۞ ADM Sleipnir
Arte de Moyi Zhang |
"O dharma retorna ao seu estado verdadeiro quando o agir justo se une aos sentimentos mais nobres. Então, o metal maleável e a madeira gentil se fundem de maneira tão perfeita que produzem o mesmo fruto. O Macaco da Mente e a Mãe da Madeira juntos formam o verdadeiro elixir, alcançando a felicidade suprema e chegando às portas da Verdade Absoluta (1). Não há caminho mais seguro para atingir a perfeição do que os sutras. Quem os recita se une ao espírito universal de Buda. Os irmãos são como galhos de uma mesma árvore, enquanto demônios e monstros são seres que sofrem com as Cinco Fases. Somente quem for capaz de encerrar o caminho das bifurcações (2) poderá alcançar o Grande Palácio do Trovão."
Dizíamos que, assim que os macacos alcançaram Bajie, rasgaram sua túnica e o levaram até a caverna do antigo irmão. Bajie estava tão aterrorizado que murmurava sem parar:
— Estou perdido! O Peregrino é tão colérico que não vai parar até me esmagar com sua barra!
Os macacos eram tão rápidos que logo chegaram à entrada da caverna. O Grande Sábio estava sentado no alto de uma rocha e, ao ver Bajie aparecer, gritou, furioso:
— Nunca imaginei que você pudesse ser tão estúpido! Por que me insultou? Não podia simplesmente continuar sua jornada em paz?
— Eu nunca te insultei — defendeu-se Bajie, prostrando-se no chão. — Se tivesse feito isso, arrancaria minha própria língua agora mesmo. Só disse que, se você não queria vir comigo, ninguém poderia te obrigar. Você tem todo o direito de ficar, e não sou eu quem vai te julgar. De onde tirou que eu te insultei?
— Não tente me enganar — advertiu o Peregrino. — Você sabe muito bem que, ao tampar o ouvido esquerdo, consigo escutar qualquer conversa que aconteça no Trigésimo Terceiro Céu, e que, ao tampar o ouvido direito, posso descobrir o que os Dez Reis do Inferno estão discutindo com seus oficiais. Eu ouvi você falando mal de mim enquanto caminhava. Como pode fingir que não disse nada, se o escutei com meus próprios ouvidos?
— Não, não. Você não me engana — retrucou Bajie, balançando a cabeça. — Eu te conheço muito bem e sei que não há ninguém mais astuto que você. O mais provável é que tenha se transformado em algum animal e me seguido. Essa sua história de “ouvido fino” não passa de uma farsa!
— Peguem uma vara e deem-lhe, para começar, vinte golpes nas pernas — ordenou o Peregrino aos seus subordinados. — Depois, mais vinte nas costas. Eu mesmo vou completar o castigo com o meu bastão de ferro!
Bajie, aterrorizado, começou a bater a cabeça no chão, gritando desesperado:
— Me perdoe, pelo bem de nosso mestre!
— O mestre não me importa mais! — exclamou o Peregrino. — Ele também não vale nada!
— Se não fizer por ele — insistiu Bajie —, faça ao menos pela Bodhisattva. Por favor, eu lhe imploro!
Ao ouvir a menção à Bodhisattva, o Peregrino pareceu se acalmar e disse:
— Se retirar de bom grado tudo o que disse contra mim, não irei lhe castigar por enquanto. Mas precisa me contar a verdade, sem mais enganações. Que tipo de provação o monge Tang está enfrentando para que você tenha decidido vir pedir minha ajuda?
— Nenhuma — respondeu Bajie. — Como eu já disse antes, ele não para de pensar em você. É só isso.
— Você é tão idiota que parece gostar de ser castigado mil vezes! — exclamou o Peregrino. — Por que insiste em me fazer acreditar em algo que não é verdade? Embora meu corpo tenha voltado para a Caverna da Cortina de Água, meu coração continua ao lado do buscador de escrituras. A missão dele é tão difícil que, a cada passo, enfrenta perigos intransponíveis. Ele está destinado a sofrer em cada lugar por onde passa. Então, se não quiser ser esfolado, é melhor me contar logo o que está acontecendo.
Ao ouvir essa confissão, Bajie se curvou novamente diante do Peregrino e disse:
— Reconheço que estava tentando te fazer voltar comigo com uma mentira boba. Fiz isso porque não sabia o quão sábio e nobre você é. Por favor, me poupe do castigo e me deixe levantar. Assim, poderei te contar o que aconteceu.
— Está bem — concluiu o Peregrino. — Levante-se e fale logo.
Os macacos soltaram Bajie ao mesmo tempo e começaram a olhar de um lado para o outro, com um ar selvagem. Bajie, por sua vez, começou a observar o terreno, fazendo uma série de gestos estranhos.
— Que palhaçada é essa? — questionou o Peregrino.
— Estou tentando descobrir por onde posso escapar melhor — respondeu Bajie, surpreendendo com sua sinceridade.
— E para onde acha que vai? — replicou o Peregrino. — Eu te alcançaria mesmo que tivesse três dias de vantagem. Então é melhor falar logo, porque, se me fizer perder a paciência de novo, com certeza vou mandar te açoitar.
— Essa é a verdade, irmão — respondeu Bajie. — Depois que nos separamos, seguimos em frente e logo chegamos a uma floresta de pinheiros muito escura. O mestre desmontou e me mandou buscar um pouco de comida vegetariana. Eu andei como um louco, mas não encontrei uma única casa. O pior foi que a caminhada me cansou demais, e eu acabei deitando na grama para tirar uma pequena soneca. Quando percebeu que eu estava demorando mais do que o esperado para voltar, o Monge Sha saiu à minha procura, deixando o mestre sozinho. Você sabe que ele não consegue ficar parado nem por um segundo, e começou a andar sem rumo pelo bosque. Foi assim que encontrou uma espécie de pagoda, tão brilhante que parecia coberta de ouro e pedras preciosas. Ele achou que fosse um mosteiro e não tomou nenhuma precaução. Na verdade, era difícil imaginar que aquele lugar era a morada de um espírito maligno chamado Monstro da Túnica Amarela, que o capturou facilmente, planejando comê-lo naquela mesma noite. Quando o Monge Sha e eu voltamos ao ponto onde havíamos deixado o mestre, só encontramos o cavalo e a bagagem. Não havia sinal dele. Preocupados, começamos a procurá-lo por toda parte, até que chegamos à porta da caverna, onde enfrentamos o monstro. Durante a luta, o mestre teve a sorte de encontrar uma salvadora inesperada: nada menos que a terceira princesa do Reino do Elefante Sagrado. Há muitos anos, ela havia sido raptada pela besta e forçada a se casar com ele. A princesa, com pressa, escreveu uma carta para sua família e pediu ao mestre que a entregasse pessoalmente. Por isso, ela convenceu o monstro a não nos devorar e a nos deixar partir. Quando chegamos ao Reino do Elefante Sagrado, fizemos o possível para cumprir a tarefa da princesa. Mas as coisas se complicaram quando o rei pediu ao nosso mestre para capturar o monstro. Como poderia um monge tão medroso fazer isso? Então, tivemos que assumir essa responsabilidade e desafiar a besta em uma batalha singular. No entanto, os poderes mágicos do monstro eram incalculáveis, e o Monge Sha acabou caindo em suas artimanhas. Eu só consegui escapar por pouco, me escondendo na grama. O monstro, envaidecido, se transformou em um literato de aparência tão distinta e atraente que foi imediatamente aceito na corte, ganhando reconhecimento imperial. O mestre, por outro lado, foi transformado em um tigre feroz e teve que ser preso em uma jaula. Foi uma sorte que, naquela mesma noite, o cavalo-dragão saísse em busca do mestre. Claro que ele não conseguiu chegar até onde estava, mas, ao passar pelo Salão da Paz de Prata, viu o monstro se embriagando e se transformou em uma donzela. Ele serviu ao monstro todo o vinho que pôde, chegando até a dançar com uma espada, planejando matá-lo no momento em que ele se descuidasse. Porém, as coisas não saíram como o cavalo-dragão havia planejado, e ele acabou levando um golpe terrível de um candelabro pesado. Foi o dragão que me sugeriu vir buscar você. Ele disse que você é uma pessoa de sentimentos nobres, que despreza a maldade e que, ao saber o que aconteceu, certamente viria libertar o mestre. Eu também penso assim sobre você. Por isso, agora te peço que se lembre do ditado: “quem foi seu mestre uma vez, é como um pai para toda a vida.” Vá sem demora ajudá-lo!
