Ao ouvir isso, Bajie dirigiu-se para o estábulo, onde encontrou o cavalo deitado e dormindo. Bajie o acordou com algumas patadas e colocou o frasco debaixo de seus genitais, esperando que ele urinasse. Mas o tempo foi passando e, ao ver que o cavalo não soltava nem uma gota, correu até o Peregrino e disse, muito agitado:
— Acho que, antes de curar o rei, deveríamos curar o cavalo. Parece que ele secou por completo! Fiquei lá um tempão e ele não soltou nem uma gota de urina!
— Irei com você para ver o que está acontecendo — disse o Peregrino, sorrindo.
— Acho que também vou dar uma olhada — disse, por sua vez, o Monge Sha.
Assim que os viu, o cavalo se levantou imediatamente e falou com voz firme:
— Devem lembrar que, em outros tempos, fui um dragão do Oceano Ocidental. Tive a infelicidade de desobedecer às ordens celestiais, mas a Bodhisattva Guanyin veio em meu socorro e me salvou da morte. Quando ela me serrrou os chifres, arrancou minhas escamas e me transformou em cavalo para que o mestre pudesse viajar com mais facilidade rumo ao Paraíso Ocidental, foi para que minhas boas ações compensassem os erros cometidos. Mas isso não significa que tenha perdido meus antigos poderes. Se, ao passar por um rio, eu deixar escapar uma única gota de urina, os peixes se transformarão em dragões. Se fizer o mesmo numa montanha, os arbustos se tornarão cogumelos espirituais, que os jovens imortais colherão para prolongar suas vidas. Entendem agora por que sou tão relutante em desperdiçar uma única gota de meus fluídos internos?
— Dá para perceber que não está acostumado a conversar — retrucou o Peregrino. — Primeiro, este não é um lugar qualquer, mas um reino das Terras do Oeste. Além disso, ninguém está pedindo que desperdice seus fluidos vitais à toa. Como diz o ditado, “são precisos muitos feixes de algodão para fazer um casaco”. Precisamos devolver a saúde ao senhor destas terras. Se conseguirmos, todos nós seremos recompensados com glória e honra. Mas se falharmos, receio que não nos deixem partir com a mesma tranquilidade com que chegamos.
— Nesse caso — respondeu o dragão — esperem um momento.
Então, esticou as patas dianteiras, fez força com as traseiras e contraiu dolorosamente o ventre. O esforço era tanto que seus dentes rangiam, como se tivesse perdido o controle sobre eles. Assim, conseguiu deixar escapar algumas gotas de urina.
— Nunca vi alguém mais mão-de-vaca! — resmungou Bajie, irritado, ao vê-lo voltar à postura normal. — Mesmo que estivesse urinando ouro líquido, poderia ter dado um pouco mais, não acham?
— Já é mais do que suficiente — disse o Peregrino, ao ver que quase metade do frasco estava cheio. — Vamos voltar logo para preparar a poção.
Os três então retornaram para o salão e misturaram a urina do cavalo com os outros ingredientes. Depois, amassaram tudo até formar três grandes pílulas.
— Irmãos — disse o Peregrino —, essas pílulas ficaram grandes demais.
— Como pode dizer isso — comentou Bajie. — Elas não são maiores que uma noz. Se fossem para mim, engoliria as três de uma vez só.
Em seguida, guardaram as pílulas em uma pequena caixa e foram dormir. Já era tão tarde que nem chegaram a se despir.
Apesar do estado avançado de sua doença, na manhã seguinte o rei voltou a comparecer à corte. Depois de conduzir o monge Tang ao salão de audiências, ordenou aos oficiais de sua guarda pessoal que se dirigissem ao Pavilhão dos Tradutores e, com máxima cortesia, pedissem ao Honorável Sun que lhes entregasse o remédio que curaria a sua enfermidade.
Sem perder tempo, os oficiais deixaram a corte e seguiram até o palácio onde o Peregrino estava hospedado.
— Nosso senhor — explicaram, prostrando-se com o rosto no chão — ordenou que viéssemos buscar o maravilhoso remédio que há de curar sua doença.
O Peregrino pediu a Bajie que trouxesse a caixa e, depois de abrir sua tampa com cuidado, entregou-a aos oficiais.
— Como se chama esse remédio? — perguntou um deles. — Perdoe-nos, mas precisamos informar nosso senhor antes que ele o leve aos lábios.
