28 de março de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo LII

 ۞ ADM Sleipnir


CAPÍTULO LII:

WUKONG CAUSA GRANDE TUMULTO NA CAVERNA DO ELMO DE OURO. TATHAGATA REVELA EM SEGREDO O VERDADEIRO MESTRE.

Contávamos que o Grande Sábio Sun, após recuperar seu bastão de ferro com extremidades de ouro, deixou a caverna, deixando para trás um rastro de destruição. A alegria transbordava de cada poro de seu corpo quando, com um salto magnífico, alcançou o topo da montanha onde os outros deuses o aguardavam.

— Como foi desta vez? — perguntou o Devaraja Li.

— Usando meus poderes de transformação — explicou o Peregrino —, consegui me infiltrar na caverna. O monstro e seus súditos estavam comemorando a vitória, bebendo e cantando como loucos. No início, foi impossível descobrir onde ele escondia seu precioso tesouro, mas, ao contornar o trono, encontrei uma sala secreta de onde vinham relinchos de cavalos e lamentos de dragões. Bastou um instante para perceber que eram os animais que servem a Seção do Fogo. Meu bastão estava encostado na parede voltada para o leste, e tudo o que precisei fazer foi pegá-lo e abrir caminho até aqui.

— Ficamos felizes que tenha recuperado sua valiosa arma — disseram os deuses em coro —, mas quando é que vamos recuperar as nossas?

— A partir de agora, tudo será muito mais fácil — respondeu o Peregrino. — Com o meu bastão de ferro em mãos, derrotarei aquele monstro, e vocês poderão reaver suas preciosas armas de guerra. Podem confiar em mim.

O Peregrino mal havia terminado de falar quando, do fundo da montanha, ergueu-se um estrondo de gritos e vozes, misturados ao rufar de tambores e ao vibrar metálico dos gongos. O próprio Rei Búfalo havia saído À frente de suas tropas para caçar o Peregrino. Ao ver as fileiras de guerreiros se aproximando, o Peregrino exclamou, animado:

— Excelente! Era exatamente isso que eu queria! Fiquem aqui e aguardem, enquanto eu capturo esse monstro.

Erguendo seu bastão de ferro acima da cabeça, ele gritou para seus perseguidores:

— Para onde pensa que vai com tanta pompa, seu monstro maldito? Se deseja continuar avançando, terá que provar o gosto do meu bastão de ferro primeiro!

— Todos os macacos são ladrões e não sabem se comportar com dignidade! — retrucou o monstro, bloqueando o golpe com sua lança. — Só mesmo você para ousar me roubar em plena luz do dia!

— Você é uma criatura imunda, que nem sequer percebe que está prestes a morrer! — retrucou o Peregrino. — Além disso, o único ladrão aqui é você, que se apropria do que não lhe pertence sem o menor escrúpulo! Diga, então, quais das coisas que guarda são realmente suas? Não fuja, e prove o gosto do bastão de ferro do seu respeitável avô!

Assim teve início uma batalha verdadeiramente extraordinária. O Grande Sábio demonstrou todo o seu poder, enquanto o monstro fazia tudo ao seu alcance para não ser dominado. Ambos se entregaram a uma fúria implacável, determinados a alcançar a vitória a qualquer custo. O bastão de ferro, brandido com maestria pelo Grande Sábio, parecia a cauda de um dragão; a lança, manejada com habilidade pelo monstro, lembrava a cabeça de uma serpente píton. Cada golpe do bastão de ferro produzia um estrondo semelhante ao de um furacão, enquanto os golpes da lança criavam uma corrente de ar que lembrava a força avassaladora de uma inundação. A violência da batalha mergulhou toda a cordilheira em um clima de tensão absoluto. A incerteza do resultado fez com que a névoa parasse no alto das montanhas cobertas de árvores verdejantes: os pássaros interromperam o bater de suas asas em pleno voo, e as bestas, aterrorizadas, escondiam suas cabeças na areia. O silêncio da natureza contrastava com os gritos de incentivo dos demônios. O Grande Sábio não precisava de ninguém para encorajá-lo. Afinal, seguia invencível após travar incontáveis batalhas ao longo dos dez mil quilômetros percorridos na jornada para o Oeste. Mas o monstro também não ficava atrás em habilidade. Não à toa, governava com mão de ferro o inacessível Reino do Elmo de Ouro. Armas tão poderosas não podiam coexistir em harmonia. Uma teria que sucumbir para que a outra prevalecesse.

O combate durou mais de três horas sem que nenhum dos dois conseguisse uma vantagem significativa. O céu começava a escurecer, e o monstro, após bloquear mais um golpe do bastão de ferro com sua lança, propõs:

— Que tal encerrarmos a luta por hoje? Já está escurecendo, e logo não conseguiremos enxergar nossas próprias mãos. O melhor seria nos retirarmos para descansar e, amanhã cedo, retomarmos o combate.

— Cale essa boca imunda! — retrucou o Peregrino. — É um absurdo pensar que eu abandonaria a luta justamente quando estou no meu melhor momento. O que me importa se a noite está caindo? Está na hora de deixar bem claro quem é o mais forte!

Sem dizer mais nada, o monstro soltou um grito terrível e correu apressado para dentro da caverna, seguido por sua horda de demônios. Em um piscar de olhos, as portas de pedra se fecharam com firmeza, e o Grande Sábio não teve alternativa senão retornar ao cume da montanha, onde os outros deuses o aguardavam. Assim que o viram aparecer com o bastão de ferro sobre os ombros, o cumprimentaram entusiasmados, dizendo:

— Seus poderes são verdadeiramente extraordinários! Não é à toa que é conhecido como o Sósia do Céu, pois sua força é, de fato, comparável à de todos os astros!

— Agradeço pelas palavras de incentivo — respondeu o Peregrino. — Quando querem, vocês também sabem ser corteses.

— Não estamos exagerando nem um pouco — replicou Devaraja Li, aproximando-se. — Não há ser algum que possa se comparar a você. Sua forma de lutar nos fez recordar os tempos antigos, quando usamos as redes cósmicas contra você.

— Para que reviver o passado? — retrucou o Peregrino. — Depois da longa batalha que travou comigo, esse monstro deve estar exausto. Eu, por outro lado, nem mesmo sinto cansaço. Por isso, acredito que o melhor a fazer é que todos fiquem aqui descansando, enquanto vou investigar onde ele esconde esse maldito bracelete. Estou decidido a encontrá-lo, custe o que custar. Assim que o roubar, poderemos capturá-lo sem dificuldade. Dessa forma, poderão retornar ao Céu com suas armas.

— Não acha que está ficando um pouco tarde? — questionou o príncipe Nezha. — Creio que seria melhor descansar esta noite, e voltar àquela caverna imunda ao amanhecer.

