۞ ADM Sleipnir
CAPÍTULO LIII:
O MESTRE ZEN ENGRAVIDA POR OBRA DOS ESPÍRITOS. A DAMA AMARELA PÕE FIM À GRAVIDEZ COM O AUXÍLIO DA ÁGUA.


"Oitocentas vezes devem ser repetidos os atos virtuosos, até que se acumulem três mil méritos ocultos. É preciso tratar igualmente amigos e inimigos, o que é nosso e o que é dos outros. Só então será possível alcançar o primeiro voto (1) do Paraíso Ocidental. Nenhuma arma dos céus, nem a água mais pura, nem o fogo mais inocente podem derrotar o demônio em forma de touro. Apenas Lao-tzu consegue dominá-lo, guiando com um sorriso o búfalo verde pelos caminhos que levam direto ao Céu."
Contávamos que, enquanto caminhavam, os peregrinos ouviram alguém chamá-los. Quem poderia ser? Pois bem, não eram outros senão o deus e o espírito da Montanha do Elmo Dourado. Ambos carregavam nas mãos uma tigela de esmolas dourada e brilhante e, sem parar de andar, gritavam:
— Mestre, esta é a tigela de arroz que o Grande Sábio Sun mendigou para o senhor em um lugar repleto de corações generosos. Se o senhor caiu nas garras daquele monstro, foi porque não deu ouvidos ao conselho que lhe foi dado. Por isso, antes de conseguir libertá-lo, o Grande Sábio teve de suportar muitas dificuldades e passar por inúmeros desafios. Coma deste arroz antes de prosseguir a jornada, e não abuse da piedade filial que o Grande Sábio demonstra por você.
— Agora compreendo o quanto lhe devo — disse Sanzang, voltando-se para o Peregrino. — Nunca poderei agradecer o suficiente por tudo o que fez por nós. Se soubesse o que iria acontecer, não teria abandonado o círculo que traçou e, assim, teria evitado o perigo que quase pôs fim à nossa missão.
— Para ser sincero, mestre — respondeu o Peregrino — se o senhor foi parar no círculo de outro, foi porque não confiou no meu. Quanto sofrimento isso lhe causou! Só de pensar nisso, o meu coração se enche de tristeza.
— O que quer dizer com "círculo de outro"? — perguntou Bajie.
— Quero dizer que o mestre sofreu tanto apenas por causa da sua maldita língua solta! — retrucou o Peregrino. — Tudo o que pude mobilizar no Céu e na Terra — fogo, água, soldados celestiais e até mesmo a areia de mercúrio do próprio Buda — foi devorado por aquele bracelete pálido como o rosto de um fantasma. Mas Tathagata, em sua compaixão, revelou-me por meio dos arhats a verdadeira origem daquele monstro. Assim, pude recorrer a Lao-tzu e pedir que viesse capturá-lo. Afinal, foi o seu búfalo verde que causou todo esse caos.
— Meu querido discípulo — exclamou Sanzang, tomado por uma profunda gratidão — tenha certeza de que, depois de passar por uma experiência tão terrível, nunca mais ignorarei seus conselhos.
Em seguida, dividiram o arroz em quatro partes iguais e começaram a comê-lo. Ele estava tão quente que ainda soltava vapor, mesmo tendo sido preparado há muito tempo.
— Que estranho! — comentou Wukong. — Como ainda está quente assim?
— Assim que soube que o Grande Sábio havia conquistado um mérito tão extraordinário — confessou o espírito local, prostrando-se — eu mesmo decidi aquecê-lo novamente antes de servi-lo.
Em um piscar de olhos, terminaram a refeição e guardaram novamente a tigela de esmolas. Depois de se despedirem do deus da montanha e do espírito local, o mestre montou no cavalo e retomou a jornada. Com a mente livre de preocupações, passaram a seguir totalmente os princípios da sabedoria (2), descansando à beira dos rios e saciando a fome nos salões do vento que os conduzia ao Oeste.