— Chama-se "Elixir do Ouro Negro" — respondeu o Peregrino.
— Não poderia ter outro nome — cochicharam Bajie e o Monge Sha, contendo o riso —, já que foi feito com fuligem.
— E com que tipo de líquido ele deve ser tomado? — voltou a perguntar o oficial.
— Para que seja realmente eficaz, existem dois tipos de líquido possíveis, mas receio que aqui só possamos obter um deles — explicou o Peregrino. — Ele deve ser preparo fervendo em água seis ingredientes muito específicos.
— E que ingredientes são esses? — perguntou mais uma vez o oficial.
— O peido de um galo velho em pleno voo, a urina de uma carpa subindo a correnteza, um pouco do pó do rosto de Wang-Mu-Niang-Niang, algumas cinzas do braseiro de Lao-Tzu, três fios do chapéu que cobre a cabeça do Imperador de Jade e cinco pelos da barba de um dragão cansado — respondeu o Peregrino. — Se Sua Majestade tomar o remédio juntamente com o caldo preparado com esses seis elementos, sua doença desaparecerá como neblina numa manhã de primavera.
— Isso é impossível! — exclamou o oficial, alarmado. — Como poderíamos preparar um líquido desses, se esses ingredientes não existem neste mundo?
— Nesse caso — concluiu o Peregrino — ele deve tomar o remédio com um pouco de água sem raíz.
— Isso é bem mais fácil de conseguir — disse outro oficial, sorrindo.
— Tem certeza? — retrucou o Peregrino.
— Aqui existe um ditado — explicou o mesmo oficial — que diz que para se obter água sem raiz, basta pegar uma tigela ou prato, encher com água de um poço ou riacho e voltar correndo sem derramar um gota e sem olhar pra trás. Assim, quem estiver doente pode bebê-la e se livrar da enfermidade.
— Não me parece um bom método — observou o Peregrino. — A água vinda de poços e rios possuem uma raíz. O que entendo por água sem raíz é aquela que cai do céu e é recolhida antes de tocar o chão.
— Perfeito — concluiu o oficial. — Essa é ainda mais fácil de conseguir. Basta esperar que chova.
Dito isso, agradeceram respeitosamente ao Peregrino e voltaram à presença do rei, que perguntou, curioso:
— Que tipo de pílulas são essas?
— O respeitável monge nos disse — respondeu o oficial de maior patente — que são chamadas de "Elixir do Ouro Negro" e devem ser tomadas com água sem fonte nem origem.
Empolgado, o rei ordenou a um de seus servos que fosse imediatamente buscar um pouco dessa água, mas o oficial o aconselhou a não fazê-lo, dizendo:
— Segundo nosso sábio benfeitor, esse tipo de água não se encontra nem nos rios nem nos poços, mas sim na que cai do céu antes de tocar o solo.
Ao ouvir tal explicação, o rei voltou-se para o funcionário encarregado das práticas mágicas e ordenou que fizesse chover sem demora. Por ora, deixaremos o rei de lado e voltaremos ao Peregrino, que permanecia no Pavilhão dos Tradutores. Voltando-se para Zhu Bajie, ele disse:
— Eu disse a eles que o remédio só podia ser tomado com água da chuva, mas duvido que vá chover tão cedo. Dá para ver que aquele rei é uma pessoa muito digna e de virtude extraordinária, por isso não me parece certo fazê-lo esperar em vão. O que acha de nós dois o ajudarmos a conseguir um pouco de chuva?
— E como vamos fazer isso? — perguntou Bajie, surpreso.
— É bem simples — respondeu o Peregrino. — Coloque-se à minha esquerda e peça ao Monge Sha que fique à minha direita; vocês farão o papel de estrelas, enquanto eu me encarrego de trazer a chuva.
Então, o Peregrino começou a recitar um encantamento. Pouco tempo depois, surgiu do leste uma nuvem muito escura, que veio pairar bem acima de suas cabeças. Nesse instante, uma voz soou do alto, dizendo:
— Grande Sábio, Ao-Kuang, o Rei Dragão do Mar Oriental, está aqui para vê-lo.
— Não teria o incomodado se não fosse algo realmente importante — respondeu o Peregrino. — Poderia me ajudar dando ao rei destas terras um pouco de água sem origem para que ele possa tomar seu remédio?