— Quão pouco conhece do mundo! — exclamou o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Desde quando um ladrão age em plena luz do dia? Para entrar em um lugar sem ser descoberto, é preciso aproveitar a escuridão da noite. É assim que as coisas funcionam, e não há o que discutir.

— É melhor não discutir sobre isso, príncipe — aconselharam ao mesmo tempo a Virtude do Fogo e um dos escudeiros do trovão. — Pensando bem, nós não entendemos dessas coisas. O Grande Sábio, por outro lado, é um verdadeiro mestre no assunto. É evidente que o monstro está muito cansado, e que isso o fará baixar a guarda durante a noite. Vá logo, Grande Sábio, e faça o que precisa ser feito.

Com um sorriso no rosto, o Grande Sábio ergueu o bastão ferro e, em um único salto, alcançou os portões da caverna. Com um leve movimento, seu corpo se transformou instantaneamente em um pequeno grilo, de boca tão dura quanto aço, longas antenas e um corpo escuro. Seus olhos brilhavam com uma vivacidade incomum, e suas patas eram ásperas como os galhos retorcidos de uma árvore antiga. Pousado sobre uma pedra, começou a cantar, animado pelo brilho da lua e pela pureza da brisa noturna. Há algo de humano no canto de um grilo. Embora seu som seja fraco e de tom agudo, ele chora com o orvalho e espalha melancolia pelos campos. O viajante que se debruça sobre uma janela, perdido em pensamentos, se afoga em suas memórias ao escutar esse canto. Tal é a força de um ser tão pequeno, que encontra encanto em viver entre as frestas das pedras do chão ou sob o leito de um homem adormecido.

O grilo em que o Grande Sábio havia se transformado esticou as patas traseiras e, com um salto, chegou até a porta da caverna. Deu mais três ou quatro saltos e conseguiu entrar por uma pequena fresta na madeira. Durante alguns segundos, permaneceu abaixado junto à parede, observando tudo ao seu redor à luz das tochas e archotes pendurados nos muros. Os demônios estavam terminando o jantar. Sabendo que não havia nada a fazer além de esperar, o Grande Sábio começou a cantar. Pouco depois, os demônios se levantaram da mesa, recolheram os restos da refeição e, em seguida, estenderam esteiras no chão, acomodando-se para dormir tranquilamente. O Peregrino só se atreveu a entrar na sala secreta, localizada atrás do trono, quando chegou a hora da primeira vigília. Lá, ele ouviu o monstro dando ordens aos seus súditos:

— Aqueles que estiverem de guarda junto à porta, façam o possível para não caírem no sono. É muito provável que Sun Wukong se transforme em alguma coisa e tente roubar o que bem entender.

Para se manterem acordados, os guardas sacudiam constantemente uma espécie de matraca que carregavam nas mãos. No entanto, a presença incômoda deles não preocupou o Grande Sábio, que estava determinado a fazer seu plano dar certo. Com incrível destreza, esgueirou-se, sem sem notado, até o quarto do monstro. O leito era de pedra e, ao seu redor, havia um grupo de espíritos-árvore e outras criaturas da montanha, todos cobertos de poeira e pintados de vermelho. Alguns estavam ocupados arrumando a cama, enquanto outros ajudavam seu senhor a se despir, desabotoando sua túnica e retirando suas botas. 

Assim que o monstro se livrou de todas as roupas, a brancura fantasmagórica do bracelete se revelou. Ele o mantinha preso ao ombro esquerdo, como se fosse um colar de pérolas ou uma pulseira. Em vez de removê-lo, pressionou-o algumas vezes contra a pele, encrustando-o firmemente no lugar antes de finalmente se deitar.

O Peregrino sacudiu levemente o corpo e se transformou em uma pulga de cor amarelada. Com um salto, alcançou o leito de pedra e se esgueirou habilmente entre os cobertores. Quando percebeu que estava exatamente sobre o ombro esquerdo do monstro, deu-lhe uma picada feroz. O monstro virou-se imediatamente e começou a gritar:

— Malditos escravos! Deveria mandar açoitá-los por não terem sacudido os cobertores! Por culpa da negligência de vocês, acabei sendo picado por um inseto horrível!

Depois de coçar o local algumas vezes, o monstro voltou a adormecer. O Peregrino examinou cuidadosamente a área da pele onde o bracelete estava e deu outra picada forte. Incapaz de pegar no sono, o monstro sentou-se desesperado na cama e começou a se coçar freneticamente, enquanto gritava:

— Essa coceira está me matando!

O Peregrino percebeu, então, que o bracelete estava tão firmemente incrustado na pele do monstro que, por mais que tentasse, jamais conseguiria arrancá-lo. Seus esforços para roubá-lo eram inúteis.Então, o Peregrino saltou da cama e, transformando-se novamente em um grilo, abandonou o dormitório. 

Ele seguiu rapidamente até a sala secreta, onde voltou a ouvir os relinchos dos cavalos e os lamentos dos dragões, que permaneciam suspensos no teto. Recuperando sua forma habitual, o Peregrino preparou-se para realizar a magia de abertura de portas. Recitou as palavras mágicas, e, num instante, o cadeado estalou no ar, enquanto as duas portas se abriram sozinhas. 

O Peregrino só precisou empurrá-las levemente para entrar na sala, perfeitamente iluminada pelos membros cativos da Seção do Fogo, dando a impressão de ser dia. Diversas armas estavam apoiadas contra as paredes, tanto no lado voltado ao leste quanto ao oeste. Entre elas, destacavam-se a cimitarra do Príncipe Nezha, usada para despedaçar monstros, e os arcos e flechas ígneos da Estrela da Virtude do Fogo. O Peregrino observou atentamente ao redor e notou, sobre uma mesa de pedra atrás da porta, uma cesta de bambu. Dentro dela, havia um punhado de pelos. Tomado pela euforia, agarrou-os com uma das mãos, soprou sobre eles duas vezes e ordenou:

— Transformem-se!

Imediatamente, os pelos se transformaram em quarenta ou cinquenta pequenos macacos, que se apoderaram das armas  cimitarra, espada, porrete e roda além dos arcos, flechas, carroças, cabaças, corvos, ratos e cavalos de fogo. Tudo o que havia sido absorvido pelo bracelete foi recuperado.

Sem perder tempo, os macacos montaram nos dragões de fogo e provocaram um incêndio devastador dentro da caverna. Os corredores que levavam à saída explodiam com violência, como se tivessem sido tomados por raios e projéteis de canhão. Os demônios ficaram aterrorizados. A confusão era tamanha que alguns se agarravam desesperadamente aos cobertores, enquanto outros tentavam cobrir a cabeça, chorando e gritando como loucos. Sem saber para onde fugir, a desordem foi total, e mais da metade deles acabou perecendo nas chamas. Assim, o Belo Rei dos Macacos pôde finalmente retornar triunfante ao acampamento, pouco antes da terceira vigília.

