۞ ADM Sleipnir
Arte de Moyi Zhang |
"Não se preocupe com o bem ou o mal, a honra ou a vergonha, a verdade ou a mentira, pois o sucesso, os fracassos, as lutas e o descanso vêm e vão continuamente. É preciso viver de acordo com as próprias necessidades e aceitar, sem resistências, o destino que nos cabe. Apenas quem se mantém sereno alcança a paz absoluta e eterna, enquanto aqueles que se deixam levar pelas inquietações da vida tornam-se presas fáceis dos demônios. Assim como a brisa traz alívio com o tempo, as Cinco Fases triunfarão sobre qualquer armadilha."
O Monge Sha adentrou na floresta, enquanto o Grande Sábio e Bajie avançavam com passos firmes rumo à caverna. Com um salto, cruzaram o Riacho do Pinheiro Seco, aterrissando sobre um monte de rochas incomuns, atrás das quais se abria a entrada da caverna. O cenário diante deles era verdadeiramente encantador. O caminho até a entrada estava imerso em um silêncio tão profundo que parecia impossível encontrar, em todo o universo, um lugar mais propício à meditação. Ao longe, ouvia-se o canto das garças negras, levados até eles através do vento. Debaixo de uma ponte, o riacho fluía tranquilamente, brilhando como uma jóia sob os raios do sol. A brancura das nuvens era refletida em suas águas, formando uma silhueta que se assemelhava a uma dama vaidosa. Os macacos e as aves selvagens moviam-se em meio a um verdadeiro labirinto de flores exóticas, gritando sem cessar. As rochas estavam cobertas por trepadeiras e delicadas orquídeas. Das fendas cobertas de musgo, subiam colunas de fumaça e de névoa. Os bambus e pinheiros, sempre verdes, pareciam saudar as fênixes que sobrevoavam a paisagem. Ao longe, as altas montanhas evocavam enormes biombos de pedra. Não havia dúvidas: aquele era o lar de um verdadeiro imortal. O riacho que ali passava tinha sua origem na cordilheira de Kunlun e parecia destinado a servir de deleite a uma criatura extraordinária.
O Peregrino e Bajie avistaram no lintel da caverna uma grande placa de pedra, onde estava inscrito: "Caverna da Nuvem de Fogo. Riacho do Pinheiro Seco." Logo abaixo dessa magnífica inscrição, um grupo de pequenos demônios saltitando ao redor empunhando espadas e lanças.
O Grande Sábio ergueu a voz ao vê-los e declarou:
— Ei, vocês aí! Avisem imediatamente ao seu senhor que, se ele não libertar o monge Tang sem demora, eu acabarei com todos vocês e destruirei essa caverna até os alicerces!
Os demônios correram imediatamente para o interior da caverna, fecharam com força os dois portões de pedra e foram apressados comunicar ao seu senhor, em grande agitação:
— Estamos arruinados, grande rei! Uma desgraça caiu sobre nós!
Após capturar Sanzang e levá-lo para a caverna, o monstro o obrigou a se despir, amarrou suas mãos e pés como se fosse um porco, e o deixou jogado no pátio dos fundos. Alguns demônios ficaram encarregados de lavá-lo com cuidado, preparando-o para ser posteriormente cozinhado e devorado. Estavam no meio dessa tarefa quando ouviram os gritos apavorados de seus companheiros. Imediatamente largaram o que faziam e correram para perguntar:
— O que aconteceu? De que desgraça estão falando?
— Lá fora — explicou um deles, ofegante — há um monge com o rosto todo coberto de pelos e uma voz que parece um trovão. Ele está acompanhado por outro, que tem orelhas enormes e um focinho bem protuberante. Os dois exigem que entreguemos o mestre deles, um tal monge Tang. Disseram que, se não fizermos isso agora, vão acabar conosco e destruir esta caverna até os alicerces!
— Pelo que dizem, esses devem ser o Peregrino Sun e Zhu Bajie — comentou o monstro, esboçando um sorriso desdenhoso. — Parece que não são nada tolos e sabem onde procurar. Do lugar onde capturei o mestre deles até aqui, há uma distância de cerca de cento e cinquenta quilômetros. Não consigo entender como conseguiram chegar aqui tão rápido.