— Como você é estúpido! — repreendeu-o o Peregrino. — Eu não lhe avisei na hora da despedida que, se o mestre caísse nas mãos de um monstro, você deveria dizer que eu era discípulo dele? Por que não fez isso?
Antes de responder, Bajie pensou consigo mesmo:
— Provocar um guerreiro é muito mais eficaz do que tentar falar com ele. Vou irritá-lo um pouco.
Então, levantou a voz e acrescentou:
— Teria sido melhor nem falar de você, porque, assim que o monstro ouviu seu nome, ficou ainda mais arrogante.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou o Peregrino.
— Quando vi o monstro aparecer — respondeu Bajie —, eu disse: "Deixe o orgulho de lado e libere meu mestre, porque o melhor dos seus discípulos é o Peregrino Sun. Nem preciso lhe lembrar que os poderes mágicos dele são incomparáveis e que pode derrotar qualquer monstro que cruze seu caminho. Se não fizer o que estou dizendo, ele irá fazê-lo em pedaços antes que você escolha o lugar do túmulo." Mas, em vez de se assustar, o monstro ficou ainda mais furioso e respondeu: "Quem é esse Peregrino Sun? Eu juro que, se ele aparecer por aqui, vou arrancar sua pele, tirar os tendões e os ossos e depois comerei o coração dele. Não me importa se esse maldito macaco é gordo ou magro, porque, depois de fazê-lo em pedaços, vou fritá-lo na minha frigideira."
Ao ouvir isso, o Peregrino ficou tão furioso que começou a pular como um louco e a arranhar as próprias bochechas de raiva, enquanto gritava:
— Quem é esse monstro que ousa zombar de mim desse jeito?
— Acalme-se, por favor — aconselhou Bajie. — Eu já lhe disse que é o Monstro da Túnica Amarela.
— Levante-se, vamos! — ordenou o Peregrino. — Eu preciso enfrentar essa besta o quanto antes. Não vou sossegar enquanto não derrotá-lo. Ninguém jamais me tratou com tanto desrespeito! Há quinhentos anos, quando causei aquela confusão nos Céus, todos os guerreiros celestiais se inclinavam diante de mim assim que me viam. Eles me respeitavam tanto que me chamavam de Grande Sábio. Como esse monstro arrogante ousa zombar de mim assim? Só capturando e fazendo-o em pedaços poderei restaurar minha honra ferida. Quando eu terminar, voltarei para cá.
— Isso é exatamente o que acabei de te pedir — respondeu Bajie. — Primeiro, capture o monstro. Quando limpar seu nome, volte para os seus domínios, se é o que deseja.
Com um salto, o Grande Sábio desceu da rocha em que estava sentado e entrou apressado na caverna. Lá, tirou suas vestes de monstro e trocou por sua camisa de seda e sua túnica de pele de tigre. Vestido assim, saiu pouco depois com sua barra de ferro nas mãos. Confusos, os macacos relutavam em deixá-lo partir e perguntavam insistentemente:
— Para onde você vai? Não seria melhor para todos que ficasse aqui conosco, nos protegendo e aproveitando o tempo como quiser?
— Cuidado com o que dizem — aconselhou o Peregrino. — Não é um assunto simples eu ter me tornado o protetor do monge Sanzang. O Céu e a Terra sabem que eu, Sun Wukong, sou seu discípulo. Quando ele me afastou, não foi para sempre. Ele pediu que eu descansasse um pouco e depois voltasse para continuar a jornada. As coisas são assim, e não há como mudar. Cuidem de tudo aqui e não se esqueçam de plantar salgueiros e pinheiros. Voltarei quando o monge Sanzang tiver conseguido as escrituras e as levado, são e salvo, para as Terras do Leste. Só então terei alcançado um mérito imperecível e poderei voltar para desfrutar da natureza ao lado de vocês.
Diante dessas palavras, os macacos não ousaram mais se opor aos planos dele. O Grande Sábio então subiu numa nuvem e, acompanhado de Bajie, cruzou o Grande Oceano Oriental. Ao chegar à costa ocidental, ele pousou a nuvem de repente e disse ao irmão:
— Deixe-me parar um momento para que eu possa me purificar nas águas do oceano.
— Por que você precisa tomar banho agora? — resmungou Bajie. — Estamos com pressa!
— Você não entende — explicou o Peregrino. — Embora eu tenha ficado afastado por poucos dias, adquiri um cheiro de monstro que nem eu suporto. Sei o quanto o mestre valoriza a limpeza, e temo que ele se irrite comigo se eu aparecer assim diante dele.
Só então Bajie percebeu quão honrado e sincero era o Peregrino. O Grande Sábio não demorou muito no banho, e logo retomaram a viagem em direção ao oeste. Pouco depois, avistaram o brilho ofuscante de algo que parecia uma pagoda dourada. Bajie apontou com o dedo e disse:
— Essa é a morada do Monstro da Túnica Amarela. O Monge Sha ainda está lá dentro.
— Fique aqui enquanto eu vou enfrentar aquele maldito monstro — ordenou o Peregrino. — Já é hora de ele receber o que merece.
— Não faça isso — sugeriu Bajie. — O monstro não está em casa agora.
— Eu sei — respondeu o Peregrino, saltando da nuvem assim mesmo.
