2 de setembro de 2024

A Jornada ao Oeste: Capítulo XXIV

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO XXIV:


O GRANDE IMORTAL RECEBE SEU VELHO AMIGO NA MONTANHA DA LONGEVIDADE. O PEREGRINO ROUBA O FRUTO DO GINSENG (1) DO TEMPLO WUZHUANG


Os três monges não demoraram a encontrar Zhu Bajie amarrado a uma árvore. Ele não parava de gritar, como se estivesse sofrendo uma dor insuportável. O Peregrino se aproximou dele e exclamou, soltando uma gargalhada:

— Meu querido genro! Já está ficando um pouco tarde, e você ainda não se levantou para agradecer à sua sogra ou vir contar as boas notícias ao seu mestre. Por que ainda está brincando por aqui? Onde está sua sogra? Onde está sua esposa? Você é um belo genro, todo amarrado e bem espancado!

Bajie se sentia tão envergonhado que apertou os dentes com força para não deixar escapar mais nenhum lamento. O Monge Sha, por sua vez, não conseguiu resistir ao vê-lo daquela maneira e, deixando a bagagem no chão, correu para desamarrá-lo. Assim que percebeu que estava livre, Bajie se jogou com o rosto no chão e começou a bater freneticamente a testa contra o solo. A vergonha corroía sua alma. Sobre isso temos um poema "tsu", acompanhado pela melodia de '"Lua Sobre o Rio Oeste", e que diz:

"A paixão carnal é uma arma perigosa. Quem vive inteiramente dedicado a ela acaba preso em seu aço. As donzelas, apesar de sua tenra idade, são mais perigosas que um yaksa."
Mais adiante se afirma:
"Dispomos apenas de uma quantia importante e ninguém pode adicionar mais ganhos à sua bolsa. É preciso guardar com cuidado um capital tão precioso e nunca desperdiçá-lo."
Bajie pegou um pouco de terra, espalhou como se fosse incenso e depois se inclinou diante do céu.

— Como você não reconheceu os bodhisattvas? perguntou o Peregrino.

Eu estava em um estupor, prestes a desmaiar — respondeu Bajie. — Como poderia reconhecer alguém?

O Peregrino entregou a ele o pedaço de papel, e quando viu a mensagem divina, Bajie ficou mais envergonhado do que nunca.

— Não se pode reclamar da sua sorte — disse o Monge Sha para animá-lo. — Você é tão sedutor que nada menos que quatro bodhisattvas queriam se casar com você.

— Por favor, não fale mais disso — suplicou Bajie. — Daqui em diante prometo não voltar a tocar nesses assuntos. Carregarei a bagagem do mestre sem reclamar, mesmo que o peso me quebre a espinha antes de chegarmos ao Oeste.

— Fico feliz em ouvir você falar com essa sensatez — afirmou Sanzang.

O Peregrino puxou as rédeas e conduziu o mestre ao caminho principal. Após várias horas de viagem, encontraram uma montanha extremamente alta. Sanzang ficou tão impressionado ao vê-la que imediatamente puxou as rédeas e disse:

— A partir de agora, devemos andar com muito cuidado, pois é muito provável que atrás desses penhascos se escondam monstros determinados a nos arruinar.

— Do que você têm medo? — repreendeu o Peregrino. — Seus três discípulos estão dispostos a sacrificar suas vidas para protegê-lo.

Essas palavras acalmaram um pouco a ansiedade do monge Tang, que pôde se entregar à contemplação da beleza da montanha à sua frente. A rugosidade de suas encostas era impressionante. Não é à toa que ela possuía as mesmas raízes da cordilheira Kunlun e seu  cume alcança o céu. Garças brancas frequentemente pousavam em seus zimbros, enquanto macacos de pelagem escura balançavam tranquilamente em suas trepadeiras. Quando o sol iluminava as florestas impenetráveis que a cobriam, via-se erguer sobre elas espirais de névoa avermelhada. Às vezes era o vento, ao soprar encurralado pelos penhascos, que arrancava das profundezas pedaços de nuvens rosadas. Pássaros estranhos cantavam à vontade entre o verde dos bambus, enquanto os faisões se perseguiam com alvoroço indescritível entre os canteiros de flores silvestres. Da posição em que o mestre se encontrava, era possível ver as silhuetas impactantes do Pico dos Mil Anos, do Pico das Cinco Bênçãos (3), do Pico do Hibisco, da Pedra Sem Idade, da Pedra dos Dentes de Tigre e da Pedra dos Três Céus, de onde ventos auspiciosos sopravam incessantemente. Abaixo dos penhascos, podia-se perceber a fragilidade da grama nova, o perfume das ameixeiras, a pálida pureza das orquídeas e os espinhos pontiagudos das rosas silvestres. No coração da floresta, a fênix reunia milhares de aves, enquanto na escuridão de uma caverna imensa o unicórnio fazia o mesmo com os monstros e bestas. O riacho, com seu curso irregular, parecia voltar a cabeça para o lugar de onde vinha. As cumeadas formavam uma espécie de anfiteatro que se repetia constantemente além do que a vista alcançava. Por toda parte, a vegetação era exuberante. Frondosos eram, de fato, os Huai (4), os bambus, os pinheiros, as pereiras esbranquiçadas, os pessegueiros avermelhados e os salgueiros esverdeados. Todos pareciam competir entre si com suas tonalidades de primavera tripla. Ao longe, ouviam-se o canto dos dragões, o rugido dos tigres, os gritos das garças, os gritos dos macacos, os berros dos cervos ao se deslocarem entre os canteiros de flores, e os cantos das fênixes ao olhar diretamente para o sol. Sem dúvida, aquela era uma montanha sagrada, uma terra de bênçãos, um lugar escolhido, reflexo de Penglai. Para onde quer que se dirigisse o olhar, viam-se plantas em flor e bandos de nuvens subindo pacientemente as cumeadas. 