Sem demora, alguns demônios abriram uma porta e, com grande esforço, trouxeram cinco pequenas carroças. Ao ver a cena, o Peregrino comentou com Bajie:
— Que sorte a nossa! Parece que ficaram com medo e decidiram se mudar para outro lugar. Porém — acrescentou imediatamente — quem está prestes a viajar não coloca as carroças de forma tão estranha.
Os demônios haviam colocado, de fato, uma carroça em cada um dos pontos correspondentes às Cinco Fases — madeira, metal, fogo, água e terra —, protegidas por guardas bem armados. Os demais correram para dentro da caverna.
— Está tudo pronto? — perguntou o monstro.
— Sim, está — responderam eles.
— Nesse caso — concluiu o monstro —, tragam-me a lança.
Os demônios responsáveis pela armeria trouxeram imediatamente uma enorme lança com a ponta em chamas, que entregaram respeitosamente ao seu senhor. O monstro sequer se deu ao trabalho de vestir uma armadura. Vestindo apenas uma túnica de seda ricamente bordada, saiu ao encontro de seus dois adversários.
O Peregrino e Bajie ficaram surpresos ao vê-lo avançar descalço. Seu rosto era tão branco que parecia coberto de pó de arroz, enquanto seus lábios, carnudos e intensamente vermelhos, davam a impressão de terem sido pintados com um pincel. Seu cabelo possuía a escuridão da noite, um tom tão profundo que nenhum tintureiro seria capaz de reproduzir. As sobrancelhas arqueadas lembravam a lua crescente, embora, por serem tão rústicas, parecessem terem sido esculpidas com facas. Os bordados de sua túnica exibiam uma fênix e um dragão entrelaçados. Sua constituição era tão robusta quanto a do próprio Nezha, evidenciada ainda mais pelo tamanho de sua lança flamígera. Sua voz tinha a força de um trovão na primavera, uma impressão reforçada pelo brilho extraordinário de seus olhos, que evocavam o fulgor cegante de um relâmpago. Não havia dúvida de que seu nome, o Menino Vermelho, estava destinado a permanecer na memória para sempre.
— Posso saber quem ousa perturbar a paz de minha morada? —perguntou o monstro com voz potente, assim que apareceu do lado de fora da caverna.
— Meu querido sobrinho! — exclamou o Peregrino, aproximando-se com um sorriso nos lábios. — Pare de se comportar dessa maneira, por favor. Hoje de manhã, quando se pendurou em um pinheiro fingindo ser um jovem assustado e frágil, conseguiu enganar meu mestre, mas não a mim. Mesmo assim, carreguei você de boa fé, mas acabou usando isso para capturar meu mestre enquanto montado um vento furioso. Acha que não tenho motivos para exigir que o liberte imediatamente? Não adianta fingir que tudo foi apenas um mal-entendido. Deixe de agir como um garoto imprudente e seja razoável. Não vai querer prejudicar nossa relação de parentesco, certo? Se o seu pai souber do que aconteceu, é bem provável que me culpe, alegando que abusei de alguém da sua idade, quando, na verdade, foi o contrário.
— Maldito macaco! — replicou o monstro, furioso. — Quer me explicar que parentesco tenho com você? De onde vem essa história toda e, acima de tudo, por que me chama de sobrinho?
— Parece que você não sabe de nada — respondeu o Peregrino. — Há muito tempo, antes mesmo de você nascer, seu pai e eu fizemos um pacto de irmandade. Não sabia disso?
— Esse macaco só sabe falar bobagens! — bradou o monstro. — Como podemos ser parentes se viemos de lugares completamente diferentes? Além disso, explique melhor essa história de pacto de irmandade!
— Com muito prazer — respondeu o Peregrino. — Sou Sun Wukong, o Grande Sábio, Sósia do Céu. Há aproximadamente quinhentos anos, causei um enorme tumulto nos Céus. Antes disso, fiz frequentes viagens pelos Quatro Grandes Continentes, e não houve um só lugar na Terra onde eu não tenha pisado. Para mim, naquela época, era de extrema importância estabelecer laços com pessoas de valor e cercadas de heroísmo. Foi nessa época que seu pai, o Rei Touro Demônio, se autodenominou o "Grande Sábio, Reflexo do Céu". Junto com outros cinco heróis, formamos uma irmandade, onde ele ocupava a liderança. O segundo posto ficou com o Rei Dragão Demônio, que assumiu o título de "Grande Sábio, Senhor do Oceano". O terceiro foi ocupado pelo Rei Peng Demônio, que se autodenominou "Grande Sábio do Céu Caótico". O quarto foi ocupado Rei Espírito Leão, que tomou o título de "Grande Sábio, Senhor da Montanha". O quinto pertenceu ao Rei Espírito Macaca, que adotou o título de "Grande Sábio da Brisa Serena". O sexto foi reservado ao Rei Espírito Macaco Dourado, que se chamou "Grande Sábio, Flagelo dos Deuses". Por fim, coube a mim, o Grande Sábio, Sósia do Céu, o sétimo e último lugar, pois, por ser o menor de todos, eu não superava ninguém em tamanho. Essa foi uma das épocas mais felizes da minha vida, e você sequer havia nascido.