Caminharam sem parar por um longo tempo, até que, mais uma vez, a primavera chegou. Ouvia-se o murmúrio das andorinhas avermelhadas, tão persistentes em seus cantos que só cessavam quando seus bicos já não obedeciam mais. Entre os ramos, os trinados cristalinos das oropêndolas ressoavam no ar por horas a fio. O solo estava coberto de pétalas, parecendo um imenso tecido bordado. A montanha inteira explodia em cores vibrantes. No topo, as ameixeiras exibiam com orgulho o verde tímido de seus botões recém-abertos, enquanto os cedros, ao longo dos barrancos, pareciam ainda mais vigorosos, segurando entre seus galhos as nuvens errantes. Ao longe, os pastos surgiam envoltos em uma névoa azulada, e as areias brilhavam como gemas sob o calor intenso do sol. Por toda parte, as árvores se enchiam de botões florais e os salgueiros se vestiam de folhas novas. Como poderia ser diferente, se o sol mais uma vez voltava a se aproximar da terra?
Enquanto admiravam a beleza ao redor, depararam-se com um rio não muito largo, de águas cristalinas e frias. O monge Tang puxou as rédeas do cavalo e avistou ao longe um grupo de cabanas com telhados feitos de galhos, erguidas à sombra de salgueiros tão verdes quanto jade.
— Com certeza ali deve morar alguém responsável por atravessar os viajantes para a outra margem — disse o Peregrino, apontando para as cabanas.
— Talvez — respondeu Sanzang —, mas, como não vejo nenhuma balsa, não podemos afirmar com certeza.
— Ei, barqueiro! — gritou Bajie, deixando cair a bagagem no chão. — Traga sua balsa até aqui!
Embora ninguém estivesse à vista, Bajie não se intimidou e continuou gritando. Pouco tempo depois, por entre os salgueiros, surgiu uma balsa, rangendo lastimosamente ao ritmo dos remos.
Assim que chegou à margem do rio, o barqueiro ergueu a voz e anunciou:
— Aproximem-se, se desejam atravessar o rio!
Sanzang esporeou o cavalo e se aproximou para ver melhor quem conduzia a embarcação. Então, observou que o barqueiro usava um turbante de lã na cabeça e calçava sapatos de seda negra. Vestia também uma jaqueta de lã e calças tão remendadas que era impossível dizer de que tecido haviam sido feitas. O mesmo acontecia com a camisa, desalinhada em sua cintura. Apesar da aparência envelhecida, com rugas profundas e olhos sem brilho, seus pulsos eram firmes, e a musculatura revelava a força de um lutador. No entanto, o que mais surpreendeu o mestre foi a voz do barqueiro — suave e melodiosa, como o canto de uma oropêndola. Foi então que percebeu que, na verdade, tratava-se de uma mulher.
— Você é a responsável por conduzir esta balsa? — perguntou o Peregrino, aproximando-se.
— Sim — respondeu a mulher.
— Por que não há barqueiros por aqui? — continuou o Peregrino. — Por que são as mulheres que realizam esse trabalho?
A mulher não respondeu. Apenas sorriu e abaixou a prancha para que os passageiros pudessem embarcar. O Monge Sha foi o primeiro a subir, carregando seu cajado sobre os ombros. Em seguida, o mestre e o Peregrino embarcaram, afastando-se para dar passagem a Bajie, que conduzia o cavalo. Assim que todos estavam a bordo, a mulher ergueu a prancha novamente e começou a remar com vigor. Seu movimento era tão firme que, em pouco tempo, já haviam alcançado a margem oposta. Assim que desceu, o mestre pediu ao Monge Sha que abrisse a bolsa e entregasse algumas moedas à mulher. Sem discutir o valor, a , a mulher amarrou o barco a um pilar de madeira junto à água e entrou, aos risos, em uma das cabanas da vila ali perto.
Ao notar a transparência da água, Sanzang sentiu sede e disse a Bajie:
— Pegue a tigela de esmolas e traga um pouco de água para mim.