— Quando me convocou — disse o Rei Dragão — não mencionou nada sobre água. Por isso, receio não ter trazido meus instrumentos para provocar chuva. Como posso fazer chover sem a ajuda das nuvens, do vento, do relâmpago e do trovão?
— Não há necessidade de relâmpagos, trovões, nuvens ou ventos — replicou o Peregrino. — Não precisamos de muita chuva, apenas de um pouco d’água, o suficiente para que o rei possa engolir seu remédio.
— Nesse caso — concluiu o Rei Dragão — posso espirrar duas vezes. Imagino que um pouco da minha saliva deve servir.
— Isso é perfeito! Perfeito! — disse o Peregrino, satisfeito. — Não perca tempo! Faça agora mesmo!
Sem demora, o dragão fez sua nuvem descer sobre o palácio imperial. Protegido pela escuridão densa, cuspiu um pouco de saliva, que se transformou imediatamente em chuva. Ao verem aquilo, todos os funcionários reais gritaram, eufóricos:
— Viva nosso senhor! Que sua felicidade seja eterna! O céu se abriu e a chuva começou a cair sobre nós!
Empolgado, o rei ordenou:
— Que todos, dentro e fora do palácio, sem distinção de cargo ou idade, peguem o primeiro recipiente que encontrarem e recolham toda a água que puderem!
Imediatamente, todos os funcionários, tanto civis como militares, as damas que moravam nos seis aposentos e nos três palácios, as três mil donzelas que as atendiam e as oitocentas serventes de pouca idade saíram para o pátio do palácio, munidos com frascos, garrafas, xícaras e tigelas. O velho dragão ficou mais de uma hora cuspindo saliva, até que, finalmente, despediu-se do Grande Sábio e regressou à sua mansão no oceano.
Os funcionários voltaram animados à corte, mas logo perceberam que alguns haviam conseguido apenas duas ou três gotas daquela estranha chuva, outros quatro ou cinco, e a maioria nenhuma. Juntaram tudo e, para alívio geral, viram que conseguiram encher três frascos, os quais foram colocados imediatamente sobre a mesa imperial.
Um aroma forte e penetrante se espalhou pelo Salão dos Carrilhões de Ouro e tomou todo o palácio. O rei despediu-se do Mestre da Lei e levou consigo o Elixir do Ouro Negro e os três frascos de água da chuva. Pegou uma das pílulas, colocou-a na boca e engoliu-a com a água de um dos frascos. Em seguida, fez o mesmo com a segunda e a terceira.
Mal havia terminado de engoli-las, quando o seu estômago começou a revirar e a emitir ruídos estranhos, que o mantiveram colado ao penico por um bom tempo. Umas quatro ou cinco vezes ele teve que voltar a se sentar, porque se "desfazia" como uma fonte assim que tentava ficar de pé. Logo, porém, conseguiu deitar-se na cama e pediu que lhe servissem um pouco de sopa de arroz. As damas do palácio, curiosas, foram ver o penico e encontraram-no cheio de uma massa viscosa e fétida. No meio, havia algo que lembrava um caroço ou um pedaço disforme de massa frita feita de farinha de arroz. Aliviadas, correram até o leito do rei e anunciaram:
— A fonte da doença de Sua Majestade desapareceu!
Animado por essas palavras, o rei tomou um pouco mais de sopa de arroz. Logo sentiu um alívio profundo no peito e no ventre. Pouco a pouco, suas forças voltaram, o sangue recuperou o equilíbrio e o espírito tornou-se tão lúcido e vigoroso quanto antes. Levantou-se imediatamente do leito e, vestindo todos os seus atributos imperiais, dirigiu-se a toda pressa ao salão do trono. Assim que viu o monge Tang, inclinou-se respeitosamente diante dele. O mestre correspondeu à saudação, mas o rei tomou-lhe a mão e ordenou a seus servos:
— Redijam imediatamente um convite dizendo: “Com o rosto no chão, suplicamos que atendam ao nosso chamado” e entreguem-no aos três distintos discípulos do Mestre da Lei. Abram em seguida as portas do Salão Oriental e organizem um banquete de agradecimento.
Os funcionários reais se apressaram a cumprir as ordens. Enquanto alguns redigiam o convite, outros providenciavam tudo o que era necessário para o banquete. A palavra "imperial" tem, afinal, o poder de mover montanhas. Num piscar de olhos, tudo estava, de fato, preparado, como se tivesse surgido de um sonho. Ao ver os funcionários reais chegando com o convite, Bajie exclamou, radiante:
— Seu remédio não podia ter sido mais eficaz! Se não fosse por você, ninguém teria vindo nos agradecer.