Impressionado com tanta beleza, Sanzang disse a seus discípulos:

— Muitas foram as regiões por onde passei desde que iniciei minha viagem para o Oeste. Mas posso lhes assegurar que nenhuma delas possuía uma beleza tão extraordinária quanto a que estamos contemplando agora. Isso me faz supor que não estamos longe do Templo do Trovão, e, nesse caso, deveríamos nos preparar para encontrar o Ser Mais Honorado do Mundo.

— Ainda é muito cedo para isso — afirmou o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Ainda temos um longo caminho pela frente.

— A que distância, exatamente, está o Templo do Trovão daqui? — perguntou o Monge Sha.

— A oito mil milhas, das quais não cobrimos nem mesmo a décima parte — respondeu o Peregrino.

— Se o que você diz é verdade, quantos anos você calcula que levaremos para chegar ao fim da nossa jornada? — perguntou Bajie.

— Se falássemos de vocês dois — respondeu o Peregrino —, não demorariam mais de dez dias. Eu mesmo faria cinquenta viagens de ida e volta em um único dia e ainda haveria luz do sol. Mas, levando o mestre conosco, é difícil calcular o tempo que levaremos.

— Diga-nos então quando poderemos chegar ao nosso destino — insistiu o monge Tang.

— Repito que não é nada fácil determinar — disse o Peregrino. — A distância é tão grande que vocês muito bem poderiam ter começado a caminhar na juventude e, ao chegar à velhice, ainda estariam em viagem. Talvez fossem necessárias mil reencarnações para alcançar seu objetivo. Mas quando, por sua própria força de vontade, forem capazes de perceber a natureza de Buda em tudo o que existe, e quando cada um de seus pensamentos voltar à sua própria fonte em sua memória, esse será o momento em que vocês chegarão à Montanha do Espírito.

— De qualquer forma — se atreveu a dizer o Monge Sha —, embora esta não seja a região do Templo do Trovão, deve ser a morada de algum homem santo. Caso contrário, não se explicaria tanta beleza.

— Realmente — admitiu o Peregrino. — Nem duendes nem demônios teriam permissão para habitar em um lugar como este. Se não me engano, aqui reside um imortal ou um monge realmente virtuoso. Em todo caso, aproveitemos o quanto pudermos de sua beleza.

Aquela era, de fato, a Montanha da Longevidade. Nela se erguia um templo taoísta, conhecido pelo nome de Wuzhuang, onde habitava um imortal chamado Zhen Yuan Zi (5), embora ele ostentasse o título de Senhor, Sósia da Terra. Nesse templo era cultivado um estranho tesouro: uma raiz espiritual formada logo após o caos ter sido dividido e antes que o Céu e a Terra se separassem. Em todos os quatro grandes continentes do mundo, ela só podia ser encontrada no Templo Wuzhuang, no Continente Ocidental de Aparagodānīya. Esse tesouro precioso havia recebido o nome de planta do cinábrio revertido ou fruto do ginseng. Levou aproximadamente três mil anos para florescer, mais três mil anos para dar fruto e ainda outros três mil anos para amadurecer. Passaram-se, ao todo, dez mil anos antes que alguém pudesse prová-lo, e mesmo após tanto tempo, haviam apenas trinta desses frutos.A forma do fruto era exatamente a de um recém-nascido com menos de três dias de vida, completo com os quatro membros e os cinco sentidos. Apenas ao cheirá-lo, um homem poderia viver mais de trezentos e sessenta anos, e quem tivesse a sorte de comê-lo alcançaria a idade exata de quarenta e sete mil anos.

Justamente naquele dia, o imortal Zhen Yuan Zi havia recebido uma carta do Mestre Divino da Origem Celestial (6), na qual ele o convidava para assistir a uma palestra no Palácio Miluo, localizado no Paraíso da Pureza, cujo tema da dissertação era "O Fruto Taoísta da Origem Caótica". Ao longo de sua vida, o Grande Imortal havia ensinado incontáveis discípulos a alcançar o mistério da imortalidade, embora, para ser sincero, apenas quarenta e oito deles foram capazes de alcançar a perfeita iluminação do Tao. Naquele dia, ele ascendeu às Regiões Superiores para ouvir a palestra, acompanhado por quarenta e seis discípulos, deixando para trás dois dos mais jovens para cuidarem do templo. Um deles se chamava Brisa Límpida e o outro, Lua Brilhante. Brisa Límpida tinha apenas mil duzentos e vinte anos, enquanto Lua Brilhante acabava de completar mil e duzentos. 

Antes de partir, Zhen Yuan Zi convocou os dois jovens e disse:

— Não posso recusar o convite do Primeiro dos Seres Celestiais. Sendo assim, devo assistir à palestra que vai ser realizada no Palácio Miluo. Vocês devem ficar aqui e manter os olhos bem abertos, pois espero a visita de um velho amigo. Não preciso dizer que devem tratá-lo da melhor forma possível. Tanto que lhes dou permissão para arrancarem dois frutos de ginseng e oferecê-los em lembrança de nossa antiga amizade.

— Pode nos dizer quem é esse seu amigo? — perguntou um dos jovens. — Sabendo disso de antemão, poderemos tratá-lo com mais reverência.

— É um monge muito virtuoso, oriundo do Grande Império dos Tang, nas Terras do Leste — explicou o imortal. — Ele se chama Sanzang, e está se dirigindo ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras de Buda.

— Segundo Confúcio — replicou um dos jovens —, "não é aconselhável manter contato com quem segue um caminho diferente do nosso" (7) . Para que nos relacionarmos com um monge budista, quando nós pertencemos ao Mistério da Grande Mônada?

— Pois saibam — respondeu o Grande Imortal — que esse monge não é outro senão a reencarnação da Cigarra Dourada, segundo discípulo de Tathagata, o Ancião Sábio do Oeste. O conheci há aproximadamente quinhentos anos no Festival Ullambana (8). Naquela ocasião, vários seguidores de Buda me prestaram suas homenagens e ele teve a delicadeza de me servir o chá com suas próprias mãos. Desde então, passei a  considerá-lo como um verdadeiro amigo.

