10 de outubro de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo LXVII

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO LXVII:

APÓS SALVAR TUOLUO, A NATUREZA ZEN SE MANTÉM FIRME. AO ESCAPAR DA IMPUREZA, A MENTE DO TAO CONSERVA-SE PURA.

Contávamos que o monge Tang e seus três discípulos retomaram a estrada, aliviados por finalmente deixarem para trás o Pequeno Paraíso Ocidental. Após cerca de um mês de viagem, a primavera chegou ao fim. As árvores já haviam florescido, mas as tempestades se tornaram cada vez mais frequentes, e as chuvas repentinas dificultavam o avanço dos viajantes.Um dia, a chuva os surpreendeu justamente quando a noite começava a cair. Sanzang, desanimado, puxou as rédeas do cavalo e exclamou:

— Onde vamos encontrar abrigo? Está cada vez mais difícil seguir em frente!

— Para que tanta preocupação? — riu o Peregrino. — Mesmo que não haja nenhuma aldeia por perto, não iremos passar a noite ao relento. Somos espertos demais para isso. Bajie pode arrancar alguns feixes de capim, o Monge Sha derruba alguns pinheiros, e eu construo uma cabana com esse material. Por incrível que pareça, sou um carpinteiro tão bom que daria para morarmos nela por um ano inteiro.

— Como pode dizer uma coisa dessas? repreendeu-o Bajie. — Esse lugar não é adequado para se viver. A montanha está cheia de tigres e lobos, e espíritos se escondem embaixo de cada pedra. Como vamos passar a noite aqui, se até de dia é difícil andar por esses caminhos?

— Você está cada vez mais covarde! — zombou o Peregrino. — Do que há de ter medo, se eu sou capaz de sustentar o céu com a minha barra, caso ele resolva desabar?


Enquanto discutiam, surgiu diante deles uma pequena aldeia. O Peregrino, animado, acrescentou:

— Não estávamos falando em pernoitar? Pois ali está o lugar perfeito!

— Onde? — perguntou o mestre, surpreso, já que não enxergava nada.

— Naquela casa embaixo das árvores — respondeu o Peregrino, apontando com o dedo. Vamos até lá e pediremos abrigo por esta noite. Amanhã, assim que o sol nascer, seguimos viagem.

Sanzang ficou tão animado que esporeou o cavalo e se dirigiu à aldeia. Ao se aproximar dos portões de madeira da entrada, desmontou do cavalo e percebeu que estavam bem trancados. Então, bateu neles, gritando:

— Abram a porta! Abram a porta!

Não demorou para aparecer na porta um ancião com uma bengala na mão, sandálias de palha nos pés, um pano preto enrolado na cabeça e uma túnica completamente branca cobrindo seu corpo.

— Quem está fazendo tanto barulho? — perguntou o ancião, mal-humorado.

— Sou um humilde monge das Terras do Leste, em peregrinação ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras sagradas de Buda — respondeu Sanzang, juntando as mãos à altura do peito e curvando-se em respeito. — Ao atravessar esta nobre região, fomos surpreendidos pelo anoitecer e procuramos um lugar onde possamos descansar. Seria uma grande bondade oferecer-nos abrigo.


— Não duvido que estejam indo para onde disseram — replicou o ancião. — Mas posso afirmar que jamais chegarão ao seu destino. A distância é enorme, e os obstáculos, numerosos demais para um só homem. Além disso, atravessar esta região será um desafio quase insuportável.


— O que quer dizer com isso? — perguntou Sanzang, aflito.

— A aproximadamente oitenta quilômetros a oeste desta vila existe um desfiladeiro chamado de Polpa de Amora, situado dentro da Montanha dos Sete Extremos — respondeu o ancião.

— E por que lhe deram esse nome? — interrompeu-o Sanzang.

— Porque, embora se estenda por mais de mil e quinhentos quilômetros de comprimento — explicou o ancião —, está inteiramente coberto de amoreiras. Segundo os antigos, as amoreiras têm sete características extremas: vivem muito tempo, quase não dão sombra, não abrigam ninhos, seus troncos não sofrem com pragas, suas folhas resistem ao frio, seus frutos são menores que os de outras árvores, mas seus ramos são esplêndidos (2). Daí o nome da montanha. Como a região é quase deserta e poucos viajantes se atrevem a atravessá-la, as amoras amadurecem, caem e apodrecem no chão. A quantidade é tamanha que cobrem quase toda a trilha do desfiladeiro, que passa entre paredes muito íngremes. Com o frio intenso do inverno e o calor forte do verão, a fruta se decompõe e forma uma massa pútrida, conhecida pelos moradores como Desfiladeiro do Esterco Escorregadio. Quando sopra o vento oeste, ninguém aguenta o fedor. Felizmente estamos no fim da primavera, época em que os ventos costumam vir do sudeste. Caso contrário, estaríamos todos com o nariz tapado.

Sanzang ficou tão desolado ao ouvir aquilo que não soube o que dizer. Apenas o Peregrino perdeu a paciência e exclamou, irritado:

— Velho cabeça-dura! Viemos apenas pedir abrigo depois de uma longa e cansativa caminhada, e tudo o que tem a dizer é um monte de histórias para nos desanimar. Que tipo de pessoa sem compaixão é o senhor? Se não há espaço em sua casa, basta dizer, e nós nos ajeitamos debaixo das árvores para passar a noite. O que o senhor pretende com essa conversa fiada?


O ancião ficou desconcertado. Jamais tinha visto alguém com um rosto tão estranho quanto o daquele monge. Por alguns instantes, o espanto lhe tirou as palavras da boca, mas logo se recompôs e, apontando a bengala para o Peregrino, gritou, ofendido:

— Olha só quem vem me dar lições dentro da minha própria casa! Uma criatura de cara abatida, testa achatada, nariz chato, maxilar saliente e o rosto inteiro coberto de pelos! Como se atreve a tratar um velho como eu com tão pouco respeito?