— Que jeito de falar é esse? — repreendeu-o o Monge Sha. — Como diz o ditado, “quando a sorte sorri a alguém, todos à sua volta compartilham da boa fortuna”. Além disso, parte do mérito é nosso também. Fomos nós que preparamos o remédio com nossas próprias mãos. É justo que aproveitemos o banquete! — E, cheios de alegria, seguiram rumo ao palácio.
Todos os funcionários reais saíram para recebê-los e os conduziram ao Salão Oriental, onde o rei, o monge Tang e as figuras mais ilustres do reino já estavam acomodados. Assim que o Peregrino, Bajie e o Monge Sha entraram, todos se levantaram em sinal de respeito, seguidos pelos funcionários de mais alta patente.
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Havia quatro grandes mesas repletas de pratos e bebidas vegetarianas, tantas que era impossível provar de tudo. No centro do salão, uma mesa comprida exibia as iguarias mais deliciosas imagináveis. Ao redor, centenas de pequenas mesas individuais estavam dispostas com precisão militar. Como diziam os antigos, estavam representadas centenas de iguarias da mais variada natureza, servidas em milhares de pratos da porcelana mais fina e realçadas pelo doce aroma dos vinhos e pelo tom rubro dos pedacinhos de ameixa que as adornavam. O capricho com que haviam sido preparadas era, na verdade, inigualável. O colorido vistoso das frutas misturava-se ao suave aroma que exalavam para tornar os pratos ainda mais apetitosos. Chamavam especialmente a atenção doces de grande tamanho com forma de leões e imortais, assim como tortas que representavam casais de fênices entrelaçados. Não era menor o atrativo das carnes, entre as quais destacavam-se as de porco, as de cordeiro, as de ganso, as de pato e todas as demais que existem sob as estrelas. Os vegetais estavam representados por quantidades imensas de brotos de bambu, orelhas-de-madeira, cogumelos e toda espécie de hortaliças. A visão era quase hipnótica diante de tamanha quantidade de pastéis pequenos, doces, bolinhos de arroz da mais fina qualidade e bolachas amareladas de milho tenríssimo. As sopas e os macarrões apresentavam uma variedade como jamais se havia conhecido e seu número parecia competir com o dos pratos mais finos e saborosos. Não era de se estranhar que o rei e seus súditos brindassem sem parar, erguendo as taças em homenagem aos funcionários de todos os escalões. O próprio rei tomou uma grande taça nas mãos e quis ser o primeiro a desejar ao monge Tang toda a felicidade do mundo, mas Sanzang se desculpou, dizendo:
— Este humilde monge não está acostumado a beber vinho.
— Este vinho que ofereço — disse o rei, com respeito — foi preparado especialmente para aqueles que seguem uma dieta vegetariana. Que problema haveria em tomar uma taça de uma bebida tão saudável?
— O vinho é a primeira coisa que nos é proibida, como monges — explicou Sanzang.
— Nesse caso — insistiu o rei, ainda sem saber bem como proceder —, com o que posso brindar para expressar meus respeitos?
— Isso é simples — respondeu Sanzang. — Meus três discípulos beberão por mim.
Satisfeito, o rei pegou uma taça de ouro e a entregou ao Peregrino, que a esvaziou de um só gole, inclinando-se respeitosamente diante de todos os presentes. Ao ver com que facilidade ele bebia, o rei encheu a taça novamente, e o Peregrino a bebeu com a mesma rapidez de antes. Incapaz de conter o riso, o rei exclamou:
— Que tal uma rodada das “três coroas”?
O Peregrino aceitou de bom grado e bebeu sem pestanejar. Divertido, o rei pediu que enchessem a taça mais uma vez e disse:
— Agora, por favor, brindem com uma rodada das “quatro estações” (11).
Bajie, sentado em uma das pontas da mesa, observava o vinho passar de um lado para o outro, salivando tanto que parecia capaz de beber litros de uma vez. O problema era que a garrafa nunca chegava até ele. O rei parecia decidido a brindar apenas com o Peregrino, e isso acendeu em seu coração o fogo da inveja.