Assim que tocou o solo, dirigiu-se diretamente à entrada da caverna, onde encontrou dois meninos brincando de bola. Um tinha entre oito e nove anos, enquanto o outro acabara de completar dez. O Peregrino se aproximou deles e, sem se importar com suas idades ou de que família pertenciam, agarrou-os pelos cabelos e os ergueu no ar. Aterrorizados, os meninos começaram a gritar, atraindo a atenção dos diabretes que guardavam a entrada da Caverna da Corrente Lunar. Eles correram imediatamente para informar a princesa:
— Alguém levou os dois jovens príncipes, senhora!
Os meninos eram, de fato, filhos da princesa e do monstro. Ao ouvir a notícia alarmante, a princesa saiu correndo, desesperada, para fora da caverna. O Peregrino estava de pé no alto de um penhasco, segurando firmemente os garotos, pronto para jogá-los nas pedras abaixo.
— Ei, você! — gritou a princesa, apavorada. — Por que pegou essas crianças, se não tivemos nenhum conflito? Aviso que o pai delas é muito colérico, e se algo acontecer a eles, você vai pagar caro!
— Não me reconhece? — perguntou o Peregrino. — Sou Sun Wukong, o discípulo mais antigo do monge Tang, e sei que vocês têm meu irmão, o Monge Sha, prisioneiro. Se o libertar, eu devolvo esses dois meninos. É um bom negócio para você. Afinal, estou oferecendo dois por um.
A princesa correu para dentro da caverna e ordenou que os monstros que guardavam a entrada se afastassem. Ela mesma se encarregou de libertar o Monge Sha.
— É melhor não fazer isso, princesa — aconselhou o Monge Sha. — Se seu marido voltar e quiser me ver, ele vai ficar furioso com você de novo.
— Você é meu benfeitor — afirmou a princesa. — Não só enviou a carta que pedi, como também salvou minha vida. Eu estava tentando encontrar uma maneira de libertá-lo quando Sun Wukong apareceu exigindo sua libertação.
Ao ouvir o nome de Sun Wukong, o Monge Sha sentiu sua cabeça girar como se fosse efeito de um licor, e seu coração se encheu de alegria, como se estivesse sendo banhado por um doce orvalho. A felicidade parecia transbordar de cada poro de seu corpo, e seu rosto se iluminou como se fosse a própria primavera. Sua reação não foi como a de quem apenas ouve falar da chegada de alguém, mas como a de quem encontra um lingote de ouro ou um bloco de jade. Enquanto sacudia o pó de suas roupas, ele saiu da caverna e, inclinando-se diante do Peregrino, exclamou, radiante:
— Vocês chegaram como uma bênção dos céus! Tenham piedade de mim, eu suplico.
— Por que você é tão duro comigo? — protestou o Monge Sha. — Todos dizem que um verdadeiro cavalheiro sempre perdoa e esquece. Nós não passamos de comandantes de um exército derrotado. De que nos servem as justificativas agora? Tenha piedade de nós e nos salve!
— Está bem — concluiu o Peregrino. — Suba aqui.
O Monge Sha saltou até o topo do penhasco. Ao vê-lo escapar da prisão, Bajie também se lançou do alto, gritando, louco de alegria:
— Você deve ter sofrido muito! Que provação horrível!
— Onde você estava? — perguntou o Monge Sha.
— Depois de ser derrotado — explicou Bajie —, eu entrei na cidade à noite e, com a ajuda do cavalo, descobri que o mestre estava em uma situação crítica. O Monstro da Túnica Amarela o havia transformado em um tigre, e o cavalo sugeriu que eu convencesse nosso irmão a voltar.
— Deixemos as fofocas de lado agora — disse o Peregrino. — Levem essas crianças até a cidade do Elefante Sagrado. Não tenho dúvidas de que o monstro vai ficar furioso quando perceber que elas foram levadas e os seguirá até aqui. Tentem provocá-lo, para que eu possa matá-lo mais facilmente.
— Como você quer que o provoquemos? — perguntou o Monge Sha.
— Montem em uma nuvem e se posicionem exatamente acima do Palácio dos Carilhões de Ouro — sugeriu o Peregrino. — Depois, só precisam fazer uma coisa: joguem as crianças, modo que caiam o mais perto possível dos degraus de jade branco. Se alguém perguntar de quem são filhos, simplesmente respondam que são do Monstro da Túnica Amarela e que vocês os capturaram sozinhos. Quando o monstro souber disso, ele vai tentar persegui-los, e vocês o trarão para cá. Não quero enfrentá-lo dentro da cidade, porque a luta levantaria lama e poeira, e toda a população, inclusive a corte, sofreria as consequências.
— Não sei como você consegue — disse Bajie, sorrindo —, mas sempre que você faz alguma coisa, sobra para nós a pior parte.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou o Peregrino.
— Esses dois garotos estão apavorados — disse Bajie. — Veja você mesmo. Eles gritaram tanto que já estão completamente roucos. E agora você quer que eles sejam despedaçados contra o chão, transformados em um monte irreconhecível de carne? Acha mesmo que o monstro vai nos deixar escapar depois disso? Nem em sonho! No menor descuido, ele vai acabar conosco. Além disso, quem nos garante que você não vai precisar se retirar em algum momento? Isso não é deixar a parte mais difícil para nós?
— Se ele se voltar contra vocês, tragam-no para cá — repetiu o Peregrino. — Este lugar é ideal para uma batalha. Lembrem-se, estarei esperando por ele aqui.
— Você tem razão — admitiu o Monge Sha. — Vamos, é melhor irmos logo.
Antes de terminar de falar, eles pegaram as crianças, subiram em uma nuvem e seguiram em direção à cidade. O Peregrino, por sua vez, pulou da rocha onde estava sentado e se dirigiu à porta da pagoda.
obs: embora a imagem mostre o Monge Sha e Zhu Bajie indo embora sem as crianças, a história deixa claro que eles as levaram. Talvez seja de uma versão atenuada da história. |
— Ei, você! — gritou a princesa. — É assim que cumpre suas promessas? Não dá para confiar em você! Disse que soltaria as crianças assim que eu libertasse seu amigo. Eu cumpri minha parte, então por que você não cumpriu a sua? Além disso, para onde as levou?
— Não fique brava comigo, princesa — respondeu o Peregrino, rindo. — Você passou tempo demais aqui, e achei que seria conveniente deixar seus filhos aos cuidados do avô deles.
— Cuidado com o que faz, monge — advertiu a princesa. — Meu marido, o Monstro da Túnica Amarela, não é um homem comum. Se assustar as crianças, você terá que acalmá-las antes que ele as veja.
— Sabe qual é o pior crime que um ser humano pode cometer neste mundo? — perguntou o Peregrino.
— Claro que sei — respondeu a princesa.
— Como você pode saber, se não passa de uma mulher? — provocou o Peregrino.