Após essa explicação, os dois jovens imortais não se opuseram mais aos desejos de seu mestre, que lhes ressaltou ao partir:

— Não esqueçam que esses frutos estão contados. Podem oferecer-lhe dois, não mais que isso.

— Da última vez que abrimos o jardim — comentou Brisa Límpida —, comemos dois desses frutos, então devem restar cerca de vinte e oito. Fique tranquilo, pois não pegaremos nenhum a mais do que nos foi ordenado.

— Mesmo assim, temo — advertiu-lhes o Grande Imortal — que os discípulos de Sanzang sejam um pouco mal-educados. Seria conveniente, portanto, que eles não soubessem da existência desses frutos.

Depois de repetir suas recomendações, o Grande Imortal subiu às Regiões Superiores, seguido pelo restante de seus discípulos.

Enquanto isso, o monge Tang e seus três discípulos já haviam iniciado a subida da montanha. Ofegantes, levantaram a cabeça e viram um grupo de altas construções que se confundiam com o verde dos bambus e dos pinheiros.

—  Wukong — disse o Monge Tang  , que tipo de lugar você acha que é aquele ali?

— Não é nem um templo taoísta nem um mosteiro budista — respondeu o Peregrino após longa meditação. — Vamos até lá e descobrimos mais.

Não demoraram a chegar ao portão, de onde se via um pequeno morro coberto de pinheiros e um caminho ladeado por bambus frescos e exuberantes. Garças brancas entravam e saíam sem cessar daquele recinto, enquanto famílias inteiras de símios vagavam por toda parte em busca de frutas. Do outro lado do portão havia um lago, sobre o qual árvores centenárias projetavam suas longas sombras. As rochas que delimitavam seu perímetro estavam completamente cobertas de líquens e musgos, como se estivessem empenhados em reduzi-las a pó com seu frágil verdor. Os salões da mansão possuíam um atraente tom púrpura, e suas torres pareciam descer, como a chuva, das neblinas avermelhadas. Não havia dúvida de que aquele era um lugar sagrado. Por toda parte se percebia uma espiritualidade que, de alguma forma, lembrava a caverna de nuvens de Penglai A tranquilidade e o silêncio que reinavam ali eram ideais para o treinamento da mente nos difíceis caminhos do Tao. Às vezes, tinha-se, de fato, a impressão de que estranhos pássaros azulados traziam notícias de Wang Mu e de que as fênixes carregavam em seus bicos rolos escritos pelo próprio Lao-tzu. A riqueza daquela nobre paisagem taoísta era tal que os olhos não se cansavam de percorrê-la repetidamente. Sem dúvida, aquela era uma morada de autênticos imortais.

Ao descer do cavalo, o monge Tang viu à sua esquerda uma enorme laje de pedra, na qual estava gravada a seguinte inscrição: 

"A Terra Sagrada da Montanha da Longevidade. Caverna Celeste do Templo Wuzhuang".

— Então se trata de um templo taoísta! — exclamou Sanzang.

— A julgar pelo lugar onde está localizado — afirmou o Monge Sha —, deve ser habitado por pessoas realmente virtuosas. Por que não entramos para dar uma olhada? Se gostarmos, podemos visitar o local durante nossa viagem de volta, embora, para ser sincero, a beleza de sua paisagem já seja mais do que suficiente.

— Você tem razão — concordou o Peregrino, e eles entraram.

Nos dois lados do segundo portão, eles viram este par de versos de Ano Novo:

"Casa imortal onde a juventude é a única dona e senhora.
Esta mansão tem a mesma idade que os céus".

— Esses taoístas são capazes de dizer qualquer coisa para impressionar as pessoas! — disse o Peregrino, rindo. — Quando, aproximadamente há quinhentos anos, causei uma total confusão no Palácio Celestial, não encontrei palavras tão grandiosas nem mesmo na porta de Lao-Tzu.

— O que isso importa? — exclamou Bajie. — Agora, o que temos que fazer é entrar o quanto antes. Quem sabe esses taoístas não guardam algo realmente valioso lá dentro.

Eles mal haviam passado a segunda porta quando foram recebidos por dois jovens de aspecto saudável, tanto física quanto espiritualmente. Na cabeça, exibiam estranhos penteados, e as túnicas que vestiam eram tão amplas que pareciam estar envoltos, na verdade, em névoas. Tinham a leveza das plumas, e as largas mangas lembravam, de certo modo, o voo de certas aves. Para completar, suas faixas estavam adornadas com cabeças de dragões. Pelo requinte das vestimentas, era fácil deduzir que não eram jovens comuns. Eram, de fato, dois jovens divinos que respondiam pelos nomes de Brisa Límpida e Lua Brilhante. Com respeito inusitado, inclinaram-se diante dos viajantes e disseram:

— Perdoem-nos por não termos saído antes para recebê-los. Por favor, sentem-se.

O mestre seguiu os dois jovens até o salão principal, onde haviam cinco enormes câmaras voltadas para o sul, separadas por janelas que iam do chão ao teto, com painéis esculpidos que eram translúcidos na parte superior e sólidos na parte inferior. Os dois jovens abriram uma dessas janelas e convidaram o monge Tang a entrar no compartimento central. Em uma das paredes, pendia um longo rolo, no qual estavam bordados, em cinco cores, os caracteres do Céu e da Terra. Logo abaixo, havia uma mesa laqueada de cinábrio vermelho para oferendas de incenso, sobre a qual repousava uma urna de ouro amarelo. Ao lado da urna, haviam várias bastões de incenso.

