20 de setembro de 2024

A Jornada ao Oeste: Capítulo XXVI

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO XXVI:


SUN WUKONG BUSCA A CURA PARA A ÁRVORE NAS TRÊS ILHAS. GUANYIN REVIVE A ÁRVORE COM UM POUCO DE ORVALHO DOCE


"Em todos os assuntos da vida é preciso ter em mente a paciência. Costuma-se dizer que a violência é a única regra da existência. No entanto, é prudente pensar três vezes antes de agir e tentar arrancar da alma o orgulho e a ira. Como vem sendo afirmado há muito tempo, os homens respeitáveis são os mais pacíficos, e os mais sábios sempre estão pensando em fazer o bem (1). Esta é uma verdade que durará tanto quanto o tempo. O homem forte sempre encontrará alguém mais forte do que ele, que, por sua vez, acabará seus dias nas mãos de um terceiro."

Voltamos agora a falar sobre o Grande Imortal Zhenyuan, que agarrou a túnica do Peregrino e bradou, enfurecido:

— Eu conheço suas habilidades, e já ouvi falar da sua reputação. Não importa o quão  esperto e enganador você seja, nunca conseguirá escapar das minhas mãos. É possível que você alcance o Paraíso Ocidental e até mesmo se encontre com o Patriarca Budista, mas garanto que não vou deixá-lo em paz até que me dê uma nova árvore de ginseng. Então, pare de brincar com sua magia.

— Como você é mesquinho! — exclamou o Peregrino, rindo. — Para mim, não há dificuldade alguma em conseguir outra árvore. Se você tivesse dito isso antes, teríamos evitado todos esses problemas.

— Teríamos evitado? — replicou o Grande Imortal. — Acha que vou deixar você sair impune do que fez?

— Liberte meu mestre e prometo que lhe darei outra árvore. Que tal? — disse o Peregrino.

— Se você realmente tem o poder de fazer a árvore reviver — respondeu o Grande Imortal —, eu me inclinarei oito vezes seguidas diante de você e selarei um pacto de irmandade contigo.

— Relaxe! — disse o Peregrino. — Liberte meus irmãos e eu garanto que você terá uma nova árvore.

O Grande Imortal sabia que não havia como todos escaparem, e concordou com seus desejos, ordenando a libertação imediata de Sanzang, Bajie e do Monge Sha.

— Mestre — disse o Monge Sha ao Monge Tang — , me pergunto que tipo de truques nosso irmão está planejando desta vez.

— Que tipo de truques? — perguntando Bajie. — Isso é o que se chama de "tapar os olhos com um pedaço de lã". A árvore já está morta. Como ele vai fazê-la reviver? Ele está apenas lançando promessas vazias. Com o pretexto de ir buscar um remédio para curar a árvore, ele irá fugir e seguir viagem sozinho. Você acha que ele se importa conosco?

— Ele jamais ousaria nos abandonar — afirmou Sanzang. — Vamos perguntar-lhe para onde ele pretende ir em busca do remédio. 

Então chamou Wukong e perguntou: 

— Como você conseguiu enganar o Grande Imortal e fazer com que nos libertasse?

— Eu apenas disse a verdade — respondeu o Peregrino. — O que quer dizer com isso de que o enganei?

— Quer explicar onde você vai encontrar uma cura para a árvore? — replicou Sanzang.

— Segundo um velho provérbio — respondeu o Peregrino —, “todas as curas vêm dos mares”. Pretendo, portanto, ir até o Grande Oceano Oriental e percorrer de cabo a rabo as Três Ilhas e os Dez Ilhotas. Quero visitar todos os Imortais e os Sábios Anciãos e lhes pedirei que me ensinem algum método de revivificação para trazer a árvore de volta à vida.

— Quanto tempo você acha que ficará fora? — perguntou Sanzang.

— Apenas três dias — respondeu o Peregrino.

— Tudo bem — disse Sanzang. — Irei conceder-lhe três dias. Se você voltar dentro desse tempo, tudo ficará bem. Mas, se não cumprir sua palavra e se atrasar mais do que o combinado, recitarei o Sutra Antigo.

— Entendido — protestou o Peregrino. — Não precisa me lembrar disso toda vez.

A toda pressa, o Peregrino ajeitou sua túnica de pele de tigre e dirigiu-se em direção à porta. Lá, encontrou o Grande Imortal, a quem disse:

— Não se preocupe. Em breve estarei de volta. A única coisa que lhe peço é que cuide do meu mestre. Garanta que ele tenha três refeições e seis chás por dia. Se as roupas do meu mestre ficarem sujas ou amarrotadas, lave-as e engome-as. Não se preocupe com os custos. Acertaremos as contas quando eu voltar. Se, ao voltar, eu encontrar meu mestre pálido ou mais magro, farei buracos em todas as panelas que você tiver e nunca mais deixarei este lugar.

— Não se preocupe — disse o Grande Imortal, tentando acalmá-lo. — Vou garantir que ele não morra de fome.

O Rei dos Macacos deu um salto mortal em uma nuvem e, após deixar o Templo das Cinco Vilas, se dirigiu ao Grande Oceano Oriental. Viajando pelo ar na velocidade de um meteoro, não demorou a chegar à região imortal de Penglai. Ele desceu rapidamente da sua nuvem e lançou um olhar cuidadoso ao redor. Era, de fato, um lugar de beleza extraordinária, sobre o qual temos um poema que diz:

"Uma grande terra divina, o domínio dos sábios,
O Arquipélago de Penglai acalmam os ventos e as ondas.
Torres de jaspe esfriam os céus com suas sombras;
Arcos altos brilham refletidos flutuando no mar.
Névoas de cinco cores velam o céu jade-verde;
No alto, na tartaruga dourada, estrelas e lua brilham.
A Rainha do Oeste frequentemente visitava este lugar
Por causa dos Três Imortais com pêssegos como presente."


Antes que ele tivesse terminado de admirar este cenário divino, o Peregrino já estava entrando em Penglai. Enquanto caminhava, encontrou três anciãos que jogavam xadrez à sombra de alguns pinheiros perto da entrada da Caverna da Nuvem Branca. Um deles, a Estrela da Longevidade, estava, na verdade, observando os outros dois, a Estrela das Bênçãos e a Estrela da Riqueza, jogarem. O Peregrino se aproximou e, levantando a voz, os saudou, dizendo:

— Recebam minha saudação, velhos irmãos!

