— Para que tanta pressa? Seguimos o tornado até aqui e, depois de perdermos o rastro e procurar em vão, tudo o que encontramos foi este lugar. Ainda não sabemos se têm relação com o sequestro do nosso mestre, e seria um erro provocar o morador deste lugar sem sabermos quem é. O melhor agora é vocês dois ficarem aqui com o cavalo, enquanto eu entro para investigar. Não concordam?
— Concordo plenamente — respondeu o Monge Sha, satisfeito com o plano. — Isso é o que se pode chamar de cautela diante da imprudência, e respeito diante do desconhecido.
Os dois então seguraram as rédeas do cavalo e o esconderam entre os arbustos. O Grande Sábio, por sua vez, recorreu novamente à magia. Após realizar um sinal com os dedos e recitar o encantamento apropriado, transformou-se numa abelha — tão leve e ágil quanto o próprio movimento com que moldou seu novo corpo. Apesar da delicadeza de suas asas, era capaz de enfrentar o vento com firmeza. À luz, sua cintura parecia tão fina quanto um fio de seda. Sua boca ainda guardava o sabor das flores, mas seu ferrão era poderoso o suficiente para afugentar até sapos venenosos. Que humildade havia em suas origens, mesmo dominando o milagre de fabricar mel!
O Peregrino arquitetou um plano enquanto se infiltrava pela pequena fenda entre as duas portas. Após atravessar um segundo portão, chegou a um jardim onde se encontrava sentada uma demônia, cercada por um grupo de jovens com vestidos de seda colorida e cabelos repartidos em duas longas mechas. Todas pareciam estar de ótimo humor, conversando animadamente sobre algo que, a princípio, o Peregrino não conseguiu compreender.
Mesmo assim, procurou manter-se em absoluto silêncio e pousou no tronco da árvore sob a qual todas estavam reunidas. Esforçando-se ao máximo para ouvir, viu, naquele momento, outras duas jovens se aproximarem do local. Elas estavam com os cabelos completamente despenteados e carregavam nas mãos bandejas com bolinhos cozidos no vapor.
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— Aqui estão, senhora — disseram, com um respeito inesperado —, os bolinhos que pediu que preparássemos. Alguns estão recheados com carne humana, e outros com purê de feijão.
— Tragam o irmão do Imperador da Dinastia Tang — ordenou então a demônia.
As jovens vestidas com sedas coloridas dirigiram-se aos aposentos dos fundos e arrastaram à força o monge Tang. Seu rosto apresentava um tom amarelado preocupante, os lábios estavam pálidos e os olhos, vermelhos como brasas, brilhavam de tanto chorar.
— Está claro que foi drogado! — concluiu imediatamente o Peregrino.
A demônia levantou-se de seu assento e, estendendo para o mestre dedos tão delicados quanto brotos de cebolinha na primavera, falou enquanto o atraía para mais perto:
— Descanse, irmão do imperador. Esta humilde morada pode não possuir as riquezas nem os luxos do palácio do Reino das Mulheres de Liang Ocidental, mas tem a vantagem de não estar sujeita a tantas formalidades e ser muito mais confortável. Certamente a achará perfeita para recitar o nome de Buda e estudar as escrituras sagradas. Estarei ao seu lado no caminho rumo à Iluminação, e juntos alcançaremos a velhice em plena felicidade e harmonia.
Sanzang, no entanto, permaneceu em silêncio, e a demônia continou:
— Não há motivo para preocupação. Já sei que recusou-se a comer durante o banquete no Reino das Mulheres. Aqui há dois tipos diferentes de refeições, e você pode escolher a que mais lhe agradar. Uma contém carne, e a outra é totalmente vegetariana. Sinta-se à vontade para escolher.
— Não posso continuar em silêncio para sempre, nem me recusar a comer — pensou Sanzang. — Esta demônia não é como a rainha, que era humana e seguia com rigor as regras de etiqueta. Ela é um monstro, e pode acabar comigo quando quiser. Não sei o que fazer! Será que meus discípulos já descobriram onde estou? Se continuar me recusando, será que ela me mataria?
Percebendo que não havia outra alternativa senão manter as aparências, Sanzang perguntou com toda a cortesia que conseguiu reunir:
— De que tipo de carne e legumes são feitos esses bolinhos?
— De carne humana e purê de feijão — respondeu a demônia.
— Sigo uma dieta vegetariana desde que nasci — declarou Sanzang.
— Nesse caso — concluiu a demônia, sorrindo para as moças que a serviam —, tragam um pouco de chá quente, para que nosso convidado possa comer os bolinhos vegetarianos.
Uma das jovens trouxe rapidamente uma xícara de chá aromático e a colocou diante do mestre. A demônia pegou um dos bolinhos vegetarianos, partiu ao meio e entregou a Sanzang.
Este, por sua vez, tomou nas mãos um dos bolinhos recheados com carne e o ofereceu à demônia, que perguntou, soltando uma gargalhada:
— Por que me entregou o bolinho inteiro?
— Aqueles que renunciaram às suas famílias não podem partir carne — respondeu Sanzang, juntando as palmas das mãos em sinal de respeito.
— Se o que diz é verdade — retrucou a demônia —, como explica ter bebido da água do Rio da Mãe e do Filho? É estranho você insistir em comer bolinho com purê de feijão, depois de ter feito aquilo.
— Quando a maré está alta — retrucou Sanzang —, os barcos se afastam rapidamente da costa. Mas, quando se solta um cavalo em solo arenoso, ele mal consegue galopar.
O Peregrino escutava tudo escondido entre os galhos da árvore. Com receio de que aquela conversa acabasse confundindo o mestre, não conseguiu mais conter a impaciência e reassumiu sua forma habitual.