O monge Tang tomou um pouco de incenso com a mão esquerda e o depositou na urna. Inclinou-se três vezes seguidas e, voltando-se para os jovens, disse:

— Não há dúvida de que o Templo Wuzhuang faz parte do Paraíso Ocidental. Como é possível, então, que vocês não prestem culto aos Três Puros, aos Reis dos Quatro Pontos Cardeais ou aos diferentes Senhores do Céu Superior? Podem me explicar por que, ao lado da urna de incenso, estão escritos apenas os caracteres do Céu e da Terra?

— Na verdade — respondeu um dos jovens, sorrindo —, isso é é um mero ato de respeito por parte do nosso mestre, pois dessas duas palavras, a de cima pode merecer nossa reverência, mas a de baixo dificilmente é digna de nosso fogo e incenso.

— O que você quer dizer com isso de que se trata de um mero ato de respeito? — perguntou novamente Sanzang.

— Muito simples — respondeu o jovem. — Os Três Puros são amigos de nosso mestre, os Quatro Reis são seus antigos conhecidos, os Nove Planetas, seus colegas mais jovens, e o Deus do Ano Novo, uma espécie de hóspede indesejado!.

Ao ouvir isso, o Peregrino riu tanto que mal conseguia manter-se em pé.

— Pode-se saber do que está rindo? — recriminou-o Bajie.

— E você dizia que eu me vangloriava! — exclamou o Peregrino, com dificuldade. — Apenas ouça a conversa fiada desse garoto taoísta!

— Onde está vosso mestre? — indagou Sanzang.

— Foi convidado pelo Mestre Divino da Origem Celestial a participar de uma palestra sobre “O Fruto Taoísta da Origem Caótica” no Palácio Miluo, localizado no Paraíso da Pureza.

O Peregrino não conseguiu se conter e exclamou:

— Seus jovens taoístas fedidos! Vocês não sabem com quem estão falando! Quem vocês estão tentando enganar com essas lorotas? Quem é  Imortal Celestial do Paácio Miluo que se dignou a convidar esse seu mestre com casco de vaca para uma palestra?

Vendo o quão exaltado estava o Peregrino, Sanzang temeu que os jovens dessem alguma resposta que causasse problemas de verdade e repreendeu Wukong, dizendo:

— Por favor Wukong, não seja tão descortês. Se sairmos deste palácio logo após chegarmos, não será um gesto amigável. Como muito bem afirma o provérbio: “as garças não devoram a carne de outras garças”. Se o mestre deles não está aqui, por que  incomodá-los? Leve o cavalo para pastar, enquanto o Mong Sha cuida da bagagem e Bajie sai à procura de um pouco de grãos. Nós mesmos nos encarregaremos de preparar a comida. Só precisamos de algumas panelas e um pouco de lenha. Quando terminarmos, podemos pagar-lhes alguns trocados pela lenha e isso encerrará o assunto. Cuidem dos seus afazeres, cada um de vocês, e deixem-me descansar um pouco por aqui. Continuaremos nosso caminho assim que terminarmos de comer.

Os três obedeceram sem reclamar. Brisa Límpida e Lua Brilhante ficaram tão admirados que comentaram entre si:

— Que determinação deste monge! Não é à toa que ele é a reencarnação de um Sábio do Ocidente. Agora, devemos fazer o que nosso mestre nos pediu e lhe entregar alguns frutos de ginseng. Ainda bem que os três discípulos dele se foram. Do contrário, teríamos sérios problemas com eles. Percebeu o quão rudes eram seus modos?

— Não devemos nos precipitar — sugeriu Brisa Límpida. — Pensando bem, não temos certeza se este monge é o amigo de nosso mestre. Devemos nos certificar disso antes de dar qualquer passo em falso.

Eles então se aproximaram de Sanzang e perguntaram:

— Podemos saber se o senhor é o monge Tang Sanzang, irmão do imperador do Grande Imperio Tang, que está a caminho do Oeste para buscar as escrituras de Buda?

— Sou eu mesmo — respondeu Sanzang, inclinando a cabeça. — Como dois jovens imortais como vocês conhecem um nome tão vulgar como o meu?

— Antes de partir — respondeu um dos jovens —, nosso mestre nos pediu que saíssemos para recebê-los ao pé desta montanha. Porém, nós não esperavamos que chegassem tão cedo. Sentem-se, por favor, e permitam-nos servir um pouco de chá.

— Não mereço tanta atenção — protestou Sanzang, mas Lua Brilhante já havia se retirado para a parte de trás da casa, de onde logo voltou com uma xícara de chá aromático.

Assim que Sanzang terminou de beber, Brisa Límpida disse:

— Não devemos desobedecer a ordem do nosso mestre. Então, quanto antes entregarmos a fruta, melhor.

Os dois jovens se despediram de Sanzang e se retiraram para seus aposentos, onde um deles pegou um malho de ouro e o outro apanhou uma bandeja de madeira para carregar elixir. Eles também cobriram a bandeja com vários lenços de seda antes de irem ao Jardim do Ginseng. 

Brisa Límpida subiu na árvore para golpear os frutos com o malho, enquanto Lua Brilhante esperava embaixo segurando a bandeja. Em um momento, dois dos frutos caíram e pousaram sobre a bandeja. 

Satisfeitos, os jovens voltaram ao salão principal e os ofereceram a Sanzang, dizendo:

— O Templo Wuzhuang está localizado em um lugar selvagem e desolado. Não há muito que possamos oferecer, exceto estes dois frutos que crescem em nosso pomar. Por favor, use-os para saciar sua sede.

Quando o ancião viu os frutos, tremeu todo e recuou três passos, dizendo:

— Santo Céu! A colheita parece ser abundante este ano! Mas por que este templo é tão miserável a ponto de ter que praticar o canibalismoEstão tão mal que a única coisa que têm para saciar minha sede são esses dois recém-nascidos que não aparentam ter mais de três dias de vida?

