demônio . — Você também o conhece?
— Conhecê-lo? — exclamou o Peregrino. — É um macaco sem nenhum respeito, no qual estou de olho. Acredito que posso ajudá-los a pegá-lo. Digamos que isso servirá como uma espécie de ascese em seu recém-inaugurado caminho rumo à perfeição.
— Não é necessário desperdiçar suas energias com ele — disse o demônio. — Nossos senhores possuem poderes mágicos extraordinários e conseguiram dominar essa criatura, enterrando-a sob três enormes montanhas. Estamos indo agora mesmo libertá-lo com a ajuda de dois itens valiosíssimos.
— De que objetos vocês estão falando? — perguntou o Peregrino.
— Da cabaça vermelha (8) que eu carrego e do jarro de jade que meu companheiro traz — explicou o Demônio Sorrateiro.
— Então vocês vão coloca-lo ai dentro? — voltou a perguntar o Peregrino. — Pode me dizer como vão fazer isso?
— Colocando-o de cabeça para baixo e chamando a besta pelo seu nome — respondeu o demônio. — Assim que ela responder, será absorvido por esses recipientes, cuja boca devemos cobrir com um pedaço de papel onde se lê: "Que Lao-Tzu cumpra rapidamente esta ordem". Em menos de uma hora e quinze minutos, ficará reduzido a uma pasta muito parecida com pus.
— Isso é realmente extraordinário! — exclamou para si o Peregrino, um tanto alarmado. — Estes devem ser dois dos cinco tesouros de que me falou o Sentinela do Dia. Como seriam os outros três?
Levantou depois a voz e acrescentou, dirigindo-se aos demônios: — Podem me permitir dar uma olhada nesses objetos tão maravilhosos?
Sem pensar no que faziam, os dois demônios enfiaram as mãos pelas mangas e tiraram, orgulhosos, o que lhes foi pedido. O Peregrino pegou cuidadosamente a cabaça e o jarro e disse para sim mesmo, maravilhado:
— Que coisa mais extraordinária! Eu poderia sacudir a cauda uma única vez e partir para sempre daqui com esses dois tesouros. Se alguém me perguntasse de onde os consegui, poderia dizer que os ganhei de presente. Mas não — acrescentou em seguida —, isso não seria correto. Seria privar os outros do que é deles à luz do dia, e isso arruinaria minha boa reputação de pessoa honesta.
Devolvendo, portanto, os tesouros aos demônios, ele disse:
— Guardem-nos com cuidado e não os percam. Seu valor é quase tão incalculável quanto o das maravilhas que trago comigo.
— De quais maravilhas você fala? — perguntou um dos demônios. — Seria muito atrevimento pedir que nos mostrasse?
— Aposto que nos ajudariam a enfrentar qualquer dificuldade — respondeu o outro.
O Peregrino estendeu a mão e arrancou um pelo da cauda. Apertou-o entre dois dedos e gritou:
— Transforme-se! — e, no instante seguinte, tornou-se uma enorme cabaça de ouro, com aproximadamente meio metro de altura.
— Querem dar uma olhada na minha cabaça? — perguntou a seguir, visivelmente satisfeito.
O Verme Astuto a examinou com cuidado e comentou, respeitoso:
— Sua cabaça possui um tamanho excepcional e uma forma tão perfeita que os olhos não se cansam de admirá-la. No entanto, duvido que tenha alguma utilidade.
— O que você quer dizer com isso? — exclamou o Peregrino.
— Que nossos tesouros, embora sejam muito menores, podem conter em seu interior mais de mil pessoas — respondeu o demônio.
— Isso não é tão extraordinário — comentou o Peregrino. — Minha cabaça, por exemplo, pode absorver todo o Céu.
— É mesmo? — perguntou o demônio.
— Isso mesmo! — confirmou o Peregrino.
— Você só pode estar mentindo — provocou o diabinho. — O Céu é enorme! Se quer que acreditemos, mostre-nos como faz isso.