— Maldita criatura! — gritou, empunhando com rapidez o seu bastão de ferro. — Nunca conheci alguém com menos princípios do que você!
Ao vê-lo surgir tão de repente, a demônia lançou pela boca um raio de luz ofuscante, que envolveu por completo a árvore sob a qual ele se escondia. Em seguida, ordenou às jovens que a serviam:
— Levem o irmão do imperador daqui!
Ela então agarrou um tridente de aço e, dando um salto impressionante, gritou com uma voz poderosa:
— Macaco insolente e sem moral! Como ousa invadir minha casa sem ser convidado? Não fuja! Experimente o gosto do tridente da sua avó!
O Grande Sábio bloqueou o golpe com seu bastão de ferro e recuou um passo. Sem parar de lutar, os dois deixaram o interior da caverna enquanto trocavam golpes ferozes.
Bajie e o Monge Sha ainda aguardavam pacientemente perto do biombo de pedra. Ao ver os dois lutadores surgirem, Bajie entregou as rédeas do cavalo ao Monge Sha e disse:
— Cuide do cavalo e da bagagem. Vou esticar as pernas um pouco.
Em seguida, ergueu o ancinho com ambas as mãos e correu em direção à batalha, gritando como um louco:
— Saia da frente, irmão! Essa demônia irá provar do meu ancinho agora mesmo!
Ao ver Bajie se aproximando, a demônia revelou poderes verdadeiramente extraordinários. Soltando um bufar intenso, começou a expelir fogo pelas narinas, enquanto uma densa nuvem de fumaça negra saía de sua boca. Em seguida, com um leve sacudir do corpo, surgiram no ar três tridentes, cada um empunhado por mãos invisíveis. Sem qualquer hesitação, lançou-se como um furacão contra Bajie e o Peregrino, que haviam se posicionado estrategicamente, um de cada lado.
— Sua imprudência não tem limites, Sun Wukong! — gritou, rindo como uma selvagem. — Sei bem quem você é, mas você não tem a menor ideia de quem eu sou. Até o próprio Tathagata, do Templo do Trovão, teme a minha presença! Como dois tolos como vocês ousam desafiar-me em minha própria caverna? Venham os dois ao mesmo tempo e provem o sabor da derrota!
Quem testemunhasse tal cena poderia perguntar: como foi essa batalha épica? A demônia reuniu toda a sua força, enquanto o Rei dos Macacos desencadeava o furacão irresistível de sua energia, e o Marechal dos Juncos Celestes brandia com fúria seu ancinho, pronto para conquistar toda a glória possível. Uma luz ofuscante envolvia a guerreira de mãos infinitas e tridentes mais velozes que o vento, em contraste com a neblina que cercava os outros dois combatentes, impulsivos ao extremo e portadores de armas terríveis. A demônia procurava um companheiro com quem copular, mas encontrou a firme determinação do monge, que se recusava a derramar seu sêmen. Incapazes de chegar a qualquer conciliação, yin e yang envolveram-se numa batalha singular, mostrando todo o seu poder. O yin, normalmente pacífico e sustentador eterno de tudo o que vive, foi tomado pela luxúria e tornou-se tão agressivo quanto uma fera. O yang, por sua vez, amante da harmonia e guardião eterno da saúde, naufragou nas ondas do desejo, transformando-se num monstro sedento por sangue. Quando yin e yang perdem o equilíbrio, a harmonia desaparece do universo. Por isso, a disputa entre o bastão invencível, o ancinho poderoso e o tridente temível da demônia tornou-se um verdadeiro embate de forças primordiais. Nenhum dos três pretendia ceder um único palmo diante da Caverna do Alaúde, na Montanha do Inimigo Venenoso. Para ela, estava em jogo tornar-se esposa do monge Tang. Para os outros dois, era essencial proteger seu mestre e continuar a jornada em busca das escrituras sagradas. A fúria da batalha sacudiu os Céus e a Terra, mergulhou o sol e a lua numa densa escuridão e fez com que os próprios planetas fugissem apavorados.
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A demônia, Bajie e Wukong lutaram por horas a fio, mas nenhum deles conseguiu obter uma vantagem significativa. Num salto gigantesco, a demônia assumiu a postura do “cavalo envenenado” e desferiu um golpe brutal contra a cabeça do Grande Sábio.
— Aaaah! — gritou o Peregrino. — A sorte virou contra nós! — e, gemendo de dor, abandonou a luta.
Ao perceber a mudança no rumo da batalha, Bajie também decidiu bater em retirada, arrastando consigo seu precioso ancinho. A demônia recolheu os tridentes e voltou, vitoriosa, para sua caverna. Com as mãos pressionando a cabeça, a testa franzida e o rosto contorcido pela dor, o Peregrino não parava de gritar:
— Não estou suportando mais!
— O que aconteceu? — perguntou Bajie, aproximando-se. — Você estava lutando tão bem, e de repente virou as costas e me deixou sozinho no campo de batalha.
— Essa dor é insuportável! — repetiu o Peregrino, sem tirar as mãos da cabeça.
— Está com enxaqueca? — indagou então o Monge Sha.
— Não, não! — berrou o Peregrino, pulando feito um louco.
— Mas como pode estar sentindo tanta dor na cabeça, se você não sofreu nenhum ferimento? — insistiu Bajie.
— Enquanto lutávamos — respondeu o Peregrino —, a demônia percebeu que estava perdendo espaço e, de repente, deu um salto impressionante. Não sei que arma usou, mas posso afirmar com certeza que me acertou bem na cabeça. Desde então, a dor não passa. Agora entende por que precisei fugir?