— Pobre monge! — disse Brisa Límpida para si mesmo. — Passou tanto tempo neste mundo que é incapaz de reconhecer os tesouros preciosos que temos aqui. Só usa os seus olhos mortais para ver e sua mente corrupta para pensar. Como é possível que alguém que ocupou os mais altos postos do céu tenha caído tão baixo?

Vendo sua aflição, Lua Brilhante se aproximou dele e explicou:

— Mestre, o que vê não são crianças, mas um fruto chamado ginseng. Não há mal nenhum em comer pelo menos um.

— Besteira! — exclamou Sanzang em seguida. — Só o céu conhece as dificuldades que os pais dessas crianças tiveram que enfrentar para trazê-las à vida. É incrível que tentem me convencer de que são apenas frutos, quando está claro que são crianças recém nascidas!

— Dou minha palavra de que eles procedem de uma árvore — afirmou Brisa Límpida, solenemente.

— Tolice! — voltou a exclamar Sanzang. — Como é que pessoas crescem em árvores? Levem isso embora! Isso é blasfêmia!

Compreendendo que não havia maneira de convencê-lo, os dois jovens pegaram a bandeja e a levaram de volta para seus aposentos. 

Eles sabiam que aqueles frutos eram tão especiais que, se não fossem comidos de imediato, endureceriam e seria impossível mordê-los. Sentaram-se, então, em suas camas e começaram a comê-los. Seus aposentos ficavam ao lado da cozinha, separados apenas por um muro fino, o que permitia ouvir tudo o que diziam. Bajie estava na cozinha preparando arroz, quando ouviu a conversa deles enquanto pegavam o malho de ouro e a bandeja para elixir. Mais tarde, ouviu também que o monge Tang havia rejeitado, por ignorância, os frutos de ginseng, obrigando os dois jovens a comê-los tranquilamente em seus aposentos. A boca de Bajie se encheu de água, e ele pensou, esperançoso:

— Eu adoraria provar um desses frutos, mas como poderia fazê-lo?

Sem saber o que fazer a respeito, decidiu conversar sobre o assunto com o Peregrino. Perdendo completamente o interesse pela comida que estava cozinhando, Bajie começou a espiar pela janela, esperando o companheiro surgir. Wukong não demorou a aparecer com o cavalo. Ele o amarrou a uma árvore e começou a caminhar em direção à parte de trás do templo, mas Bajie chamou sua atenção, agitando as mãos como um louco e dizendo:

— Venha aqui! Venha aqui!

- Por que você está gritando? — perguntou o Peregrino, virando-se e dirigindo-se para a porta da cozinha. —  Não tem arroz suficiente? Se for isso, deixe o mestre se fartar primeiro. Nós podemos pedir mais arroz nas casas ao longo do caminho.

— Entre logo — insistiu Bajie. — O que tenho para dizer não tem nada a ver com arroz. Descobri que neste templo há um tesouro muito estranho.

— Quer me dizer do que se trata? — perguntou o Peregrino.

— Claro que sim — respondeu Bajie, sorrindo. — Mas te aviso que é algo que você nunca viu antes. É possível, portanto, que, se eu colocar na sua frente, você não consiga reconhecer.

— Você não sabe o que está dizendo — repreendeu o Peregrino. — Quando, há aproximadamente quinhentos anos, busquei a imortalidade, percorri cada canto do céu e do oceano, e posso te garantir que não há mistério que eu não tenha compreendido nem tesouro que eu não tenha visto.

— Tudo bem — replicou Bajie. — Mas aposto que você nunca viu um fruto de ginseng.

— Devo admitir que não — reconheceu o Peregrino, desconcertado. — No entanto, ouvi dizer que é a planta do cinábrio revertido e que quem o come prolonga consideravelmente sua vida. Quer me dizer onde posso encontrar essa maravilha?

— Aqui mesmo — respondeu Bajie. — Aqueles dois jovens ofereceramdois desses frutos ao mestre, mas ele pensou que eram crianças de apenas três dias de vida, e não teve coragem de prová-los. Acho que esses jovens foram um pouco desatenciosos conosco. Se o Mestre não ia comer, deveriam tê-los dado para nós. Em vez disso, esconderam-nos de nós. Agora há pouco, no quarto ao lado, cada um comeu um fruto com grande prazer. Fiquei tão animado que comecei a salivar, pensando em como poderia provar esse fruto. Sei que você é bastante astuto. Que tal ir ao jardim deles e roubar alguns para nós provarmos?

— Isso é fácil — disse o Peregrino— O Velho Macaco irá até lá, e eles logo estarão ao alcance das suas mãos!

Ele virou-se e começou a caminhar em direção à parte da frente do templo, mas Bajie o deteve, dizendo:

— Espere um momento. Enquanto conversavam, ouvi-os mencionar algo sobre um malho de ouro. É preciso fazer tudo corretamente para que ninguém perceba nossos planos.

— Fique tranquilo — disse o Peregrino. — Já sei como fazer.

O Grande Sábio usou a técnica de ocultação corporal para entrar nos aposentos dos taoístas sem ser visto. Os dois jovens já não estavam lá, pois após comerem os frutos, voltaram ao salão principal para entreter o monge Tang. O Peregrino procurou em todo lugar pelo malho de ouro e só conseguiu encontrar um varina de ouro avermelhado pendurada em uma janela. Tinha aproximadamente sessenta centímetros de comprimento e uma espessura que não superava a de um dedo. Uma das extremidades terminava em uma botão do tamanho de uma cabeça de alho; na outra, havia um pequeno orifício com uma fita de lã verde.

— Este deve ser o malho de ouro — pensou consigo mesmo o Peregrino,  antes de o despendurar com cuidado.