— Eu mesmo já estava pensando em tomar um gole — respondeu Bajie, enchendo a tigela até a borda e entregando-a ao mestre. O mestre bebeu apenas metade da água, enquanto Bajie tomou tudo de uma vez e o ajudou a montar novamente no cavalo.
Não havia se passado nem meia hora desde que retomaram a viagem, quando o mestre começou a se queixar de forma lastimosa.
— O meu também! — exclamou Bajie.
— Deve ter sido a água que vocês beberam — comentou o Monge Sha.
Mal terminou de falar, e Sanzang voltou a gemer:
— Não consigo suportar essa dor!
— Eu também não! — disse Bajie, enquanto se contorcia no chão. — Parece que vou explodir!
Enquanto se queixavam, seus ventres começaram a inchar como bexigas de porco. Dentro deles, formava-se algo semelhante a um coágulo de sangue que crescia sem parar, como um pedaço de carne viva. Quando colocavam a mão sobre a barriga, podiam sentir algo se debatendo e saltando de um lado para o outro, como se houvesse uma criatura selvagem presa em seu interior.
Sanzang já se encontrava muito debilitado quando finalmente avistaram uma aldeia mais adiante. Em um galho de árvore próximo, pendiam dois feixes de feno. Ao vê-los, o Peregrino exclamou:
— Estamos com sorte, mestre! Aquela casa deve ser uma estalagem. Vou até lá e pedirei ao dono um pouco de água quente. Também perguntarei se há alguma farmácia por perto, para que possam aplicar um unguento e aliviar a dor.
Animado por essas palavras, Sanzang esporeou o cavalo, e logo chegaram à aldeia. Ao desmontar, viu, junto ao portão, uma anciã tecendo cânhamo sobre um monte de palha. O Peregrino se aproximou, juntou as palmas das mãos em sinal de respeito e inclinou-se, dizendo:
— Senhora, este humilde monge vem do Grande Reino dos Tang, situado nas Terras do Leste. O mestre a quem sigo tem, de fato, o mesmo sangue do soberano que governa aquelas terras. Infelizmente, ele está gravemente doente, sofrendo de uma terrível dor de estômago, que começou logo após beber um pouco de água do rio que atravessamos mais acima.
— Disse que beberam da água do rio? — perguntou a anciã, esforçando-se para conter o riso.
— Sim — confirmou o Peregrino. — Pegamos um pouco da água do rio que corre a leste daqui.
— Nunca ouvi nada tão engraçado! — exclamou a mulher, soltando uma gargalhada. —Entrem, todos vocês. Preciso lhes contar uma coisa.
O Peregrino segurou o monge Tang pelo braço, enquanto o Monge Sha fez o mesmo com Bajie. A cada passo, eles soltavam gemidos de dor. Com grande esforço, conseguiram entrar na cabana e se sentaram, sem parar de se queixar. Seus ventres haviam inchado de maneira impressionante, e seus rostos estavam amarelados de tanto sofrimento.
— Por favor, senhora — repetia o Peregrino insistentemente. — Traga um pouco de água quente. Ficaremos muito gratos por isso.
No entanto, em vez de atender ao pedido, a anciã entrou na casa e começou a gritar, ainda rindo às gargalhadas:
Ouviram-se passos apressados e, logo depois, um grupo de mulheres apareceu. Elas fixaram o olhar no monge Tang e se juntaram às risadas estrondosas da anciã. O Peregrino acabou perdendo a paciência e soltou um grito tão poderoso que fez até os alicerces da cabana tremerem. As mulheres se espalharam, assustadas, trombando umas nas outras de maneira cômica. Cerrando os dentes, ele avançou sobre a anciã, agarrou seu braço com firmeza e bradou:
— Traga água quente agora mesmo, e eu pouparei a sua vida!
— Água quente não adiantará para a dor de estômago deles — disse a anciã, tremendo dos pés à cabeça. — Solte-me, e eu lhe explicarei o que está acontecendo.