O monstro, incrédulo, recusou-se a acreditar na história e lançou contra o Peregrino uma terrível estocada de fogo com sua lança. Felizmente, Wukong era um lutador habilidoso e conseguiu desviar o golpe a tempo, movendo-se para o lado e erguendo o bastão de ferro no momento exato.
— Maldita besta! — bradou Wukong, furioso. — Você é tão tolo que não sabe distinguir um amigo de um inimigo. Agora vai pagar caro ao sentir o peso do meu bastão!
— Macaco insolente! — gritou o monstro, bloqueando o golpe de seu adversário. — Não sabe o que está dizendo! Quem deveria temer é você, diante da minha lança!
Os dois pareciam ter esquecido de vez qualquer vínculo familiar que pudesse existir entre eles. Usando magia, ergueram-se aos limites do firmamento, onde travaram uma luta verdadeiramente espetacular. A fama do Peregrino era imensa, mas a do monstro não ficava atrás. Os golpes do bastão de ferro eram respondidos com igual eficácia pela lança de lâmina flamejante. O estrondo da batalha era tão intenso que uma névoa densa se espalhou pelas Três Regiões, mergulhando os quatro pontos cardeais em uma completa escuridão. Os golpes ecoavam pelo céu, como o som de um sino ressoando dentro de uma abóbada. Estremecidos, o sol, a lua e as estrelas cessaram de emitir luz. Tamanho era o ódio e o desprezo que consumia os dois oponentes que, em nenhum momento, trocaram sequer uma palavra. A luta era marcada por uma ferocidade selvagem, completamente alheia a normas ou restrições. O bastão desferia golpes cada vez mais precisos, enquanto a lança os bloqueava com incrível agilidade. Não poderia ser de outra forma, já que um dos combatentes era o próprio Grande Sábio, e o outro, o jovem Sudhana (1). Ambos estavam determinados a vencer, pois o prêmio era nada menos que o monge Tang em pessoa.
Mais de vinte vezes o monstro e o Grande Sábio cruzaram suas armas, mas o desfecho da batalha permanecia tão incerto quanto no início. Observando o combate, Zhu Bajie, percebeu claramente o que estava acontecendo: embora o monstro não estivesse nem perto de ser derrotado, ele apenas se defendia dos golpes, movendo-se de um lado para o outro, sem atacar seu oponente. Por outro lado o Peregrino, com sua habilidade e destreza inegáveis, fazia todo o esforço para derrotá-lo. Todos os seus ataques eram direcionados à cabeça de seu adversário, o que levou Bajie a pensar:
— Que astúcia a do Peregrino! Ele está tentando atrair o monstro o mais perto possível para, em seguida, descarregar sobre ele todo o peso de seu bastão. Isso aumentará ainda mais sua fama, e seu mérito será tão grande quanto o dos heróis mais renomados da história. Por que eu também não aproveito essa oportunidade?
Sem pensar duas vezes, Bajie ergueu o seu ancinho o mais alto que pôde e o deixou cair com força sobre a cabeça do monstro. Percebendo que estava em desvantagem, o monstro deu meia-volta e fugiu às pressas, levando consigo a lança de fogo.
— Atrás dele! Não o deixe escapar! — ordenou o Peregrino a Bajie.
Ambos correram atrás do monstro, mas, ao chegarem à entrada da caverna, viram-no de pé sobre uma das carroças, posicionada exatamente no centro. Com uma das mãos, segurava a lança de fogo, enquanto a outra desferia socos em seu próprio nariz.
— Que vergonha! — exclamou Bajie, soltando uma gargalhada. — Você viu o que ele está fazendo? Está tentando destruir o próprio nariz para nos acusar de crueldade no primeiro tribunal que encontrar. Esse maldito sabe muito bem que os juízes só se convencem quando há sangue. Por isso está tão empenhado em sangrar como um porco.
Depois de mais alguns socos, o monstro recitou um encantamento, e imediatamente uma torrente de fogo saiu de sua boca, enquanto uma espessa coluna de fumaça emanava de suas narinas. O mais assustador, no entanto, foi que das outras quatro carroças também começaram a jorrar torrentes de fogo rumo aos céus, queimando com tanta intensidade que toda a Caverna da Nuvem de Fogo foi encoberta por chamas e fumaça.
Apavorado, Bajie gritou para o Peregrino:
— Isso está ficando realmente ruim! Se essa enorme torrente de fogo se voltar contra nós, não teremos como escapar. Vou acabar, com certeza, assado na mesa dele, bem tostado e cuidadosamente temperado. Precisamos fugir agora, se quisermos salvar nossas peles!
Baije mal havia terminado de falar quando alcançou o outro lado do riacho, sem se preocupar nem um pouco com a sorte do Peregrino. Felizmente, o Peregrino conhecia um feitiço para repelir o fogo e se lançou decidido naquele mar de chamas, tentando capturar o monstro. O monstro, por sua vez, não se intimidou ao vê-lo. Pelo contrário, soltou mais duas baforadas de fogo e o incêndio alcançou proporções realmente extraordinárias. O calor era tão intenso que a terra ficou vermelha como ferro fundido e o céu parecia prestes a desabar. Era como uma roda gigantesca girando incessantemente ou um vasto rio de cinzas fluindo de leste a oeste. Esse fogo não tinha relação com o de Sui-Ren, nem com o utilizado por Lao-Tzu para purificar seu elixir. Sua origem não era celeste, embora também não pudesse ser considerada mundana. Era o fogo de Samadhi, o qual o monstro dominou através do próprio cultivo, alcançando a perfeição absoluta. As carretas estavam intimamente relacionadas com cada uma das Cinco Fases que originam tudo o que existe. A madeira do fígado alimenta o fogo do coração, que, por sua vez, acalma a terra do baço, que por sua vez gera o metal, que se transforma em água. A água gera a madeira e, assim, a magia se completa (2) (3). O fogo é o princípio de todas as transformações. Por isso, tudo cresce e evolui, enquanto o sol, majestoso, percorre os céus. O monstro conhecia esses processos graças ao domínio do Samadhi, razão pela qual era considerado o ser mais poderoso de todo o Oeste.
— Você não devia ter se metido — repreendeu-o o Peregrino. — Se a luta tivesse durado um pouco mais, eu teria desferido o golpe final. A pressa não serve para nada.
Os dois continuaram completamente absortos em discutir a habilidade do monstro e a ferocidade de suas chamas. Enquanto isso, o Monge Sha, encostado no tronco de um pinheiro, ria tanto que mal conseguia se manter em pé. Irritado, o Peregrino perguntou:
— Qual a razão dessa risada? Se você for capaz de capturar esse monstro de fogo sozinho, ficaremos muito gratos. Não pense que vamos impedir você de cruzar suas armas com ele. Como diz o provérbio, "para fazer uma bola, só é necessário algumas penas". Posso garantir que, se conseguir libertar nosso mestre, o mérito será inteiramente seu.
— Eu sou incapaz de capturar qualquer monstro — confessou o Monge Sha. — Se estou rindo, é porque vocês parecem crianças discutindo.
— O que quer dizer com isso? — perguntou o Peregrino.
— Segundo vocês mesmos disseram — explicou o Monge Sha —, esse monstro tem um conhecimento rudimentar das táticas militares. Se até agora conseguiu mantê-los à distância, foi porque é um verdadeiro mestre do fogo. Lembrem-se que as Cinco Fases se intercalam e se anulam mutuamente. Por que não utilizam esse princípio para combater as chamas desse monstro?
— Você tem razão! — exclamou o Peregrino, com o rosto iluminado. — Estávamos tão obcecados com nossa superioridade tática que ignoramos esse princípio. Não há, de fato, nada melhor para combater o fogo do que a água. Precisamos encontrar, o quanto antes, uma fonte que tenha água em abundância. Dessa forma, poderemos libertar nosso mestre num piscar de olhos.
— Exatamente — confirmou o Monge Sha.
— O que estamos esperando, então? — exclamou novamente o Peregrino. — Fiquem aqui e evitem ao máximo um confronto direto com essa criatura. Eu, por minha parte, vou até o Mar Oriental pedir a ajuda de um regimento de soldados-dragões. Com a colaboração deles, apagaremos esse fogo e libertaremos nosso mestre.
— Vá o quanto antes e não perca mais tempo, por favor — insistiu Bajie. — Não se preocupe conosco. Sabemos nos cuidar.
O Grande Sábio subiu em uma nuvem e logo chegou ao Mar Oriental. A paisagem era, de fato, deslumbrante, mas ele estava muito ocupado para se deter a admirar. Usando magia para dividir as águas, abriu caminho com uma facilidade surpreendente. Em pouco tempo, encontrou um yaksa em patrulha, que correu rapidamente de volta ao Palácio de Cristal da Água para informar ao Rei Dragão, Ao-Kuang, sobre a chegada inesperada do Grande Sábio. Ao-Kuang chamou todos os seus filhos e netos e saiu até a porta, escoltado por um batalhão de camarões-soldados liderados por um camarão-tenente, para dar as boas-vindas ao visitante ilustre. Após os cumprimentos de praxe, o Rei serviu chá, mas o Peregrino recusou, dizendo:
— Não tenho tempo para isso. O assunto que me traz aqui é de vital importância, e espero que possam me oferecer sua inestimável ajuda. Como talvez saibam, meu mestre partiu em uma viagem com destino ao Paraíso Ocidental, com o intuito de obter as escrituras de Buda. Ao passar perto da Caverna da Nuvem de Fogo, que fica à margem do Riacho do Pinheiro Seco, nos deparamos com um monstro conhecido como o Menino Vermelho, embora ele prefira ser chamado de Rei Menino Sábio. Devo reconhecer que ele é extremamente astuto e, usando mil artimanhas, conseguiu capturar meu mestre. Isso me obrigou a ir até sua porta e a enfrentá-lo, mas ele é um verdadeiro mestre no domínio do fogo. Após refletir por um tempo, percebi que as chamas são impotentes diante da água e decidi vir pedir sua ajuda. Para libertar o monge Tang das garras desse monstro, é necessário que provoque uma tempestade sobre o local onde ele habita, neutralizando, assim, o poder destrutivo das chamas que ele usa para aterrorizar toda a região.
— Está equivocado, Grande Sábio — disse o Rei Dragão. — Se o que deseja é chuva, não deveria ter vindo até mim.
— Como assim? — protestou o Peregrino. — Vossa Majestade é um Rei Dragão dos Quatro Mares e é, portanto, responsável por distribuir a chuva e o orvalho. Não há ninguém mais capacitado do que você para realizar o plano que tenho em mente.
— É verdade que a chuva está entre minhas responsabilidades — admitiu o Rei Dragão. — No entanto, não posso simplesmente distribuí-la como bem entender. Para isso, é necessário receber uma ordem do Imperador de Jade, na qual se especifique com clareza o local, a hora, a quantidade e a duração da chuva. Esse documento é redigido por três funcionários imperiais e entregue pessoalmente pela Estrela Polar. Uma vez em minhas mãos, tenho a obrigação de comunicá-lo ao Deus do Trovão, à Mãe do Relâmpago, ao Tio do Vento (4) e ao Jovem das Nuvens , pois, como diz o provérbio, “sem a cooperação das nuvens, o dragão não consegue se mover”.
— Eu não preciso de vento, nem nuvens, nem relâmpagos, nem trovões! — exclamou o Peregrino, impaciente. — Eu preciso apenas da água da chuva.
— Mesmo assim, temo que não poderei atender ao seu pedido — anunciou o Rei Dragão —, pois para isso precisarei da ajuda e aprovação de meus três irmãos. Contudo, se eles concordarem em ajudar, pode ter a certeza de que todo o mérito será exclusivamente seu.
— Onde posso encontrar os seus irmãos? — perguntou novamente o Peregrino.
— Nos seus respectivos palácios — respondeu o Rei Dragão. — Ao -Shin, no Mar do Sul, Ao -Shun, no Mar do Norte e Ao -Jun, no Mar Ocidental.
— Se tenho que ir a tantos lugares — concluiu o Peregrino, rindo —, prefiro ir diretamente ao Imperador de Jade e pedir-lhe uma ordem para uma tempestade.
— Não é necessário que faça isso, Grande Sábio — tentou tranquilizá-lo o Rei Dragão. — Quando desejamos nos reunimos, eu e meus irmãos batemos um tambor de ferro e tocamos uma campainha de ouro que todos possuímos. Imediatamente, vamos ao encontro de quem nos chamar.
— Nesse caso — replicou o Peregrino, mais animado —, gostaria que batesse o tambor e tocasse a campainha sem demora.
Assim ele o fez, e pouco tempo depois de fazê-lo, os três Reis Dragões apareceram.
— Podemos saber por que nos fez vir com tanta pressa?
— O Grande Sábio nos procurou em busca de ajuda — explicou Ao-Kuang. — Ele precisa de uma forte chuva para derrotar um monstro.
O Peregrino então explicou os motivos que o haviam levado a fazer tal pedido. Relatou tudo com tanta pompa que todos aceitaram prontamente oferecer a ajuda necessária. Sem perder tempo, convocaram um tubarão de aparência feroz e designaram-lhe o comando de todo o exército. A vanguarda foi confiada a um sábalo de boca enorme e reconhecida bravura. As carpas, famosas por suas qualidades como generais de campo, saltavam energicamente de onda em onda, enquanto as bremas, as rainhas do mar, exalavam névoas e brisas de suas bocas. No leste, as cavalas, grandes generais do oceano, passavam entre si os sinais secretos; no oeste, os atuns, severos comandantes das águas, gritavam suas ordens à tropa; no sul, as sereias de olhos avermelhados marcavam o ritmo do avanço do exército com seus movimentos sensuais, como incansáveis dançarinas; no norte, viam-se gestos pomposos de generais aguerridos que ostentavam armaduras escuras; e, finalmente, no centro, os esturjões, valentes sargentos do meio aquático, tomavam posse de seus comandos. Valentes eram os soldados que vinham em massa dos cinco pontos cardeais. A tartaruga marinha, extremamente inteligente e astuta, mostrava as qualidades que a haviam tornado a suprema chanceler do oceano. Como conselheiros, tinha sob sua responsabilidade uma enorme legião de cágados, tão maquiavélicos e sutis quanto ela. Os ministros iguanas não cessavam de demonstrar sua fidelidade e sua grande inteligência. Longe da visão deles estavam as batalhadoras tartarugas de areia, bem dotadas para a luta, que exerciam o cargo de comandantes. A maior parte do exército era formada por caranguejos guerreiros, que caminhavam de lado empunhando longas espadas e lanças; camarões amazonas ,que avançavam saltando graciosamente sem deixar cair seus pesados arcos, e soldados marinhos de mil e uma espécies.
Sobre esse momento impressionante, surgiu um poema que diz:
"Os Reis Dragões dos Quatro Mares ficaram felizes em atenderao pedido do Grande Sábio, Sósia do Céu;Enquanto Sanzang enfrenta uma provação no caminho,a água é trazida para apagar o fogo destruidor."
Sempre à frente do exército de dragões, o Peregrino não demorou a chegar ao Riacho do Pinheiro Seco. Lá, parou a marcha e, virando-se para os quatro reis dragões, disse:
— Lamento tê-los trazido a um lugar tão afastado de sua residência habitual. Este é o refúgio do monstro sobre o qual lhes falei. Seria prudente que ficassem aqui em cima, no ar, e não se deixassem ver por enquanto. Minha intenção é desafiá-lo novamente. Se eu conseguir derrotá-lo ou, mesmo, se for eu o derrotado, não será necessária a intervenção de vocês. Cuidem para não deixar cair uma única gota de chuva antes que ele comece a vomitar fogo, pois esse monstro é muito desconfiado e logo buscará a segurança de sua caverna.
Os Reis Dragões aceitaram as sugestões e se submeteram de boa vontade à autoridade de sua liderança. O Peregrino então desceu da nuvem, adentrou o bosque de pinheiros e gritou:
— Bajie! Monge Sha! Estou de volta!
— Você voltou mais rápido do que esperávamos — comentou Bajie, surpreso. — Conseguiu convencer os Reis Dragões?
— Todos estão aqui — anunciou o Peregrino. — O melhor agora é que vocês cuidem da bagagem. Tentem mantê-la em um lugar seco, pois uma chuva torrencial está prestes a cair. Quanto a mim, vou desafiar esse monstro mais uma vez.
— Não se preocupe — disse o Monge Sha. — Nós cuidamos de tudo.