O Devaraja Li e seus companheiros descansavam tranquilamente no topo da montanha quando, de repente, avistaram um enxame de luzes brilhantes se aproximando. Sentiram-se aliviados ao perceber que era o Peregrino, voando ladeira acima montado em um dragão, enquanto dava ordens ao seu pequeno exército de macacos. Assim que alcançou o topo, gritou com todas as suas forças:

— Aqui estão suas armas! Venham buscá-las, se quiserem!

Os primeiros a obedecer foram a Estrela da Virtude do Fogo e o Príncipe Nezha. Enquanto isso, o Peregrino sacudiu levemente o corpo, e imediatamente todos os pelos que havia perdido reintegraram-se a ele. O Príncipe Nezha acariciou com carinho sua preciosa arma. A Estrela da Virtude do Fogo, por sua vez, ordenou que os oficiais sob seu comando cuidassem dos dragões de fogo e do restante do equipamento. Sorrisos iluminavam seus rostos, e palavras de gratidão ao Peregrino fluíam constantemente de seus lábios. Por ora, não falaremos mais sobre eles.

Voltemos a falar da Caverna do Elmo de Ouro, onde o incêndio ainda não havia sido controlado. Até o próprio Rei Búfalo ficou aterrorizado. Quando percebeu o que estava acontecendo, saiu apressadamente de seu quarto, levantou o bracelete com as duas mãos e o fez girar na direção do fogo. Dessa forma, conseguiu dominar as chamas. Mesmo assim, os corredores ainda estavam cheios de brasas e fumaça, que desapareceram completamente quando o monstro percorreu cada um deles.

Não havia mais o que fazer para salvar seus demônios. Mais da metade havia morrido carbonizada, e, entre os sobreviventes, mal havia uma centena capaz de empunhar armas, incluindo as fêmeas. Desesperado, o Rei Búfalo correu até a sala secreta onde guardava os espólios de suas pilhagens, apenas para descobrir que tudo havia sido levado. Por fim, decidiu inspecionar o fundo da caverna e, com certo alívio, percebeu que Bajie, o Monge Sha e o mestre ainda estavam firmemente amarrados. Até o dragão branco, que servia de montaria, permanecia preso a uma estaca, com as bagagens intactas. Isso fez o monstro exclamar, furioso:

— Quem foi o desleixado que provocou este incêndio e trouxe tamanha desgraça sobre nós?

— Nenhum de nós poderia ter feito isso, grande senhor — disse timidamente um dos demônios que o acompanhava. — Só pode ter sido alguém determinado a destruir nosso acampamento. Isso explica por que todos os membros da Seção do Fogo foram libertos e as armas celestiais desapareceram.

— Isso só pode ser obra de uma pessoa! — exclamou o monstro, percebendo o que havia acontecido. — Não existe ladrão mais experiente do que aquele Sun Wukong! Agora entendo por que foi tão difícil pegar no sono. Aquele maldito macaco deve ter entrado no meu quarto usando seus poderes de metamorfose e me dado aquelas picadas terríveis. Sem dúvida, ele tentou roubar meu precioso bracelete, mas, ao ver o quão bem preso ele estava ao meu corpo, acabou desistindo. Por isso roubou as armas de seus companheiros e libertou os cavalos e os dragões de fogo. Não conheço ser mais perverso do que ele! Ele até tentou me queimar vivo! Mas pode ter certeza, seu macaco ladrão, que esta é a última vez que usa truques tão sujos contra mim. Com o bracelete em meu poder, ninguém pode me afogar, mesmo que me amarre no fundo do oceano, nem posso morrer queimado, mesmo que me joguem em um lago de fogo. Mas você ... tome cuidado, porque, quando eu te pegar, vou arrancar sua pele em tiras e cortar sua carne em pedacinhos, como se faz com os ladrões. Só então ficarei satisfeito!

O monstro continuou falando por um longo tempo, até que, finalmente, o céu começou a clarear no leste. No alto da montanha, o Príncipe Nezha pegou as seis armas que havia acabado de recuperar e disse ao Peregrino:

— Está amanhecendo, Grande Sábio. Acho que o melhor a fazer é, em vez de continuarmos esperando, aproveitarmos a confusão que você causou no reino desse monstro para infligir uma nova derrota a ele. Vamos enfrentá-lo mais uma vez, com a ajuda dos membros da Seção do Fogo. Estou convencido de que, desta vez, ele cairá em nosso poder.

Você tem razão — respondeu o Peregrino, sorrindo. — Vamos unir nossas forças e nos divertir um pouco.

O otimismo tomou conta de todos, e até o último dos soldados se sentia animado para lutar. Assim que chegaram à entrada da caverna, o Peregrino ergueu a voz e desafiou:

— Venha aqui, seu monstro maldito! O que está esperando para sair e lutar?

O incêndio da noite anterior havia reduzido a cinzas os dois portões de pedra que protegiam a entrada da caverna. Um grupo de demônios estava ali naquele momento, recolhendo os escombros e varrendo o chão. Ao avistarem o grupo de sábios se aproximando, sentiram um medo tão grande que largaram as vassouras e os ancinhos e correram para dentro da caverna para informar ao seu senhor.

— Sun Wukong — gritaram, aflitos — acabou de chegar com um destacamento de deuses e está lançando insultos contra o senhor, desafiando-o para a luta!

A surpresa do monstro foi tão grande que ele começou a ranger os dentes e a fazer estranhos movimentos com os olhos. No entanto, logo recuperou a compostura e, agarrando sua lança e o precioso bracelete, foi imediatamente até a porta, vociferando contra seu inimigo.

— Você não passa de um macaco ladrão e incendiário! — gritou o monstro com todas as forças. — Quer me explicar que habilidades você tem para se atrever a me desafiar de forma tão insolente?