Sem perder tempo, ele saiu do aposento taoísta, foi para os fundos e empurrou uma porta de batente duplo e encontrou-se de repente diante de um jardim meticulosamente cuidado. Suas cercas, primorosamente esculpidas, foram pintadas em um atraente tom avermelhado, que contrastava com a aspereza de suas colinas artificiais. Nelas cresciam flores exóticas, que rivalizavam em luminosidade com o sol, e pequenos bosques de bambus, cujo verde combinava perfeitamente com o azul límpido dos céus. Atrás de um gracioso pavilhão, via-se uma fileira de salgueiros que se espalham como névoa, ao lado dos quais se erguia uma tribuna para contemplar a lua. Por toda parte, viam-se pinheiros de uma cor azulada atraente. O jardim era, na verdade, um mosaico de cores vivas e atraentes: o vermelho brilhante das romãzeiras, o delicado verde da grama, o exuberante azul das orquídeas, a límpida transparência das águas de um riacho. Não muito longe do poço dourado (9), cresciam inúmeros tipos de árvores, entre as quais se destacavam os Wu-tung (10) os  Huai e os pessegueiros de copas densas e cores atraentes. Os crisântemos espalhavam por toda parte o milagre outonal de sua fragrância penetrante. Ao lado do pavilhão das peônias, cresciam dez mil variedades dessas flores preciosas. Onde quer que se olhasse, podiam-se ver bambus que desafiavam a geada e pinheiros carregados de nobreza que zombavam da neve. Não muito longe do tanque quadrado e do lago circular, haviam sido construídos ninhos para as garças e estábulos para os cervos. Ao bater contra as rochas, a água dos riachos parecia se desintegrar em dez mil lascas de jade. O vento de inverno balançava ferozmente a delicada brancura dos botões de ameixeira, embora já se sentisse a proximidade da primavera na explosão de cores das begônias. Aquele era, de fato, um verdadeiro paraíso, onde o ouro surgia do solo como se fosse mais uma planta. Era impossível imaginar que houvesse um lugar mais bonito em todo o Ocidente.

O Peregrino ficou imediatamente encantado com a beleza do lugar, mas continuou caminhando e logo se deparou com outra porta. Ele a abriu completamente e se encontrou em um jardim onde cresciam todos os tipos de verduras: espinafre, aipo, cavalinhas, beterraba, gengibre, brotos de bambu, melões, agrião, cebolinha, alho, coentro, alho-poró, cebolinha, talos de aipo, flores de lótus, su (11) amargo, abóbora, berinjela, nabos brancos e verdes, espinafre vermelho, repolho verde e mostarda.

— Vejo que este taoísta consome o que produz — disse o Peregrino, sorrindo, e continuou seu caminho.

No outro extremo desse jardim, havia outra porta. Ele a abriu e se encontrou em um novo jardim, no centro do qual crescia uma árvore notavelmente alta. Seus galhos eram robustos e bem proporcionados, assim como suas folhas, que, de alguma forma, lembravam as folhas do plantago. Tanta perfeição não deixava de chamar a atenção, pois a árvore media mais de trezentos metros de altura e tinha sessenta ou setenta metros de diâmetro. 

O Peregrino encostou-se ao tronco e, levantando os olhos, viu um fruto de ginseng em um dos galhos voltados para o sul. Parecia, de fato, uma criança recém-nascida. A brisa sacudia incessantemente seus membros e sua cabeça, dando-lhe uma aparência inegável de vida. Às vezes, tinha-se até a sensação de que chorava como se fosse um verdadeiro bebê.

— Que coisa mais maravilhosa! — disse o Peregrino, espantado. — Jamais vi algo assim — e, com um salto, alcançou o topo da árvore.

Para ele, não havia segredo em roubar frutas. Na verdade, não era a primeira vez que fazia isso. Sem perder tempo, sacou o malho de ouro e bateu suavemente na fruta, que imediatamente se desprendeu do galho. O Peregrino rapidamente saltou atrás dele, mas o fruto havia sumido.Embora ele o procurasse por toda a grama, não havia nenhum sinal dele. 

— Que estranho! — exclamou o Peregrino. — Imagino que, por ter pernas, deve ter saído correndo. No entanto, como conseguiu pular o muro? Já sei o que aconteceu! Com certeza, o espírito deste jardim o escondeu em algum lugar para que eu não possa comê-lo.

Imediatamente, ele fez um sinal mágico, ao qual acrescentou um encantamento que começava com a letra "Om". Assim, convocou o espírito do jardim, que logo apareceu inclinando-se respeitosamente e dizendo:

— Em que posso servi-lo, Grande Sábio?

— Você não sabe que este velho Macaco é o ladrão mais famoso do mundo? — perguntou o Peregrino. — Quando me apoderei dos pêssegos imortais, do vinho do imperador e das pílulas da longevidade no passado, ninguém teve coragem de tomar uma parte. Como você teve a audácia de pegar o fruto que acabei de arrancar desta árvore? Como esses frutos são formados em uma árvore, suponho que as aves podem ter sua parte dela. Qual é o problema em eu comer um deles? Como você ousa pegá-lo no momento em que eu o derrubei?’

— Está muito enganado, Grande Sábio — respondeu o espírito do jardim. — Eu não peguei nada de você. Este tesouro pertence a um imortal da terra e eu sou apenas um espírito vulgar. Como eu poderia ousar cometer tal afronta? A mim nem mesmo é permitido cheirar esses frutos.

— Se você não pegou — indagou o Peregrino —, como é que ele desapareceu assim que caiu no chão?

— Parece que você está ciente das propriedades do fruto para prolongar a vida — respondeu o espírito —, mas desconhece completamente seus outros atributos.

— O que você quer dizer? — exclamou o Peregrino.

— Esta árvore leva aproximadamente três mil anos para florescer, leva outros três mil anos para dar frutos e os mantém em seus galhos por mais três mil anos — explicou o espírito. — Quem o cheira uma única vez pode viver mais de trezentos e sessenta anos, e quem tiver a sorte de comê-lo pode alcançar os quarenta e sete mil anos de vida. No entanto, um fruto tão valioso é resistente às Cinco Fases.

O que você quer dizer com "resistente às Cinco Fases"? — indagou novamente o Peregrino.