— Percebe-se que, embora tenha olhos, não sabe usá-los direito — respondeu o Peregrino, esboçando um sorriso tranquilo. — Quem poderia me confundir com um espírito faminto? Como dizem os livros de fisionomia, "por mais estranhos que sejam os traços de um rosto, nunca se deve esquecer que até o jade mais puro pode estar escondido numa pedra bruta". É um erro grave julgar alguém apenas pela aparência. Posso ser feio, mas poucos têm qualidades tão boas quanto as minhas.


— De onde você vem? — perguntou o ancião, curioso. — Como se chama? E que qualidades extraordinárias são essas de que fala?

— Venho do Continente de Purvavideha — respondeu o Peregrino, sorrindo — e me dediquei por muito tempo à meditação na Montanha das Flores e Frutos. Estudei artes marciais com o Patriarca do Coração e da Mente (1), e alcancei grande sabedoria. Graças a isso, sou capaz de domar dragões, fazer as águas do mar se agitarem como se estivessem num copo, carregar montanhas e correr com elas atrás do sol. Não há quem me supere em capturar monstros e demônios,  em fazer mudar de lugar as estrelas e planetas, ou em assustar espíritos e deuses. Minha fama nasceu das travessuras que cometi contra o Céu e a Terra. Não é por acaso que sou conhecido como o Belo Macaco de Pedra, dono de poderes metamórficos incomparáveis.

Ao ouvir essas palavras, a ira do ancião se transformou em alegria. Ele fez uma reverência e disse: 

— Por favor, entrem e descansem em minha humilde residência.


Os peregrinos pegaram a bagagem e entraram na residência, sem soltar em nenhum momento as rédeas do cavalo. No interior havia um pequeno pátio, tomado por ervas daninhas e espinhos. Atravessaram uma segunda porta e chegaram a outro espaço, igualmente coberto de espinhos e cardos, no centro do qual se erguiam três casas com telhado de ardósia. Ao entrarem em uma delas, o ancião pediu que se sentassem e ordenou que servissem chá e comida. Logo as mesas se encheram de bolinhos de trigo, tofu, brotos de bambu, nabos, mostarda, berinjelas, arroz e uma sopa de malva com vinagre. O mestre e os discípulos não demoraram a devorar cada prato com gosto.

Assim que terminaram de comer, Bajie puxou a manga do Peregrino e cochichou em seu ouvido:

— O que será que levou esse ancião a nos oferecer um banquete tão farto, se no início nem queria nos deixar entrar?

— Quanto pode valer uma refeição dessas?— respondeu o Peregrino. — De qualquer forma, o melhor ainda está por vir. Espere até amanhã, e verá que ele irá nos preparar uma festa de despedida com mais de dez pratos e frutas variadas.

— Você devia sentir vergonha! — retrucou Bajie. — Está na cara que ele só foi generoso por causa daquela apresentação pomposa que você fez de si mesmo. Que motivo ele teria para continuar sendo atencioso quando partirmos? O mais provável é que nos mande embora de barriga vazia.

— Não se preocupe — disse o Peregrino, confiante. — Deixe que eu mesmo cuido disso.


Não tardou para que a noite caísse, e o ancião ordenou que trouxessem algumas lamparinas. O Peregrino aproveitou a ocasião para perguntar, inclinando a cabeça com respeito:

— Qual é o sobrenome do senhor?

— Então suponho que este seja a aldeia dos Li.

— Não — retrucou o ancião de imediato. — Esta é a aldeia de Tuoluo. Aqui vivem mais de quinhentas famílias, todas com sobrenomes diferentes. Na verdade, sou o único aqui com o sobrenome Li.

— Teria a gentileza, senhor Li prosseguiu o Peregrino —, de nos explicar por que nos ofereceu um banquete tão generoso?

— Muito simples respondeu o ancião, levantando-se. Ao ouvi-lo dizer que não há ninguém melhor do que você para capturar monstros, pensei que talvez pudessem nos ajudar a capturar um que tem nos atormentado. Se conseguirem derrotá-lo, estejam certos de que serão generosamente recompensados.

— Eu agradeço por me confiar uma missão tão fácil — replicou o Peregrino, fazendo uma leve reverência.

— Está vendo no que suas fanfarronices resultam? — resmungou Bajie. —  Quando alguém pede ajuda para capturar um monstro, essa pessoa se torna tão próxima quanto um avô materno! E ainda por cima você se curva, cheio de respeito, como nunca o vi fazer para ninguém.


— Você não entendeu nada — defendeu-se o Peregrino. — A reverência foi apenas um gesto de gratidão. Tenho certeza de que, apesar do que ele disse, não irá exigir nada em troca.

— Esse macaco, como sempre, é tão egocêntrico! — disse Sanzang. —  Se esse monstro tiver poderes mágicos extraordinários e você não for capaz de capturá-lo, nós, que renunciamos a família, seremos vistos como mentirosos

— Não fique bravo comigo, mestre — disse o Peregrino, rindo.  Apenas deixe-me fazer mais uma pergunta.

— Sobre o quê? — apressou-se em perguntar o ancião.

— Esta região aparenta ser muito próspera e tranquila — observou o Peregrino. — Isso explica o porque de tantas famílias viverem juntas aqui, mesmo sendo um lugar tão afastado. Pode nos contar que tipo de monstro é esse que tem lhes causado tanto terror?

— A verdade — respondeu o ancião Li, após um profundo suspiro — é que, por muito tempo, poucos lugares foram tão calmos e prósperos quanto este. Tudo começou a mudar há mais ou menos três anos, quando, no mês de junho, soprou de repente um vento tão furioso como nunca se havia visto por estas bandas. Naquele momento, todos estávamos nos campos,  uns plantando arroz, outros descascando os grãos. 