Mais uma vez, o Peregrino cruzou o riacho com um esplêndido salto, colocou-se de braços cruzados diante da porta e gritou com todas as suas forças:
— Abram imediatamente!
Os pequenos demônios correram para informar seu senhor, dizendo:
— O Peregrino Sun está aqui novamente, majestade!
— Que macaco mais persistente! — exclamou o monstro, levantando a cabeça e soltando uma sonora gargalhada. — Parece que conseguiu escapar do fogo, embora eu não entenda, de fato, como. De qualquer forma, ele não conseguirá repetir o feito, pois não vou parar de vomitar chamas até que sua pele esteja totalmente chamuscada e sua carne se torne uma massa enegrecida.
Ele pegou a lança e acrescentou:
— Tragam as carroças — e lançou-se para fora da caverna, onde perguntou com ousadia ao Peregrino:
— Posso saber por que voltou?
— Para exigir que liberte meu mestre — respondeu o Peregrino.
— Que cabeça dura você tem! — exclamou o monstro. — Qual o problema em seu mestre me servir de aperitivo? É melhor esquecer dele o quanto antes.
O Peregrino não conseguiu conter a fúria que o dominava. Pegou o seu bastão de ferro com ouro nas extremidades e o deixou cair com toda a força sobre a cabeça do monstro, mas o mesmo bloqueou o golpe com sua lança de fogo. A batalha que se seguiu não se assemelhava em nada à que haviam travado horas antes. O monstro estava furioso, enquanto o Rei dos Macacos se sentia mais seguro do que antes. Um arriscava sua vida para salvar a do monge Tang, e o outro para incorporá-la à sua, devorando-o como se fosse um grão de arroz. Os pensamentos que agora percorriam suas mentes eram muito diferentes. Nenhum deles pensava mais em laços familiares, o que os tornava ainda mais ferozes no combate. Ambos estavam conscientes de que, se a sorte lhes virasse as costas, poderiam muito bem acabar despojados de sua pele ou dentro de uma panela. Isso explicava a ferocidade com que mediam, repetidamente, seus golpes. Apesar de tudo, nem o bastão de ferro nem a lança de fogo conseguiam garantir uma vantagem decisiva. Os dois guerreiros possuíam poderes tão semelhantes que, após mais de vinte confrontos, o desfecho da luta ainda estava por ser decidido.
Compreendendo que não havia como obter uma vitória rápida, o monstro lançou um terrível golpe contra o corpo de seu adversário, recuando rapidamente alguns passos. Mas o que fez em seguida não foi se preparar para deter a terrível reação do macaco, e sim golpear o próprio nariz com os punhos. Imediatamente, chamas extraordinárias surgiram de seus olhos, unindo-se aquelas que, de repente, começavam a surgir de cada uma das carroças.
Compreendendo que o momento havia chegado, o Grande Sábio levantou os olhos para o céu e gritou:
— Agora, Reis Dragões!
Os quatro reis dragões convocaram suas tropas e ordenaram que entrassem em ação, despejando sobre o monstro de fogo uma chuva como jamais se viu antes. Era um fenômeno que se assemelhava ao de estrelas caindo do céu, e a sua força assemelhava-se a das ondas do mar durante uma tempestade. No início, as gotas de chuva tinham o tamanho de punhos cerrados mas em pouco tempo cresciam até alcançar o tamanho de grandes panelas para cozinhar arroz. A terra inteira foi coberta pelas águas, e até as montanhas mais altas adquiriram a cor da cabeça de Buda (5).
A água desceu para as fendas profundas, densa como um biombo de jade. Os riachos viram seus leitos se expandirem imensamente, as intersecções das estradas foram inundadas e todos os rios se transformaram, de repente, em mares. Tal foi a contribuição dos dragões sagrados para a salvação do monge Tang. Para alcançar esse objetivo, não hesitaram em derramar sobre a terra o imenso caudal do Rio Celeste. No entanto, a chuva não conseguiu apagar as chamas do monstro. Sem a permissão do Imperador de Jade, a água que os Reis Dragões usaram poderia apagar qualquer fogo de natureza terrena, mas não o fogo de Samadhi, que possuía uma natureza espiritual e havia sido aperfeiçoado pelo monstro através do cultivo. Na verdade, foi como jogar óleo sobre o fogo, fazendo as chamas se intensificarem ainda mais.
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