— Eu também contribui para a cura de Sua Majestade! — gritou, sem se conter. — Aliás, o remédio que tomou tinha uma coisa de cavalo que…
O Peregrino percebeu que Bajie estava prestes a revelar o segredo do remédio que devolveu a saúde ao rei. Sem perder tempo, colocou a taça de vinho em suas mãos. Como esperado, Bajie a bebeu de um só gole e ficou em silêncio. Mas o rei, curioso, perguntou:
— Que “coisa de cavalo” é essa que, segundo esse monge, fazia parte do remédio?
— Ah, esse meu irmão! — exclamou o Peregrino, tentando desviar a atenção —. Ele sempre faz isso. Quando prepara algum remédio eficaz, não sossega enquanto não revela os ingredientes a todo mundo. O remédio que Sua Majestade tomou, na verdade, continha “sininhos de sela de cavalo (12)”.
— Que tipo de planta medicinal é essa? E para que serve realmente? — voltou a perguntar o rei.
— Os “sininhos de sela de cavalo”, senhor — apressou-se a responder o médico imperial, que estava sentado ao lado — têm um sabor amargo, uma natureza fria e não são venenosos. São excelentes para estimular a respiração e eliminar o catarro. Além disso, limpam as vias respiratórias, purificam o sangue, aliviam a tosse, restauram as energias e trazem uma sensação geral de bem-estar.
— Isso explica por que foi usado no remédio que acabei de tomar — concluiu o rei, satisfeito.
— Por que não toma mais uma taça, honrado Bajie? — acrescentou, voltando-se para ele.
Sem dizer uma palavra, Bajie bebeu uma rodada das “três joias”. O rei então se voltou para o Monge Sha e ofereceu-lhe mais três taças, que ele tomou com deleite invejável. Assim que terminou, todos voltaram a se sentar, e o banquete prosseguiu normalmente. Depois de algum tempo, o rei pegou uma grande taça e a ofereceu ao Peregrino, que disse, com respeito:
— Não é necessário que Sua Majestade se levante. Decidi aceitar todos os brindes que oferecer, sem recusar nenhum.
— Nossa gratidão por você é maior que uma montanha — respondeu o rei. — Jamais poderei retribuir tudo o que fez por mim. Peço, portanto, que aceite esta taça de vinho antes que eu diga algo que acredito que precisa saber.
— Diga primeiro — pediu o Peregrino. — Depois aceitarei com prazer tudo o que quiser oferecer.
— Minha longa enfermidade — confessou o rei — foi causada por um estado constante de angústia. Se agora recuperei a saúde, foi graças ao elixir poderoso que me receitou
— Quando o examinei ontem, percebi de imediato que se tratava de uma angústia profunda — confirmou o Peregrino, sorrindo. — Mas ainda desconheço o motivo que a causou.
— Segundo um antigo provérbio — disse o rei —, "a vergonha de uma família não deve ultrapassar seus portões". Mas você é meu benfeitor, e se tiver a gentileza de não zombar de mim, contarei claramente as razões da minha aflição.
— Como poderia rir de Sua Majestade? — exclamou o Peregrino. — Por favor, conte-me tudo o que desejar.
— Quantos reinos já atravessaram desde que iniciaram sua jornada no leste? — perguntou o rei.
— Não sei ao certo. Talvez cinco ou seis — respondeu o Peregrino.
— Pode me dizer quais eram os títulos das esposas dos governantes desses reinos? — voltou a perguntar o rei.
— Normalmente, a de posição mais alta recebia o título de Rainha do Palácio Central, enquanto as outras duas, de hierarquia menor, eram chamadas de Rainha do Palácio Oriental e Rainha do Palácio Ocidental — explicou o Peregrino.
— Aqui os títulos são um pouco diferentes — explicou o rei. — A rainha principal é chamada de Rainha do Sagrado Palácio Dourado; a rainha do Leste, de Rainha do Sagrado Palácio de Jade; e a rainha do Oeste, de Rainha do Sagrado Palácio de Prata. No momento, apenas as consortes de Jade e de Prata estão presentes na corte.
— E por que a Rainha do Sagrado Palácio Dourado não está presente? — perguntou o Peregrino, surpreso.
— Já faz três anos que ela desapareceu — respondeu o rei, sem conseguir evitar que as lágrimas escorressem em seu rosto.
— E para onde ela foi? — insistiu o Peregrino.