A princípio, pensamos que fosse apenas uma mudança repentina do tempo. Quem poderia imaginar que dentro daquele furacão viajasse um monstro que, num piscar de olhos, devorou todo o gado que pastava? Sua fome era tão insaciável que, depois de acabar com bois e vacas, atacou galinhas e gansos, chegando mesmo a devorar os homens e mulheres que encontrou pelo caminho. 


Desde então, ele aparece constantemente, reduzindo nossos bens e nossas famílias.  Se é verdade que o senhor tem poder suficiente para acabar com os monstros, livre-nos deste e prometo que jamais esqueceremos o que fizeram por nós. Como vamos esquecê-lo, se você se tornará nosso benfeitor?

— Esse tipo de monstro — disse o Peregrino — é extremamente difícil de capturar.

— Exatamente! — apressou-se em dizer Bajie. — Nós não passamos de pobres monges, que vivem das esmolas que recebem. Queremos apenas um lugar para passar a noite, e amanhã seguimos viagem. Por que deveríamos capturar esse monstro?

— Vocês não passam de um bando de aproveitadores, que gostam de viver às custas dos outros! — resmungou o ancião, irritado. — No começo se gabavam, dizendo que podiam mover estrelas e planetas, e que eram mestres em capturar demônios e monstros. Mas, quando pedi ajuda, tudo se transformou em desculpas e dificuldade.

— Eu repito que esse monstro é realmente difícil de capturar — respondeu o Peregrino. — O maior problema, na verdade, é que as famílias desta aldeia agem de forma isolada e não se unem em um esforço comum.

— E como chegou a essa conclusão? — perguntou o ancião, surpreso.

— Como o senhor mesmo acabou de dizer — explicou o Peregrino —, já faz três anos que esse monstro vem atacando seus rebanhos e até suas famílias. Se cada família tivesse contribuído com apenas uma libra de prata, já teriam reunido um total de quinhentas libras. Com isso poderiam ter contratado alguém especializado em capturar monstros. Não entendo como deixaram ele agir livremente por tanto tempo.

— Já que tocou nesse assunto — replicou o ancião —, digo que, só de pensar nisso, fico furioso. Durante esse tempo, cada família não contribuiu com uma, mas com três ou quatro libras de prata. No ano passado, apareceu por aqui um monge vindo das terras do sul. Pedimos a ele que eliminasse o monstro, mas ele não conseguiu.


— E que métodos ele usou para tentar capturá-lo? — perguntou novamente o Peregrino.

— Era um homem muito piedoso, de virtude inabalável — explicou o ancião. — Primeiro recitou "O Pavão Real", e depois, "O Lótus". Não satisfeito, queimou incenso em um incensário e tocou sem parar uma campanela de bronze. Suas preces realmente atraíram o monstro, que logo surgiu montado no vento e nas nuvens. 


O monge o desafiou, mas a luta que se seguiu não pode ser descrita em palavras. O único que desferia golpes era o monstro. O monge resistiu o quanto pôde, mas todos sabem que monges de cabeça raspada nunca foram bons lutadores. Pouco depois, o monstro regressou vitorioso ao lugar de onde veio, envolto em nuvens e poeira. Foi como deixar um caranguejo secar ao sol. Quando nos aproximamos para ver o que havia restado do monge, encontramos apenas uma massa disforme, que lembrava um melão podre.

— Em outras palavras — replicou o Peregrino —, ele se deu mal!

— Ele, de fato, perdeu a vida — reconheceu o ancião —, mas  nós tivemos de pagar pelo seu funeral e ainda dar algum dinheiro ao discípulo que o acompanhava. A situação piorou porque esse discípulo exigiu mais dinheiro e nos ameaçou levar aos tribunais.

— Depois disso, chamaram mais alguém para tentar capturar a criatura? — perguntou novamente o Peregrino.

— Sim — respondeu o ancião. — No ano passado contratamos um taoísta.

— E que métodos ele usou para tentar capturá-lo? — insistiu o Peregrino.

— O taoísta de quem falo — contou o ancião — usava um elmo dourado na cabeça, vestia uma túnica estranha e não parava de bater numa placa que trazia pendurada no peito, enquanto recitava encantamentos e espalhava água sagrada por toda parte. Invocou deuses e espíritos, mas o único atraído foi o monstro, que surgiu montado num furacão, envolto numa nuvem tão espessa de poeira que tudo ficou mergulhado na mais completa escuridão. 


O taoísta e a criatura travaram uma batalha terrível que durou até o amanhecer, quando o monstro voltou para o lugar de onde tinha vindo, deixando para trás um ar limpo e luminoso. Cheios de esperança, corremos para procurar o taoísta, mas, para nossa desgraça, encontramos seu corpo boiando nas águas de um rio. Ao retirá-lo, vimos que seu corpo estava reduzido a algo parecido com uma galinha jogada na panela só para dar gosto à sopa.


— Em outras palavras — disse o Peregrino, rindo —, ele também se deu mal!

— De fato, ele também perdeu a vida — admitiu o ancião —, mas as despesas com o seu funeral  foram muito pesadas para o nosso vilarejo.

— Não se preocupem mais — concluiu o Peregrino. — Vou ajudá-los a capturar esse monstro.

— Se é verdade que o senhor tem poder para isso — apressou-se a dizer o ancião —, pedirei aos principais da aldeia que redijam um contrato, comprometendo-se a entregar todo o dinheiro que exigir, sem negar uma única moeda. Mas, se por acaso, não obtiver sucesso em sua tarefa, você e seus herdeiros renunciarão a qualquer tipo de compensação, e que se cumpra a vontade dos Céus.