— Você sempre se gabou de ter a cabeça mais dura do mundo — retrucou Bajie, soltando uma gargalhada. — E agora não aguenta nem um golpe? Será que essa sua tão falada iluminação é mesmo tão pura quanto diz?
— Por mais difícil que seja acreditar — retrucou o Peregrino —, depois que alcancei a imortalidade, roubei e devorei os pêssegos dos imortais, bebi o vinho celestial e experimentei o Elixir Dourado de Lao-Tzu, nada jamais me feriu na cabeça. Quando causei um grande tumulto nos Céus, o Imperador de Jade ordenou que o Rei dos Demônios e as Vinte e Oito Constelações me levassem ao Palácio da Estrela Polar para ser executado. Mas nem espadas, nem machados, nem cimitarras, relâmpagos ou chamas daqueles guerreiros celestiais conseguiram sequer me arranhar! Depois disso, Lao-Tzu me lançou no Caldeirão dos Oito Trigramas e me submeteu às suas chamas por quarenta dias. Ainda assim, não conseguiram provocar um único arranhão na minha cabeça. Não sei que arma aquela demônia usou, mas conseguiu me ferir como nada antes dela conseguiu.
— Tire as mãos daí e deixe que eu veja se há algum ferimento — sugeriu Bajie.
— Aparentemente, não há nenhum ferimento visível — respondeu o Peregrino.
— Nesse caso, talvez o melhor seja irmos até o Reino de Liang Ocidental procurar algum remédio que seja capaz de aliviar essa dor — propôs Bajie.
—Para que procurar por um remédio, se não há nenhum ferimento visível? — retrucou o Peregrino.
— Eu também não estava grávido quando cheguei aqui, e veja o que aconteceu depois — replicou Bajie com um sorriso malicioso. — Quem garante que não há um bola de carne crescendo aí dentro dessa sua cabeça.
— Chega de brincadeiras, de uma vez por todas! — repreendeu-o o Monge Sha. — Já está ficando tarde, nosso irmão mais velho está com dor de cabeça, e ainda não sabemos se o mestre está vivo ou morto. O que sugere que façamos?
— O mestre está bem — explicou o Peregrino, soltando outro gemido. — Transformei-me em uma abelha e consegui entrar na caverna. Lá dentro, vi aquela demônia com quem lutamos, sentada sob uma árvore e cercada por uma legião de servas. Pouco depois, duas delas trouxeram dois pratos com bolinhos: alguns recheados com carne humana e outros com purê de feijão. Em seguida, ela mandou chamar o mestre e, para acalmá-lo, propôs acompanhá-lo em sua jornada rumo ao Reino da Perfeição. No início, o mestre não tocou nos bolinhos nem respondeu à mulher. Mais tarde, talvez pela suavidade com que ela falava, ou por algum outro motivo que não sei explicar, ele disse que sempre seguiu uma dieta vegetariana e que não pretendia mudar isso agora. A demônia então partiu um dos bolinhos vegetarianos e ofereceu ao mestre, que, por sua vez, entregou a ela um bolinho inteiro de carne. Então ela perguntou: — "Por que me entregou o bolinho inteiro?". Ele então respondeu: — "Aqueles que renunciaram às suas famílias não podem partir carne". A demônia então retrucou: — "Nesse caso , como explica ter bebido da água do Rio da Mãe e do Filho? É estranho você insistir em comer bolinho com purê de feijão, depois de ter feito aquilo". O mestre não entendeu bem o que ela queria dizer e respondeu: — " Quando a maré está alta, os barcos se afastam rapidamente da costa. Mas, quando se solta um cavalo em solo arenoso, ele mal consegue galopar". Ouvi tudo isso escondido dentro do tronco da árvore, mas temi que esse modo de falar acabasse confundindo o mestre. Por isso, recuperei minha forma habitual e ataquei a demônia com meu bastão de ferro. Ela então recorreu à magia e envolveu a árvore com uma luz ofuscante. Ao mesmo tempo, ordenou que suas servas levassem o mestre. Num piscar de olhos, empunhou um tridente de aço, e começamos a lutar.
Ao ouvir essa longa explicação, o Monge Sha roeu as unhas e comentou:
— Quem sabe há quanto tempo essa maldita está nos seguindo? Ela sabe de tudo o que nos aconteceu nos últimos dias.
— Sendo assim, não deveríamos descansar nem por um minuto — decidiu Bajie. — Temos que ir até a entrada da caverna agora mesmo e desafiá-la, seja dia ou noite. Assim, ela não terá tempo para descansar e não poderá fazer mal ao nosso mestre.
— Não posso acompanhá-los — disse o Peregrino. — Minha cabeça parece que está prestes a explodir!
— Não precisamos lutar de novo agora — ponderou o Monge Sha. — Em primeiro lugar, nosso irmão está sofrendo com uma dor de cabeça terrível. Em segundo, nosso mestre é um verdadeiro monge. Nem a forma, nem o vazio serão capazes de abalar sua virtude. Vamos descansar aqui esta noite. Este local está protegido do vento. Amanhã, quando estivermos recuperados, decidiremos o que fazer.
Assim, após amarrarem o cavalo, guardaram a bagagem em segurança e se prepararam para passar a noite ao relento, protegidos pelas encostas de uma pequena elevação.
Enquanto isso, a demônia afastou de sua mente qualquer pensamento violento e assumiu uma aparência doce e encantadora.
— Fechem bem as portas — ordenou às suas criadas, e, imediatamente, duas pequenas demônias se posicionaram de guarda para impedir a entrada do Peregrino. Elas foram instruídas a correrem e avisarem sua senhora ao menor ruído suspeito. A demônia, por sua vez, chamou algumas criadas e disse:
— Decorem o quarto, acendam algumas velas e queimem um pouco de incenso. Depois, tragam até aqui o irmão do Imperador. Desejo unir-me a ele.