—— Há três anos — explicou o rei —, durante a celebração do Festival do Barco-Dragão, minhas esposas e eu estávamos reunidos no Pavilhão das Romãzeiras, nos jardins do palácio. Comíamos bolinhos de arroz, colocávamos enfeites de artemísia nas roupas, bebíamos licor de cálamo e assistíamos às regatas dos barcos-dragão. De repente, quando todos estávamos distraídos, surgiu um vento fortíssimo e, no ar, apareceu um monstro que se apresentou como o Equivalente à Tai Sui (13), morador da Caverna de Xiezhi, na Montanha Qilin. Ele disse que precisava de uma esposa e, ao ouvir falar da beleza da Rainha do Sagrado Palácio Dourado, exigiu três vezes que ela fosse entregue a ele. Caso contrário, ameaçou devorar vivos meus ministros, o povo da capital e até a mim.
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Preocupado com o destino do reino e da população, não tive outra saída senão permitir que a Rainha do Sagrado Palácio Dourado deixasse o pavilhão. Assim que ela saiu, a criatura a capturou e desapareceu no céu. O terror foi tão grande que o que comi naquela noite ficou preso dentro do meu corpo sem conseguir ser digerido. Além disso, passei três anos atormentado por pressentimentos horríveis, mergulhado na mais profunda angústia.
Mas o elixir que me foi dado pelo monge divino me purgou de tal forma que expulsou todas as impurezas acumuladas nesse período. Por isso agora me sinto saudável, leve e cheio de energia, como antes. Só graças ao monge recuperei a vida e as forças. A gratidão que sinto, se pudesse ser colocada numa balança, pesaria mais do que o próprio Monte Tai.
Ao ouvir essas palavras, o Peregrino sentiu-se invadido por uma satisfação completa e bebeu de dois goles a enorme taça que o rei lhe oferecia. Depois, sorrindo com a despreocupação de um príncipe, voltou-se para Sua Majestade e disse:
— Agora entendo o motivo da sua aflição — disse o Peregrino, sorrindo. — Pelo menos teve a sorte de me encontrar e recuperar a saúde. Mas existe o desejo de ter a Rainha do Sagrado Palácio Dourado de volta ao seu lado?
— Sabia que nem um único dia deixei de chorar sua ausência — respondeu o rei, enquanto as lágrimas escorriam novamente pelos seus olhos. — Mas como poderia fazê-la retornar a mim, se não há ninguém capaz de deter aquele monstro?
— O que acha se eu cuidar disso pessoalmente? — perguntou o Peregrino.
— Se conseguir resgatá-la — respondeu o rei, prostrando-se de joelhos —, comprometo-me a abandonar este palácio com minhas três rainhas e minhas nove concubinas, e a levar uma vida tão simples quanto a do mais humilde dos meus súditos. Colocarei meu reino a seus pés e o honrarei como meu mestre e senhor.
Ao ver a forma estranha como o rei falava e agia, Bajie não pôde conter-se e exclamou em voz alta:
— Este rei perdeu o juízo! Como pode estar disposto a renunciar ao reino e se ajoelhar diante de um simples monge por causa de uma mulher? Isso é inacreditável!
O Peregrino fez o rei se levantar imediatamente e voltou a perguntar:
— Esse monstro voltou a aparecer depois de sequestrar a Rainha do Sagrado Palácio Dourado?
— Como já disse — respondeu o rei —, a rainha foi levada no quinto mês, há cerca de três anos. Ele retornou no décimo mês, exigindo a entrega de duas donzelas para servir à rainha. Como era de se esperar, atendemos prontamente às suas exigências. Ele voltou a pedir outras duas donzelas no terceiro mês do ano passado, operação que repetiu novamente no sétimo mês daquele mesmo ano e no segundo do ano atual. Não faço ideia de quando voltará a aparecer e fazer novas exigências.
— Vocês não tem medo dele depois de tantas visitas? — perguntou o Peregrino.
— Mais é claro — reconheceu o rei. — O mais preocupante é que ele ainda pode causar mais danos do que já causou. No quarto mês do ano passado, ordenamos aos nossos engenheiros a construção de um refúgio contra monstros. Assim, quando ouvirmos um vento tempestuoso se aproximar, saberei que se trata daquela besta e me me abrigarei nele, junto com minhas duas esposas e minhas nove concubinas.