— Se quer descobrir minhas habilidades, monstro cruel — replicou o Peregrino, soltando uma gargalhada —, basta vir até aqui e ouvir o que tenho a dizer. Como todo o cosmos bem sabe, minhas qualidades sempre foram extraordinárias, desde o momento do meu nascimento. Ainda muito jovem, recebi a iluminação e pratiquei os princípios que conduzem à imortalidade, dominando em pouco tempo o segredo da eterna juventude. Mas isso não foi suficiente para mim. Abandonei minha terra natal e fui viver com um grande sábio a quem servi com profundo respeito, esperando obter a verdadeira sabedoria do coração. Sob sua tutela, aprendi todas as técnicas de metamorfose, desvendei os mistérios da magia. O universo foi testemunha de minhas façanhas: domava tigres quando não tinha nada melhor para fazer e subjugava os dragões dos oceanos quando me sentia entediado. Com isso, tomei para mim o trono da Montanha das Flores e Frutos e estabeleci minha corte na inexpugnável Caverna da Cortina de Água. Mas ainda não estava satisfeito. Ousei fixar residência nos reinos celestiais e me tornei um verdadeiro pesadelo para os habitantes das Regiões Superiores. Foi então que recebi o título de Grande Sábio, Sósia do Céu,  embora continuasse a ser conhecido por todos como o Belo Rei dos Macacos. Quando percebi que não havia sido convidado para o Festival dos Pêssegos Imortais, considerei isso uma grande afronta e, em vingança, me apropriei do néctar de jade que enchia o Lago de Jaspe. Bebi o quanto quis na Torre Sagrada e ainda tive a audácia de roubar e devorar iguarias celestiais, como os pêssegos de mil anos, os alimentos dos deuses e até mesmo as pílulas da imortalidade. Os tesouros dos Céus foram meus, assim como as relíquias mais valiosas guardadas pelos sábios. Quando o Imperador de Jade tomou conhecimento das minhas façanhas, enviou contra mim seus guerreiros mais poderosos. No entanto, derrotei os Nove Planetas e feri as Estrelas dos Cinco Pontos Cardeais. Nenhum dos soldados celestiais era páreo para mim, e consegui manter à distância um exército de mais de dez mil combatentes. Sem saber o que fazer, o Imperador de Jade decidiu pedir ajuda ao Pequeno Sábio da Torrente das Libações.  Durante nosso combate, realizamos mais de setenta e duas metamorfoses, cada um empenhado em superar o outro. A luta foi tão intensa que até mesmo Guanyin, dos Mares do Sul, decidiu intervir, emprestando ao meu oponente seu jarro e seu ramo de salgueiro. Lao-Tzu forneceu seu cortador de diamantes, e foi assim que finalmente conseguiram me capturar. Com os pés e mãos atados, fui levado perante o Imperador de Jade,  que decidiu que eu fosse julgado sem demora. Os ministros celestiais me declararam culpado de todas as acusações e me sentenciaram à morte por decapitação. Mas nenhuma lâmina pôde me ferir! Sempre que o fio dos machados dos carrascos tocava meu pescoço, faíscas voavam e as lâminas se despedaçavam. Percebendo que não podiam me matar, decidiram me entregar a Lao-Tzu, que tentou refinar meu corpo de aço em sua fornalha, sob a vigilância dos Seis Deuses da Luz. Durante quarenta e nove dias, fui submetido a esse suplício. Mas, quando abriram a tampa para ver o que restava de mim, saltei para fora ileso e continuei a desafiar os Céus. Conhecendo minha força, todos os deuses fugiram para se esconder. Os sábios decidiram, então, implorar a ajuda de Buda, e então, minha sorte mudou. Que poder extraordinário o de Tathagata! Que sabedoria imensurável! O desafiei para ver quem conseguia dar o salto mais longo, mas nem sequer consegui escapar da palma de sua mão. Perdi todos os meus poderes e fui aprisionado na raiz de uma montanha. Só assim o Imperador de Jade conseguiu, finalmente, restaurar a paz nos Céus, e o Oeste voltou a ser conhecido como a Suprema Felicidade. Por mais de quinhentos anos, fiquei selado sob a montanha, sem provar um único grão de arroz ou uma gota de chá. Mas, quando a Grande Cigarra de Ouro decidiu reencarnar e o Leste tomou a decisão de enviá-la ao país de Buda em busca das escrituras, possibilitando que o Grande Senhor dos Tang pudesse salvar as almas de seus ancestrais, Guanyin me convenceu a me submeter ao Bem e abraçar a Fé, renunciando à minha natureza selvagem. O juramento que fiz naquela ocasião me libertou da minha prisão de pedra, e agora estou a caminho do Oeste em busca das escrituras sagradas. Portanto, pare de agir com tanta imprudência, besta imunda, e liberte o monge Tang! Todos devem se curvar diante do verdadeiro dharma!

— Então, você é o ladrãozinho que ousou roubar do próprio Céu! — exclamou o monstro, ameaçando o Peregrino. — Não fuja e prove o gosto da minha lança!

O Grande Sábio bloqueou o golpe com seu bastão de ferro, dando início a um combate extraordinário. Enquanto isso, o Príncipe Nezha e a Estrela da Virtude do Fogo se deixaram levar pelo fervor guerreiro que há tempos ardia dentro deles e lançaram contra o demônio as seis armas celestiais, além de todo o arsenal da Seção do Fogo. Isso fez com que o Grande Sábio redobrasse a intensidade de seus ataques, ao mesmo tempo em que os dois escudeiros do trovão preparavam seus raios e o Devaraja Li desembainhava sua cimitarra, todos prontos para atacar o inimigo de uma só vez.

O monstro, no entanto, sorriu com desprezo. Com tranquilidade, sacou o bracelete, atirou-o para o alto e gritou:

— Ataque!

No mesmo instante, um forte assobio ecoou pelo ar, e as seis armas celestiais do Príncipe Nezha, todo o arsenal da Seção do Fogo, os raios dos escudeiros do trovão, a cimitarra do Devaraja Li e até mesmo o bastão do Peregrino foram arrebatados para o alto, como se fossem meras plumas levadas pelo vento. 

Mais uma vez, o Grande Sábio Sun e os outros deuses se viram de mãos vazias. Triunfante, o demônio retornou à caverna e ordenou a seus súditos:

— Recolham todas as pedras e rochas que encontrarem e reconstruam os corredores e as salas. Assim que terminarmos, daremos fim ao monge Tang e seus companheiros, como uma oferenda de gratidão à Terra. Então, poderemos viver todos em paz e harmonia.

Os demônios obedeceram sem questionar, e, por ora, não falaremos mais deles. Já o Devaraja Li, à frente dos outros deuses, retornou cabisbaixo ao topo da montanha. A Estrela da Virtude do Fogo começou a repreender o Príncipe Nezha por não ter conseguido conter sua empolgação, enquanto os dois escudeiros do trovão criticavam o Devaraja Li por sua precipitação. O Senhor das Águas, por sua vez, permaneceu de lado, com a cabeça baixa, tão desanimado quanto um jovem mal-humorado.

Ao ver o quão desanimados estavam, o Peregrino não teve escolha a não ser tentar animá-los e, forçando um sorriso que não refletia seu verdadeiro estado de espírito, disse:

— Por favor, não fiquem tão aflitos. Afinal, como diz o antigo provérbio, "vitória e derrota são coisas comuns para um guerreiro". Se analisarmos a habilidade desse monstro em combate, veremos que ele não é muito melhor do que nós. O que o torna perigoso é apenas aquele maldito bracelete, que mais uma vez engoliu nossas armas. Acalmem-se e descansem, enquanto eu investigo mais sobre a origem desse monstro.