Imediatamente, as criadas tiraram o mestre do cômodo onde estava preso e o conduziram até sua senhora. Vestida com seus melhores trajes e exibindo todos os seus encantos, ela tentava seduzi-lo. Tomando-lhe a mão, ela disse:
— Como diz o provérbio: “O ouro tem valor, mas a felicidade vale mais ainda.” Que tal se nos deitarmos como marido e mulher e nos divertirmos um pouco?
O mestre tremia dos pés à cabeça, sem saber o que fazer. Sabia que, se recusasse abertamente, poderia perder a vida. Então, sem alternativa, deixou-se levar até o quarto. O ambiente estava impregnado de um perfume adocicado e entorpecente. Ainda assim, ele manteve a cabeça baixa e os olhos no chão, sem ousar olhar para a cama ou observar os móveis ao redor. Não sabia sequer onde estavam dispostos. Com grande esforço, isolou-se das palavras e carícias da demônia. Não ouviu uma só de suas frases. Que monge admirável! Tamanha era sua determinação que seus olhos não viam, e seus ouvidos nada escutavam. Para ele, aquele rosto bonito e pele macia como seda eram apenas ilusão. Via naquela beleza, capaz de enlouquecer qualquer homem, apenas poeira e cinzas. Sua única paixão era a prática do Zen. Nada o alegrava mais do que habitar os domínios luminosos do budismo. Como poderia se entregar a uma mulher, se conhecia apenas a virtude e a verdade? Que contraste entre os dois! Ela ardia em desejo, como uma folha de bambu sacudida pelo vento. Ele se tornava cada vez mais firme no zelo por Buda. Ela, com sua sensualidade, evocava o calor do perfume e a delicadeza do jade. Ele, com sua disciplina, lembrava a frieza das cinzas e a rigidez dos troncos secos.

Sem conseguir conter o turbilhão de desejo, a demônia começou a se despir, peça por peça. O mestre, ao contrário, firme em sua virtude, apertava ainda mais a túnica contra o corpo. Ela só queria unir os corpos em volúpia, sentir os peitos colados, as pernas entrelaçadas. Ele lutava contra os próprios desejos, fixando o olhar na parede e preenchendo a mente com os ensinamentos de Buda. A cada instante, era mais difícil manter a firmeza. A mulher, então, despiu-se por completo, revelando uma pele rosada e perfumada. Ao vê-la, o monge Tang escondeu com pressa o rosto curtido pela jornada entre as amplas e austeras dobras de sua túnica cor de canela.
— Os lençóis e as almofadas já estão prontos — disse a demônia com uma voz sedutora. — Por que não vem se deitar comigo?
— Como poderia repousar ao seu lado, com minha cabeça completamente raspada e essas roupas humildes de mendicante? — respondeu o monge Tang, mantendo a compostura.
— Venha — insistiu a demônia. — Desejo me tornar a nova Liu Cuicui (1).
— Com todo respeito, mas não estou sedento por amor — replicou o monge.
— Como pode dizer isso, se minha beleza supera até mesmo a da lendária Xi Shi? — exclamou a demônia, surpresa.
— Há muito tempo venho domando minhas paixões — confessou o monge Tang. — Talvez por mais tempo do que o próprio rei Yue.
— Lembre-se, irmão do imperador — disse a demônia —, que o espírito de quem morre sob as flores se transforma num amante feliz.
— Não possuo nada mais valioso do que meu yang — respondeu o monge. — Como entregá-lo assim, sem mais nem menos, a um cadáver com o rosto coberto de pó?
Durante boa parte da noite, os dois seguiram nesse jogo de insistência e recusa, mas o monge Tang não cedeu aos encantos dela. Embora a demônia o puxasse com força, tentando impedi-lo de sair, o mestre resistiu firmemente a todas as investidas.
Por volta da meia-noite, a paciência da demônia finalmente se esgotou. Furiosa, ela gritou:
— Tragam uma corda!
O monge Tang foi amarrado de tal forma que, mais do que um homem, ele parecia um macaco adoentado. A demônia mandou que o arrastassem para o corredor e, após apagar todas as luzes, todos se recolheram para dormir.
Logo o galo cantou. No pequeno declive da montanha, o Grande Sábio encerrou seu descanso e, levantando-se do chão, disse:
— A dor de cabeça durou quase a noite inteira, mas agora estou bem. Aquela estranha dormência também se foi. Para falar a verdade, só sinto uma leve coceira.
— Se está coçando, por que não deixa ela te dar outra espetada? — disse Bajie, soltando uma gargalhada.
— Saia da minha frente! — resmungou o Peregrino, empurrando-o de lado.
— Está bem! Mas que quase perdeu a cabeça ontem foi o mestre — replicou Bajie, sem conter o riso. — Quem não perderia, com uma mulher daquelas?
— Chega de tolices! — repreendeu-os o Monge Sha. — Já amanheceu. O que estão esperando para irem capturar o monstro?
— Fique aqui com o cavalo e não se mexa — aconselhou o Peregrino. — Zhu Bajie irá comigo.Levantando-se, Bajie ajeitou a camisa de seda preta e se preparou para acompanhar o Peregrino. Pegaram suas armas e saltaram sobre uma rocha próxima ao biombo de pedra.