— Meus pais me ensinaram isso no palácio quando eu era pequena — respondeu a princesa. — Lembro de ter lido em um livro antigo: "Com os cinco castigos (3), podem-se remediar mais de três mil crimes, sendo o maior deles desobedecer aos deveres da piedade filial (4)."
— Parece que você não tem se destacado muito nessa virtude — comentou o Peregrino. — Lembre-se do que diz o poema: "Meu pai me deu a vida e minha mãe cuidou de mim com esmero. Quantas calamidades ambos sofreram para me criar!(5)" A piedade filial é, de fato, a base da moralidade e o alicerce da virtude. Como você pôde se entregar em casamento a um monstro, esquecendo completamente seus pais? Isso não é uma violação grave da piedade filial?
A princesa ficou tão envergonhada que baixou a cabeça, com o rosto vermelho como uma romã. Quando finalmente conseguiu se recompor, disse timidamente:
— Sei que suas palavras vêm de um profundo senso de justiça. Vocês têm razão em se perguntar como pude esquecer meus pais. Mas devem lembrar que todos os meus problemas começaram quando o monstro me sequestrou e me trouxe para cá à força. Como devem imaginar, ele tem um temperamento muito forte e não me deixa viajar para lugar algum. Além disso, a distância é imensa, o que me impediu de pedir ajuda. No começo, pensei em tirar minha própria vida, mas depois percebi que, longe de suspeitar da desgraça que me acometeu, meus pais acreditariam que eu fugi com algum amante desconhecido. Pensando bem, isso os consolaria, então optei por continuar vivendo. O que mais eu poderia fazer? Contudo, sei que isso não me justifica, e que no mundo inteiro não há pessoa mais pecadora do que eu.
— Não precisa se martirizar tanto — aconselhou o Peregrino, vendo a princesa cada vez mais imersa em lágrimas. — Bajie me contou que você salvou a vida do meu mestre e entregou uma carta para seus pais. Isso mostra que ainda guarda amor por eles e que esse sentimento não desapareceu por completo. Posso lhe garantir que os dias do monstro estão contados. Assim que eu lhe der o que merece, você poderá voltar ao palácio, casar-se com um cavaleiro digno de você e cuidar dos seus pais quando chegar a amarga hora da velhice.
— Acho que você está sendo muito confiante — retrucou a princesa. — Veja bem. Seus irmãos são muito fortes, e mesmo assim não conseguiram dominar meu marido, o Monstro da Túnica Amarela. Como pretende fazer isso, você, que é muito mais frágil, parecendo um espírito de tão magro que está? É só pele e ossos, como um caranguejo ou um esqueleto ambulante. Que tipo de poderes você tem para se achar um caçador de monstros?
— Parece que você não sabe julgar as pessoas — disse o Peregrino, rindo. — Como diz o provérbio, "por mais longa que seja uma bolha de urina, ela não pesa nada, enquanto um pedacinho de ferro sempre pesa". O mesmo se aplica a mim e aos meus irmãos. Eles podem parecer muito fortes, mas na verdade não valem grande coisa. São como montanhas ocas por dentro. Tudo o que comem não serve de nada, porque os músculos deles estão totalmente atrofiados. Eu, por outro lado, admito que sou mais magro, mas posso garantir que sou infinitamente mais resistente que eles.
— Você realmente possui poderes especiais? — insistiu a princesa.
— Você nunca viu poderes como os que eu tenho — confirmou o Peregrino. — Na verdade, minha especialidade é dominar monstros e demônios.
— Nesse caso — concluiu a princesa —, é melhor que você não me arranje mais problemas do que os que já tenho.
— Pode ter certeza de que não farei isso — tranquilizou-a o Peregrino.
— De qualquer forma, pode me explicar como pretende capturá-lo? — insistiu a princesa.
— Quando a luta começar, aconselho que você se esconda — respondeu o Peregrino. — Assim me sentirei mais à vontade. Temo que você ainda tenha algum sentimento por ele, e não poderei atacá-lo como deveria sabendo que você está por perto, espiando.
— O que quer dizer com isso? — exclamou a princesa.
— Que você e esse monstro foram marido e mulher por mais de treze anos — respondeu o Peregrino. — É tempo demais para não ter algum afeto por ele. Garanto que, quando eu o enfrentar, não irei pegar leve. Meu bastão de ferro é praticamente indestrutível e meus punhos podem desmoronar montanhas. O que quero dizer é que, antes de levá-la de volta ao seu lar, terei que matá-lo.
A princesa achou sensata a sugestão do Peregrino e se retirou para um lugar afastado. Era como se tivesse entendido que seu casamento com o monstro estava chegando ao fim, e já não havia nada que pudesse ser feito para impedir. Os decretos do céu, por mais duros que pareçam, sempre se cumprem.
Assim que a princesa se escondeu, o Rei dos Macacos sacudiu o corpo uma única vez e transformou-se em uma réplica exata dela. Disfarçado dessa maneira, entrou na caverna e ficou à espera do monstro.
Enquanto isso, Bajie e o Monge Sha levaram as duas crianças ao Reino do Elefante Sagrado e, sem piedade, as lançaram contra as escadas de jade branco. Seus corpos ficaram irreconhecíveis, espalhando sangue por todo o lugar.
— Que coisa horrível! — gritaram, aterrorizados, os funcionários reais. — Agora, ao invés de chover, caem crianças do céu!
— Esses dois garotos eram filhos do Monstro da Túnica Amarela — disse Bajie lá de cima. — O Monge Sha e eu os capturamos.
O monstro estava dormindo tranquilamente no Salão da Paz de Prata, ainda embriagado, quando de repente ouviu alguém gritar seu nome. Virou-se pesadamente e, ao olhar para cima, viu Bajie e o Monge Sha de pé sobre uma nuvem sagrada.
obs 2: Mais uma vez a imagem mostra algo diferente do narrado na história: o Monge Sha e Zhu Bajie provocando o Monstro da Túnica Amarela de fora do palácio, mas em terra firme. Ao que parece, na versão de onde essas imagens foram tiradas, eles não trouxeram os filhos do monstro consigo. |
— Não pode ser! — exclamou o monstro, desconcertado. — Eu até poderia admitir que se trata de Bajie, mas não do Monge Sha. Na verdade, ele está amarrado e bem preso na minha mansão. Como pode estar aqui agora? Tenho certeza de que minha esposa não o deixou escapar assim tão fácil. E como meus dois filhos foram parar nas mãos deles? Será tudo uma armadilha do Bajie para me forçar a lutar? Tudo bem, se é isso que ele quer, então ele vai ter, mas estou com uma ressaca tão terrível que mal consigo ficar em pé. Nessa condição, não posso enfrentar seu ancinho. Se eu fizer isso, certamente serei derrotado e toda a minha reputação irá por água abaixo em um instante. O melhor que posso fazer é voltar para casa e ver se realmente são meus filhos. Depois, veremos o que pode ser feito com esses monges.