— Quando você recorreu ao Imperador de Jade pela primeira vez — respondeu o Príncipe Nezha —, ele ordenou que vasculhassem cada canto do Céu, e mesmo assim, nenhum vestígio da origem desse monstro foi encontrado. Onde pretende continuar sua investigação agora?

Refleti muito sobre essa questão e cheguei à conclusão de que não há poder maior do que o dharma de Buda. Portanto, planejo ir até o Paraíso Ocidental e perguntar a Tathagata sobre esse monstro. Pedirei que ele examine os Quatro Grandes Continentes com a sabedoria insondável de seu olhar e descubra a origem dessa besta que tem nos causado muitos problemas. Além disso, quero entender que tipo de força está contida nesse bracelete. Estou decidido a obtê-lo, custe o que custar. Só assim poderemos deter o monstro. É hora de vingá-los e garantir que retornem vitoriosos ao Céu.

— Se esse é o seu desejo disseram os deuses em coro —, não perca mais tempo. Quanto antes partir, mais cedo retornará.

Com um salto impressionante, o Peregrino subiu em uma nuvem e partiu a toda velocidade rumo à Montanha do Espírito. Voou tão rápido pelos céus que logo a avistou. Era, de fato, um lugar maravilhoso, envolto por nuvens de uma pureza inimaginável. No topo da montanha, que se perdia na imensidão azul do firmamento, erguia-se a grande cidade do Paraíso Ocidental, mais bela que todos os tesouros da China. O Sopro Primordial fluía livremente por suas ruas, traçando uma nítida fronteira entre o Céu e a Terra. Tapetes de flores enfeitavam o caminho, enquanto o som cristalino de sinos sagrados se misturava ao incessante cântico das escrituras santas. À sombra dos pinheiros, grupos de mulheres entoavam louvores ao Único, enquanto os arhats caminhavam serenamente sob cedros que pareciam esculpidos em jade. Bandos de grous pousavam no Pico do Abutre, e o movimento gracioso de suas asas contrastava com a quietude dos fênices azulados, que pareciam estar de guarda no alto das árvores. Macacos de pelagem negra ofereciam frutos da imortalidade aos viajantes, competindo em generosidade com cervos anciãos, que presenteavam todos com botões de flores de um vermelho vibrante. O céu era constantemente atravessado por bandos de pássaros exóticos, que pareciam conversar entre si em um idioma de trinos melodiosos. Em cada canto, haviam jardins exuberantes, repletos de flores com nomes tão belos quanto as cores que os preenchiam. Ao fundo da cidade, a cadeia de montanhas desenhava no horizonte um hieróglifo que nem os melhores calígrafos poderiam imitar. Tudo era pura beleza naquele mundo de harmonia serena. Como poderia ser diferente, se era um lugar regido pelo Espírito do Vazio Absoluto? Até nos menores detalhes resplandecia a solene luminosidade do próprio Buda.

Enquanto o Peregrino estava profundamente concentrado admirando a beleza que se estendia diante de seus olhos, ouviu uma voz atrás de si perguntar:

— De onde vem e para onde vai, Sun Wukong?

O Grande Sábio se virou rapidamente e viu que era a respeitável Bhiksuni (1). Depois de saudá-la com respeito, o Peregrino respondeu:

— Tenho um pequeno problema que gostaria de expor diretamente a Tathagata.

— Você continua tão mentiroso como sempre! — repreendeu Bhiksuni. — Se deseja falar com Tathagata, por que não vai até o templo, em vez de parar nesta montanha?

— Esta é a primeira vez que visito este lugar sagrado e não sei como me orientar por aqui — desculpou-se o Peregrino.

— Nesse caso, siga-me — insistiu Bhiksuni, e o Peregrino seguiu-a em direção ao Monastério do Trovão. Lá, ele foi barrado pelas imponentes figuras dos Oito Grandes Guardiões do Diamante (2).

— Espere aqui, Wukong, enquanto eu informo a Tathagata sobre a sua chegada — disse Bhiksuni.

O Peregrino não teve outra escolha a não ser esperar à porta. Quando Bhiksuni chegou à presença de Buda, juntou as palmas das mãos em sinal de respeito e disse:

— Sun Wukong deseja falar com Tathagata.

Tathagata ordenou que o Peregrino fosse conduzido à sua presença, e os Guardiões do Diamante não tiveram objeções em deixá-lo passar. 

Ao entrar no salão, o Peregrino se prostrou com o rosto no chão, e Tathagata disse:

— Ouvi dizer que a respeitável Guanyin o libertou, após você abraçar o budismo e se comprometer a acompanhar o monge Tang até estas terras em busca das escrituras sagradas. Como é que veio sozinho? Pode me explicar o que aconteceu?

— Permita-me informá-lo — respondeu o Peregrino, batendo a testa no chão novamente — que, desde o momento em que abracei a vossa fé e me tornei vosso discípulo, não me separei em nenhum momento do monge Tang, seguindo ao seu lado pela longa jornada rumo ao Oeste. Ao chegarmos à Caverna do Elmo de Ouro, situada na montanha com o mesmo nome, encontramos um monstro que ostenta o pomposo título de Grande Rei Búfalo. Seus poderes são tão extraordinários que conseguiu capturar meu mestre e meus outros irmãos, aprisionando-os dentro de sua caverna. Exigi várias vezes que os libertasse, mas só consegui enfurecê-lo ainda mais. Ele possui um bracelete tão branco quanto um espírito, com o qual conseguiu roubar duas vezes o meu bastão de ferro. Isso me fez suspeitar, inicialmente, que ele poderia ser um guerreiro celestial, atraído para o Mundo Inferior pelo falso brilho de suas seduções. Por isso, decidi realizar algumas investigações nas Regiões Superiores. O Imperador de Jade teve a bondade de colocar à minha disposição o Devaraja Li e seu respeitável filho, mas o monstro os desarmou da mesma forma que a mim. Em seguida, pedi à Estrela da Virtude do Fogo que o queimasse vivo, mas os resultados não mudaram em nada. Pensando que a água poderia pôr fim ao seu poder, recorri à Estrela da Virtude da Água para que causasse uma inundação que o destruísse; no entanto, a sorte continuou a estar ao nosso favor. Foi necessário muita energia para recuperar o bastão de ferro e as armas dos meus companheiros. Embora tenhamos conseguido atacá-lo no início, no final ele acabou nos desarmando novamente, e voltamos a provar o amargo sabor da derrota. Esses sucessivos fracassos me levaram a vir pedir que volte seu olhar para o mundo e descubra a origem dessa criatura tão singular. Isso me ajudará imensamente a capturá-la e finalmente libertar meu mestre.  Então, todos nós poderemos nos curvar, com as palmas unidas e total sinceridade, em busca da verdadeira iluminação.