Assim que o Peregrino a soltou. ela continuou a falar:
— Este é o Reino das Mulheres de Liang Ocidental (3). Aqui não há um único homem; todas somos mulheres. Foi por isso que ficamos tão animadas ao vê-los. A água que seu mestre bebeu não é das mais comuns, pois pertence ao Rio da Mãe e do Filho. Nos arredores da nossa capital há uma pousada destinada a homens, que fica bem ao lado do Arroio das Gestações. Nenhuma de nós se atreve a beber a água desse rio antes dos vinte anos, pois basta um gole para engravidar. Caso isso aconteça, em três dias a mulher precisa ir até a Pousada dos Homens e se olhar no arroio que passa por lá. Se sua imagem aparecer refletida duas vezes na água, pode ter certeza de que dará à luz um filho. Em outras palavras, se seu mestre realmente bebeu a água do Rio da Mãe e do Filho, então ele está grávido e, com o tempo, dará à luz a uma criança. De que serviria a água quente para aliviar esse mal?
— E agora? O que vamos fazer?
— Como poderemos dar à luz se somos homens? — lamentou-se Bajie, abrindo as pernas o máximo que pôde. — E por onde essa criança vai sair, se não temos nem um buraco para isso?
O Peregrino soltou uma gargalhada e disse:
— Como dizem os antigos: "Melões maduros caem por seu próprio peso". Quando chegar a hora, o mais provável é que apareça um buraco na sua costela e o bebê saia tranquilamente por lá.
Ao ouvir isso, Bajie começou a tremer de medo, o que só fez aumentar ainda mais a dor que sentia.
— Não aguento mais! — gritou. — Estou morrendo, estou morrendo!
— Não se contorça tanto! — aconselhou o Monge Sha, soltando uma gargalhada. — Pode acabar enrolando o cordão umbilical e fazer a criança nascer com alguma complicação.
Isso deixou Bajie ainda mais alarmado. Com lágrimas nos olhos, agarrou a roupa do Peregrino e suplicou:
— Peça a essa mulher que vá imediatamente buscar uma parteira experiente. Com certeza deve haver alguma por aqui. As contrações estão ficando cada vez mais intensas. Isso significa que a hora do parto está próxima. O bebê já está chegando!
— Se está prestes a dar à luz — disse o Monge Sha, sem conseguir conter o riso —, o melhor que pode fazer é ficar quieto de vez. Não vai querer romper a bolsa antes da hora, certo?
— Não há nenhum médico por aqui? — perguntou Sanzang à mulher, gemendo sem parar. — Diga aos meus discípulos onde encontrá-lo para que possam ir buscá-lo agora mesmo. Talvez ele tenha algum remédio para interromper esse processo.
— As medicinas não servirão de nada — respondeu a anciã. — Mas, ao sul daqui, há a Montanha da Supressão dos Machos, onde fica a Caverna da Anulação das Crianças. Dentro dela corre o Arroio dos Abortos. Para interromper uma gestação, basta tomar um gole da água desse arroio. O problema é que, hoje em dia, não é nada fácil chegar até lá. No ano passado, apareceu um taoísta chamado Autêntico Imortal Complacente (4) e mudou o nome da caverna para Santuário da Reunião dos Imortais. Como se não bastasse, declarou que a água do arroio pertence exclusivamente a ele e, desde então, se recusa a distribuí-la gratuitamente. Quem quiser um pouco precisa pagar quantias exorbitantes, além de oferecer grandes quantidades de carne, vinho e frutas. Além disso, é necessário inclinar-se diante dele com uma reverência digna dos próprios deuses. Só então ele se digna a entregar uma quantidade ínfima da água. Pelo que vejo, vocês vivem da caridade. De onde tirariam tanto dinheiro para pagar o que esse imortal exige? O melhor que podem fazer é aceitar a situação e esperar o nascimento da criança.
— Senhora — disse o Peregrino, animado ao ouvir isso —, a que distância fica a Montanha da Supressão dos Machos?
— Ela fica a aproximadamente três mil quilômetros daqui — respondeu a anciã.