— Dá para ver que estão cansados de serem extorquidos, não é? — exclamou Peregrino, soltando uma gargalhada. — Podem ficar tranquilos. Não sou esse tipo de pessoa. Chame os anciãos, depressa.

Feliz da vida, o ancião mandou alguns criados convidarem oito ou nove anciãos entre os vizinhos mais próximos, seus primos, parentes da esposa e amigos. Depois de saudarem o monge Tang e ouvir a razão daquela reunião inesperada, os anciãos começaram a pular de alegria.

— Quem de vocês irá enfrentar o monstro? — perguntou um deles, sem conter o entusiasmo.

— Eu — respondeu o Peregrino, juntando as mãos à altura do peito e inclinando-se diante deles.

— Você? — exclamou um dos anciãos, surpreso. — Isso é impossível! Aquele monstro tem poderes mágicos extraordinários e uma força descomunal. Como é que um monge tão pequeno e franzino poderia enfrentá-lo? O mais provável é que não sirva nem de petisco para ele.

— Parece que os olhos de vocês não são muito bons — respondeu o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Posso parecer pequeno, mas minha força não fica devendo nada para ninguém. Como costuma se dizer, "bastam-me algumas gotas da pedra de amolar para me tornar tão afiado quanto uma lâmina".


Ao ouvir isso, os anciãos não tiveram escolha senão dar seu consentimento, e perguntaram:

— Mestre,  já pensou em quanto vai pedir pela captura desse monstro?

— Para que falar em recompensa agora? respondeu o Peregrino. — Como diz o provérbio: “o ouro embriaga a vista, a prata perde o brilho e o cobre cheira mal depois de passar por muitas mãos”. Somos apenas monges pobres, empenhados em acumular méritos, não riquezas. Para que serviria uma recompensa?

— Pela forma como fala — concluiu um dos anciãos, admirado —, percebe-se que levam os votos a sério. Talvez não queiram receber pagamento em dinheiro, mas não podemos deixá-los ir de mãos vazias. Todos nós temos fazendas e propriedades. Se libertarem esta região da maldição do monstro, cada família doará oitenta áreas da melhor terra para que se construa um monastério, onde se possa meditar sobre os princípios do Zen. Isso é muito melhor do que vagar sem outro teto além das nuvens e sem outras paredes além dos penhascos.

— Que ideias são essas! — exclamou mais uma vez o Peregrino, rindo. — Se tivéssemos terras, teríamos de criar cavalos, soltá-los para pastar no verão e armazenar feno para o inverno. Com tanto trabalho, não sobraria tempo para meditar. Dormiríamos com o pôr do sol e levantaríamos antes do amanhecer. Que recompensa seria essa? No fim, acabaria nos matando!

— E o que desejam, então? — perguntou o ancião.

— Somos pessoas que renunciaram a vida em família — respondeu o Peregrino. — Nos conformamos com um pouco de chá e arroz.

— Está decidido, então — concluiu um dos anciãos. — Mas gostaríamos, de qualquer forma, de saber qual é o plano de vocês para capturar o monstro.

—  Vocês verão quando ele aparecer — replicou o Peregrino.

— Mas esse demônio é enorme — disse outro ancião.É tão enorme que a cabeça dele alcança o Céu. Além disso, aparece montado no vento e parte montado na névoa. Como pretende chegar perto de uma criatura assim?

— Se ele realmente tem esses poderes respondeu Peregrino, sorrindo —, vou tratá-lo como se fosse meu neto. Aliás, é uma vantagem para mim que ele seja tão grande como dizem, porque será mais fácil acertá-lo com meus golpes.

Enquanto a conversa entre eles seguia, um vento furioso se levantou de repente, fazendo os anciãos tremerem de medo como se fossem brotos de bambu.

— Que boca azarada tem esse monge! — exclamaram, apavorados. — Mal acabou de falar do monstro, e ele apareceu!

O ancião Li abriu a porta que dava para o pátio e ordenou que o monge Tang e os demais buscassem abrigo imediatamente, dizendo:

— Entrem depressa! O monstro está aqui!


Até Bajie e o Monge Sha se deixaram levar pelo nervosismo e correram desesperados para dentro da casa. Mas o Peregrino os puxou de volta com as duas mãos e gritou, irritado:

— Vocês perderam o juízo? Como pode monges como vocês sucumbirem ao pânico desse jeito? Fiquem onde estão e não tentem fugir. Permaneçam comigo para descobrirmos que tipo de monstro é esse.

— Mas irmão — disse Bajie —, essas pessoas já passaram por isso antes. Quando o vento começa a uivar, é sinal de que o monstro está chegando, e por isso todos correm para se esconder. Além disso, nós não somos nem parentes nem conhecidos deles. Qual é a vantagem de enfrentarmos esse monstro?


O Peregrino, no entanto, tinha força suficiente para segurar os dois, e assim o fez. O vento, por sua vez, ficava cada vez mais feroz. As árvores da floresta curvavam-se como se fossem simples tufos de erva, fazendo tigres e lobos estremecerem de medo. As águas dos mares e rios erguiam-se rumo ao alto, alarmando espíritos e deuses. Enormes massas rochosas desprendiam-se das três cúpulas do Monte Hua (3), enquanto os quatro continentes do mundo perdiam a estabilidade que os tornava próprios para habitar. As portas de todas as cidades fecharam-se hermeticamente, como se um exército inimigo se aproximasse. Nos lugares mais remotos, crianças enfiavam a cabeça sob as mantas, sabendo que o céu estrelado fora encoberto por uma massa negra de nuvens ameaçadoras. Tochas e lamparinas apagaram ao mesmo tempo, mergulhando toda a terra numa escuridão absoluta.