Após ouvir tão longo relato, Tathagata examinou a distância com os olhos de sua insondável sabedoria e, em instantes, o enigma foi totalmente desvendado.

Embora eu tenha acabado de descobrir a identidade desse monstro — disse, voltando-se para o Peregrino —, não posso revelá-la, pois os macacos são incapazes de guardar o menor segredo. Se, em algum momento, você deixar escapar que fui eu quem desmascarou sua verdadeira natureza, ele deixará de lutar contra você e virá até a Montanha do Espírito para me cobrar explicações. No entanto, como não quero que você saia de mãos vazias, lhe concederei o poder do meu dharma, e assim você poderá capturá-lo.

— Que poderes são esses que você irá me conceder? — perguntou o Peregrino, inclinando-se novamente em sinal de gratidão.

Tathagata ordenou aos Dezoito Arhats que abrissem a sala do tesouro e pegassem dezoito grãos de areia de cinábrio dourado.

— Volte até a caverna — continuou Tathagata — e desafie novamente esse monstro. Quando ele sair de seu esconderijo, os arhats deixarão cair sobre ele os grãos de areia e ele ficará tão imóvel quanto a montanha onde habita. Assim, você poderá golpeá-lo à vontade.

— Fantástico! — exclamou o Peregrino, empolgado. — Realmente, fantástico! Tragam essa areia imediatamente.

Os arhats pegaram o cinábrio dourado e saíram do palácio. Após agradecer a Tathagata, o Peregrino correu atrás deles e percebeu que só havia dezesseis.

— Que tipo de lugar é esse, onde os subornos fluem com a mesma facilidade que a água da chuva em um riacho? — gritou, quando os alcançou.

— Você pode nos dizer quem está recebendo subornos aqui? — perguntaram os arhats, surpresos.

— Se minha memória não me engana — respondeu o Peregrino —, no começo éramos dezoito. Como é que agora vocês são apenas dezesseis?

Não havia terminado de falar quando o Conquistador de Dragões e o Domador de Tigres se juntaram ao grupo.

— Como você pode ser tão desconfiado, Wukong? — repreenderam-no, ofendidos. — Se não saímos com vocês, foi porque Tathagata queria nos dar mais algumas instruções.

— Era exatamente disso que eu estava falando, quando mencionei os subornos — replicou o Peregrino. — Se eu não tivesse começado a gritar, com certeza ainda estariam lá dentro.

Os arhats soltaram uma sonora gargalhada e rapidamente montaram em suas nuvens. Em um piscar de olhos, chegaram à Montanha do Elmo de Ouro, onde foram recebidos respeitosamente pelo Devaraja Li e pelos outros deuses.

— Não é necessário entrar em detalhes — disse um dos arhats. — Desçam e desafiem essa besta, façam-na sair o quanto antes.

O Grande Sábio se aproximou da caverna, levantou o punho e gritou com todas as suas forças:

— Saia daí imediatamente, seu monstro chorão, e experimente o sabor dos punhos do seu querido avô Sun!

Os demônios que montavam guarda voltaram a se refugiar no interior da caverna.

— Maldito macaco! — exclamou o monstro, assim que soube da chegada do Peregrino. — Me pergunto com que ajuda ele conta desta vez.

— Não há nenhum guerreiro com ele — informaram os demônios. — Ele está completamente sozinho.

— Que coisa mais estranha! — exclamou novamente o monstro. — Como ele se atreve a vir me desafiar sozinho, quando sua arma está em meu poder? Será que quer que lutemos novamente com os punhos?

Após pegar a lança e o bracelete, o monstro ordenou aos demônios que girassem a enorme pedra que bloqueava a entrada da caverna e, com um salto, colocou-se diante de seu adversário, insultando-o:

— Nunca conheci alguém tão teimoso quanto você! Como se atreve a vir me incomodar, quando já lutamos tantas vezes e você sempre saiu derrotado? Devia ter se contentado com uma ou duas derrotas.

— Está claro que é incapaz de distinguir o certo do errado! — replicou o Peregrino. — Se não quer que seu avô destrua completamente sua morada, renda-se, liberte meu mestre e meus outros irmãos, e peça desculpas por todas as maldades que cometeu contra eles. Só assim poderei poupar sua vida.

— Esses três monges dos quais fala acabaram de ser preparados e limpos — respondeu o monstro. — Não entendo como você ainda se importa com eles, quando estão prestes a ser sacrificados. Aconselho-o a ir embora o quanto antes.

Ao ouvir a palavra "sacrificados", a raiva do Peregrino se incendiou, como um vulcão prestes a explodir. Incapaz de controlar a fúria que o tomava, apertou os punhos e avançou contra o monstro, desferindo socos e ganchos. 

O monstro apenas estendeu sua lança para bloqueá-lo, mas o Peregrino começou a saltar de um lado para o outro, e o monstro caiu na armadilha. Confiante na vitória, ele deixou a entrada da caverna e correu atrás de seu adversário em direção ao sul. Sem perder tempo, o Peregrino gritou para os arhats deixarem cair sobre o monstro os grãos de areia de cinábrio dourado. Que extraordinária era aquela areia! Inicialmente, ela se espalhou como uma névoa e começou a descer lentamente em direção ao chão. Embora tivesse a cor branca, nenhum olhar conseguia atravessá-la, como se fosse, na realidade, uma densa escuridão decidida a apagar todos os caminhos. Os lenhadores que estavam trabalhando na floresta não conseguiam se ver uns aos outros, e os jovens que haviam saído para colher ervas não conseguiam encontrar o caminho de volta para casa. A névoa flutuava com o vento, como se fosse uma flor feita de farinha pura, embora, em alguns momentos, os grãos que a formavam parecessem ter o tamanho de sementes de alpiste. À medida que a escuridão tomava as montanhas, o mundo se tornava cada vez mais cinza, até que o sol foi completamente encoberto e o céu desapareceu por completo. Aquela areia não se parecia em nada com a poeira levantada pelos cascos dos cavalos ou com o cheiro que os carros carregados de feno deixam para trás, pois sua natureza era tão terrível que tinha o poder de fazer desaparecer o mundo inteiro, tudo para capturar uma besta. A culpa era exclusivamente dela. Se não tivesse abandonado o caminho do bem, os arhats jamais teriam liberado uma força tão destruidora, que, às vezes, brilhava como pérolas e, outras, se tornava a escuridão mais absoluta.

Quando o monstro viu que os grãos de areia cegavam seus olhos, imediatamente baixou a cabeça, mas então percebeu que seus pés não lhe obedeciam, como se estivessem presos à terra. O volume de areia ao seu redor continuava a crescer de maneira inacreditável. Desesperado, tentou saltar para o alto, mas a areia continuava a se elevar, como uma enchente, e ele não conseguiu. Como último recurso, o monstro tirou o bracelete, lançou-o para o alto e gritou:

— Ataque!

Imediatamente, ouviu-se um silvo penetrante que absorveu os dezoito grãos de areia de cinábrio dourado. Dessa forma, o monstro conseguiu retornar, finalmente, à sua caverna.

Os arhats ficaram boquiabertos, com as mãos vazias levantadas para o alto, em cima de suas nuvens. O Peregrino se aproximou deles, alarmado, e perguntou:

— Podem me explicar por que pararam de jogar a areia?

— Ouvimos um som muito agudo — explicou um deles, desconcertado —, e nossos grãos de areia de cinábrio dourado desapareceram como por arte de magia.

— Então também foram engolidos por esse maldito bracelete? — exclamou o Peregrino, soltando uma gargalhada.

— Como vamos deter esse monstro? — queixou-se o Devaraja Li —. Se continuar assim, nunca mais conseguiremos voltar aos Céus. Quem se atreveria a se apresentar diante do Imperador de Jade sem ter cumprido a missão que lhe foi confiada?

— Sabe, Wukong, por que demoramos mais do que os outros a sair do Palácio? — perguntaram então o Conquistador de Dragões e o Domador de Tigres.

— Como vou saber? — respondeu o Peregrino. — Cheguei a pensar que tinham desistido. Que outra explicação poderia me ocorrer?

— Tathagata nos avisou que esse monstro possuía poderes extraordinários — explicou um dos arhats —. Ele nos aconselhou, ao mesmo tempo, que, caso perdêssemos nossos grãos de areia de cinábrio dourado, você deveria rastrear suas origens no Palácio do Céu Impassível de Lao-Tzu. O monstro seria então capturado com a mesma facilidade com que se estalam os dedos.

— É incrível! — exclamou o Peregrino, visivelmente ofendido —. Até o próprio Tathagata está zombando de mim! Por que ele não me disse isso quando fui visitá-lo em seu palácio? Dessa forma, teria me poupado uma viagem inútil.

— Por que se queixar dessa forma? — retrucou o Devaraja Li —. Se Tathagata determinou que fosse assim, não há outro caminho senão obedecer.

— Nesse caso — concluiu o Peregrino —, não há mais o que discutir.

Então, montando em sua nuvem, o Peregrino se dirigiu ao Portão Sul dos Céus. 

Lá, foi recebido pelos Quatro Grandes Marechais, que, após unir as mãos e elevá-las à altura do queixo em sinal de saudação, perguntaram:

— Como vai a questão do monstro? Conseguiram capturá-lo?

— Ainda não — respondeu o Peregrino, sem parar —, mas estamos prestes a conseguir.

Os Quatro Grandes Marechais não ousaram detê-lo e o deixaram passar tranquilamente pelos portões do Céu. Espantados, viram que, desta vez, o Peregrino não se dirigiu ao Salão da Névoa nem à Mansão do Rouxinol Aquático, mas ao Palácio Tushita do Céu Impassível, que ficava além até do Trigésimo Terceiro Paraíso. Fora do palácio, havia dois jovens imortais. Sem se identificar, o Peregrino tentou seguir em frente, mas os jovens, surpresos, agarraram sua roupa e perguntaram, irritados:

— Pode nos dizer quem é e para onde vai?

— Sou o Grande Sábio, Sósia do Céu — respondeu o Peregrino, em poucas palavras — e desejo ver Lao-Tzu.

— Poderia ser um pouco mais educado, não? — retrucou um dos jovens —. Espere aqui, enquanto vamos anunciar sua chegada.

No entanto, o Peregrino não quis aceitar explicações e, soltando um grito estrondoso, entrou correndo no palácio, esbarrando de cara com o próprio Lao-Tzu, que saía naquele momento para dar um passeio. Após inclinar-se rapidamente diante dele, o Peregrino perguntou:

— Posso falar com o senhor por um momento?

— Quer me explicar o que está fazendo aqui? — perguntou Lao-Tzu. — Por que desistiu de sua missão de buscar as escrituras sagradas?

— Essa missão parece não ter fim — respondeu o Peregrino. — Neste exato momento, está paralisada. É por isso que decidi vir até o senhor.

— Se o que diz é verdade — retrucou Lao-Tzu —, por que acha que eu poderia ajudá-lo?

— Estou tentando encontrar uma pista que me mostre o caminho para o Paraíso Ocidental — respondeu novamente o Peregrino. — Seu nome é tão pomposo que, às vezes, soa até como uma zombaria. De qualquer forma, até que eu não chegue lá, não farei reclamações.

— Que pista você espera encontrar em um lugar tão perfeito para imortais como este palácio? — perguntou Lao-Tzu, mais uma vez.

Sem responder, o Peregrino revirou os olhos e adentrou a mansão, olhando nervosamente para todos os lados. Após percorrer um verdadeiro labirinto de corredores, encontrou próximo ao curral um jovem profundamente adormecido. Ele segurava um cabresto, mas não havia nem sinal do búfalo de Lao-tzu.

— O búfalo fugiu! — gritou o Peregrino, acordando-o a empurrões. — Vocês não vão atrás dele?

O grito Peregrino foi tão alto que o próprio Lao-Tzu acabou ouvindo.

— De que búfalo estão falando? — perguntou, surpreso e alarmado.

O jovem, que já estava completamente acordado, caiu de joelhos e, chorando, confessou:

— Eu acabei dormindo, e não sei como nem quando o animal que o senhor me confiou se afastou de mim.

— Como é possível que tenha cedido ao sono? — repreendeu-o Lao-Tzu.

— Tomei uma pílula da câmara do elixir — confessou o jovem, batendo a testa no chão repetidamente — e, assim que a engoli, adormeci.

— Deve ser uma pílula do Elixir das Sete Transformações do Fogo, que preparei outro dia — refletiu Lao-Tzu em voz alta. — Devo ter deixado uma cair, e esse jovem acabou pegando-a e a engoliu. Essas pílulas têm o poder de fazer quem as tomar dormir por sete dias seguidos. Ao ver que o jovem não acordava e não havia ninguém o vigiando, aquele búfalo maldito aproveitou a oportunidade e fugiu para as Regiões Inferiores. Isso deve ter acontecido há pelo menos sete dias.

Lao-Tzu quis verificar se algum outro de seus tesouros estava faltando, mas o Peregrino o tranquilizou, dizendo:

— Acredito que ele não levou consigo nada além de um pequeno bracelete esbranquiçado, embora seu poder seja, francamente, assustador.