— Esse fruto — respondeu o espírito  se desprende ao contato com o ouro, seca ao contato com a madeira, dissolve-se com a água, murcha com o fogo e se dilui com a terra. Por isso você deve usar um objeto de ouro para colhê-lo. Além disso, deve-se usar uma bandeja coberta com um pano de seda, para evitar o contato com a madeira. Na hora de comê-lo, é necessário dissolvê-lo com um pouco de água em um recipiente de porcelana e mantê-lo o mais longe possível do fogo. Quando o fruto que derrubou tocou a terra, ele se fundiu completamente a ela. Consequentemente, esta porção do jardim permanecerá exuberante por mais de quarenta e sete mil anos. Nem mesmo uma picareta de aço conseguirá perfurá-la, pois é três ou quatro vezes mais dura do que ferro bruto. É por isso que um homem viverá muito tempo se comer um dos frutos. Se você não acredita em mim, Grande Sábio, bata no chão e veja por si mesmo.

O Peregrino pegou o seu bastão e deu um golpe terrível no chão, mas o bastão ricocheteou como uma gota de chuva sobre uma rocha. No chão, entretanto, não havia o menor sinal de dano.

— Tenho que admitir que você tem razão — exclamou, surpreso, o Peregrino. — O meu bastão é capaz de tornar uma montanha inteira em pó, e de deixar uma marca profunda no ferro bruto. No entanto, ele não deixou a menor marca no chão. Desculpe por ter te culpado sem motivo. Você já pode ir embora.

Visivelmente satisfeito, o espírito do jardim inclinou-se e voltou para o seu santuário. O Grande Sábio voltou a subir na árvore, fez uma espécie de saco com sua camisa de seda e, afastando cuidadosamente as folhas e os galhos, bateu em três frutos com o pequeno malho de ouro, que caíram no fundo do tecido. 

Louco de alegria, saltou novamente para o chão e correu em direção à cozinha.

— Você conseguiu pegá-los? — perguntou Bajie, sorrindo.

— Estes são os frutos de que você falava? — perguntou, por sua vez, o Peregrino. — Foi mais fácil consegui-los do que eu esperava. Chame o Monge Sha para vir prová-los também. Não é justo deixá-lo fora de um banquete tão suntuoso quanto este.

— Venha aqui, Wujing! — gritou Bajie, acenando com as mãos.

— Posso saber o que você quer? — perguntou o Monge Sha.

— Olhe isto — disse o Peregrino. — Sabe o que é?

— Frutos de ginseng — respondeu o Monge Sha, surpreso.

— Exatamente — confirmou o Peregrino. — Onde você os provou?

— Em lugar nenhum— respondeu o Monge Sha. — Quando desempenhava o cargo de Marechal que Levanta a Cortina, certa vez eu vi alguns imortais presenteando a Rainha Mãe com eles em seu aniversário, mas nunca os provei. Você está pensando em me dar essa oportunidade agora?

— Com certeza — afirmou o Peregrino. — Por que você acha que eu trouxe três?

Cada um pegou o seu. Bajie tinha um enorme apetite e uma boca de tamanho desproporcional. Ele não esperou nem um segundo e engoliu o fruto como se fosse uma simples semente de melão. Então ele revirou os olhos e disse de forma zombeteira ao Peregrino e ao Monge Sha: 

— O que vocês dois estão comendo?

— Frutos de ginseng — respondeu, surpreso, o Monge Sha.

— Qual é o gosto? — voltou a perguntar Bajie.

— Não dê atenção a ele, Wujing — aconselhou o Peregrino. — Ele já comeu o dele. Por que todas essas perguntas agora?

— Acho que comi rápido demais — confessou Bajie. — Eu não sou tão contido quanto vocês, que gostam de saborear tudo lentamente. Eu não tenho paciência para mastigar. Eu engoli o fruto sem nem sei se tinha semente ou não. Por que você não vai lá e pega outro para mim? Vamos, não fique com rodeios. Afinal, a culpa é sua por ter agitado tanto os vermes no meu estômago. Prometo que desta vez vou saboreá-lo com cuidado.

— Vejo que você não tem jeito mesmo!— exclamou o Peregrino. — Esses frutos não são como arroz ou macarrão. Em dez mil anos, apenas uns trinta amadureceram. Você deveria agradecer ao céu por ter conseguido comê-lo, então pare de dizer bobagens de uma vez.


Wukong pegou o malho de ouro e, sem dizer mais nada, o deixou cair no cômodo ao lado através de um buraco que fez na janela. No entanto, Bajie continuou resmungando e murmurando tolices. Pouco tempo depois, os dois jovens taoístas voltaram aos seus aposentos em busca de um pouco de chá para o monge Tang e ouviram Bajie reclamar por não ter saboreado como devia o fruto do ginseng e sobre como seria bom se ele pudesse provar outro.


— Você ouviu o que o monge do focinho saliente acabou de dizer? — perguntou, intrigado, Brisa Límpida a Lua Brilhante. — Ele deu a entender que devorou um de nossos preciosos frutos. Será que esses monges desleixados roubaram algum? Não é à toa que o mestre nos advertiu para termos cuidado com eles.

— Isso é muito ruim — comentou Lua Brilhante, virando-se. — Coincidência ou não, o malho de ouro está caído no chão. Acho que é melhor irmos ao jardim dar uma olhada.

Os dois jovens correram para os fundos e, para sua surpresa, encontraram a porta do jardim das flores escancarada.

— Que coisa mais estranha! — exclamou Brisa Límpida. — Lembro-me muito bem de tê-la deixado fechada.

Visivelmente preocupados, correram para o jardim de vegetais e o encontraram aberto também. Sem conseguir conter a impaciência, entraram no jardim onde estava localizada a árvore de ginseng, e começaram a contar os frutos, olhando ansiosos para cima. Repetiram a operação várias vezes, mas sempre obtinham o mesmo resultado: vinte e dois frutos.