— Perfeito! — exclamou o Peregrino. — Não se preocupe mais, mestre. Vou buscar essa água agora mesmo.
Virou-se então para o Monge Sha e ordenou:
O Monge Sha assentiu com a cabeça. Então, a anciã pegou uma grande bacia de porcelana, entregou-a ao Peregrino e disse:
O Peregrino pegou a bacia, saiu da cabana e subiu em uma nuvem. Ao vê-lo partir, a anciã caiu de joelhos e, inclinando-se como se tivesse perdido o juízo, começou a gritar:
Enquanto o Grande Sábio contemplava, encantado, o cenário ao seu redor, avistou, na porção sombreada da montanha, uma construção com um pátio nos fundos, onde um cão latia incessantemente. Dirigiu-se até lá e percebeu que se tratava de um lugar encantador. Um pequeno curso d'água atravessava um modesto e elegante ponte, ao lado da qual erguia-se uma casa com telhado de ramos. Próximo à cerca, o cão continuava latindo desesperadamente. Quem morava ali tinha liberdade total para ir aonde quisesse, pois o local era completamente isolado.
O Grande Sábio aproximou-se da porta e avistou um taoísta sentado na grama, de pernas cruzadas. Quando o Peregrino o saudou com um leve inclinar de cabeça, o homem ergueu-se ligeiramente e, retribuindo o gesto, disse:
— De onde vem e qual o motivo de sua visita a este humilde santuário?
— Sou apenas um monge enviado pelo Grande Imperador dos Tang, das Terras do Leste, em busca das escrituras sagradas — respondeu Sun Wukong. — Ao atravessar o Rio da Mãe e do Filho, meu mestre bebeu inadvertidamente de suas águas e agora sofre com o ventre inchado e uma dor insuportável. Os moradores da região disseram que esse tipo de gestação não tem cura. No entanto, mencionaram que a única forma de interrompê-la é com a água do Arroio dos Abortos, que se encontra dentro da Caverna da Anulação das Crianças, localizada na Montanha da Supressão dos Machos. Por isso, vim em busca do Autêntico Imortal Complacente, para suplicar-lhe um pouco dessa água e aliviar os sofrimentos do meu mestre. Poderia me dizer onde encontrar esse venerável taoísta?
— A boa vontade tem mais poder que um decreto imperial — sentenciou o Peregrino. — Se for avisar seu mestre de que o Macaco está aqui, tenho certeza de que ele não será ríspido comigo. Talvez até me ofereça o arroio inteiro.
Diante dessas palavras, o taoísta não teve escolha senão entrar para anunciar a chegada do Peregrino. O Autêntico Imortal estava tocando um alaúde, e o discípulo precisou esperar até que ele concluísse a peça para lhe dizer:
— Mestre, lá fora há um monge budista que se apresenta como Sun Wukong, o primeiro discípulo de Tang Sanzang. Ele deseja um pouco da água do Arroio dos Abortos para curar seu mestre.
Teria sido melhor que o Autêntico Imortal nunca tivesse ouvido essas palavras. Assim que escutou o nome de Wukong, uma chama de ódio se acendeu em seu coração, e a raiva enraizou-se em seu fígado. Num impulso, deixou o alaúde de lado, despiu a túnica que vestia e vestiu suas roupas taoístas. Pegou uma espada gancho e, saindo para a entrada do santuário, gritou:
— Onde está Sun Wukong?
O Peregrino voltou-se e ficou impressionado com a aparência do Autêntico Imortal. Ele usava um gorro de cores vibrantes em forma de estrela, uma túnica vermelha tecida com fios de ouro e sapatos bordados com riqueza de detalhes. Na cintura, trazia um cinto valioso que combinava com as meias de seda bordada e um faldão de lã quase invisível. Em suas mãos, segurava uma espada gancho dourada com uma lâmina afiada e um cabo longo esculpido na forma de um dragão. Seus olhos, semelhantes aos de uma fênix, emanavam um brilho intenso, reforçado por suas desconcertantes sobrancelhas verticais. Seus lábios, vermelhos como sangue, revelavam dentes afiados como lâminas de aço. A cada palavra que proferia, sua longa barba tremulava ao vento, parecendo chamas brotando de seu queixo. Atrás das têmporas, mechões avermelhados de cabelo lembravam juncos selvagens. Sua presença era tão imponente e agressiva que fazia lembrar o marechal Wen (5), embora suas vestimentas fossem distintas.