— Isso é incrível! — exclamou Verme Astuto. — Uma cabaça que pode conter dentro de si todo o Céu! Vamos trocá-la por nossos tesouros.
— Duvido que queira fazê-lo — comentou o Demônio Sorrateiro. — Afinal de contas, eles só podem conter pessoas.
— Pode ser, mas meu jarro de jade é muito bonito — insistiu Verme Astuto. — Talvez ele prefira o belo ao prático. Por que não tentamos?
— O normal seria trocar uma cabaça por outra, mas eles estão insistindo em incluir também o jarro de jade — pensou o Peregrino, satisfeito. — Não é uma má ideia trocar duas coisas por uma! Isso é o que chamamos de um negócio justo.
Aproximando-se do Verme Astuto, ele agarrou o braço do demônio e perguntou:
— Estaria disposto a trocar seu tesouro pela minha cabaça, se eu colocar o Céu dentro dela agora mesmo?
— Claro que sim — respondeu o demônio. — Mas aviso que, se você falhar na tentativa, nos divertiremos à sua custa.
— Combinado! — concluiu o Peregrino. — Se eu me mostrar incapaz de fazer o que digo, vocês podem rir de mim à vontade.
O Grande Sábio inclinou respeitosamente a cabeça e, após fazer um sinal mágico e recitar o respectivo encantamento, fez aparecer diante de si o Deus que Patrulha o Dia, o Deus que Patrulha a Noite e os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais, a quem ordenou:
— Informem imediatamente ao Imperador de Jade que aceitei o caminho da Verdade, comprometendo-me a levar o monge Tang ao Paraíso Ocidental, onde ele pretende conseguir os escritos de Buda. Infelizmente, nos deparamos com uma montanha altíssima e uns monstros muito poderosos, que estão determinados a não nos deixar seguir em frente. Sua força se baseia em tesouros verdadeiramente extraordinários, que desejam trocar por uma cabaça sem valor que eu possuo. Para enganá-los, preciso da ajuda de Sua Majestade. Suplico, em meu nome e com o devido respeito, que me empreste os Céus durante meia hora, para que eu possa levar a cabo os planos que tracei. Informem-no, de qualquer forma, que caso se recuse a meu pedido, subirei imediatamente ao Salão da Névoa Divina e iniciarei uma nova guerra.
Após cruzar o Portão Sul do Céu, os deuses correram para informar ao Imperador de Jade, que exclamou, visivelmente ofendido:
— Que macaco mais convencido! Parece que sua forma de falar não mudou nada em todo esse tempo. Quando Guanyin veio me dizer que o havia libertado para acompanhar o monge Tang, não só não me opus à sua libertação, como ainda atribuí aos Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais e aos Quatro Sentinelas a tarefa de se revezarem para lhe dar toda a proteção necessária. Agora, no entanto, ele exige que eu lhe empreste o Céu para que ele o coloque sei lá onde. Como pode existir algo que contenha o próprio Céu?
Não havia terminado de falar quando o Príncipe Nezha deu um passo à frente e afirmou:
— Isso não é tão difícil quanto vocês pensam, majestade.
— Quer explicar-se um pouco melhor? — convidou o Imperador de Jade.
— Ao se dividir o caos original — começou o Príncipe —, o que era luminoso e puro constituiu o Céu, enquanto o que era escuro e carregado de impurezas deu origem à Terra. Isso explica por que o Céu é uma massa redonda de éter transparente, sobre a qual se sustentam o Palácio de Jade e as Muralhas Celestiais. No princípio, o Céu não pode ser contido por nada. No entanto, o fato de que o Peregrino Sun tenha decidido acompanhar o monge Tang em sua longa jornada para o Oeste em busca das escrituras sagradas é uma fonte de bênçãos tão alta quanto o próprio Monte Tai e tão profunda quanto os mares. Por isso, creio que devemos fazer o que estiver ao nosso alcance para ajudá-lo a alcançar tal objetivo.
— Mas, como você mesmo reconheceu, o que ele pede é impossível de alcançar — replicou o Imperador de Jade. — Que ajuda podemos oferecer?
— Muito simples, majestade — respondeu novamente o Príncipe Nezha. — Peça a Shenwu, Senhor do Portão Norte, que lhe empreste seu estandarte de penas negras. Você o estenderá ao longo do Portão Sul, cobrindo assim o sol, a lua e as estrelas, e uma escuridão tão total se espalhará pelo mundo que ninguém poderá ver quem está diante de si. Isso fará com que os demônios acreditem que o Céu foi realmente preso na cabaça do Peregrino Sun, e sua missão receberá um grande apoio da sua parte.
O Imperador de Jade concordou com tão inteligente plano e encarregou o príncipe de ir imediatamente ao Portão Norte para se encontrar com Shenwu. Ao saber do que se tratava, ele prontamente se dispôs a entregar seu estandarte de penas.
O Deus que Patrulha o Dia voltou apressadamente ao lado do Grande Sábio e sussurrou em seu ouvido:
— O Príncipe Nezha saiu em apoio ao seu plano, e o Imperador de Jade deu sua aprovação.
O Peregrino levantou os olhos para o alto e viu se aproximar uma nuvem extremamente luminosa. Isso o convenceu de que se tratava de um deus. Certo do sucesso de seu plano, voltou-se para os demônios e disse:
— Tudo bem, vou colocar o Céu na minha cabaça.
— Vá em frente — apressou-se um deles. — Mas podemos saber por que você se prostra assim?
— Estava simplesmente recitando um feitiço — respondeu o Peregrino.
Os demônios permaneceram parados, com os olhos bem abertos, determinados a descobrir como o velho taoísta conseguiria colocar o Céu em um espaço tão reduzido. O Peregrino sacudiu a cabaça com força e a lançou para o alto.
Como na verdade não passava de um simples cabelo, o vento a levou de um lado para o outro por mais de meia hora. Enquanto isso, o Príncipe Nezha chegou no Portão Sul com o valioso estandarte, o desenrolou completamente e, instantaneamente, o sol, a lua e todos os planetas ficaram cobertos. O cosmos parecia ter se tingido de tinta, e o mundo foi mergulhado em uma atmosfera azul-escura. Os monstros exclamaram, surpresos:
— Como é que já é hora do crepúsculo, se há pouco era meio-dia?
— Como se atrevem a falar sobre horas? — recriminou o Peregrino. — O tempo deixou de existir. Não entendem que o Céu está dentro da minha cabaça?
— Sim, mas por que está tão escuro? — gritaram, aterrorizados.
— Muito simples — respondeu o Peregrino. — Porque o sol, a lua e as estrelas estão dentro do meu tesouro. É normal que a escuridão tenha se apoderado do mundo, não acham? Não resta luz por aqui.
— Onde você está, mestre? — perguntou, apavorado, um dos demônios.
— Como assim, onde estou? — repetiu o Peregrino. — Estou bem diante de você, é claro.
O demônio esticou as mãos o máximo que pôde, mas não conseguiu tocá-lo. Isso fez com que seu medo aumentasse ainda mais e ele disse, prestes a perder a razão de tanto pavor:
— Pode me dizer onde estamos, mestre? Posso ouvir sua voz, mas não consigo ver seu rosto.
— Não se movam — gritou então o Peregrino, disposto a rir um pouco deles. — Estamos exatamente no golfo de Zhili. Sua costa é tão abrupta que, se derem um passo em falso, vocês levarão sete ou oito dias para alcançar o fundo do penhasco que se abre aos seus pés.
— Pare, por favor! — suplicaram em coro os dois demônios. — Sabemos que sua cabaça é capaz de conter todo o Céu. Por que não o liberta? É perigosíssimo andar por aí sem saber onde se pisa. Se não tomarmos cuidado, podemos cair no mar e nunca mais conseguir sair dele.