Ao vê-lo, as Três Estrelas deixaram de lado o tabuleiro de xadrez e retribuíram sua saudação. Em seguida perguntam:

— Pode nos dizer o que o trouxe até aqui, Grande Sábio?

— Nada em particular — respondeu o Peregrino. — Apenas vim me divertir um pouco com vocês. 

— Ouvi dizer — comentou a Estrela da Longevidade — que você abandonou o taoísmo em favor do budismo e que se tornou o protetor do monge Tang em sua longa jornada ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras. Por sinal, imagino que vocês já tenham chegado às altas montanhas. Onde encontrou tempo para vir se divertir conosco?

— Para dizer verdade — reconheceu o Peregrino — este velho macaco encontrou um pequeno obstáculo e decidiu pedir a ajuda de vocês para resolvê-lo. No entanto, não sei se estão dispostos a me ajudar.

— Que tipo de obstáculo é esse? Em que lugar específico ele surgiu? — perguntou a Estrela das Bênçãos. — Diga-nos sem rodeios, para que possamos tomar uma decisão.

— Nossa jornada — explicou o Peregrino — foi interrompida ao passarmos pelo Templo das Cinco Vilas, localizado na Montanha da Longevidade.

— O Templo das Cinco Vilas é a morada do Grande Imortal Zhenyuan — disse um dos anciãos, muito surpreso. — Será que vocês comeram um de seus frutos de ginseng sem permissão?

— Sim — reconheceu o Peregrino, sorrindo. — Eu os roubei e comi. Quanto poderiam valer?

— Que macaco mais louco! — exclamou outro dos anciãos. — Você não percebe o que fez? Quem cheira um desses frutos pode chegar a alcançar trezentos e sessenta anos de vida, e quem o come pode viver mais de quarenta e sete mil. Por isso o nome da árvore que os produz é "Planta da Vida Duradoura do Cinábrio Revertido". Não é de se admirar que o domínio do Tao pelo Grande Imortal seja muito superior ao nosso. Com um tesouro desses, ele pode alcançar sem esforço a mesma idade dos Céus, enquanto nós somos obrigados a lutar todos os dias para fortalecer nossa essência espermática, dominar a respiração, fortalecer o espírito, harmonizar o tigre e o dragão e equilibrar os opostos que habitam dentro de nós. Somos obrigados a gastar muita energia e esforço para alcançar a imortalidade. Como pode questionar o seu valor? Aquela é a única raiz espiritual que existe em todo o mundo.

— Que raiz espiritual o quê! exclamou o Peregrino. — Eu mesmo a arranquei com minhas mãos!

— O que quer dizer com isso de "arranquei com minhas mãos"? — perguntou outro dos anciãos, visivelmente alarmado.

— Quando chegamos ao templo explicou o Peregrino — , o Grande Imortal não estava presente, então dois de seus jovens discípulos receberam meu mestre. Como sinal de amizade, ofereceram-lhe dois frutos de ginseng, mas ele não percebeu que se tratavam de frutos. Pensando que se tratavam de bebês que ainda não tinham completado três dias de vida, ele se recusou a comê-los. Então, os jovens os levaram embora e os comeram escondidos, sem se incomodar em nos oferecer. Então, eu roubei três frutos, um para cada um de nós, seguidores do monge Tang. No entanto, os jovens descobriram e nos insultaram, chamando-nos de ladrões e bandidos. Eu fiquei tão furioso que derrubei a árvore com um golpe. Assim que ela tocou o chão, os frutos desapareceram, os galhos se quebraram, as folhas caíram e as raízes ficaram expostas, secando imediatamente. Os jovens tentaram nos prender, mas consegui romper os cadeados e fugir. Na manhã seguinte, o Grande Imortal voltou para sua morada e, ao ver o que aconteceu, nos perseguiu. Quando nos alcançou, trocamos alguns insultos que logo se transformaram em uma luta. Em um piscar de olhos, ele abriu suas mangas o máximo que pôde e prendeu todos nós dentro delas. Embora tenhamos sido acorrentados, interrogados e depois chicoteados o dia todo, conseguimos escapar naquela mesma noite. No entanto, ao amanhecer, ele nos capturou novamente, sem usar arma alguma. Ele tinha apenas um espanta-moscas de cerdas de iaque para aparar nossos golpes, mas as nossas armas não conseguiam tocá-lo. Ele então nos capturou novamente, mas dessa vez prendeu meu mestre e meus dois irmãos mais novos em um tecido revestido com laca, enquanto eu fui colocado em um caldeirão de óleo fervente. Felizmente, consegui escapar, mas não sem antes deixar o caldeirão com mais buracos que uma peneira. Ao perceber que seria extremamente difícil me manter preso, ele decidiu ceder à razão. Consegui convencê-lo a libertar o monge Tang e meus irmãos, mas ele exigiu que eu lhe desse uma nova árvore. Assim, iniciamos uma trégua. Foi então que me lembrei do antigo provérbio que diz que "todas as curas vêm dos mares", e decidi vir visitá-los neste lugar encantador onde vocês têm a sorte de viver. Se tiverem algum remédio para reviver a árvore de ginseng, me dêem por favor, pois é extremamente difícil para mim ver meu mestre sofrendo por algo que não cometeu.

Ao ouvir isso, as Três Estrelas ficaram muito preocupadas e exclamaram:

— Como você é ignorante sobre as pessoas! Zhenyuan é um patriarca dos imortais terrestres, enquanto nós pertencemos ao grupo mais antigo dos imortais celestiais. Embora pode possa ocupar uma posição invejável nos céus, não se pode dizer que você seja um membro autêntico do clã da Grande Mônada. Como pensa em escapar da inevitável vingança do Grande Imortal? Se você tivesse matado um animal, um pássaro, um inseto ou um simples peixe, poderia revivê-lo com uma gota do meu elixir de milho. A árvore de ginseng, por outro lado, é a raiz de todas as plantas sagradas. Como vai curar suas feridas, se não há nada superior a ela? Simplesmente, não há cura para isso.

Quando o Peregrino ouviu que não havia cura possível para a árvore, franziu a testa e apertou os dentes, preocupado.