Assim que o Peregrino o viu, juntou as palmas das mãos e, inclinando-se respeitosamente, disse:
— Este humilde monge é Sun Wukong.
— Você é mesmo o verdadeiro Sun Wukong ou apenas um impostor que tomou seu nome e sobrenome? — questionou o mestre, soltando uma gargalhada.
— É assim que um mestre deve falar? — replicou o Peregrino. — Como diz o provérbio: "Uma pessoa virtuosa não muda de nome ao se sentar, nem de sobrenome ao se levantar". Que motivo eu teria para me passar por outro?
— Você não me reconhece? — perguntou mais uma vez o mestre.
— Desde que decidi mudar de vida e abracei de coração os ensinamentos budistas, tenho me dedicado apenas a escalar montanhas e atravessar rios — respondeu o Peregrino. — Já não mantenho contato com meus amigos da juventude. Além disso, esta é a primeira vez que venho visitá-lo, e juro que nunca antes havia visto seu rosto. Os habitantes da aldeia a oeste do Rio da Mãe e do Filho me disseram que seu nome era o Autêntico Imortal Complacente. Isso é tudo o que sei sobre você.
— Você segue seu caminho tranquilamente, enquanto eu continuo minhas práticas de imortalidade — disse o mestre, com um tom sarcástico. — Então me diga, por que veio realmente me visitar?
— Eu já expliquei — insistiu o Peregrino. — Meu mestre bebeu da água do Rio da Mãe e do Filho e agora sofre com uma dor no estômago que se transformou numa verdadeira gravidez. Vim até sua nobre morada apenas para pedir, em sua generosidade, um pouco da água do Arroio dos Abortos e, assim, aliviar o sofrimento dele.
— Tang Sanzang é seu mestre? — perguntou o Imortal, enquanto seus olhos faiscavam de fúria.
— Sim, ele mesmo — confirmou o Peregrino.
— E, em suas andanças, por acaso não encontrou o Rei Menino Sábio? — continuou o mestre, rangendo os dentes com evidente desprezo.
— Esse é o apelido de um monstro — respondeu o Peregrino —, o Menino Vermelho, que vivia na Caverna da Nuvem de Fogo, perto do Riacho do Pinheiro Seco, na Montanha Uivante. Por que o Autêntico Imortal se interessa por ele?
— Está muito enganado, mestre — disse o Peregrino, rindo, tentando acalmá-lo. — Seu irmão foi um dos meus melhores amigos. Quando jovens, pertencemos à mesma irmandade. Se nunca vim visitá-lo antes, foi porque nem sequer sabia de sua existência. Quanto ao seu sobrinho, ele teve muita sorte, pois agora é nada menos que o servo pessoal da Bodhisattva Guanyin. Tornou-se o Pajem da Riqueza e da Benevolência, e nem mesmo juntos podemos nos comparar a ele. Por que, então, me responsabilizar por isso?
— Maldito macaco! — bradou o mestre. — Quando aprenderá a segurar essa língua? Como pode achar que meu sobrinho está melhor sendo um criado do que reinando? Deixe de falar bobagens e prove o sabor da minha espada!
— Por favor, não fale com tanta hostilidade — pediu o Grande Sábio, bloqueando o golpe com seu bastão de ferro. — Dê-me um pouco de água, e eu irei embora para nunca mais voltar.
— Não consegue pensar em nada melhor para dizer, macaco inútil? — zombou o mestre. — Se conseguir resistir a três ataques seguidos, lhe darei a água. Caso contrário, o reduzirei a pedaços e vingarei meu sobrinho.