— Fique aqui — disse o Peregrino a Bajie. — É possível que a demônia tenha feito algum mal ao mestre durante a noite. Antes de iniciarmos qualquer combate, é melhor verificarmos essa possibilidade. Vou dar uma olhada. Se o mestre tiver cedido às seduções daquela criatura e desperdiçado seu yang, cada um seguirá seu caminho e o assunto estará encerrado. Mas, se ele resistiu firmemente a todos os avanços dela e sua natureza Zen permanece intacta, então partiremos para a luta e não descansaremos até destruir o monstro e resgatar o mestre. Só então continuaremos nossa jornada rumo ao Oeste.
— Isso é um absurdo — repreendeu-o Bajie. — Como diz o ditado: "Pode-se usar um peixe seco como travesseiro de um gato?" Por mais que se tente o contrário, o gato sempre acaba comendo.
— Já chega de tolices! — exclamou o Peregrino. — Vou agora mesmo verificar o que aconteceu.
Depois de deixar Bajie ao lado do biombo de pedra, o Grande Sábio sacudiu o corpo levemente e voltou a assumir a forma de uma abelha. Lá dentro, encontrou duas jovens dormindo com a cabeça apoiada nas matracas que usavam para marcar as horas da noite. Com muito cuidado, voou até a árvore no centro do jardim e observou os arredores.
Como a demônia e suas criadas haviam passado boa parte da noite em vigília, estavam tão exaustas que nem perceberam o nascer do sol. Dormiam profundamente em seus aposentos. O Peregrino então seguiu para os fundos da casa. Logo começou a ouvir os gemidos do monge Tang. Virou a cabeça e o viu deitado no corredor, amarrado como se fosse uma criatura perigosa.
O Peregrino pousou suavemente sobre a cabeça dele e sussurrou:
— Mestre!
— Até que enfim apareceu, Wukong! — exclamou o monge Tang, reconhecendo a voz. — Tire-me daqui, imediatamente!
— Como foi a noite com aquela mulher? — perguntou o Peregrino, em tom provocador.
— Antes a morte do que deitar-me com ela! — respondeu o monge Tang, rangendo os dentes.
— Ontem, ela o tratou com um carinho extraordinário — provocou novamente o Peregrino. — Por que agora está submetendo-o a esse tormento horrível?
— Ela passou metade da noite tentando me seduzir — explicou Tang —, mas não cheguei perto de sua cama, nem desabotoei minha túnica. Quando percebeu que não cederia aos seus desejos, mandou que me amarrassem desse jeito. Liberte-me, para que possamos continuar nossa viagem em busca das escrituras!
Enquanto eles conversavam, a demônia despertou. Apesar de estar furiosa com o monge Tang, ainda estava apaixonada por ele.
Ao se espreguiçar, ouviu a menção de continuar a viagem em busca das escrituras e, saltando da cama, gritou:
— Então ainda se recusa a se casar comigo, preferindo seguir adiante com essa viagem estúpida?
O Peregrino levou um susto tão grande que, no mesmo instante, abandonou o mestre. Batendo as asas com velocidade impressionante, deixou a caverna e gritou:
— Bajie! Onde você está?
Bajie saiu correndo de trás do biombo e perguntou:
— Aconteceu o que tanto temia?
— Não, ainda não — respondeu o Peregrino, sorrindo. — Durante metade da noite, a demônia tentou seduzir o mestre, mas ele a rejeitou repetidas vezes. Isso a fez perder a paciência e mandou amarrá-lo como se fosse uma besta. Estava me contando tudo há pouco, quando aquela criatura surgiu de repente e fui forçado a fugir o mais rápido possível.
— O que exatamente o mestre disse? — insistiu Bajie.
— Disse que não se aproximou da cama dela, nem desabotoou a túnica — respondeu o Peregrino.
— Ótimo, excelente! — exclamou Bajie, empolgado. — Isso quer dizer que ele ainda é um verdadeiro monge. Vamos resgatá-lo agora mesmo!
Dono de um temperamento impulsivo, Bajie nunca refletia antes de agir. Com o ancinho erguido, correu até os portões de pedra, desferiu um golpe poderoso e os reduziu a fragmentos menores que lascas. As jovens que dormiam com a cabeça apoiada nas matracas para marcar as vigílias deram um pulo e correram apavoradas até os portões dos fundos, gritando:
— Abram, rápido! Aqueles monstros de ontem estão de volta e destruíram os portões!
A demônia saía naquele exato momento de seu aposento e ordenou às criadas ao redor:
— Tragam água quente para que eu possa me lavar. Depois, peguem o irmão do imperador e escondam-no no quarto dos fundos, sem desamarrá-lo. Assim que terminar de me arrumar, lutarei com esses intrometidos.
Depois de lavar o rosto, a demônia pegou o tridente, ergueu-o acima da cabeça com as duas mãos e saiu gritando:
— Quando é que vão aprender a se controlar, porco imundo e macaco louco? Não são capazes de respeitar nada? Como ousam destruir meus portões?
— Maldita porca! — gritou o Peregrino, em resposta. — Raptou nosso mestre e ainda tem a audácia de vir tirar satisfações? O monge Tang não é seu marido, é seu prisioneiro! Se permitir que ele saia, sua vida será poupada; caso contrário, o Porco usará o ancinho para arrasar sua montanha até deixá-la plana como um vale!
A demônia, é claro, não se intimidou com aquelas palavras. Ao contrário, reuniu uma força imensa e lançou-se contra os invasores com o tridente em punho, soltando fumaça e fogo pela boca e pelas narinas. Bajie se esquivou rapidamente para o lado e desferiu sobre ela um golpe devastador. O Grande Sábio manteve-se a distância, atento, mas não soltou seu bastão de ferro em momento algum.