— O fato de não haver cura aqui não significa que não exista em outro lugar apressou-se a dizer a Estrela das Bênçãos. – Não precisa ficar tão abatido.

— Eu não me importaria de ir a outro lugar em busca desse remédio explicou o Peregrino. — Para mim, não há dificuldade alguma em chegar ao fim do oceano ou percorrer de ponta a ponta os Trinta e Seis Céus. O problema é que o monge Tang não é muito tolerante, e só me deu um prazo de três dias. Se eu não voltar com algo nesse tempo, ele começará a recitar seu feitiço, e minha cabeça será submetida a um tormento terrível.

— Isso é fantástico! – exclamaram as Três Estrelas, soltando uma gargalhada. — Se não fosse por esse feitiço, você com certeza já teria mergulhado o Céu em uma grande confusão outra vez.

— Não se preocupe, Grande Sábio aconselhou a Estrela da Longevidade. — Embora o Grande Imortal esteja acima de nós, ele nos conhece. Faz muito tempo que não o visitamos, mas faremos uma exceção por você e iremos visitá-lo agora mesmo. Dessa forma, faremos com que o monge Tang saiba da sua preocupação e pediremos que não recite o feitiço que tanto o atormenta. Afinal, três ou quatro dias são quase a mesma coisa. Ficaremos lá até que você volte com o remédio.

— Não sei como agradecê-los, velhos irmãos! exclamou o Peregrino, aliviado. — Agora, com vossa permissão, estou indo embora.

Assim, o Grande Sábio despediu-se deles e seguiu sua busca. As Estrelas, por sua vez, montaram em suas nuvens e seguiram direto para o Templo das Cinco Vilas. A multidão no templo parecia estar em grande agitação quando, de repente, todos os imortais levantaram a cabeça para o alto ao ouvir os gritos das garças, anunciando a chegada dos Três Anciãos. Uma luz auspiciosa se espalhou por todos os lados, enquanto o ar se enchia de um aroma penetrante. As nuvens nas quais viajavam os ilustres visitantes brilhavam intensamente, ofuscando a pureza das penas das garças. Os imortais flutuavam no ar, sustentados por uma densa névoa, que de alguma forma lembrava pétalas. Acima de suas cabeças, bandos de fênixes verdes e vermelhos voavam. De suas amplas mangas saía uma brisa aromatizada que rapidamente se espalhou por toda a terra. Uma alegria indescritível emanava de seus bastões, que, mais do que galhos, pareciam dragões suspensos no ar. Suas barbas eram tão longas que balançavam como se fossem leves medalhões de jade. Tudo neles denotava felicidade, juventude e total ausência de preocupações ou tristeza. Como poderia ser de outra forma, se sua força era a dos verdadeiros bem-aventurados? Em suas mãos, seguravam rosarios de estrelas, que preenchiam os palácios marinhos e contrastavam vívidamente com a rugosidade das abóboras e os valiosíssimos pergaminhos que carregavam enrolados na cintura. Sua idade era tão avançada que superava em muito as dez mil décadas. Assim eram os habitantes das Três Ilhas e das Dez Ilhotas. Frequentemente desciam à terra para oferecer seus favores aos mortais e multiplicar por cem a felicidade dos homens. Dessa forma, a felicidade e a riqueza floresciam por todo o mundo. Que destino maravilhoso o desses Três Anciãos, possuidores de uma bem-aventurança e uma vida sem fim!

Os três chegaram até o salão principal do templo e, instantaneamente, todo o ambiente foi invadido por uma calma e uma paz imperecíveis. Ao vê-los, um dos jovens imortais correu para informar ao seu mestre, dizendo:

— Mestre! Acabaram de chegar as Três Estrelas dos Mares do Sul.

Naquele momento, Zhenyuan estava conversando com o monge Tang e seus discípulos. Ao ouvir a notícia, encerrou a conversa e correu para o pátio para dar as boas-vindas aos visitantes ilustres. Quando Bajie viu a Estrela da Longevidade, agarrou a manga dele e exclamou, soltando uma gargalhada:

— Seu velho rechonchudo! Faz tanto tempo que não te vejo, e você ainda está tão elegante! Por que não trouxe nem um chapéu?

Em seguida, tirou o seu chapéu de monge e o colocou na cabeça da Estrela, enquanto batia palmas como uma criança e não parava de gritar entre gargalhadas sonoras:

— Fantástico! Caiu como uma luva. Como diz o provérbio, "não há nada melhor para aumentar a riqueza do que usar um chapéu".

A Estrela da Longevidade tirou o chapéu com um gesto brusco e respondeu:

— Seu carregador estúpido! Você não tem o mínimo de boas maneiras!

— Eu não sou nenhum carregador — defendeu-se Bajie —. Mas, por outro lado, vocês todos são uns fanfarrões!

— Você é de fato um carregador estúpido e não retiro uma palavra — afirmou a Estrela da Longevidade. — Como ousa nos chamar de fanfarrões?

— Claro que são — reafirmou Bajie, continuando a rir. — Quem, senão um fanfarrão, se chamaria de Aumentador da Idade, Aumentador da Felicidade e Aumentador da Riqueza?

Sanzang ordenou a Bajie que se afastasse, enquanto ele arrumava suas roupas da melhor maneira possível e saudava com respeito as Três Estrelas. Estes, por sua vez, antes de se acomodarem, se voltaram para o Grande Imortal e prestaram-lhe suas respeitosas homenagens. Assim que se sentaram, a Estrela da Riqueza disse:

— Devemos nos desculpar por termos deixado passar tanto tempo sem vir prestar nossos respeitos. Decidimos vir agora especialmente para vê-lo, pois soubemos que o Grande Sábio Sun causou alguns distúrbios por aqui.

— Ele também foi visitar Penglai? — perguntou o Grande Imortal.

— Sim — respondeu a Estrela da Longevidade. — Como ele destruiu sua árvore de cinábrio, ele veio a nós em busca de um remédio. Mas, ao descobrir que não tínhamos nenhum, foi embora imediatamente para procurá-lo outro lugar. Ele estava muito nervoso. Na verdade, ele temia que sua busca levasse mais de três dias, porque, segundo ele, se não retornasse nesse prazo, o monge Tang recitaria um feitiço que causaria uma terrível dor de cabeça. Outra razão para termos vindo hoje — acrescentou, voltando-se para Sanzang — é porque gostaríamos de pedir que você ampliasse o prazo.