Tomado pelo pânico, Bajie jogou-se ao chão e começou a cavar um buraco com o focinho. Assim que enterrou a cabeça, pressionou o corpo contra a terra de modo que parecia cravado nela. O próprio Monge Sha precisou proteger o rosto com as mãos, pois a areia batia contra os olhos, impedindo-o de abri-los. Somente o Peregrino permaneceu firme, de pé, encarando o vento e tentando identificar a natureza do monstro que cavalgava em suas costas destruidoras. De repente, a fúria do ar diminuiu e, à meia-altura no céu, surgiram dois pontos brilhantes, como se fossem lamparinas acesas.


— O vento parou de soprar — disse então o Peregrino aos dois irmãos. — Levantem-se e deem uma olhada nisso.

Bajie desenterrou a cabeça, sacudiu o corpo para tirar o pó e ergueu os olhos para o céu. Ao ver as duas luzes, soltou uma gargalhada e exclamou:

— Que curioso! Parece que esse monstro possui boas maneiras. Talvez seja melhor fazermos amizade com ele.

— Como pode dizer isso? — repreendeu-o o Monge Sha. — Nem sabemos que tipo de monstro ele é. A noite está escura demais para ver o rosto dele.

— Como diz o provérbio — respondeu Bajie —, “se não há luz para caminhar à noite, é melhor deitar-se e descansar”(4). Veja só! Ele tem um par de lamparinas iluminando o caminho. Só pode ser um bom sujeito.


— Está enganado — retrucou o Monge Sha. — Aquelas não são lamparinas; são os olhos dele.

— Santo Céu! — exclamou o Idiota, encolhendo-se como um anão. — Como será a boca dele, se os olhos estão tão afastados?

— Não tenham medo — aconselhou o Peregrino. — Fiquem aqui protegendo o mestre, enquanto eu me aproximo do monstro para lhe fazer algumas perguntas e descobrir quem ele é.

— Irmão mais velho — suspirou Bajie —, só não fale de nós para ele.

O Peregrino deu um salto imenso e elevou-se às alturas. Segurando firme seu bastão de ferro, gritou com voz potente:

— Para onde vai com tanta pressa? Não vê que eu estou aqui?

Ao notar sua presença, o monstro ergueu-se e começou a golpear o ar com violentas estocadas de lança. O Peregrino não se intimidou; pelo contrário, assumiu sua postura de combate e perguntou:

— De onde você vem, e que tipo de poderes possui?


O monstro não respondeu. Tudo o que fez foi varrer o espaço com a sua lança, golpeando para todos os lados. O Peregrino repetiu a pergunta, mas o monstro continuou mudo. Parecia obcecado em desferir golpes para a direita e para a esquerda.

— Então você é surdo e mudo? — zombou o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Pior para você! Nem pense em fugir! Prove o sabor do meu bastão!

O monstro não deu nenhum sinal de alarme. Pelo contrário, esticou a lança e bloqueou os golpes do Peregrino. Assim começou um combate espetacular, que se estendeu até a terceira vigília da noite, sem que nenhum dos dois adversários conseguisse obter alguma vantagem.


 Lá embaixo, Bajie e o Monge Sha acompanhavam, impacientes, o desenrolar da luta. Percebiam claramente que o monstro se limitava a aparar os ataques, sem atacar de fato. O bastão do Peregrino nem chegava a roçar sua cabeça.

— Fique aqui, enquanto eu vou dar uma força ao nosso irmão disse Ba-Chie ao Bonzo Sha, impaciente. — Não é justo que ele fique com toda a glória. Se continuar assim, ninguém vai conseguir tirar da mão dele a primeira taça de vinho.


Com incrível rapidez, Bajie elevou-se às nuvens e desferiu um golpe tremendo contra o monstro com seu ancinho. Sem se abalar, o monstro puxou outra lança e bloqueou o ataque como se fosse apenas a picada de um mosquito. As duas lanças se moviam no ar com a leveza de serpentes dançantes e a rapidez de dois raios.

— Esse monstro é um verdadeiro mestre no manejo da lança! — exclamou Bajie, admirado. — Seu estilo lembra o da “Lança do Dorso da Montanha”, mas parece muito com a “Lança da Seda Enrolada”. Não se parece em nada com o do “Lança da Família Ma”. Talvez seja o estilo da “Lança de Cabo Mole”.

— Não diga bobagens! — retrucou o Peregrino. — Não existe um estilo com um nome tão ridículo.


— Eu sei — admitiu Bajie. — Mas é a forma mais exata de descrever como ele desvia nossos golpes. Reparou na facilidade com que ele os redireciona? Além disso, tem outra coisa. Onde será que ele guarda as armas?

— Talvez seja mesmo o estilo da “Lança do Cabo Mole” ponderou o Peregrino. — Mas o que me intriga é que esse monstro não fala. É provável que ainda não tenha alcançado a natureza humana. Pensando bem, cheguei à conclusão de que esteja totalmente influenciado pelo yin. Ao amanhecer, quando o yang cresce, suas forças diminuem drasticamente e ele é obrigado a recuar. Esse é o momento ideal para interceptá-lo e impedir sua fuga.

— Concordo plenamente! — respondeu Bajie.

A luta se prolongou ainda por muito tempo. Aos poucos, o céu começou a clarear no leste. Como Peregrino havia previsto, antes mesmo que o primeiro raio de sol surgisse, o monstro deu meia-volta e fugiu a toda pressa. 


Bajie e o Peregrino voaram em seu encalço, e pouco depois, um cheiro insuportável invadiu suas narinas: era o Desfiladeiro da Polpa de Amora, no coração da Montanha dos Sete Extremos.

— Nossa! Que cheiro horrível! — exclamou Bajie. — Será que tem alguma família limpando a fossa uma hora dessas?

— Pare de falar e continue a perseguição! — ordenou Peregrino, tampando o nariz com as mãos.


Assim que atravessou a montanha, o monstro retomou sua forma verdadeira. Admirados, Bajie e o Peregrino comprovaram que se tratava de uma enorme serpente píton de escamas avermelhadas. Seus olhos brilhavam mais intensamente que as estrelas antes do amanhecer, e de suas narinas saía uma neblina semelhante à das primeiras horas da manhã. Tinha garras douradas (5), afiadas como lâminas, e uma boca cheia de dentes metálicos. Bem acima dos olhos, crescia-lhe um chifre duro, formado por milhares de fragmentos de cornalina.Todo o corpo estava coberto por escamas vermelhas, densas e reluzentes, que pareciam pequenas chamas em movimento. Ainda assim, sua pele era tão bela que, quando se enrolava na terra, lembrava um tecido bordado; e, ao voar, podia facilmente ser confundida com um arco-íris. Em repouso, exalava um fedor insuportável, que se transformava em uma nuvem roxa ao se mover. Era tão grande quanto uma montanha, e seu corpo lembrava uma cordilheira que ligava o norte ao sul.


— Que serpente colossal! — disse Bajie, impressionado. — Deve ser capaz de engolir quinhentas pessoas e ainda ficar com fome.

— Sem dúvida, as lanças que maneja com tanta habilidade são, na verdade, as pontas de sua língua bifurcada — disse o Peregrino— Depois de uma fuga assim, deve estar exausta. Acho que o melhor a fazer agora é atacá-la por trás.


Bajie ergueu o ancinho acima da cabeça e o deixou cair com força sobre a serpente, que rapidamente se escondeu em um buraco. Bajie, no entanto, conseguiu agarrá-la pela cauda e gritou, animado, deixando o ancinho de lado:

— Peguei ela! Peguei ela!

Mas, mesmo puxando com toda a força, não conseguiu arrastá-la nem um centímetro.


— Solte ela! — aconselhou Peregrino. — Não dá para tirar uma serpente do esconderijo desse jeito. Conheço um método melhor. Você vai ver.

Relutante, Bajie a deixou escapar, e a serpente desapareceu no fundo do buraco.

— Metade dela já estava em nossas mãos — resmungou Bajie. — Agora ela entrou totalmente no buraco. Como faremos ela sair de novo? Não é isso que chamam de “ficar sem cobra para brincar” ?


— Não diga bobagens! — repreende-o o Peregrino. — Essa serpente tem um corpo imenso, e o buraco é pequeno demais, ele não tem como ela virar lá dentro. Só pode seguir em frente. Deve existir uma saída nos fundos. Encontre-a e não a deixe escapar. Eu atacarei por esse lado.

Bajie correu para a outra encosta da montanha e não demorou a encontrar um novo buraco. Enquanto o observava, distraído, o Peregrino desferiu na serpente um tremendo golpe com sua bastão de ferro, que a fez sair em disparada pelo outro lado, urrando de dor. Bajie não estava preparado e, com um golpe do rabo da serpente, foi derrubado no chão. Incapaz de se levantar, ele ficou ali gemendo de dor. 


Ao ver o buraco vazio, o Peregrino correu para a saída vigiada por Bajie, gritando para que fosse atrás do monstro. Esquecendo-se da dor, Bajie levantou-se num pulo e começou a bater o chão com o ancinho, como se tivesse enlouquecido.

—  O que pensa que está fazendo? A serpente já fugiu!

— Estou batendo na grama para fazer a cobra sair (6) — respondeu Bajie.


— Não é à toa que chamam você de Idiota! — exclamou o Peregrino, em tom zombeteiro. — Vamos atrás dela!

Depois de atravessar um riacho,  viram que a serpente tinha se enrolado no chão, formando o que parecia um pequeno monte de areia. Ao se aproximarem, ela abriu de repente a enorme boca e tentou morder Bajie, que rapidamente deu meia-volta e fugiu. O Peregrino não teve a mesma sorte e acabou sendo engolido pelo monstro.


Ao ver como Peregrino havia sido engolido com facilidade, Bajie bateu no próprio peito, pisoteou o chão e gritou:

— Meu irmão mais velho morreu!

— Não se preocupe, Bajie — respondeu o Peregrino de dentro do estômago da serpente, cutucando-a por dentro com o seu bastão. — Observe enquanto transformo essa serpente em uma ponte.


Ele elevou ainda mais o bastão, forçando a serpente a se dobrar de tal forma que, de fato, parecia um arco típico de uma ponte.

— Parece uma ponte, de fato — disse Bajie, mais animado —, mas duvido que alguém teria coragem de atravessá-la!


— Nesse caso — respondeu o Peregrino, baixando um pouco o bastão de ferro —, vou fazer com que pareça um barco.

Com o estômago colado ao chão e a cabeça erguida, a serpente realmente parecia uma embarcação do distrito do rio Gan.

— De fato, lembra um barco — comentou Bajie —, mas lhe falta o mastro, e duvido que consiga navegar ao vento.

— Saia daí e vou lhe mostrar que está totalmente enganado — disse o Peregrino, levantando o bastão com toda a força, até que a espinha dorsal da serpente alcançou três ou quatro metros de altura. Dessa forma, seu corpo adquiriu, de fato, forma de uma vela desfraldada.


Incapaz de suportar mais dor, a serpente tentou voltar pelo caminho de antes, mas o vento a fez rolar montanha abaixo. Após quarenta quilômetros de queda desenfreada, ela despencou no chão e morreu. 


Assim que chegou perto da serpente, Bajie desferiu sobre ela uma chuva de golpes furiosos. O Peregrino, já fora do corpo dela, ficou estupefato com a reação de Bajie e, por fim, segurou-lhe o braço, repreendendo-o:

— Para que desperdiçar tanta energia? Por acaso não está vendo que ela já morreu?

— Estou — respondeu Bajie —, mas eu sempre adorei matar cobras mortas.

Deixando o ancinho de lado, Bajie ajudou Peregrino a arrastar a serpente, e, por ora, não falaremos mais deles. Falaremos no entanto do ancião Li e dos demais habitantes da aldeia de Tuoluo que, logo ao amanhecer, dirigiram-se preocupados ao monge Tang e disseram:

— Seus dois discípulos passaram a noite inteira lutando e ainda não voltaram. Não queremos alarmá-lo, mas é provável que tenham perdido a vida na tentativa.

— Não creio nisso — respondeu Sanzang, confiante. — De qualquer forma, não faria mal sair para dar uma olhada.


Pouco depois, viram o Peregrino e Bajie se aproximando com uma enorme serpente píton morta. Ao compreenderem o que havia acontecido, todos os moradores da aldeia, do mais jovem ao mais velho, homens e mulheres, se prostraram com o rosto no chão, batendo a testa no solo e gritando animados:

— Então esse era o espírito que acabou com tantas vidas! Graças ao heroísmo de vocês, poderemos viver tranquilos a partir de agora. Tenham certeza de que sempre estaremos gratos.


Para demonstrar sua gratidão, todas as famílias se empenharam em enchê-los de presentes e oferecer-lhes banquetes sem fim. Apesar do desejo de continuar a jornada o quanto antes, os peregrinos tiveram que permanecer naquele lugar por quase uma semana. Eles só conseguiram ir embora após implorarem aos anciãos da aldeia, exatamente oito dias depois de sua chegada. Como combinado, não aceitaram nenhum tipo de pagamento em dinheiro, limitando-se a levar algumas frutas e alimentos secos para a viagem. Isso aumentou ainda mais a admiração das pessoas pelo grupo, que saíram para se despedir deles com burros e mulas enfeitados com estandartes e fitas coloridas. Embora a região tivesse pouco mais de quinhentas famílias, a festa era tão animada que parecia haver mais de setecentas.


Mesmo assim, a jornada seguiu em passo relativamente rápido, e eles logo chegaram ao Desfiladeiro da Polpa de Amora, no coração da Montanha dos Sete Extremos. Ao ver o quão estreito o caminho ficava e o quão irrespirável o ar se tornava por causa do fedor, Sanzang exclamou, desanimado:

— Como vamos passar por aqui, Wukong?

— Receio que será bastante difícil — respondeu o Peregrino, tapando o nariz com a mão.


Ao ouvir a palavra “difícil”, Sanzang se entregou ao desânimo, e lágrimas começaram a escorrer abundantemente de seus olhos. O ancião Li e todos os outros se aproximaram para acalmá-lo, dizendo:

— Não se preocupe. Se viemos até aqui com vocês, foi porque, em prova de agradecimento pelo que seus discípulos fizeram por nós, decidimos abrir um caminho para que possam seguir adiante.


— Acho que vocês estão superestimando suas forças — comentou o Peregrino, sorrindo. — O senhor mesmo disse que este desfiladeiro tem mais de mil e quinhentos quilômetros de comprimento. Como pretendem abrir um caminho por uma distância tão grande, se não são trabalhadores sob ordens diretas do Grande Yü (7)? Não levem a mal, mas creio que estamos muito mais capacitados que vocês para levar o mestre para o outro lado.

— O que pretende fazer, Wukong? — perguntou Sanzang, esperançoso.

— Sem dúvida, atravessar esta cordilheira num piscar de olhos é extremamente difícil — respondeu o Peregrino, sorrindo. — O ideal seria construir outro caminho, mas isso traria grandes dificuldades. A única solução é abrir uma trilha ao longo de todo o desfiladeiro, mas temo que não tenhamos quem nos alimente.

— Como pode dizer uma coisa dessas? — replicou o ancião Li. — Estamos dispostos a fornecer toda a comida de que precisarem. Deviam saber disso.

— Nesse caso — concluiu o Peregrino —, preparem duas arrobas de arroz branco e alguns bolinhos no vapor e deem ao nosso irmão de focinho comprido. Garanto que, assim que estiver satisfeito, abrirá com o nariz um caminho largo o suficiente para que o mestre possa atravessar montado em seu cavalo.


— Isso não é justo — protestou Bajie. — Todos vocês querem ficar limpos. Por que só eu tenho que ficar fedendo?

— Se conseguir abrir um caminho que me leve ao outro lado da montanha — apressou-se a dizer Sanzang —, pode ter certeza de que proclamarei aos quatro ventos que todo o mérito desta façanha é exclusivamente seu.


— Mestre, por favor, não zombe de mim! exclamou Bajie, sorrindo. — Sou capaz de me metamorfosear em trinta e seis coisas diferentes. Se pedirem para virar algo leve, delicado, bonito ou que voe, não consigo. Agora, se quiserem que eu vire uma árvore, uma montanha, uma pedra enorme, um monte de areia, um elefante, um javali, um búfalo ou um camelo, posso garantir que ninguém faz melhor que eu. O único problema é que, quanto maior eu ficar, maior também fica minha barriga. E não consigo trabalhar direito se ela não estiver cheia.

— Não se preocupe com isso! — gritaram os moradores da aldeia. — Trouxemos grandes quantidades de comida. A princípio, pensamos em entregá-las a vocês depois que atravessassem a montanha, mas, se quiserem, podemos dá-las agora. E não se preocupem se acharem pouco: assim que se metamorfosear e começar a trabalhar, enviaremos alguém à aldeia para buscar mais arroz.


Bajie estava mais do que satisfeito. Tirou sua túnica preta, deixou de lado o temível ancinho de nove pontas e exclamou:

— Não riam de mim! Prestem atenção e vejam como ganho mérito fazendo esse trabalho imundo.

Mal havia terminado de dizer isso, quando fez um gesto mágico com os dedos e, num instante, se transformou em um porco gigantesco. O focinho se alongou de maneira impressionante, e todo o corpo ficou coberto por pelos duros e esbranquiçados. Parecia que toda a sua vida havia se alimentado apenas de ervas selvagens da montanha. Seus olhos negros e redondos possuíam ao mesmo tempo o resplendor da lua e do sol. Tudo nele era redondo e desconcertante: o rosto acastanhado, a papada, as orelhas lembrando ramos de palmeira. A figura rechonchuda contrastava com a força de seus ossos, projetados para durar tanto quanto o céu, e com a dureza da pele, firme e resistente como ferro. Seus grunhidos, enquanto remexia a sujeira, transmitiam uma segurança impressionante. Difícil imaginar algo mais estável que suas patas, considerando que seu corpo tinha mais de trinta metros de altura. A rigidez de seus pelos lembrava espadas afiadas. Jamais se tinha visto no mundo um porco assim, embora porcos sejam comuns em todos os lugares. O monge Tang e todos que o acompanhavam ficaram boquiabertos com a metamorfose que acabavam de presenciar. Poucas vezes algo tão extraordinário havia sido visto. Até o próprio Peregrino se rendeu, com um misto de surpresa e admiração, à pureza da magia demonstrada por Bajie.


Recuperando-se rapidamente do espanto, o Peregrino ordenou às pessoas da aldeia que colocassem a comida em um lugar bem visível, para que Bajie pudesse se alimentar à vontade. Assim que a viu, Bajie devorou tudo em poucos bocados, sem se importar se estava cru ou cozido. O importante era engolir tudo o que fosse oferecido! Bastou isso para que recuperasse as forças. Quando o último grão de arroz chegou ao seu estômago, ele cravou o focinho no chão e começou a abrir o caminho. O Peregrino então voltou-se para o Monge Sha e pediu que tirasse os sapatos antes de carregar o equipamento. Ele mesmo retirou as botas, aconselhando o mestre a segurar-se firme na sela. Em seguida, virou-se para os moradores da aldeia e disse:

— Se realmente estão agradecidos pelo que fizemos por vocês, preparem imediatamente mais arroz.

Mais da metade dos que haviam saído para se despedir montava burros e mulas, o que lhes permitiu retornar sem dificuldade para cumprir a tarefa que lhes fora ordenada. Afinal, a aldeia ficava a apenas cinquenta quilômetros da entrada do desfiladeiro. Ainda assim, quando regressaram à montanha trazendo arroz e outras provisões, os peregrinos já tinham percorrido mais de duzentos e sessenta quilômetros. Para não ficarem para trás, esporearam as montarias e atravessaram o desfiladeiro durante toda a noite. Ao amanhecer, conseguiram alcançá-los e, ofegantes, gritaram:

— Ei, vocês que vão em busca das escrituras! Parem um instante! Trouxemos o arroz que prometemos!

— Jamais vi pessoas tão cumpridoras de sua palavra como essas! — exclamou Sanzang, surpreso, pedindo a Bajie que parasse para se alimentar.

Bajie havia caminhado por um dia e uma noite sem parar, e já começava a sentir fome. Ao sentir o aroma do arroz, começou a salivar como um lobo faminto. Embora desta vez a quantidade de arroz superasse sete ou oito arrobas, devorou tudo como se fossem apenas alguns grãos. Depois, voltou a cravar o focinho na terra e continuou a abrir o caminho com ainda mais força do que no início.

Após agradecer às pessoas da aldeia por toda a ajuda, Sanzang, o Peregrino e o Monge Sha se despediram e prosseguiram a viagem. Sobre esse momento, temos um poema que diz:
"Os aldeões de Tuoluo retornaram às suas casas,
enquanto Zhu Bajie abria um caminho pela montanha.
O poder divino sustentava a devoção de Sanzang,
e Wukong exibiu sua magia até que o demônio fosse derrotado.
Naquele dia, as impurezas acumuladas por eras foram purificadas.
A Montanha dos Sete Extremos estava enfim desobstruída.
As seis formas do desejo haviam sido todas expurgadas.
Em paz, sem obstáculos, poderiam se inclinar diante do Trono de Lótus".

Ainda não sabemos a distância que lhes restava percorrer nem que tipo de monstros teriam que enfrentar antes de chegarem ao fim da jornada. Quem quiser descobrir terá de ouvir atentamente as explicações que serão dadas no próximo capítulo.


CAPÍTULO LXVIII EM BREVE


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Notas do Capítulo LXVII

  1. Referência ao Patriarca Subodhi; 
  2. Citação livre do  Yu-yang tsa-tsu (chinês 酉阳杂俎,"Miscelâneas de Yu Yang");
  3. O Monte Hua, localizado na província de Shensi, é famoso por suas três cúpulas, chamadas Flor de Lótus, Estrela Luminosa e Moça de Jade;
  4. Na realidade, trata-se de uma citação do Liji (chinês 禮記, "Livro dos Ritos");
  5. Embora as pítons (mang) não possuam garras, a mencionada aqui é, na verdade, uma mang-lung, ou pitão-dragão, que dispõe delas;
  6. Expressão idiomática chinesa (打草惊蛇, dǎ cǎo jīng shé) que significa “agir de forma precipitada e alertar o inimigo ou concorrente”. Originada de uma história em que um magistrado corrupto percebeu que uma denúncia indireta quase revelara seus crimes, a frase passou a simbolizar o risco de expor planos antes da hora. Hoje é usada para recomendar cautela e discrição em qualquer contexto estratégico.
  7. Ao lendário imperador Yü atribui-se a grande façanha de ter contido as catastróficas inundações dos tempos antigos.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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Ruby