A habilidade de combate da demônia era realmente impressionante. Parecia ter não apenas dois, mas vários pares de braços, atacando sem cessar e bloqueando com maestria cada golpe recebido. Após vários confrontos, utilizou novamente sua arma secreta e acertou Bajie com força nos lábios. Ele não teve alternativa senão recuar, arrastando o ancinho com dificuldade enquanto gritava de dor. O Peregrino, que não estava nada tranquilo diante daquela inimiga poderosa fingiu lançar um ataque com o bastão e também bateu em retirada. A demônia, por sua vez, retornou vitoriosa à caverna e ordenou às servas que vedassem a entrada da caverna com pedras.
Enquanto isso, o Monge Sha cuidava tranquilamente do cavalo em uma encosta da montanha quando ouviu os gemidos de um porco. Levantou a cabeça e viu Bajie vindo cambaleante, com os focinhos inchados, gritando como se estivesse em trabalho de parto.
— Mas o que foi isso? — perguntou o Monge Sha, surpreso.
— É horrível! Horrível! — respondeu Bajie, quase chorando. — Que dor! Que dor!
Ele mal havia terminado de falar, quando o Peregrino apareceu e, rindo, comentou:
— Ora, ora! Ontem, você zombou de mim, dizendo que eu tinha uma bola de carne crescendo em minha cabeça. Agora, está aí sofrendo com a praga do beiço inchado!
— Não aguento mais! — continuava queixando-se Bajie. — Essa dor é insuportável! Nunca senti nada igual!
Sem saber o que fazer, os três se deixaram cair no chão, desanimados. Pouco depois, avistaram uma anciã se aproximando pelo sul, carregando uma cesta cheia de verduras. Ao vê-la, o Monge Sha exclamou, esperançoso:
— Irmão mais velho — disse o Monge Sha —, veja aquela anciã se aproximando. Deixe que eu pergunte se ela conhece essa demônia ou se sabe que arma estranha é essa que ela usa, que causa ferimentos tão dolorosos.
— Fique aqui e não se mova — ordenou o Peregrino. — Deixe isso comigo.
O Peregrino fixou os olhos na anciã e percebeu que, acima de sua cabeça, flutuava uma nuvem de bons presságios e que todo o seu corpo estava envolto em uma névoa perfumada. Ele não teve dificuldade para reconhecê-la, e gritou apressado para os irmãos:
— Irmãos, prostrem-se imediatamente! Esta anciã é a Bodhisattva!
Esquecendo-se da dor, Bajie caiu de joelhos, enquanto o Monge Sha, ainda segurando as rédeas do cavalo, curvou-se com respeito. O Grande Sábio, por sua vez, uniu as palmas das mãos e disse, ajoelhando-se:
— Rendemos homenagem à nossa misericordiosa e salvadora, a Bodhisattva Guanyin!
Ao perceber que haviam reconhecido sua luz primordial, a Bodhisattva imediatamente se elevou numa nuvem e revelou sua verdadeira forma, assumindo a aparência de uma dama segurando um cesto de peixes.
O Peregrino correu até ela e disse, inclinando-se respeitosamente:
— Perdoe-nos, Bodhisattva, por não termos oferecido a recepção que é devida. Estávamos tão desesperados tentando resgatar nosso mestre que não percebemos sua descida à Terra. O desafio que enfrentamos nesse momento está além de nossas forças, e por isso, imploramos por sua ajuda.
— O poder dessa demônia é, de fato, extraordinário — reconheceu a Bodhisattva. — Os tridentes que ela maneja com tamanha habilidade são, na verdade, suas pinças dianteiras. E a arma misteriosa que tantos problemas causou nada mais é do que sua unha venenosa. Quando se curva como um cavalo envenenado e estica a cauda, assume sua verdadeira forma: um Espírito Escorpião. Há muito tempo, ela invadiu o Monastério do Trovão enquanto Tathagata ensinava. Ao vê-la, ele tentou espantá-la com a mão, mas ela se virou e lhe desferiu uma picada no dedo. Mesmo ele sentiu uma dor insuportável. Os arhats tentaram capturá-la com todas as forças, mas não conseguiram. Se desejam resgatar o monge Tang, precisarão buscar a ajuda de um dos meus discípulos. Nem mesmo eu consigo me aproximar dela.
— Diga o nome desse discípulo — pediu o Peregrino, curvando-se novamente —, para que possamos buscar sua ajuda o quanto antes.
— Vá até o Portão Leste dos Céus e pergunte pela Estrela de Órion (2) no Palácio da Luz — respondeu a Bodhisattva. — Ele é o único capaz de ajudá-los a capturar essa criatura.
Antes mesmo de terminar de falar, a Bodhisattva transformou-se em um raio de luz brilhante e disparou em direção aos Mares do Sul. O Grande Sábio então desceu da nuvem e disse a Bajie e ao Monge Sha:
— Não se preocupem. Existe alguém capaz de nos ajudar a libertar o mestre.
— Onde está essa pessoa? — perguntou o Monge Sha.
— A Bodhisattva me disse para buscarmos a ajuda da Estrela de Órion — respondeu o Peregrino. — Estou partindo agora mesmo.
— Aproveite e peça aos deuses algum remédio contra a dor — implorou Bajie, com os focinhos ainda inchados.
— Não será necessário — respondeu o Peregrino, rindo. — Depois de uma noite em claro, nem se sentirá mais nada, como aconteceu comigo.
— Chega de conversa! Vá logo! — disse o Monge Sha, impaciente.
O Peregrino deu um salto e, num piscar de olhos, chegou ao Portão Leste dos Céus, onde foi recebido pelo devaraja Virudhaka que, inclinando-se respeitosamente, perguntou:
— Posso saber para onde vai, Grande Sábio?