— Pode contar com isso — replicou Sanzang imediatamente.

Enquanto conversavam, Bajie se aproximou e começou a importunar novamente a Estrela das Bençãos. Exigindo que lhe dessem algo para comer, começou a revistar a Estrela completamente, enfiando as mãos nas mangas, apalpando sua cintura e até levantando a barra de sua túnica.

— Você pode me dizer por que é tão mal-educado? — repreendeu-o Sanzang, sem conseguir conter a risada.

— Mal-educado eu? — protestou Bajie. — Eu apenas estou seguindo o provérbio que diz: "A cada volta que você dá, encontra as bênçãos do céu".

Apesar disso, Sanzang ordenou que ele se retirasse. Quando estava indo em direção à porta, Bajie de repente se virou e começou a olhar para a Estrela das Bençãos com um olhar de estranha ferocidade.

— Carregador estúpido! — exclamou a Estrela, irritada. — Você pode me explicar o que eu fiz para que ficasse tão bravo comigo?

— Eu não estou bravo com você — replicou Bajie. — Estou apenas seguindo o ditado que afirma: "Não tenha medo de voltar a cabeça e encarar as bênçãos de frente".

Ao sair, Bajie encontrou um jovem que segurava quatro colheres de chá em uma mão, enquanto tentava colocar outras tantas xícaras de chá em uma bandeja com a outra mão. Com um movimento brusco, Bajie pegou as colheres e voltou correndo para o salão principal. Usando uma pedra, começou a batê-la com força com as colheres, enquanto dançava como um louco ao redor dos convidados.

— Este monge está se comportando cada vez pior — exclamou o Grande Imortal, visivelmente irritado.

— Eu não estou me comportando mal — defendeu-se Bajie, sorrindo. — Isto é o que se chama de "celebrar os hóspedes da sorte".

Deixando-as as brincadeiras de Bajie de lado, voltamos agora a falar do Peregrino, que deixou a região de Penglai e logo chegou à Montanha Fangzhang. Era um lugar encantador, sobre o qual existe um poema que diz:

"A elevada Fangzhang, um verdadeiro reflexo do céu onde os imortais costumavam se reunir. Nela se ergue um palácio cujas torres púrpuras emitem três raios de luz potente que iluminam três caminhos. O aroma penetrante das flores que crescem ao seu redor chega até a névoa de cinco cores que os imortais usam em seus deslocamentos. Nos arcos de pérola do palácio, às vezes pousam fênixes dourados. Não há dúvida de que ali se esconde o néctar de jade (2). Os pêssegos rosados e as ameixas vermelhas recém-maduras anunciam que um leão acabou de se transformar em deus."

O Peregrino desceu das nuvens, mas seu estado de espírito o impediu de apreciar a beleza da paisagem que se estendia diante dele. À medida que avançava, sentiu o aroma embriagante da brisa e ouviu o canto estranho das garças negras. Pouco depois, viu ao longe um imortal, que irradiava dez mil raios multicoloridos que se espalhavam por todo o céu. Pareciam querer rivalizar com as névoas sagradas que flutuavam incessantemente no alto. Não havia ser com mais sorte do que aquele imortal, cuja idade era a mesma da montanha. No entanto, sua aparência era a de um jovem robusto e saudável. Não é à toa que ele era o guardião do elixir que tornava o próprio céu imortal. Da sua cintura pendia um selo tão antigo quanto o próprio sol. Muitas vezes havia trazido felicidade para a humanidade e salvado o mundo de inumeráveis desgraças. O Rei Wu o convidava frequentemente para seu palácio e ele nunca faltava ao Festival dos Pêssegos. Ele mesmo ensinou a vários monges a romper seus laços mundanos, servindo como luz e guia em seus esforços. Em mais de uma ocasião, atravessou os mares com o único propósito de desejar longa vida a um mortal. Por tudo isso, ele se encontrava frequentemente com Buda na Montanha do Espírito. Não é de se estranhar que ele possuísse o título de Supremo Senhor do Leste, o primeiro entre todos os imortais.

Surpreso com sua aparição inesperada, o Peregrino Sun aproximou-se dele e o saudou respeitosamente, dizendo:

— Apresento-lhe os meus respeitos com as mãos erguidas, Senhor do Leste. 

— Perdoe-me por não ter vindo recebê-lo, Grande Sábio — disse o Patriarca, após retribuir o cumprimento. — Honre-me com sua presença em meu palácio para tomar um pouco de chá — e, tomando o Peregrino pela mão, o conduziu para o interior de sua mansão.

Era verdadeiramente um lugar sagrado, onde podiam ser apreciados inúmeros arcos adornados com conchas de ostra, lagos de jaspe e terraços de jade. Assim que se acomodaram, surgiu de trás de um biombo de pedra um jovem vestido de maneira muito peculiar. Usava uma túnica taoísta de cores chamativas, um cinto de seda pura, um chapéu do mesmo material e sandálias de palha para percorrer as moradas das fadas. Por muito tempo havia refinado sua personalidade, até conseguir eliminar toda impureza (3). Dessa forma, alcançou grandes méritos e poderia agir como bem entendia. Que outra coisa se poderia esperar de quem havia descoberto a verdadeira origem do espírito, do sêmen e da respiração? Gozou da plena confiança de seu mestre e percorreu longas distâncias no caminho do conhecimento. De bom grado renunciou à fama, feliz por possuir uma vida que não era afetada pela passagem do tempo, o correr dos meses, a eterna alternância das estações ou a dança implacável dos minutos. Percorrendo repetidamente as rampas em espiral que conduziam ao topo das torres, encontrou em três ocasiões pêssegos sagrados que caíram do céu. Esse imortal singular se chamava Dongfang Shuo (4) e, ao sair de seu esconderijo atrás das cortinas de jade, deixou para trás um aroma penetrante que preencheu toda a sala.

Quando o Peregrino o viu, soltou uma risada e exclamou:

— Então esse pequeno trapaceiro está aqui! Mas na mansão do Senhor do Leste não há pêssegos para você roubar.

— Velho ladrão! — respondeu Dongfang Shuo, curvando-se diante dele. — Pode me dizer por que você veio aqui? Na casa de meu senhor não há elixir para você roubar.