Apesar disso, Lao-Tzu fez uma rápida contagem de todos os seus tesouros e descobriu que, de fato, só faltava o seu cortador de diamante.

— Essa maldita besta roubou meu cortador de diamante! — exclamou Lao-Tzu, preocupado.

— Então se trata do mesmo objeto que já me derrubou um dia! — exclamou, por sua vez, o Peregrino. — Nas mãos daquele monstro, parece ter enlouquecido e engoliu coisas que nem consigo imaginar.

— Onde está essa maldita besta agora? — perguntou Lao-Tzu.

— Na Caverna do Elmo de Ouro, que, como o senhor sabe, fica localizada na montanha de mesmo nome — respondeu o Peregrino. — Com a ajuda do seu tesouro, ele primeiro capturou o monge Tang e, depois, tomou meu bastão de ferro com as extremidades de ouro. Não contente com isso, quando pedi ajuda aos guerreiros celestes, roubou todas as armas do Príncipe Nezha. O mesmo aconteceu com a Estrela da Virtude do Fogo. Somente o Senhor das Águas conseguiu escapar ileso, mas suas tropas aquáticas foram incapazes de afogá-lo. Finalmente, recorri a Tathagata, mas até a areia de cinábrio dourado dos arhats foi parar no ventre dessa arma tão poderosa. Como o senhor pode acusar esse monstro, se permite que ele se apodere de seus tesouros mais preciosos para punir as pessoas?

— Desde jovem, venho aperfeiçoando esse cortador de diamante — confessou Lao-Tzu. — Foi com ele que converti os bárbaros, quando atravessei o passo de Hangu. Nada, nem o fogo nem a água, pode lhe causar o menor dano. Se aquele monstro tivesse roubado também o meu leque de folha de bananeira, nem mesmo eu conseguiria mover um único dedo contra ele.

Lao-Tzu então pegou seu precioso leque e subiu em uma nuvem, seguido pelo Grande Sábio, que não parava de sorrir. Eles deixaram os Céus pelo Portão Sul e partiram rapidamente para a Montanha do Elmo de Ouro. 

Ao chegarem, foram recebidos pelos Dezoito Arhats, os escudeiros do trovão, o Senhor das Águas, a Estrela da Virtude do Fogo, o Devaraja Li e seu filho, que os colocaram a par do que havia acontecido.

— Acho que você deve descer e desafiá-lo mais uma vez — disse Lao-Tzu a Wukong. — Isso facilitará muito a minha tarefa.

Com um salto, o Peregrino posicionou-se novamente diante da caverna e, erguendo a voz, disse:

— Saia de uma vez do seu esconderijo, besta chorosa, e prepare-se para morrer!

Os demônios correram para dentro da caverna para informar ao monstro sobre a chegada do Peregrino, tão assustados quanto se fosse a primeira vez que o viam.

— Como esse maldito macaco é chato! — exclamou o monstro, irritado. — Me pergunto quem ele trouxe desta vez — e, pegando sua lança, dirigiu-se com passos firmes para a entrada da caverna.

— Tenha certeza de que não vai atravessar essa porta com vida, besta imunda! — gritou o Peregrino, ao vê-lo. — Não fuja e prove o sabor dos meus punhos!

Antes que o monstro pudesse reagir, o Peregrino desferiu um tremendo golpe em sua orelha e fugiu rapidamente. 

O monstro se recuperou imediatamente e correu atrás dele com a lança em punho. Foi então que ouviu alguém dizer do alto da montanha:

— O que esse búfalo está esperando para voltar para casa?

O monstro levantou a cabeça e, ao ver que se tratava de Lao-Tzu, seu coração deu um salto e começou a tremer, como uma pequena folha de bambu.

— Esse macaco é o ser mais maligno de toda a terra! — pensou, com raiva. — Como será que ele conseguiu encontrar meu mestre?

Lao-Tzu, por sua vez, recitou um feitiço e começou a abanar seu leque. O monstro, então, lançou o bracelete contra ele, mas o mestre o agarrou com facilidade. 

Lao-tzu então agitou o leque pela segunda vez e o monstro perdeu toda a sua força. Seus músculos ficaram rígidos e, em pouco tempo, ele se transformou em um búfalo de cor esverdeada. Lao-Tzu soprou sobre o cortador de diamante e, após transformá-lo em um anel de ferro, passou-o pelo septo nasal do búfalo. Não satisfeito com isso, tirou a faixa que envolvia sua cintura, prendeu-a a uma extremidade do anel e começou a guiar o animal pelos caminhos que considerou mais adequados. Foi assim que se estabeleceu a tradição, que ainda persiste até hoje, de guiar os búfalos com o auxílio de um aro de ferro. 

Após se despedir dos outros deuses, Lao-Tzu montou no búfalo e elevou-se aos céus, rumo ao Palácio Tushita. O que mais poderia fazer, uma vez cumprida sua missão de domar a besta, senão retornar ao seu Céu Impassível? 

O Grande Sábio Sun e os outros deuses então invadiram a caverna e eliminaram todos os demônios restantes, pouco mais de uma centena. 

Depois de recuperar suas armas, o Devaraja Li e seu filho voltaram para os Céus, os escudeiros do trovão retornaram às suas moradas, a Estrela da Virtude do Fogo voltou ao seu palácio, o Senhor das Águas mergulhou nas águas de um rio e os Arhats iniciaram o caminho de volta para o Oeste. O Peregrino, por sua vez, pegou o bastão de ferro e correu para libertar o monge Tang, Bajie e o Monge Sha, que lhe agradeceram com lágrimas nos olhos por tudo o que havia feito por eles. 

Em seguida, carregaram o equipamento nas costas do cavalo e deixaram aquela caverna para sempre. Não demorou muito para encontrarem o caminho principal. Assim, puderam continuar sua jornada. Enquanto caminhavam, ouviram uma voz que dizia:

— Antes de partir, é preciso que se alimente, monge Tang.

Naquele momento, um temor profundo tomou conta do mestre. Não se sabe quem poderia ser o responsável por essas palavras. Aqueles que desejam descobrir, deverão prestar atenção nas explicações oferecidas no próximo capítulo.


CAPITULO LIII EM BREVE ...

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Notas do Capítulo LII

  1. Pelo contexto, deduz-se que Bhiksuni, termo que originalmente significa "monja mendicante", refere-se, na verdade, a Mahaprajapati, tia de Buda, que foi a primeira mulher a abraçar o monasticismo.
  2. Os Oito Grandes Guardiões do Diamante, ou ba-da ching-gang, são os oito protetores de Vairocana. São eles: Kwang-Ing, Maitreya, Vajrahasa, Samantabhadra, Vajrapani, Manjusri, Aryacalanatha e Ksitigarbha.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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