— Como você é tolo! — rebateu o Peregrino, no mesmo tom. — Nem mesmo perceber o que seria melhor para si. Se quer lutar, venha e enfrente meu bastão!
O mestre girou sua espada gancho no ar, e assim teve início, diante do Santuário da Reunião dos Imortais, uma das batalhas mais memoráveis que os tempos já presenciaram. Por ter bebido das águas da procriação, o venerável monge obrigou o Peregrino a buscar o Imortal Complacente. Mas quem poderia imaginar que o Autêntico Imortal, que havia tomado à força o domínio sobre o Arroio dos Abortos, era, na verdade, um monstro? Quando se viram frente a frente, trocaram palavras afiadas como lâminas, sem que nenhum dos dois cedesse sequer um milímetro. Assim se confirmou que as palavras muitas vezes apenas inflamam discórdias, e que ódio e ressentimento não levam a outro destino senão à vingança. Um veio em busca da água para salvar a vida de seu mestre. O outro, acreditando ter perdido seu sobrinho para sempre, recusou-se a entregá-la. Que armas formidáveis empunhavam! A espada gancho possuía a ferocidade de um escorpião, enquanto o bastão de ferro, com suas extremidades douradas, exibia a fúria dos dragões. Com que destreza tentavam perfurar o peito um do outro! Os ataques laterais da espada gancho ameaçavam constantemente as pernas e a cabeça do adversário, como uma louva-a-deus à espreita do bote fatal. O bastão, por sua vez, visava o ventre e os genitais do rival, como um falcão mergulhando sobre sua presa. Moviam-se sem descanso, cada um tentando, sem sucesso, conquistar a vitória. Golpes e fintas se multiplicavam, mas nenhum dos guerreiros cedia.
Mais de dez vezes cruzaram suas armas sem que qualquer um deles demonstrasse fraqueza. No entanto, a partir do décimo primeiro confronto, o taoísta começou a demonstrar sinais de cansaço. Isso inflamou ainda mais a fúria do Peregrino, que ergueu seu bastão e o desceu com toda a força sobre a cabeça do adversário, como uma tempestade de meteoros. Sem alternativa, o mestre fugiu para dentro da montanha, arrastando consigo sua imponente espada gancho.
Em vez de persegui-lo, o Grande Sábio voltou-se para o santuário, decidido a pegar a água, mas encontrou as portas trancadas. Sem hesitar, agarrou a bacia, tomou impulso e, com um chute poderoso, arrebentou as portas. Correu para dentro e viu o taoísta inclinado sobre o poço de onde jorrava a água, protegendo-o com o próprio corpo. Assim que o Peregrino ergueu seu bastão de ferro sobre a cabeça, o taoísta fugiu apressadamente para os fundos do santuário.
O Peregrino não teve dificuldades para encontrar um balde, mas, quando estava prestes a lançá-lo no poço, o mestre surgiu repentinamente e o agarrou pelas pernas com a espada gancho. O Grande Sábio perdeu o equilíbrio e caiu de cara no chão.
No entanto, recuperou-se rapidamente e contra-atacou com seu bastão. O mestre desviou o golpe com um passo ágil para trás e sorriu enigmaticamente antes de declarar:
— Aposto o que quiser que você não conseguirá pegar uma única gota dessa água.
— Venha aqui! — gritou o Peregrino, irado. — Venha, e eu acabarei com você!
Mas o mestre recusou-se a continuar lutando. Permaneceu firme onde estava, determinado a impedir que o Peregrino pegasse a água. Ao perceber isso, o Grande Sábio segurou o bastão com a mão esquerda e, com a direita, puxou a corda do balde. Mal havia dado o primeiro puxão quando o mestre investiu novamente com sua espada gancho. Segurando a barra com apenas uma mão, o Peregrino não conseguiu se defender. O golpe o atingiu nas pernas, derrubando-o ao chão. O balde e a corda caíram dentro do poço.
— Esse sujeito é um verdadeiro monstro! — resmungou o Grande Sábio, levantando-se com um salto.
— Não zombe de mim, por favor! — exclamou Bajie, tremendo de medo. — Conseguiram a água?
— Quantos problemas lhes causei! — exclamou Sanzang, erguendo-se um pouco e fazendo caretas de dor.
— Você tem certeza do que está dizendo? — alertou a anciã. — Se beber o balde todo, a água dissolverá até o estômago e os intestinos.
Ao ouvir isso, Bajie ficou tão assustado que não ousou dizer mais nada e tomou apenas meia xícara. Num piscar de olhos, ambos sentiram uma dor insuportável no ventre, acompanhada de cólicas tão fortes que parecia que iam desmaiar. Em seguida, ouviram-se quatro ou cinco roncos estrondosos, como se algo estivesse se rompendo dentro deles. Bajie não conseguiu aguentar e começou a expelir urina e fezes como se fosse uma fonte. O monge Tang também sentiu uma necessidade urgente de aliviar-se e, envergonhado, pediu para ser levado a um local mais reservado.
— Mestre — disse o Peregrino —, não é bom sair para um local onde haja corrente de ar. Se for exposto ao vento, há risco de contrair alguma enfermidade pós-parto.
Sem perder tempo, a anciã trouxe dois penicos, permitindo que eles se aliviassem à vontade. Após várias contrações seguidas, a dor começou a diminuir, e seus ventres foram encolhendo gradualmente, indicando que o feto de carne e sangue havia sido completamente dissolvido. As parentes da anciã prepararam um pouco de arroz e o serviram para que recuperassem as forças perdidas durante o "parto".
— Eu, senhora — disse Bajie —, tenho um estômago forte e não preciso de mais comida. O que eu realmente gostaria é que aquecessem um pouco de água para que eu possa tomar um banho.
— Está louco? — repreendeu-o o Monge Sha. — Não pode tomar banho! Se entrar em contato com água dentro de um mês após o "parto", poderá ficar gravemente doente.
— Não se preocupe — respondeu Bajie. — Felizmente, não sou uma porca, então não preciso me preocupar com o tamanho da minha barriga.
— Não quer beber mais? — perguntou o Peregrino a Bajie.
— Não — respondeu Bajie. — A dor de estômago já passou, e o "parto" já terminou. Confesso que nunca me senti tão bem quanto agora. Para que beber mais água?
— Já que estão bem — concluiu o Peregrino —, vou entregá-la à família desta senhora. Para nós, ela não tem mais utilidade.
Todas as mulheres da casa, tanto as mais jovens quanto as mais velhas, estavam radiantes de felicidade. Rapidamente, prepararam uma refeição vegetariana e colocaram a mesa. Dessa forma, o monge Tang e seus discípulos puderam recuperar suas forças.
Ao amanhecer do dia seguinte, agradeceram à anciã e sua família e partiram da aldeia. O monge Tang montou em seu cavalo, o Monge Sha carregou a bagagem, Zhu Bajie segurou as rédeas e o Grande Sábio Sun seguiu na dianteira, abrindo caminho. Não poderia ser diferente: uma vez que a boca foi lavada de seus pecados e a ilusão do mundo foi dissipada, o espírito foi purificado e o corpo foi fortalecido.
CAPITULO LIV EM BREVE ...

- O primeiro voto, "ben-yüan", refere-se à pureza essencial do estado búdico;
- O termo sabedoria, ou "sambhodi", alude à onisciência de Buda. Em algumas ocasiões, como neste caso, designa todo o corpo de doutrinas budistas;
- Segundo o historiador Hsüan-Tsang, a sudoeste do reino de Fu-Lin existia uma ilha onde se estabelecera o chamado País das Mulheres do Oeste. Como nenhum homem vivia entre elas, o senhor de Fu-Lin enviava anualmente um grupo de homens para que pudessem procriar;
- Em chinês 如意真仙 (Rúyì Zhēnxiān);
- Wen era um dos Quatro Grandes Marechais Celestes.
- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
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