— Pare de tagarelar, Mangian, e traga-nos algo para beber — ordenou o Senhor do Leste.

Mangian era o nome religioso de Dongfang Shuo, e ele obedeceu sem protestar, trazendo em poucos segundos duas xícaras de chá. Após beber sua xícara, o Peregrino disse:

— Vim pedir um favor, o qual espero que possa me conceder.

— Diga-me qual é esse favor? — perguntou o Senhor do Leste. — Se estiver ao meu alcance, pode ter certeza de que o farei.

— Como suponho que saibam começou a explicar o Peregrino — , recentemente me comprometi a proteger o monge Tang em sua jornada para o Oeste. Ao passar pelo Templo das Cinco Vilas, situado na Montanha da Longevidade, onde fomos insultados por dois jovens. Me deixaram tão furioso que, com um golpe, derrubei a Árvore de Frutos de Ginseng. Isso levou à prisão do monge Tang, que está detido no lugar que acabei de mencionar. Sua libertação só acontecerá quando eu encontrar um remédio para recuperar a árvore derrubada. Tomei a liberdade de vir pedir a vocês, pois não tenho dúvidas de que devem ter algum remédio guardado por aí.

— Seu macaco! Você não se preocupa com nada, ao não ser causar problemas por onde passa — repreendeu-o o Senhor do Leste. — O mestre Zhenyuan do Templo das Cinco Vilas, também conhecido como Senhor, Sósia da Terra, não é nada menos que o patriarca dos imortais terrestres. Como vocês conseguiram ofendê-lo dessa forma? A Árvore do Fruto do Ginseng é, na verdade, a planta do cinábrio revertido. Já mereciam um grande castigo apenas por terem roubado um de seus frutos. Não consigo nem imaginar a pena que vocês merecem por tê-la arrancado. Acham que vão escapar impunes?

— Já conseguimos escapar duas vezes, meus companheiros e eu — respondeu o Peregrino. — No entanto, devo admitir que isso não nos ajudou muito, pois logo ele nos alcançou e nos colocou em uma de suas mangas, como se fôssemos meros lenços. Desde então estamos nessa situação complicada. Como não pude prevalecer, tive que prometer ao Grande Imortal que a árvore seria curada. É por isso que vim implorar a você.

— Eu tenho uma gota do Elixir da Grande Mónada do Cinábrio Revertido — confessou o Senhor do Leste. — É capaz de curar todos os seres do mundo, exceto as árvores, porque, como você sabe, estas são espíritos da terra e a madeira se origina da união do Céu e da Terra. Além disso, a Árvore do Fruto de Ginseng tem origem celestial e sua existência remonta ao momento da criação. Como eu poderia curá-la? Não tenho remédio para algo tão valioso. Para piorar as coisas, a Montanha da Longevidade está situada em uma região sagrada e o Templo das Cinco Vilas é uma das cavernas mais santas do Continente de Aparagodaniya.

— Se é verdade que vocês não têm o remédio que estou procurando — concluiu o Peregrino —, o melhor que posso fazer é me despedir.

O Senhor do Leste quis oferecer-lhe uma xícara de néctar de jade, mas o Peregrino recusou respeitosamente a oferta, dizendo:

— Desculpe-me, mas não posso ficar mais nenhum minuto. O assunto que tenho a tratar é urgente.

O Peregrino montou novamente na nuvem e dirigiu-se para a ilha de Yingzhou, um lugar paradisíaco sobre o qual temos um poema que diz:

"Entre neblinas de cor avermelhada se ergue, brilhante como o próprio sol, a árvore de pérolas (5). Apesar de sua inegável raridade, não é o único tesouro de Yingzhou. Os palácios e torres que preenchem a ilha chegam até o próprio céu, competindo em beleza com suas colinas verdes, suas águas azuis e seus brotos de fino coral. Lá abundam o néctar de jade, o aço vermelho (6) e a pedra indestrutível de ferro. Quando o sol começa a despontar acima das ondas, o galo de jade de cinco cores quebra o silêncio com seus cantos estridentes. Ao mesmo tempo, pode-se ver o fênix vermelho exalando seu alento escarlate. Em vão tentam os mortais fixar esse momento mágico em suas toscas pinturas. A primavera eterna está além das formas deste mundo."

Ao chegar em Yingzhou, o Grande Sábio viu ao lado dos penhascos avermelhados várias pessoas sentadas sob as árvores de pérolas. Todos tinham cabelo e barba imaculadamente brancos, embora, por serem imortais, tivessem uma aparência notavelmente juvenil. Estavam muito entretidos jogando xadrez, bebendo vinho, contando piadas e cantando músicas. Acima deles flutuavam nuvens sagradas, que emitiam ofuscantes raios de luz. Por toda parte, aspirava-se um aroma muito penetrante. Fênixes de todas as cores voavam na entrada da caverna, enquanto no alto da montanha dançavam garças de plumagem negra. Alguns imortais misturavam com o vinho pêssegos e raízes de lótus que lembravam, de alguma forma, o jade. Outros mastigavam pérolas mágicas e tâmaras de fogo capazes de prolongar indefinidamente a vida. Nenhum deles jamais respondia às chamadas imperiais, embora seus nomes figurassem nos registros do céu. Sua vida era tão despreocupada que não faziam outra coisa a não ser passear e se divertir. Nenhuma preocupação obscurecia seus dias. Sempre faziam o que lhes vinha à mente. O mais invejável, no entanto, era que os meses e anos nunca passavam por eles, e assim nunca envelheciam. Podiam se deslocar a qualquer lugar da Terra e sua liberdade era absoluta. Casais de macacos negros se aproximavam e, inclinando respeitosamente a cabeça, ofereciam-lhes dúzias de frutas. Os cervos brancos, totalmente submisso, se deitavam em pares ao seu lado com ramos de flores na boca.

Uma atmosfera tão paradisíaca foi de repente rompida pelo Peregrino, que perguntou, levantando a voz:

— Que tal se vocês deixarem eu me divertir um pouco com vocês?

Assim que os imortais o viram, levantaram-se de seus assentos e correram para recebê-lo. Sobre esse momento, temos um poema que diz:

"Depois de derrubar a árvore espiritual do fruto de ginseng, o Grande Sábio foi obrigado a visitar muitos deuses em busca de um remédio que a fizesse florescer novamente. Uma luz escarlate ofuscante emanava da caverna sagrada, quando os Nove Anciãos de Yingzhou correram para recebê-lo."

— Meus queridos amigos — exclamou o Peregrino, reconhecendo a todos —, não sabem quanto me alegra ver vocês tão felizes!

— Se o Grade Sábio tivesse perseverado na busca do bem e não tivesse se rebelado contra o Céu, agora estaria ainda mais feliz do que nós — retrucaram os Nove Anciãos. — De qualquer forma, nos alegra encontrá-lo tão bem. Ouvimos dizer que você voltou ao caminho da Verdade e que está indo para o Oeste em busca dos textos budistas. Onde encontrou tempo livre para vir até aqui nos fazer uma visita?

O Peregrino então contou o que havia acontecido, incluindo seu compromisso de encontrar um remédio capaz de restaurar a árvore. Desconcertados, os Nove Anciãos exclamaram:

— Como você pode ser tão irresponsável! Sempre se mete em confusões. O mais lamentável, de qualquer forma, é que nós também não dispomos do remédio que você está procurando.

— Se é assim — concluiu o Peregrino —, o melhor é que eu me despeça de vocês o mais rápido possível.

Os Nove Anciãos o convidaram a ficar e beber um pouco de néctar de jade e comer algumas raízes de lótus. O Peregrino se recusou a sentar, mas para não ser deselegante, aceitou o que lhe foi oferecido de pé e, abandonando rapidamente a ilha de Yingzhou, dirigiu-se ao Grande Oceano Oriental. 

Dado seus poderes, não demorou a avistar a Montanha Potalaka. Descendo da nuvem, o Peregrino dirigiu-se ao topo da montanha, onde encontrou a Bodhisattva Guanyin ensinando os guardiões celestes, as damas-dragão e Moksa no Bosque de Bambu Roxo. Sobre esse momento, temos um poema que afirma:

"A cidade da Senhora do Mar se assenta sobre um penhasco e é rodeada por um vento sagrado. Em seu interior, escondem-se incontáveis tesouros que ninguém jamais conseguiu ver. O mais valioso, no entanto, é um conjunto de sutras que falam do vazio de tudo o que existe. As Quatro Verdades (7) darão fruto a seu tempo e os Seis Caminhos (8) terminarão trazendo a liberdade. No bosque ao redor da mansão da deusa, as árvores estão sempre cobertas de flores e os frutos conservam eternamente sua fragrância primordial. Tal é a terra dos prazeres e da verdade."

A Bodhisattva imediatamente percebeu a chegada do Peregrino e pediu ao Grande Guardião da Montanha que saísse para recebê-lo. 

No limite da floresta, o guardião levantou a voz, dizendo:

— Posso saber para onde você vai, Sun Wukong?

— Maldito urso! — exclamou o Peregrino, erguendo a cabeça. — Quem lhe deu permissão para pronunciar esse nome? Você deveria ter um pouco mais de respeito comigo. Se eu não houvesse poupado você na Montanha do Vento Negro, a esta altura você não seria mais que um cadáver putrefato. Para a sua sorte, você tornou-se um fervoroso seguidor da Bodhisattva, o que lhe abriu as portas de uma vida virtuosa e lhe deu a oportunidade de habitar em uma montanha tão sagrada quanto esta. Não são todos que têm o privilégio de ouvir diariamente os ensinamentos sobre o dharma. Agora você possui uma inteligência iluminada pelo bem agir. Por que você se recusa, então, a me chamar de Venerável?

O Peregrino tinha razão. Se o Urso Negro ocupava agora o cargo de Grande Guardião da Montanha Potalaka, era graças a ele. A antiga besta não teve, portanto, outra alternativa senão sorrir e dizer:

— Para que remexer o passado? Como muito bem diziam os antigos, "o homem justo não precisa se lembrar de suas antigas culpas". Vamos nos ater ao presente e deixar o tempo perdido em paz. Se vim recebê-lo, foi porque a Bodhisattva me ordenou.

Ao ouvir isso, o Peregrino adotou uma atitude solene e seguiu o Grande Guardião para o interior do bosque. Não demoraram a chegar até onde a Bodhisattva estava. Wukong a saudou inclinando-se respeitosamente diante dela, mas Guanyin não quis saber de formalidades e o repreendeu, dizendo:

— Será que você nunca vai aprender? Por que voltou a deixar o monge Tang sozinho? Onde ele está agora?

— Na Montanha da Longevidade — respondeu o Peregrino —, localizada no continente de Aparagodaniya.

— Na Montanha da Longevidade? — repetiu a Bodhisattva. — Lá se encontra o Templo das Cinco Vilas, onde reside o Grande Imortal Zhenyuan. Vocês se encontraram com ele?

— Encontramos — respondeu o Peregrino, batendo a testa no chão. — Foi tudo minha culpa. Eu não sabia nada sobre esse imortal e cometi a imprudência de ofendê-lo arrancando sua árvore. Por isso ele se recusa a deixar meu mestre partir, mantendo-o como seu prisioneiro.

— Nunca se viu um macaco mais travesso! — repreendeu-o a Bodhisattva, que já estava a par de tudo o que aconteceu. — Será que você não consegue passar um único dia sem aprontar confusão? A Árvore do Fruto do Ginseng possuía uma natureza espiritual. Não é à toa que foi plantada pelo Céu e cuidada com especial carinho pela Terra. Sem contar que Zhenyuan e é o patriarca dos imortais terrestres. Até eu mesma me vejo às vezes obrigada a mostrar respeito por ele. Por que você teve que destruir sua árvore ?