— Você contou direito? — perguntou Lua Brilhante.

— Sim, e não apenas uma vez, mas várias — respondeu Brisa Límpida. — Quantos você contou?

— Havia trinta no início — respondeu Lua Brilhante. — Antes de partir, o mestre dividiu dois entre nós, então restavam vinte e oito. Destes, oferecemos dois ao monge Tang. Portanto, deveriam haver vinte e seis. Como é possível que só contemos vinte e dois? Onde estão os outros quatro? A explicação não poderia ser mais clara: eles foram roubados por aquele grupo de ladrões. Vamos imediatamente pedir satisfações ao monge Tang.

Os dois deixaram o jardim e se dirigiram ao salão principal, onde começaram a insultar o monge Tang com todo tipo de linguagem vulgar e abusiva, acusando-o de ser um careca ladrão e um rato trapaceiro. Eles continuaram a insultá-lo por um longo tempo, até que finalmente o monge Tang não conseguiu mais suportar e disse:

— Por que tanto alvoroço? Não conseguem se acalmar e tratar do assunto de forma educada? Se têm algo a me dizer, façam-no com mais tranquilidade e sem usar uma linguagem tão ofensiva. 


— Pelo que parece, você está completamente surdo — repreendeu Brisa Límpida. — Se falamos com uma linguagem tão rude, é porque estamos convencidos de que é a única que você entende. De que outra forma poderíamos nos dirigir a quem roubou os nossos frutos de ginseng? 

— Como são esses frutos de que falam? — perguntou o monge Tang.

— Como um bebê recém-nascido — respondeu Lua Brilhante. — Pelo menos foi o que você mesmo disse quando trouxemos dois deles para você comer agora há pouco.

— Bendito seja Amitabha Buda! — exclamou, escandalizado, o monge Tang. — Como eu me atreveria a roubá-los, se só de olhar para eles comecei a tremer como uma folha? Nem se eu estivesse morrendo de fome seria capaz de prová-los. Creio que vocês estão culpando a pessoa errada.

— É possível que você não o tenha feito — reconheceu Brisa Límpida —, mas não temos tanta certeza sobre seus discípulos. Eles certamente gostariam de provar uma iguaria como essa.

— Não nego — admitiu Sanzang. — Mas por que gritar como loucos? Vou perguntar a eles agora mesmo e, se forem culpados, juro que os obrigarei a ressarcir vocês de alguma maneira.

— Ressarcir? — repetiu, zombeteiro, Lua Brilhante. — Você não conseguiria pagar por um desses frutos, nem que tivesse todo o dinheiro do mundo.

— Se não puderem pagar por eles — concluiu Sanzang—, pelo menos poderão apresentar suas desculpas, pois, como muito bem diz o provérbio, “a honestidade vale mais que duas mil moedas de ouro”. Além disso, não temos certeza de que foram meus discípulos que pegaram seus frutos.

— O que quer dizer com isso de "não temos certeza"? — perguntou Lua Brilhante. — Nós mesmos ouvimos eles discutirem entre si porque os frutos não foram divididos de forma justa.

— Discípulos! Venham já até aqui!— gritou Sanzang.

Ao ouvi-lo, o Monge Sha exclamou, preocupado:

— Era só o que faltava! Aqueles jovens taoístas nos descobriram e foram contar ao nosso mestre. É por isso que estão fazendo todo esse barulho.

— Que vergonha— comentou o Peregrino. — Toda essa confusão por um pouco de comida. Se roubamos, foi com o único propósito de matar a fome. Portanto, o melhor é negarmos tudo.

— Concordo com você — assentiu Bajie. — Roubar para comer não é crime — e, abandonando a cozinha, dirigiram-se ao salão principal.

Não sabemos como eles conseguiram sair dessa encrenca. Quem quiser descobrir terá que ouvir as explicações que serão oferecidas no próximo capítulo.


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Notas do Capítulo XXIV

  1. O ginseng ou resheng (Panax schinseng) é uma planta que goza de grande prestígio na medicina tradicional chinesa como afrodisíaco e prolongador da vida.
  2. Além de ser a maior cordilheira da China, o Kunlun é a montanha mais sagrada do taoísmo popular, pois nela habitam tanto a "Rainha Mãe do Oeste", Wangmu Niangniang, quanto o "Mestre Divino da Origem Celestial", Yuanshi Tianzun.
  3. As Cinco Bênçãos são: uma vida longa, riquezas, saúde, amor virtuoso e uma morte natural.
  4. Refere-se à Sophora japonica, uma planta conhecida na medicina tradicional chinesa, cujas flores e frutos são usados em diversas preparações.
  5. Este nome é altamente significativo, pois pode ser traduzido como "aquele que se assentou firmemente sobre suas origens".
  6. Mestre Divino da Origem Celestial (ou "Yuanshi Tianzun" em chinês) é uma figura importante no taoísmo, especialmente na tradição taoísta de "Culto das Três Puridades". Ele é uma das três divindades principais do Taoísmo, sendo associado à criação do universo e à origem do Tao.
  7. A citação é retirada dos Analectos de Confúcio.
  8. O Festival Ullambana, também conhecido como Festival de Obon ou Festival de Todos os Fantasmas, é uma celebração tradicional de origem budista que ocorre em várias culturas asiáticas. O termo "Ullambana" vem do sânscrito "Ullambhana," que significa "despertar do sofrimento" ou "aliviar o sofrimento."
  9. "O ponteiro dourado" refere-se ao costume de pintar com ouro o brocal dos poços por parte das famílias mais abastadas. A expressão acabou se tornando comum na poesia tradicional.
  10. Wu-Tung (Sterculia platanifolia) é uma árvore conhecida por suas folhas grandes e impressionantes.
  11. Su (Dipsacus asper) é uma planta utilizada na medicina tradicional chinesa, especialmente em contextos de tratamento de fraturas e dores.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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Ruby