Sem se despedir do rei, ele correu rapidamente em direção à montanha onde estava sua caverna. Nesse momento, toda a corte já sabia que se tratava de um monstro. Não era segredo para ninguém que, durante a noite, ele havia devorado uma das donzelas. Na verdade, as outras dezessete que conseguiram escapar informaram imediatamente ao rei, que soube do fato lamentável até mesmo antes da quinta vigília. A partida repentina do monstro só confirmou o que todos já sabiam. Assim, o rei não teve escolha a não ser ordenar que seus soldados guardassem com cuidado o tigre que permanecia preso dentro do palácio.
O monstro não demorou a chegar à caverna. Ao vê-lo, o Peregrino rapidamente traçou um plano. Ele apertou os olhos com tanta força que lágrimas começaram a escorrer, como um torrente. Ao mesmo tempo, começou a se golpear no peito, gritando descontroladamente e preenchendo toda a caverna com o som de seus gritos. Ao encontrá-lo naquele estado, o monstro não percebeu que não se tratava de sua esposa. Aproximando-se dele, ele o abraçou com carinho e perguntou, preocupado:
— O que aconteceu com você?
Reunindo toda a sua imaginação, o Grande Sábio respondeu, intensificando o ritmo de seus lamentos:
— Que terrível desgraça, esposo e senhor! Como diz o provérbio: “um homem sem mulher desperdiça suas riquezas, enquanto uma mulher sem marido está à mercê de todos os ventos”. Por que você não voltou depois de visitar meus parentes? Se tivesse retornado ontem mesmo, teria impedido que Bajie libertasse o Monge Sha e, o que é pior, sequestrasse nossos filhos. Com lágrimas nos olhos, eu implorei para que os deixasse em paz, mas ele respondeu que iria levá-los para o meu pai, para que se encarregasse da educação deles. Já se passou um dia inteiro e não recebi notícias, não sei se estão vivos ou mortos. Por que você demorou tanto a voltar? Se tivesse feito o que eu pedi, nada disso teria acontecido e eu não estaria tão inquieta agora.
— É verdade tudo isso? — perguntou o monstro, fora de si.
— Com certeza! — respondeu o Peregrino. — Bajie levou nossos filhos.
— Maldito seja mil vezes seu espírito! — bradou o monstro, tomado pela dor, saltando de um lado para o outro. — Esse imbecil matou nossos filhos, jogando-os de uma altura incrível. Não há nada que possa trazê-los de volta à vida! A única coisa que posso fazer é capturar aquele monge e dar a ele o que merece. É inútil chorar e lamentar. As lágrimas nunca resolvem nada. Tente se recuperar e descanse um pouco.
— Estou bem — respondeu o Peregrino. — Mas não consigo evitar sentir falta das crianças e nem de apaziguar esta dor que está me destruindo por dentro. Espero que minhas lágrimas não lhe incomodem.
— Não se preocupe — tentou tranquilizá-lo o monstro. — Levante-se. Aqui tenho um remédio infalível contra a dor. Passe-o no local exato onde sentir desconforto, e você se sentirá aliviada instantaneamente. No entanto, deve evitar tocar com o polegar; caso contrário, eu me revelarei a você como realmente sou.
— Que monstro mais estúpido! — pensou o Peregrino, sorrindo. — Nunca imaginei que ele pudesse ser tão sincero. Viu só? Sem ser torturado, ele confessou mais do que queria. Assim que me trouxer esse remédio maravilhoso de que fala, vou enfiar meu dedo gordo nele e, assim, descobrirei que tipo de monstro ele é.
O monstro abraçou o Peregrino e o conduziu para o interior da caverna. Lá, ele abriu cuidadosamente a boca e retirou um objeto que, pela forma e tamanho, parecia um ovo de galinha. Na verdade, era um elixir tão branco e cristalino quanto as cinzas de um Buda após ser purificado pelo fogo (6).
— Que coisa mais extraordinária! — exclamou para si o Peregrino, satisfeito. — Só o Céu sabe quantas horas de meditação, anos de provas e sofrimentos, e combinações dos princípios masculinos e femininos foram necessárias para criar essa maravilha. Está claro que hoje é meu dia de sorte.
O macaco pegou cuidadosamente o remédio e, mesmo sem sentir dor alguma, esfregou-o por todo o corpo. Assim que terminou, esticou o polegar e mergulhou-o completamente naquele unguento benéfico. Aterrorizado, o monstro estendeu o braço e tentou tirá-lo das mãos do Peregrino. Mas o macaco era muito ágil e escorregadio; colocando o remédio rapidamente na boca, engoliu-o em um abrir e fechar de olhos. O monstro levantou o punho e o deixou cair contra o Peregrino, que o parou sem dificuldade com o braço. Em seguida, passou a mão pelo rosto, recuperando sua forma habitual, e gritou:
— Não seja tão desrespeitoso, monstro! Olhe para mim! Sabe quem sou?
— Santo céu! — exclamou o monstro, aterrorizado com o que via. — Como você conseguiu, mudar seu rosto dessa forma, minha esposa?
— Mas como você é ingênuo! — zombou o Peregrino. — Eu não sou sua esposa. Você não consegue nem reconhecer seus antepassados.
— Acho que já sei quem você é — replicou o monstro, percebendo o que estava acontecendo.
— Vou lhe dar mais uma oportunidade, antes de lhe dar uma surra — disse o Peregrino. — Olhe para mim com atenção.
— Devo reconhecer que seu rosto me parece muito familiar, embora, para ser sincero, no momento não lembre seu nome — respondeu o monstro. — Pode me dizer quem você é e de onde vem? Por que também adotou a forma da minha mulher e teve a ousadia de roubar meu precioso unguento? Você tem que admitir que isso não é nada certo.
— Então você não me reconhece, né? — repetiu o Peregrino, um tanto decepcionado. — Sou o primeiro discípulo do monge Tang e me chamo Peregrino Sun Wukong. Pelo que vejo, sou também seu antepassado, pois minha idade ultrapassa em muito os quinhentos anos.
— Isso não é verdade! — protestou o monstro. — Quando capturei o monge Tang, ele me disse que tinha apenas dois discípulos: um chamado Zhu Bajie e o outro, chamado Monge Sha. Nunca mencionou que tivesse outro chamado Sun, então deduzo que você não passa de um demônio vulgar que veio aqui apenas para me enganar.
— Em parte, você está certo — reconheceu o Peregrino. — Mas deve saber que, se ele não me mencionou, foi porque tivemos um desentendimento por causa de um incidente com um monstro que eu matei. Como você deve ter percebido, meu mestre é uma pessoa muito sensível e compassiva. O que há de estranho, então, em eu ter me afastado dele ao ver tanto sangue? Esse é o motivo de eu não estar com ele quando você o capturou. Você ainda não percebeu quem sou?
— O que você é, na verdade, é um ser desprezível! — bradou o monstro, com desdém. — Seu mestre te expulsa de seu lado e você ainda tem a cara de pau de olhar as pessoas nos olhos?
— Monstro sem vergonha! — gritou o Peregrino. — Parece que você não entende o ditado que diz:"quem foi seu mestre uma vez se torna um pai para a vida toda". Ou o outro que diz: "entre pai e filho nunca pode haver verdadeira inimizade". Como eu não iria ajudar meu mestre, sabendo que você estava tentando arruiná-lo? Mas você não se contentou apenas com isso, não! Você ainda me insultou à vontade. O que tem a dizer sobre isso?
— Você quer me explicar quando foi que eu te insultei? — protestou o monstro.
— Não negue! — insistiu o Peregrino. — O próprio Zhu Bajie me contou.
— Não acredite nele — aconselhou o monstro. — Esse Zhu Bajie tem a língua de uma velha fofoqueira. Não entendo como você pode dar ouvidos às palavras dele.
— Isso não tem nada a ver — respondeu o Peregrino. — Veja, estou na sua casa o dia todo e você ainda não me mostrou a hospitalidade que se deve a alguém que veio de tão longe. Pode ser que você não tenha comida nem vinho suficientes, mas aviso que isso não me importa. Você só precisa esticar o pescoço e deixar eu lhe dar um bom golpe com meu bastão. Para mim, será como se eu tivesse tido um banquete farto.
— Você não sabe nem o que está dizendo, Peregrino Sun! — exclamou o monstro, soltando uma gargalhada. — Se você queria lutar, não precisava me trazer até aqui. Tenho centenas de pequenos demônios de todas as idades sob minha responsabilidade. Você poderia enfrentá-los tranquilamente e resolver a questão. Ainda está a tempo de fazer isso. Tente sair por aquela porta e, mesmo que tenha mais braços que um inseto, você verá o que vai acontecer.
— Não tente me assustar com essas bobagens! — respondeu o Peregrino. — O que são, afinal, várias centenas de demônios para mim? Eu acabaria facilmente com todos eles, mesmo que fossem centenas de milhares. Se quiser fazer o teste, basta chamá-los. Garanto que nenhum deles escapará da marca do meu bastão. Todos desaparecerão como a poeira das árvores. Eu lhe garanto!
O monstro levantou a voz e ordenou aos seus monstros e demônios que cercassem a montanha imediatamente. Em um piscar de olhos, as bestas ocuparam os pontos mais estratégicos da caverna, bloqueando efetivamente todas as saídas. O Peregrino parecia encantado com essa demonstração de força. Ele segurou firmemente o bastão e gritou:
— Transforme-se! — e, instantaneamente, se tornou um ser de três cabeças e seis braços. Com um simples movimento, o bastão, que tinha extremidades de ouro, se multiplicou por três.
Brandindo as armas com incrível eficácia, o Peregrino lançou-se contra a massa de monstros e demônios, como um tigre atacando um rebanho de ovelhas ou uma águia mergulhando em um ninho de filhotes. As cabeças dos monstros foram reduzidas a pedaços, enquanto seu sangue escorria como água. O Peregrino os atacava repetidamente, como se fosse um exército invadindo uma região densamente povoada. Ao final de seus ataques, restou apenas o monstro, que o forçou a sair da caverna, gritando:
— Maldito macaco! Poucos seres são tão malignos e cruéis como você! Como você se atreve a perturbar as pessoas na porta de sua própria casa?
O Peregrino virou-se rapidamente para ele e respondeu, gesticulando com as mãos:
— Venha! Até que eu termine com você, nada do que fiz terá valor!
O monstro levantou a cimitarra e desferiu um golpe terrível sobre a cabeça de seu adversário antes de se esquivar. Felizmente, o Peregrino levantou o bastão de ferro a tempo e desviou do golpe mortal. O combate entre aqueles lutadores experientes ocorria no alto da montanha, a meio caminho entre as nuvens e a neblina. Se os poderes mágicos do Grande Sábio eram impressionantes, os do monstro não ficavam atrás. Ambos eram lutadores habilidosos, que golpeavam incessantemente os flancos um do outro com o bastão de ferro e a cimitarra de aço. Esta brilhava com luz própria entre a neblina, enquanto aquele dispersava, com inimaginável energia, as densas cores das nuvens. Os guerreiros giravam sem parar, avançando e recuando, tentando proteger a cabeça e manter o corpo ileso. Todas as precauções eram poucas. Não sem razão, um mudava de aparência sendo levado pelo vento, enquanto o outro se mantinha firme no chão. O Peregrino abria ao máximo seus ferozes olhos de macaco, enquanto o monstro respondia com suas pupilas dilatadas de tigre e um ágil movimento de cintura, mais característico de um tigre do que de um demônio. Golpe a golpe de cimitarra e bastão, o combate desfiava seu rosário de ataques mortais. O Rei dos Macacos se ajustava perfeitamente à arte da luta, assim como o monstro, que seguia à risca as normas da guerra. Que importava se um usava todo seu poder para proteger o monge Tang e o outro para manter sua posição como senhor da montanha? A crescente ferocidade do Rei dos Macacos tinha uma resposta à altura na violência ascendente do monstro. Alheios à vida ou à morte, lutaram sem descanso no ar, tudo em nome do empenho do monge Tang em conseguir as escrituras sagradas.
Mais de cinquenta vezes mediram suas armas, sem que se vislumbrasse um possível vencedor. Longe de se desanimar com isso, o Peregrino pensou, satisfeito:
— A cimitarra desse monstro é digna de rivalizar com meu bastão de ferro. Vamos ver se ele também é à altura. Vou preparar uma armadilha para ver se consegue descobri-la.
Ele segurou o bastão com as duas mãos e o levantou acima da cabeça, usando um estilo conhecido como "teste do cavalo". O monstro não percebeu que se tratava de um truque simples. Ao notar a facilidade da situação, agarrou a cimitarra com força e desferiu um golpe poderoso na parte inferior do corpo do Peregrino. Este usou a técnica chamada "nível médio" para contrabalançar o efeito da cimitarra e, em seguida, recorreu ao estilo conhecido como "ladrão de pêssegos sob as folhas". Com toda sua força, conseguiu desferir um golpe tão certeiro na cabeça do monstro que ele se desintegrou completamente. Ao olhar para trás, o Peregrino não conseguiu encontrá-lo em lugar algum.
— É estranho que você resista tão pouco — exclamou para si mesmo, sem acreditar totalmente. — Um único golpe foi suficiente para te derrotar. No entanto, é esquisito que não tenha sobrado nem rastro de você. Como é possível que não haja sangue, pus ou nada? Não pode me enganar tão facilmente. O mais provável é que você tenha escapado em um descuido.
Para verificar, ele saltou até a borda das nuvens. Olhou cuidadosamente em todas as direções, mas não percebeu nenhum movimento.
— Que estranho! — disse novamente o Rei dos Macacos. — Meus olhos são capazes de ver tudo que rasteja a dez mil quilômetros. Como esse monstro pôde desaparecer com tanta facilidade? Estou começando a entender! Ele disse que me conhecia de algum lugar, e isso, sem dúvida, quer dizer que não se tratava de um monstro qualquer deste mundo, mas de um espírito do próprio céu.
Incapaz de controlar a raiva que sentia, o Grande Sábio fez uma extraordinária pirueta que o levou diretamente à Porta Sul do Céu. Ao vê-lo aparecer de repente com o bastão de ferro nas mãos, os capitães Pang, Liu, Kou, Pi, Tang, Hsin, Chang e Tao ficaram tão surpresos que se inclinaram diante dele, sem se atrever a detê-lo ou perguntar nada. Logo, ele chegou ao Salão da Luz Perfeita, onde os preceptores divinos Chang, Gao, Hsü e Chiou ousaram finalmente perguntar-lhe:
— Podemos saber por que o Grande Sábio se dignou a nos honrar com sua visita?
— Seguindo os passos do monge Sanzang — respondeu o Peregrino —, cheguei ao Reino do Elefante Sagrado, onde encontrei um monstro que, há tempos, seduziu uma princesa e agora buscava a ruína do meu mestre. Como podem imaginar, lutei contra ele, mas, no meio da batalha, ele desapareceu completamente da minha vista. Isso me fez pensar que não se tratava de um monstro comum, mas de um espírito do próprio céu. Se estou aqui agora, é precisamente para investigar se algum dos deuses de menor hierarquia abandonou seu posto.
Ao ouvir isso, os Preceptores Divinos correram para dentro do Salão da Névoa Divina para informar o Senhor do Céu. Imediatamente, foi dada uma ordem convocando os Nove Planetas, as Doze Divisões Horárias, as Cinco Estrelas dos Cinco Pontos Cardeais, os incontáveis deuses da Via Láctea, os deuses das Cinco Montanhas e os Quatro Rios para se apresentarem sem demora diante do Imperador Celeste. Todas as divindades atenderam rapidamente ao chamado, e a investigação continuou além do Grande Palácio do Mirlo.
Lá, as Vinte e Oito Constelações foram contadas várias vezes, e descobriram que só havia vinte e sete. Para surpresa de todos, faltava a Estrela do Lobo de Madeira (7). Os preceptores então voltaram ao Salão do Trono e informaram Sua Majestade, dizendo:
— A Estrela do Lobo de Madeira está nas Regiões Inferiores, senhor.
— Há quanto tempo está ausente do Céu? — perguntou o Imperador de Jade.
— Quatro chamadas ordinárias — responderam os preceptores —, totalizando treze dias, senhor.
— Treze dias no Céu equivalem a treze anos na Terra — concluiu o Imperador de Jade, que imediatamente ordenou ao departamento da própria estrela que a trouxesse de volta ao Céu o mais rápido possível.
Assim que receberam a ordem, as Vinte e Sete Constelações abandonaram a Porta Celeste e recitaram um feitiço que fez a Estrela do Lobo de Madeira retornar instantaneamente. Na verdade, era um guerreiro que havia sofrido as consequências da rebelião do Grande Sábio, que havia mergulhado o Céu em grande confusão. Naquele momento, a Estrela estava escondida em um riacho na montanha, cujos vapores haviam coberto completamente sua nuvem de monstro. Isso explicava por que ninguém conseguia vê-lo. No entanto, ao ouvir os feitiços de suas companheiras, ele se armou de coragem e decidiu voltar para as Regiões Superiores. Na porta, encontrou o Grande Sábio. Estava tão furioso que quis golpeá-lo com o bastão, mas, felizmente, as outras Estrelas conseguiram impedir o ataque.
Sem perder tempo, o monstro foi levado à presença do Imperador de Jade. Lá, tiraram-lhe a placa de ouro que carregava na cintura e, após se ajoelhar diante dos degraus de jade e bater a testa repetidamente contra eles, reconheceu seu erro.
— Estrela do Lobo de Madeira — questionou o Imperador de Jade com severidade —, por que você decidiu visitar secretamente a Região Inferior? Os prazeres e a beleza dos Céus não eram suficientes para você?
— Perdão, senhor, pela grave ofensa de seu indigno súdito — suplicou a Estrela, sem parar de bater a testa no chão. — A princesa do Reino do Elefante Sagrado não é uma mortal comum, mas sim a Menina de Jade encarregada do incenso no salão de mesmo nome. Desde sempre, ela quis estar comigo, mas eu sempre me recusei por medo de desonrar a sagrada região do Palácio Celestial. Ela não desanimou e foi ao Mundo Inferior, onde tomou forma humana dentro do palácio imperial. Não querendo desrespeitá-la, fui obrigado a me transformar em um monstro. Depois, conquistei uma montanha e, após sequestrá-la e levá-la para minha caverna, nos tornamos marido e mulher. Temos sido assim, de fato, por mais de treze anos. Mas, como tudo está determinado de antemão, a sorte quis que nos encontrássemos com o Grande Sábio Sun, e todos os nossos planos desmoronaram repentinamente.
O Imperador de Jade então ordenou que a placa de ouro fosse arrancada dele. Ao mesmo tempo, determinou que ele fosse desterrado para o Palácio Tushita, onde deveria se colocar sob as ordens de Lao-Tzu até que conquistasse méritos suficientes para recuperar sua antiga posição. Se não mostrasse diligência, receberia um castigo ainda maior.
Ao ver a decisão do Imperador de Jade, o Peregrino voltou-se para o trono, satisfeito, e inclinou levemente a cabeça. Depois, dirigiu-se às outras divindades e disse:
— Obrigado pelo esforço que vocês fizeram. Estou indo!
— Mas esse macaco é muito arrogante! — exclamou um dos preceptores divinos, soltando uma gargalhada. — Capturamos um monstro-deus para ele, e em vez de nos mostrar gratidão, ele apenas se inclina ligeiramente, como se não nos conhecesse.
— Devemos nos alegrar por ele não ter nos causado mais problemas e ter deixado os Céus em paz — comentou aliviado o Imperador de Jade.
Enquanto isso, o Grande Sábio montou em sua nuvem luminosa e se dirigiu à Caverna da Corrente Lunar, na Montanha da Panela, onde encontrou a princesa. Quando estava prestes a contar tudo o que aconteceu, ouviu Bajie e o Monge Sha gritando lá do alto:
— Deixe-nos alguns demônios para que possamos dar-lhes uma surra.
— Receio que não sobrou nenhum — respondeu o Peregrino.
— Nesse caso — concluiu o Monge Sha —, nada nos impede de seguir adiante. Vamos levar a princesa de volta aos seus pais o mais rápido possível. Para isso, seria melhor usarmos a magia de "encurtar a terra" e ganhar tempo.