— Eu não sabia que ela era tão valiosa — replicou o Peregrino, inclinando ainda mais a cabeça. — Quando chegamos ao templo, o Mestre Zhenyuan já havia partido e dois jovens imortais vieram nos receber. Foi Zhu Wuneng quem descobriu os frutos de ginseng e insistiu em provar um. Eu cuidei de roubar três, que distribuí generosamente entre meus irmãos. Quando os jovens descobriram, nos insultaram, até o ponto em que não aguentei mais e derrubei a árvore. No dia seguinte, quando o mestre soube do ocorrido, saiu em nossa perseguição. Não demorou a nos alcançar, nos varrendo como se fôssemos lixo e nos trancando no interior de sua manga. Não satisfeito com isso, nos cobriu de correntes e nos fez ser açoitados, interrogando-nos e torturando-nos durante um dia inteiro. Conseguimos escapar ao cair da noite, mas ele novamente nos alcançou e nos fez retornar ao seu templo. Isso se repetiu duas ou três vezes, até que nos convencemos de que era praticamente impossível escapar de suas garras e tive que prometer que, acontecesse o que acontecesse, eu curaria sua árvore. Fui obrigado, portanto, a percorrer as Três Ilhas em busca de um remédio apropriado, mas nenhum dos imortais pôde me ajudar. Por isso, vim aos seus domínios suplicar humildemente que tenha piedade de mim e me conceda o remédio que procuro. Se não o fizer, o monge Tang não poderá prosseguir sua viagem e jamais chegará às Terras do Oeste.

— Por que você não veio me ver antes, em vez de perder tempo saltando de ilha em ilha? — repreendeu a Bodhisattva. O tom de sua voz era de autêntica repreensão, mas o Peregrino ficou radiante de felicidade e pensou, esperançoso:

— Que sorte a minha! Isso quer dizer que a Bodhisattva conhece algum remédio — e se prostrou com o rosto no chão em sinal de súplica.

Isso fez com que a Bodhisattva se mostrasse mais compreensiva e dissesse em um tom mais calmo:

— O doce orvalho do meu vaso sagrado pode curar as árvores divinas e restaurar as raízes espirituais.

— Você já testou isso alguma vez? — perguntou o Peregrino.

— Sim — respondeu a Bodhisattva.

— Quando? — insistiu o Peregrino.

— Há alguns anos — explicou a Bodhisattva —, Lao-Tzu pegou meu galho de salgueiro e o colocou em sua estufa para refinar o elixir. Quando o mesmo já estava totalmente seco e queimado, ele me devolveu e eu o coloquei de volta no meu vaso. Após um dia e uma noite, ele estava tão verde como sempre e suas folhas pareciam não ter sofrido o menor dano.

— Que sorte a minha! — exclamou o Peregrino, aliviado. — Se um salgueiro carbonizado pôde ser revivido, o que há de tão difícil em restaurar uma árvore que foi derrubada?

A Bodhisattva então se voltou para seus discípulos e ordenou:

— Fiquem aqui cuidando do bosque. Voltarei em breve — e se elevou pelos ares com o vaso sagrado nas mãos.

À sua frente voava um papagaio branco, enquanto o Grande Sábio a seguia, respeitoso, um pouco mais atrás. Desse momento temos um poema testemunhal que afirma:

"Ninguém no mundo é capaz de descrever com exatidão sua santidade e pureza. É a deusa da misericórdia que dispersa nossos inimigos e nos cobre de bênçãos. Conheceu a santidade de Buda e agora possui um corpo sem mancha. Só ela pode acalmar o mar da paixão, pois a profundidade de seus princípios não conhece a sombra do egoísmo. O que há de estranho, então, em que seu doce orvalho possa devolver à vida a árvore sagrada?"

Voltaremos a falar agora sobre o Grande Imortal, que estava conversando amigavelmente com as Três Estrelas quando, ao levantar a vista, viu descer das nuvens o Grande Sábio Sun, que não parava de gritar, muito exaltado:

— A Bodhisattva está se aproximando. Venham imediatamente para recebê-la!

Ao mesmo tempo, as Três Estrelas, Zhenyuan, Sanzang e seus discípulos se levantaram e saíram apressadamente do salão principal. Antes de se inclinar perante as Três Estrelas, a Bodhisattva cumprimentou com inesperado respeito o Mestre Zheyuan. Após a cerimônia, ela tomou o assento de honra, enquanto o Peregrino conduzia o monge Tang, Zhu Bajie e o Monge Sha para se curvarem diante dela. Depois disso, os diversos imortais do templo também vieram cumprimentá-la.

— Não percam mais tempo com cerimônias inúteis — sugeriu o Peregrino ao Grande Imortal. — Preparem a mesa com o incenso, para que a Bodhisattva possa curar a sua árvore o mais rápido possível .

— Por que a Bodhisattva se deu ao trabalho de vir até aqui? — perguntou o Grande Imortal, inclinando-se mais uma vez perante a Bodhisattva. — O assunto que estamos tratando é trivial demais para que você preste sua valiosa atenção.

— O monge Tang é meu discípulo — explicou a Bodhisattva. — Se Sun Wukong ofendeu vocês, é razoável que eu repare o  erro dele e devolva sua preciosa árvore.

— Nesse caso, não há mais o que discutir — concluíram as Três Estrelas. — Vamos ao pomar o quanto antes e vejamos o que pode ser feito.

Sem mais delongas, o Grande Imortal ordenou que preparassem o incenso e varressem a parte posterior do pomar. A Bodhisattva liderava o grupo, seguida pelas Três Estrelas, Sanzang, seus discípulos e todos os imortais que habitavam aquele templo. Todos gritaram de dor ao ver a árvore caída, suas raízes expostas, suas folhas já secas e seus galhos quebrados.

— Estique a mão, Wukong — ordenou a Bodhisattva.

O Peregrino assim o fez. Ela então colocou o galho de salgueiro no vaso e, usando-o como pincel, untou a palma esquerda de Sun Wukoung com o orvalho que estava ali guardado. Imediatamente, o Peregrino adquiriu um poder vivificador. 

A Bodhisattva lhe ordenou que colocasse a mão na base da árvore morta e a mantivesse lá até que sentisse que uma fonte de água estava prestes a surgir da terra. O Peregrino fechou a mão e a colocou entre as raízes. Não demorou para que um pequeno riacho de água límpida surgisse da terra. Visivelmente satisfeita, a Bodhisattva anunciou:

— Esta água não deve ser tocada por nenhum instrumento que contenha uma única das Cinco Fases. Só pode ser recolhida com uma concha de jade. Coloquem a árvore em sua posição original e despejem sobre ela a água desta fonte sagrada. Isso será suficiente para que as raízes e a casca recuperem sua vitalidade perdida, as folhas cresçam novamente e os galhos se tornem tão verdes quanto antes. Nada impedirá que seus frutos se multipliquem como as flores na primavera.

— Tragam imediatamente uma concha de jade — pediu o Peregrino aos taoístas.

— Receio que aqui não temos nenhuma concha desse material — respondeu, entristecido, Zhenyuan. — Afinal, vivemos no campo e não dispomos das comodidades da corte. Serve uma xícara ou uma taça de jade?

— Claro que servem — respondeu a Bodhisattva. — Contanto que sejam feitas de jade e sejam capazes de recolher água, servirão. Tragam-nas até aqui.

Aliviado, o Grande Imortal pediu a seus discípulos que trouxessem trinta xícaras de chá e cinquenta taças de vinho, todas de jade, e as enchessem com a água que emanava da terra. Sem perder tempo, o Peregrino, Bajie e o Monge Sha colocaram a árvore em sua posição original e cobriram suas raízes com a areia ao redor. Eles mesmos se encarregaram de entregar uma a uma as taças à Bodhisattva, que, utilizando seu galho de salgueiro, foi despejando o conteúdo sobre a árvore seca, enquanto recitava um encantamento. 

Não demorou muito para que o verde voltasse a dominar todas as suas folhas e galhos. Nas partes mais altas, podia-se ver claramente a delicadeza de vinte e três frutos de ginseng. Após contá-los com cuidado, Brisa Límpida e Lua Brilhante exclamaram, surpresos:

— Quando descobrimos há alguns dias que faltavam alguns frutos, contamos exatamente vinte e dois frutos. Por que há um a mais hoje, após ela ter sido revivida?

— O tempo se encarregará de revelar a razão que vocês estão indagando — sentenciou o Peregrino. — De qualquer forma, se lhes servir de algo, digo que, embora tenha arrancado três frutos outro dia, um caiu no chão e desapareceu antes que eu pudesse pegá-lo. O deus local me explicou que foi absorvido pela terra. Bajie, no entanto, achava que eu o havia comido às escondidas e começou a duvidar da minha honestidade. Fico feliz que, finalmente, tudo tenha sido esclarecido.

— O que você acabou de dizer é verdade — confirmou a Bodhisattva. — As Cinco Fases se absorvem mutuamente. Por isso, eu ordenei anteriormente que nenhum instrumento contendo uma delas fosse utilizado.

Visivelmente satisfeito, o Grande Imortal ordenou que trouxessem o maço de ouro e arrancou com ele dez de seus preciosos frutos. Em seguida, pediu à Bodhisattva e aos Três Anciãos que retornassem ao salão principal, onde celebrou em sua honra um Festival de Frutos de Ginseng. Os imortais arrumaram as mesas e trouxeram as bandejas de cinábrio, enquanto a Bodhisattva ocupava o lugar de honra, as Três Estrelas se sentavam à sua esquerda, o monge Tang se colocava à sua direita, e o Mestre Zhenyuan, como anfitrião, ocupava uma posição de deferente respeito. Sobre esse momento brilhante, temos um poema que diz:

"Os frutos de ginseng amadurecem a cada nove mil anos na mansão de um respeitável imortal que se ergue na inacessível Montanha da Longevidade. Que pena sentiram todos os seus moradores, quando suas raízes ficaram expostas e suas folhas e galhos se secaram sem remédio! Felizmente, foram regados pelo doce orvalho da deusa e os frutos sagrados voltaram a mostrar sua vibrante exuberância. As Três Estrelas puderam, finalmente, prová-los e os quatro monges recuperaram sua liberdade perdida. Todos saborearam os frutos de ginseng e, assim, se tornaram imortais que nunca envelhecem."

A Bodhisattva e as Três Estrelas comeram um fruto; o monge Tang, finalmente convencido de que se tratava de um simples fruto, comeu outro, assim como seus três discípulos. Para não deixar seus convidados sozinhos, Zhenyuan também se serviu de um fruto, e o último foi repartido entre todos os seus seguidores. 

O Peregrino agradeceu à Bodhisattva e às Três Estrelas por tudo o que haviam feito por ele. Sorrindo, as divindades se despediram de todos os presentes e retornaram, respectivamente, à Montanha Potalaka e à Ilha de Penglai. Quando partiram, Zhenyuan ordenou que servisse um banquete vegetariano, selando ao final do mesmo um pacto de irmandade com o Peregrino. Como diz o provérbio, "para conhecer bem uma pessoa é preciso ter lutado antes com ela". Dessa forma, budistas e taoístas se tornaram parte da mesma família. A alegria se refletia em todos os rostos e mestre e discípulos passaram a noite em claro. Todos haviam tido a enorme sorte de provar o fruto do cinábrio revertido, preparando-se assim para enfrentar as grandes provas que ainda deveriam passar.

Não sabemos como eles se despedirão no dia seguinte. Quem desejar saber terá que ouvir com atenção as explicações que serão oferecidas no próximo capítulo.


CAPITULO XXVII EM BREVE ...

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Notas do Capítulo XXVI

  1. Referência à obra  Analectos de Confúcio;
  2. Segundo o Shan Hai Jing, certas montanhas emanam um néctar que possui a propriedade de tornar imortal o homem que tomar uma única gota dele;
  3. Claríssima alusão aos processos da alquimia interna, assim como uma amostra do modo pomposo com que os taoístas costumavam se descrever;
  4. Dongfang Shuo foi um famoso ladrão que, segundo a lenda, teve a ousadia de roubar vários pêssegos imortais do jardim de Wangmu Niangniang. Suas façanhas foram muito populares na China durante a Idade Média e foram uma constante fonte de inspiração para as representações teatrais;
  5. A árvore das pérolas, cujo tronco era semelhante ao dos cedros, embora suas folhas fossem pérolas verdadeiras, crescia no país dos imortais;
  6. O aço vermelho provinha do monte Kun-Wu, na parte ocidental da China. As espadas feitas com ele eram tão extraordinárias que, segundo a lenda, penetravam no jade com a mesma facilidade que no barro;
  7. A expressão pode se referir tanto às quatro classes de homens sagrados (sravakas, pratyekabuddhas, bodhisattvas e budas), quanto aos quatro temas centrais do budismo (o sofrimento, suas causas, sua finalidade e sua eliminação).
  8. Os "seis estágios" fazem referência às diferentes possibilidades de reencarnação: como seres infernais, como espíritos famintos, como espíritos malignos, como animais, como humanos e como seres celestes.



  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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Ruby