— Se não se importar — disse o Peregrino —, gostaria de ver esse refúgio de que fala.
Sem perder tempo, o rei pegou o Peregrino pela mão e deixou a sala do banquete, enquanto todos os funcionários se levantavam respeitosamente.
— Que teimoso você é! — disse Bajie, repreendendo o Peregrino. — Há tanta comida e bebida aqui, e você só pensa em por fim neste esplêndido banquete. Pode me dizer o que procura nesse tal refúgio?
O rei percebeu de imediato que Bajie estava interessado apenas na comida e ordenou a dois servos que levassem duas mesas com pratos vegetarianos para o refúgio e os esperassem lá. Só então Bajie parou de reclamar, voltando-se para o mestre e o Monge Sha e dizendo, enquanto ria:
— Vamos a outro banquete!
Escoltado por uma interminável fila de funcionários civis e militares, o rei conduziu o Peregrino até a parte de trás do jardim imperial, mas lá não se via nenhum edifício. Surpreso, o Peregrino exclamou
— Posso saber onde está o refúgio contra o monstro?
Mal havia terminado de falar, quando dois eunucos pegaram duas pértigas de laca vermelha e levantaram do chão uma enorme laje de pedra.
— Aqui está! — disse o rei. — Tem mais de seis metros de profundidade e, em seu interior, foram escavadas nada menos que nove câmaras, além de quatro enormes depósitos de óleo que mantêm o lugar iluminado dia e noite. Quando ouvirmos o rugido do vento, nos escondemos aqui e os de fora fecham a entrada com essa laje de pedra.
— Esse monstro claramente não deseja lhe fazer mal algum — disse o Peregrino com um sorriso. — Se ele realmente quisesse, esse refúgio não seria capaz de protegê-lo.
O Peregrino mal havia terminado de falar, quando um vento furioso soprou do sul, tornando o ar quase irrespirável de tanta poeira que arrastava. Os funcionários entraram em pânico e gritaram, aterrorizados:
— Esse monge possui a boca de um oráculo! Bastou falar do monstro para que ele aparecesse na mesma hora!
O próprio rei foi tomado pelo medo, e, abandonando o Peregrino à própria sorte, entrou no buraco aberto no chão, seguido pelo Monge Tang e pelo restante dos funcionários. Bajie e o Monge Sha também tentaram buscar refúgio ali, mas o Peregrino os deteve a tempo, e disse:
— Posso saber do que vocês têm medo? Preciso que me ajudem a descobrir que tipo de monstro é esse.
— Você deve ter perdido a juízo! — protestou Bajie. — Para que quer saber disso? O rei, o mestre e os funcionários desapareceram, como se tivessem sido varridos por esta ventania. Que diferença faz descobrir a identidade dessa criatura?
Bajie se contorceu, desesperado, para todos os lados, mas o Peregrino o segurou firmemente pelo braço, impedindo que escapasse. O monstro logo se revelou diante de seus olhos. Seu corpo superava facilmente os dez metros de comprimento e exibia um aspecto feroz e selvagem, com olhos tão brilhantes quanto lâmpadas acesas. Suas orelhas enormes e pontiagudas pareciam grandes leques, combinando com os quatro dentes afiados como pregos que surgiam de seus lábios. As sobrancelhas e cabelos eram tingidos por uma cor tão avermelhada que davam a impressão de serem chamas. Seu nariz, volumoso como um cântaro, movia-se ameaçador a cada respiração, sacudindo os pelos arroxeados que formavam sua barba. As bochechas, rugosas como pedras, tinham o mesmo tom esverdeado do rosto, complementado pelo azul das mãos — duas garras toscas segurando uma lança — e pelo vermelho intenso de seus braços musculosos. Ao redor da cintura, vestia uma saia de pele de leopardo, que acentuava o aspecto fantasmagórico de seus pés descalços.
— Não o reconhece? — perguntou o Peregrino ao Monge Sha, assim que o avistou.
— Nunca vi esse sujeito — respondeu o Monge Sha. — Como poderia reconhecê-lo?
— E você, consegue reconhecê-lo? — voltou a perguntar o Peregrino, desta vez a Bajie.
— Creio que nunca tomei chá nem vinho com ele — disse Bajie. — Não é meu amigo, nem meu vizinho. Como saberia quem é?
— A julgar pelo brilho de suas pupilas e pelas rugas do rosto — explicou o Peregrino —, ele deve ser um dos guardiões do palácio do Sósia do Céu, na Montanha Oriental.