Quando o Peregrino se convenceu de que os dois demônios haviam levado sua brincadeira a sério, voltou a recitar o feitiço. O Príncipe enrolou o estandarte e, instantaneamente, a luz do sol voltou a brilhar no Céu.
— Fantástico! Realmente fantástico! — exclamaram os demônios, rindo nervosamente. — Se não trocássemos essa cabaça pelos tesouros que temos, seríamos uns verdadeiros tolos.
O Demônio Sorrateiro e o Verme Astuto então retiraram a cabaça de ouro e o jarro de jade, entregando-os de bom grado ao Peregrino. Este, por sua vez, colocou em sua mão a enorme cabaça que podia conter todo o Céu em seu interior. Uma vez realizado o acordo, o Peregrino quis se certificar de que os demônios não se arrependeriam. Arrancou um pelo de sua barriga, soprou sobre ele e, instantaneamente, ele se transformou em uma moeda de cobre, que entregou a um deles, dizendo:
— Vá comprar um pouco de papel, por favor.
— Pode saber para que quer isso? — perguntou o demônio.
— Para redigir um contrato — respondeu o Peregrino. — Afinal, vocês têm dois tesouros, enquanto a minha cabaça é apenas uma. Não quero que, com o passar do tempo, vocês cheguem a pensar que isso não é justo e me exijam que devolva um deles. Por isso, agora quero que assine um contrato para evitar problemas futuros.
— Como vamos redigir um documento, se nem mesmo temos tinta ou pincel à mão? — protestou um dos demônios. — Em um lugar como este, é impossível escrever algo. Por que não fazemos um juramento?
— Que tipo de juramento? — perguntou o Peregrino.
— Que, se algum dia exigirmos que você nos devolva um de nossos tesouros, sejamos acometidos por uma doença da qual nunca possamos nos recuperar.
— Embora eu nunca vá quebrar minha palavra — disse o Peregrino —, se eu o fizer, que tenha a mesma sorte que vocês.
Após concluírem o juramento, o Grande Sábio sacudiu a cauda e seguiu para o Portão Sul do Céu, onde agradeceu ao Príncipe Nezha pela ajuda, enrolando e desenrolando o estandarte de penas. Satisfeito, o príncipe correu para informar o Imperador de Jade sobre tudo o que havia acontecido, devolvendo pouco depois a Shenwu seu precioso tesouro.
Suspenso no ar, o Peregrino observava atentamente os demônios. O que aconteceu a seguir, não sabemos. Quem quiser descobrir terá que prestar atenção às explicações no próximo capítulo.
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Notas do Capítulo XXXIII
- "O Taoísta do Búfalo Verde" refere-se a um tal Feng Junda que, segundo "As Vidas dos Santos Imortais", alcançou a imortalidade graças ao mercúrio e sempre montava em um animal dessa cor. Algumas versões da Jornada ao Oeste o chamam de Taoísta do Búfalo Azul. Infelizmente não consegui encontrar mais informações a respeito;
- Trata-se de um clássico taoísta que discorre sobre os diferentes modos de alcançar a imortalidade;
- O Monte O-Mei é uma das montanhas sagradas da província de Sichuan;
- Em chinês, respectivamente 红葫芦, hong hulu; "Cabaça de Ouro"; e 玉净瓶, yu jingping, "Jarro de Jade";
- Com essas palavras, encerravam-se os feitiços e demais fórmulas taoístas destinadas a obter a cura de um enfermo ou a libertação de um espírito;
- Os monges costumavam usar uma espécie de chocalho de bambu em forma de peixe para acompanhar a recitação de suas liturgias e outros textos sagrados;
- O mestre Lü é, na verdade, Lu Dongbin, um dos Oito Imortais, a quem o taoísmo popular venera como patriarca;
- Os chineses, e os orientais em geral, valorizam mais o ouro com uma coloração avermelhada do que aquele de tonalidade amarelada. Para eles, o ouro ocidental, muito mais claro, é visto como uma pura trivialidade.
- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
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