— Durante nossa jornada rumo ao Oeste em busca das escrituras — respondeu o Peregrino —, nosso mestre encontrou outro obstáculo demoníaco. Por isso, vim ao Palácio da Luz pedir a ajuda da Estrela de Órion.
Enquanto falava, aproximaram-se os Grandes Marechais Tao, Zhang, Xin e Deng, que também lhe perguntaram para onde estava indo.
— Preciso falar com a Estrela de Órion e pedir que nos ajude a libertar nosso mestre das garras de um demônio— respondeu o Peregrino.
— Esse deus a quem se refere — disse um dos marechais — saiu em patrulha esta manhã, por ordem expressa do Imperador de Jade.
— Isso é verdade? — questionou o Peregrino.
— Saímos do Palácio da Estrela Polar ao mesmo tempo que ele — respondeu o Grande Marechal Xin. — Que razão teríamos nós, guerreiros tão insignificantes, para mentir?
— Já se passou bastante tempo desde então — disse o Grande Marechal Tao. — É bem possível que ele já tenha voltado. O melhor a fazer é ir até o Palácio da Luz. Se não o encontrar por lá, procure na Clareira da Contemplação das Estrelas.
Agradecido, o Grande Sábio despediu-se e logo chegou ao Palácio da Luz. Não havia ninguém à vista, mas, ao se virar para partir, percebeu que um grupo de soldados se aproximava. Atrás deles vinha cavalgando o deus, ainda com seu traje de gala, todo tecido com fios de ouro. Seu chapéu de cinco pontas brilhava como se fosse feito do próprio metal precioso, parecendo até mais reluzente que o magnífico medalhão de jade pendurado em seu peito. Na cintura, ostentava um esplêndido cinturão com incrustações de oito metais preciosos, de onde pendia uma espada de Sete Estrelas, com empunhadura em forma de nuvem. Os ornamentos que usava tilintavam suavemente ao se chocarem, como sinos agitados pelo vento. Um grupo de criados carregava belíssimos leques feitos de penas de martim-pescador, mas dispersou-se assim que o Senhor de Órion pisou na avenida que levava ao palácio. O ar estava impregnado com a fragrância celestial típica dos Céus.
Ao ver o Peregrino próximo ao Palácio da Luz, os soldados que acompanhavam o deus correram para informá-lo:
— Senhor, o Grande Sábio Sun está aqui.
O deus imediatamente interrompeu sua jornada nas nuvens e ordenou aos guerreiros que formassem duas fileiras, enquanto ele se dirigia para saudar o ilustre visitante.
— A que devo a honra de sua visita? — perguntou, sorrindo.— Vim pedir que salve meu mestre de uma terrível provação — respondeu o Peregrino.
— Que provação seria essa? — indagou o deus. — Em que lugar, exatamente, sua jornada foi interrompida?
— Na Caverna do Alaúde, na Montanha do Inimigo Venenoso, situada no reino de Liang Ocidental.
— Que tipo de monstro habita essa caverna para levá-lo a visitar uma divindade tão modesta quanto eu? —perguntou novamente o deus.
— Recentemente, a Bodhisattva Guanyin teve a gentileza de nos revelar que se trata de um Espírito Escorpião — explicou o Peregrino. — Ela nos disse que apenas você seria capaz de vencê-lo. Por isso, decidi vir ao seu encontro.
— Eu deveria primeiro prestar contas ao Imperador de Jade sobre as ações que realizei — explicou o deus. — Mas como você já está aqui, Grande Sábio, e considerando que devo gratidão à Bodhisattva por sua recomendação, não gostaria de fazê-lo esperar. Peço desculpas por não oferecer-lhe um chá. Vamos primeiro subjugar o demônio. Poderei prestar contas a Sua Majestade quando terminarmos.
Ao ouvir isso, o Grande Sábio saiu apressadamente pela Porta Leste dos Céus e seguiu rumo ao país de Liang Ocidental, com o deus logo atrás.
Assim que avistou a montanha, o Peregrino apontou para ela e disse:
— É ali.
O deus desceu de sua nuvem e caminhou até o biombo de pedra erguido na encosta da montanha. Ao vê-los se aproximando, o Monge Sha sacudiu Bajie pelo ombro e disse:
— Acorde! Nosso irmão mais velho trouxe o deus estelar.
— Perdoe-me por não cumprimentá-lo como se deve — disse Bajie dirigindo-se ao deus, com os beiços ainda tão inchados quanto antes —, mas estou me sentindo muito mal e quase não consigo falar.
— Como pode alguém que se dedica à prática da virtude ficar doente? — perguntou o deus, surpreso. — Que tipo de enfermidade o aflige?
— Ao amanhecer — explicou Bajie —, enfrentamos o demônia, e durante a luta, ela me acertou um golpe tremendo nos lábios. Desde então, a dor tem sido insuportável.
— Aproxime-se! Irei curá-lo — disse o deus.
— Se fizer isso — respondeu Bajie, tirando a mão da boca —, serei grato por toda a vida.
Sem dizer uma palavra, o deus deu um leve toque em sua boca e soprou suavemente sobre os seus lábios. A dor desapareceu no mesmo instante.
Bajie caiu de joelhos e exclamou, agradecido:
— Incrível! Realmente incrível!
— Poderia tocar minha cabeça também? — pediu o Peregrino, sorrindo.
— E por qual motivo faria isso? — replicou o deus. — Você não foi picado pelo escorpião.
— Hoje não, mas ontem sim — explicou o Peregrino. — A dor foi passando durante a noite, mas ainda sinto uma dormência no local, e temo que, com a mudança do tempo, volte a doer. Por favor, cure-me também.