— Não, não! — apressou-se a contestar Bajie.
— Como sabe que não? — exclamou o Peregrino.
— Se o que você diz é verdade — respondeu Bajie —, teria de ser um espírito das trevas, que só aparece no final da tarde, entre a Hora do Macaco e a Hora do Porco. Nenhum demônio desse tipo ousaria sair em plena luz do dia. Além disso, eles não conseguem cavalgar nuvens e, quando usam o vento, só conseguem levantar pequenos redemoinhos, e nunca um vendaval tão forte quanto este. Pensando bem, talvez seja mesmo o Casamenteiro Estelar Demoníaco.
— Acho que você tem razão — disse o Peregrino, sorrindo. — Fiquem aqui enquanto vou perguntar o nome dele. Assim será mais fácil libertar a Rainha do Sagrado Palácio Dourado.
— Se quer ir falar com ele, vá — disse Bajie —, mas, por favor, não diga nada a ele sobre nós.
Sem dizer mais nada, o Peregrino montou numa nuvem e elevou-se aos céus. Assim se cumpriu, mais uma vez, o princípio de que, para garantir o futuro de um reino, é preciso antes libertar seu soberano das doenças que o afligem, da mesma forma que, para proteger o Tao, é necessário purificar primeiro o coração.
Não sabemos se, após elevar-se às alturas, o Peregrino conseguiu derrotar o monstro ou resgatar a Rainha do Sagrado Palácio Dourado. Quem quiser descobrir terá de ouvir atentamente as explicações que serão dadas no próximo capítulo.
CAPÍTULO LXX EM BREVE
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Notas do Capítulo LXIX
- Segundo a medicina tradicional chinesa, o pulso apresenta três posições diferentes de palpação: o cun (寸), mais próximo da mão; o chi (尺), no início do braço; e o guan (關), em uma posição intermediária;
- O San-yin chi-i-ping-cheng fang-luen (三因治一病證方論) recomenda que o médico utilize sua própria respiração como referência para medir o pulso. Assim, entre uma inspiração e uma expiração, devem ser percebidos quatro batimentos para que o pulso seja considerado normal;
- Os quatro chi são: feng (風 — vento), shi (濕 — umidade), han (寒 — frio) e shu (熱 — calor) — ou seja, representam as características das quatro estações que mais afetam a saúde;
- As cinco estases são obstruções que prejudicam a circulação normal do chi. Cada uma delas está relacionada a uma das Cinco Fases e aos principais órgãos internos, reforçando a ideia de que o corpo humano é um reflexo do universo;
- Tanto as sete imagens externas (chi-bao) (七表) quanto as oito internas (ba-li) (八裡) servem como parâmetros de intensidade e frequência para a medição do pulso. As sete externas são: fu (浮), kou (空), hua (滑), shr (數), hsien (弦), chin (緊) e bung (芤). As oito internas são: chen (沉), wei (微), chr (遲), fu (伏), he (細) e sz (澀);
- As nove indicações do pulso podem se referir tanto a uma rede de pontos distribuídos pelo corpo, onde se mede o pulso, quanto à interpretação do estado da circulação do chi, obtida a partir dessa medição;
- Naturalmente, o rei não tinha períodos menstruais. Essa menção provavelmente se deve a um descuido do autor, que incluiu na narrativa todos os dados encontrados nos textos médicos que consultou;
- O Pavilhão da Cultura era um dos quatro pavilhões dentro do palácio imperial. Nele residiam oficialmente os secretários ligados à Academia Hanlin;
- O Da huang (大黃) é uma planta conhecida pelo nome científico Rheum palmatum;
- O Ba dou (巴豆) é conhecido como Semen crotonis;
- Certos tipos de rodada, na realidade, indicavam a decoração das taças usadas para servir o vinho;
- O nome científico dos sininhos de sela de cavalo é Aristolochia debilis, uma substância afrodisíaca muito apreciada pelos alquimistas;
- Sai Tai Sui (賽太歲; sài tàisuì). Tai Sui (太歲, também chamado “Grande Duque do Ano”) é uma figura importante do folclore chinês, da astrologia tradicional e do taoismo popular. O termo não se refere a uma única entidade, mas a um ciclo de 60 divindades/espíritos, cada uma governando um ano específico.

- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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