A princesa achou que ouviu um vento forte e, de repente, se viu dentro da cidade. Os três monges a conduziram ao Palácio dos Carilhões de Ouro, onde ela se inclinou respeitosamente diante de seus pais e cumprimentou carinhosamente suas irmãs. Logo, vários funcionários imperiais se apresentaram e expressaram seu profundo reconhecimento.
— Devemos ser muito gratos ao Honrado Peregrino Sun — disse a princesa, dirigindo-se ao trono. — O poder de seu dharma é tão extraordinário que ele, sozinho, conseguiu derrotar o Monstro da Túnica Amarela e me trazer são e salva à sua presença.
— Que tipo de monstro era esse da Túnica Amarela? — perguntou o rei, curioso.
— Vossa Majestade — respondeu o Peregrino —, ele era nada menos que a Estrela do Lobo de Madeira, um ser das Regiões Superiores, assim como sua filha, que era uma das Donzelas de Jade, encarregada do incenso no salão de mesmo nome. Ambos desejavam viver neste mundo e, assim, desceram à Terra e tomaram forma humana. Eles estavam prometidos em uma vida anterior, mas, como não puderam consumar o casamento, tiveram que esperar por esta vida para realizar seus desejos. Quando fui ao Palácio Celestial para informar o Imperador de Jade, descobri que o monstro não havia comparecido a quatro chamadas consecutivas da corte celestial. Isso provava que ele estava ausente do Céu há treze dias, o que equivale a treze anos na Terra, já que os dias no Céu são tão longos quanto os anos aqui. O Imperador de Jade ordenou que o trouxessem de volta às Regiões Superiores, e ele foi desterrado para o Palácio Tushita até purificar seu espírito de toda desobediência. Com isso resolvido, fui autorizado a entregar-lhes sua filha perdida.
Após agradecer ao Peregrino por tudo o que fez, o rei disse:
— Vamos ver como está o seu mestre.
Os três discípulos seguiram o rei. Após deixarem a sala do tesouro, entraram em um amplo salão. Logo, vários soldados apareceram com uma jaula de ferro e soltaram as correntes que mantinham o tigre preso. Somente o Peregrino conseguia enxergar o verdadeiro homem por trás da fera. Dominado por uma magia diabólica, o mestre podia entender tudo o que acontecia ao seu redor, mas não conseguia se mover ou abrir os olhos e a boca.
— Como é que você, que sempre foi um excelente monge, acabou se transformando num tigre tão feroz? — perguntou o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Você me afastou porque achava que eu era malvado e violento. Para você, nada era mais importante do que a virtude. Com tais princípios, como foi possível se transformar em algo tão horrível?
— Pare de zombar dele e ajude-o a se livrar desse feitiço, por favor — suplicou Bajie.
— Você foi quem o colocou contra mim — respondeu o Peregrino. — Além disso, você se tornou o discípulo favorito dele. Por que não o salva você? Lembre-se do que eu disse: depois de derrotar a besta, voltarei imediatamente ao lugar de onde vim.
— Não faça isso, por favor — intercedeu o Monge Sha, ajoelhando-se com o rosto rente ao chão. — Os antigos sempre aconselhavam: faça o bem, não só pelos monges, mas por Buda. Faça isso pelo Perfeito! Não custa nada salvá-lo agora que você está aqui. Se pudéssemos fazer isso sozinhos, não teríamos percorrido um caminho tão longo para pedir sua ajuda.
— Que tipo de pessoa você pensa que eu sou? — perguntou o Peregrino, levantando as mãos. — Como eu poderia me recusar a salvá-lo? Tragam-me imediatamente um pouco de água!
Bajie correu até a casa de postas e pegou entre os pertences uma tigela de ouro avermelhado usada para pedir esmolas. Ele a encheu com água até a metade e voou de volta para entregá-la ao Peregrino. O Rei dos Macacos recitou um feitiço, bebeu um pouco e aspergiu o restante sobre o tigre.
Num instante, a magia diabólica desapareceu, e a imagem falsa do tigre se dissolveu completamente. O monge finalmente abriu os olhos e, ao reconhecer o Peregrino, segurou suas mãos e perguntou, emocionado:
— De onde você veio, Wukong?
O Monge Sha se levantou e contou em detalhes tudo o que havia acontecido. Sem saber como expressar sua gratidão, Sanzang exclamou:
— Que discípulo mais fiel! Você não sabe o quanto lhe devo! Espero que não demoremos muito para alcançar o Oeste. Quando nos encontrarmos novamente nas Terras Orientais, informarei ao Imperador dos Tang tudo o que você fez pelo bem da nossa missão.
— Não faça isso, por favor — disse o Peregrino, sorrindo. — Se quer me recompensar de alguma forma, pare de recitar aquela coisa que você e eu bem conhecemos, e eu lhe serei eternamente grato.
O rei agradeceu aos quatro monges por tudo o que haviam feito e ordenou que preparassem um esplêndido banquete vegetariano na ala oriental do palácio. Após alguns dias desfrutando dos favores reais, o mestre e seus discípulos se despediram de Sua Majestade e retomaram sua jornada rumo ao Oeste. O monarca e seus ministros os acompanharam por um bom trecho, sabendo que aquele grupo, a caminho do Palácio do Trovão para prestar respeito a Buda, havia contribuído significativamente para a segurança do império.
Não sabemos o que aconteceu depois, nem quando finalmente chegaram ao Paraíso Ocidental. Quem quiser descobrir, terá que ouvir com atenção o que será dito no próximo capítulo.
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Notas do Capítulo XXXI
- Os ensinamentos de Buda eram vistos como uma porta aberta para a iluminação, o que chamamos de "dharma-paryaya". Apesar das aparências, tudo o que existe é um só.
- O Caminho das Bifurcações refere-se às seis possibilidades de reencarnação, como já explicado na nota 5 do capítulo VIII.
- Até o século VI, os cinco grandes castigos eram considerados as marcas no rosto, a amputação do nariz, dos dois pés, a castração e a pena de morte. A partir desse momento, os castigos passaram a incluir o apedrejamento, os açoites, a escravidão, o exílio e a pena de morte. Mais recentemente, esse termo também se aplica a multas significativas, trabalhos forçados, escravidão, prisão perpétua e pena de morte;
- Os atos que vão contra a piedade filial estão classificados no clássico do mesmo nome, uma obra atribuída a Zeng Shen, discípulo de Confúcio;
- Referência a um poema do Livro de Odes.
- As cinzas resultantes da cremação de um santo ou de um buda são chamadas de "sarira" e têm um grande poder de proteção contra diversos perigos;
- Em chinês: 奎木狼, "Kui Mulang". Segundo a classificação das constelações feita pelos chineses, a constelação número XV, chamada "kui", está associada ao elemento madeira e ao animal lobo, razão pela qual recebe esse nome.
- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
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