Assim como havia feito com Bajie, o deus tocou a cabeça do Peregrino e soprou sobre ela o seu hálito. Assim, os efeitos do veneno foram anulados, e o Peregrino deixou de sentir o incômodo que o fazia se coçar como se estivesse com pulgas.
— Vamos logo acabar com aquela demônia! — exclamou Bajie ao Peregrino, com uma ferocidade incomum.
— Era exatamente o que pretendia sugerir — afirmou o deus. — Façam-na sair de seu esconderijo, e eu mesmo cuidarei de capturá-la.
Com um salto imenso, Bajie e o Peregrino se colocaram bem diante da entrada da caverna. Começaram a gritar insultos e provocações, enquanto removiam com as mãos as pedras que bloqueavam o caminho. Bajie era o mais determinado e, com a ajuda de seu ancinho, conseguiu abrir uma passagem. Como um louco, avançou contra os portões internos e os reduziu a pó com um único golpe. As jovens que guardavam o local fugiram apavoradas para avisar sua senhora:
— Aqueles dois brutamontes acabam de destruir os portões!
A demônia estava, naquele exato momento, soltando o monge Tang para que ele pudesse tomar um pouco de chá e arroz. Ao ouvir que os portões haviam sido destruídos, ela deu um salto impressionante e avançou com seu tridente contra Bajie. Ele aparou o golpe com seu ancinho, enquanto o Peregrino o auxiliava com o seu bastão de ferro.
Após trocarem alguns golpes, a demônia se preparou para lançar seu terrível ferrão, mas Bajie e o Peregrino perceberam sua intenção e recuaram rapidamente. Ela os perseguiu além do biombo de pedra, quando então o Peregrino gritou:
— Onde você está, Órion?
O deus manifestou-se em sua verdadeira forma: um imenso galo com duas cristas e uma altura superior a dois metros e meio quando erguia a cabeça. Ao avistar a demônia, lançou-lhe um olhar penetrante e cacarejou uma única vez.
Como se aquilo fosse uma senha mágica, ela retomou sua verdadeira forma — a de um escorpião do tamanho de um alaúde. O deus cacarejou novamente, e a demônia perdeu completamente a coordenação dos movimentos, rolando morta pela encosta da montanha.
Sobre esse momento, existe um poema que diz:
"Com cristas vistosas e pescoço enfeitado,
Garras firmes, esporas longas, olhos irados,
Salta com nobreza, pleno em seus poderes,
Ergue-se imponente ao cantar por três vezes.
Não é ave comum que canta junto à choupana,
Mas estrela celeste que desce em plena fama.
Em vão a escorpiã cruel fingiu-se humana:
Revela-se agora, e assim sua farsa se acaba."
Bajie correu até o local onde o escorpião havia caído e, colocando o pé sobre a parte superior do seu casco, exclamou:
— Maldito monstro! Desta vez não conseguirá mais usar sua postura de cavalo envenenado — e, com um só golpe, esmagou-o completamente.
O deus voltou à sua forma humana e retornou aos Céus montado em sua nuvem. Ao vê-lo cruzar os ares mais rápido que um raio de luz, o Peregrino, Bajie e o Monge Sha se inclinaram com respeito e disseram:
— Perdoe-nos por todas as dificuldades que causamos. Assim que tivermos a oportunidade, iremos ao seu palácio agradecer pessoalmente por tudo o que fez por nós.
Em seguida, recolheram a bagagem e entraram na caverna junto com o cavalo. Lá dentro, foram recebidos pelas jovens que, ajoelhadas ao chão, disseram:
— Não somos monstros. Somos mulheres do Reino do Liang Ocidental que, muitos anos atrás, foram raptadas por esse espírito maligno. O mestre de vocês está chorando em um dos aposentos ao fundo.
O Peregrino as olhou fixamente e confirmou que nenhuma delas possuía uma aura maligna. Correu, então, para o interior da caverna em busca do mestre.
— Quantos problemas causei a vocês! — exclamou o monge Tang, emocionado, ao reencontrá-los. — O que aconteceu com aquela mulher?
— Ela era, na verdade, um escorpião gigantesco — explicou Bajie. — Tivemos a sorte de receber um aviso da Bodhisattva Guanyin. Wukong subiu aos Céus em busca da Estrela de Orion e, com a ajuda dele, conseguimos derrotá-la. Eu a esmaguei antes de vir libertá-lo. Não há mais nada a temer.
O monge Tang não sabia como demonstrar tanta gratidão. Na caverna, encontraram um pouco de arroz e macarrão, que prepararam da melhor forma que sabiam. Uma vez recuperados, libertaram as jovens, que retornaram a seus lares cantando e chorando de alegria.
Antes de prosseguirem sua jornada rumo ao Oeste, os peregrinos destruíram por completo a antiga morada do monstro, reduzindo-a a cinzas. Assim, ao renunciar à forma e à beleza, cortaram os últimos laços que os prendiam ao mundo e, esvaziando o imenso mar dos desejos, adentraram a mente do Zen.
Ainda não se sabe quantos anos mais seriam necessários até que alcançassem a verdadeira perfeição da imortalidade. Quem quiser descobrir, deverá ouvir com atenção as revelações do próximo capítulo.
CAPITULO LVI EM BREVE ...
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Notas do Capítulo LV
- Liu Cuicui foi uma célebre cortesã da cidade de Hangzhou, durante a dinastia Sung do Sul;
- A Estrela de Orion, cujo nome é Maori Xingguan ( chinês :昴日星官; lit. "O Galo Solar de Cabeça Peluda") é uma das vinte e oito constelações ou moradas celestes conhecidas como hsiou.
- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa: