۞ ADM Sleipnir
Arte de Moyi Zhang |
Enquanto partia em perseguição aos seis comandantes invencíveis, o Peregrino refletia:
— Esses demônios receberam a missão de trazer esse Venerável Grande Rei até aqui, para que ele possa provar a carne do meu mestre. Contudo, esse rei não é outro senão o Rei Touro Demônio, com quem compartilhei uma profunda amizade no passado. Preciso admitir que, naquela época, nossas visões de mundo eram muito parecidas, o que facilitava nossa convivência. Agora, no entanto, eu me tornei um buscador da Verdade, enquanto ele permanece sendo um monstro sem escrúpulos. Não acho que conseguiremos nos entender como antes. Ainda assim, tenho uma última cartada para tentar salvar meu mestre. Ainda me lembro bem das feições do Rei Touro Demônio, e acredito que não será difícil enganar esses comandantes convencidos.
Mal terminou de pensar nisso, o Peregrino deu ao seu voo uma velocidade vertiginosa, deixando os mensageiros dez quilômetros para trás. Sem hesitar, sacudiu o corpo e, de imediato, transformou-se em uma cópia exata do Rei Touro Demônio. Não satisfeito, arrancou alguns fios de cabelo que, com uma simples infusão de fôlego mágico, se transformaram em um grupo de demônios. Com falcões, cães de caça, arcos e flechas, pareciam um verdadeiro bando de caçadores.
— Venerável Grande Rei! Que sorte poder prestar-lhe nossas reverências!
Névoa na Nuvem, Nuvem na Névoa, Veloz como Fogo, Ágil como o Vento, com seus olhos mortais, não o reconheceram. Como os outros, se prostraram de imediato, batendo a cabeça no chão enquanto diziam:
— Somos vossos humildes servos, grande senhor, a serviço do Rei Menino Sábio da Caverna da Nuvem de Fogo. Fomos encarregados de convidá-lo a provar um pedaço da carne do monge Tang, para que seus dias se tornem eternos e sua idade seja como a do céu.
— Por favor, levantem-se — disse o Peregrino, fingindo um júbilo contagiante. — Aceito com prazer o convite de vocês. No entanto, como podem ver, estou em meio a uma caçada. Se não for um incômodo, gostaria que me acompanhassem até o meu palácio para que eu possa trocar de roupa.
— Sugerimos que não faça isso — responderam eles, intensificando as demonstrações de respeito. — A distância entre este local e seu palácio é grande, e é provável que nosso senhor fique irritado conosco por termos demorado tanto. Seria melhor que nos acompanhasse assim mesmo.
— Como vocês são cautelosos, não é mesmo? — respondeu o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Está bem. Sigam na frente, e eu os seguirei.
Eles obedeceram e, em pouco tempo, estavam de volta à caverna. Veloz como Fogo, Ágil como o Vento se adiantaram alguns metros para anunciar ao senhor deles:
— O Venerável Grande Rei acaba de chegar!
— Que eficiência a de vocês! — exclamou o monstro, encantado. — Jamais imaginei que poderiam voltar tão rápido.
Ele ordenou aos seus capitães que reunissem a tropa e exibissem bandeiras e estandartes para dar as boas-vindas.
Os demônios cumpriram as ordens em um piscar de olhos, enquanto tambores ressoavam estrondosamente. O Peregrino recuperou os pelos que haviam se transformado em falcões e cães e, com três passos largos, entrou na caverna de maneira rápida, mas solene. Assim que se acomodou, sentando-se em posição voltada para o sul, o Menino Vermelho atirou-se a seus pés, dizendo:
— Receba, grande senhor, minha mais fervorosa expressão de submissão.
— Meu filho não precisa de formalidades como essa — respondeu o Peregrino. — Levante-se imediatamente e sente-se ao meu lado.
O monstro, no entanto, insistiu e só obedeceu o pedido de seu suposto pai após bater a testa no chão quatro vezes seguidas.
— Por que me chamou aqui? — perguntou então o Peregrino.
— Minhas qualidades, certamente, não são muitas — disse o monstro, inclinando a cabeça com respeito. — No entanto, consegui capturar um monge do Grande Império Tang, que, como sabe, fica nas Terras do Leste. Eu estava ansioso para pôr as mãos nele, pois ouvi dizer que ele dedicou mais de dez reencarnações seguidas à prática da virtude. Isso tornou sua carne tão especial que quem a provar poderá alcançar uma longevidade como a dos imortais de Penglai ou Ying-Zhou. Foi exatamente por isso que o chamei. Não seria certo guardar um tesouro desses só para mim, sendo o senhor meu pai e eu lhe devendo tanto. É meu desejo que o senhor também tenha a chance de prolongar sua vida indefinidamente.
— Pode me dar mais detalhes sobre esse monge Tang? — perguntou o Peregrino, começando a suar ao ouvir aquilo.
— Pelo que consegui descobrir, ele está a caminho do Paraíso Ocidental em busca das escrituras de Buda.
— Não seria, por acaso, o mestre do Peregrino Sun? — perguntou o Peregrino.
— É ele mesmo — confirmou o monstro.
— Nesse caso, é melhor que não mexa com ele — aconselhou o Peregrino, balançando as mãos e a cabeça. — Você não tem ideia do poder desse homem. Espero que não tenha enfrentado ele, porque, além de suas habilidades extraordinárias em artes marciais, ele domina profundamente a dificílima ciência das metamorfoses. Para você ter uma ideia, quando ele causou um grande tumulto no Palácio Celestial, o Imperador de Jade enviou contra ele mais de dez mil guerreiros celestiais, e nem mesmo eles conseguiram capturá-lo, apesar de cercarem sua cabeça com redes cósmicas. Não entendo como teve a ideia de tentar devorar o mestre dele. Libere-o imediatamente e esqueça esse macaco para sempre. Se ele descobrir que devoramos o mestre dele, pode ter certeza de que virá atrás de nós com aquele bastão de ferro com extremidades de ouro que ele empunha com orgulho, capaz de derrubar montanhas como se fossem ervas frágeis. Onde pensa que conseguirá se esconder? Já pensou que isso pode me deixar sem ninguém para me ajudar quando a velhice chegar e eu não puder mais me defender sozinho?
— O que está dizendo? — respondeu o monstro, surpreso. — Parece que está exagerando os poderes dele e diminuindo descaradamente os meus. Quando o Peregrino Sun e seus dois irmãos decidiram cruzar meus domínios, foram tão tolos que subestimaram meus poderes de metamorfose e permitiram que eu capturasse o mestre deles. Preciso admitir que eles se saíram muito bem ao descobrirem a localização desta caverna, mas cometeram o erro de fingirem ser parentes meus. Isso me fez perder a paciência, e enfrentei o Peregrino sem ver nele nenhuma das virtudes extraordinárias de que você fala. Zhu Bajie cometeu o erro de unir forças com o irmão mais velho, mas ambos foram derrotados quando decidi usar o fogo de Samadhi. Ao testemunharem o poder destrutivo das chamas, ficaram tão apavorados que pediram ajuda aos Quatro Reis Dragões. Mas, claro, a água da chuva não conseguiu apagar o meu verdadeiro Fogo de Samadhi. O Peregrino Sun sofreu queimaduras graves que quase o levaram a morte. Incapaz de seguir viagem nas condições em que estava, pediu a Zhu Bajie que fosse até os Mares do Sul buscar a ajuda da Bodhisattva Guanyin. Quando soube dos planos deles, me transformei em uma cópia exata da Bodhisattva e enganei aquele idiota, trazendo-o prisioneiro para esta caverna. Agora ele está pendurado em uma viga, esperando para ser devorado pelos meus súditos como aperitivo. Esta manhã, o Peregrino voltou, mas está tão fraco que, ao ouvir minhas ordens para que fosse capturado, fugiu como um covarde. Isso me encorajou a convidá-lo a provar a carne desse monge. Tenho esperança de que isso prolongue seus dias indefinidamente, tornando a velhice e a morte impotentes contra você.
— Sentimentos tão generosos me enchem de profundo orgulho! — exclamou o Peregrino, impaciente com o que acabara de ouvir. — No entanto, peço que reflita. Você só tem o fogo de Samadhi para enfrentar aquele Peregrino. Ele, por outro lado, é um mestre na arte das metamorfoses. Não direi mais nada além do fato de que ele domina setenta e duas transformações.
— É possível que ele consiga se transformar no que quiser — comentou o monstro. — Mas eu não sou nenhum tolo e sou capaz de reconhecê-lo assim que ele aparecer por essa porta.
— Tudo bem, isso funciona se ele decidir se transformar em algo grande — admitiu o Peregrino. — Mas o que você faria se ele se transformasse em um inseto minúsculo, por exemplo?
— Que nem tente! — bradou o monstro. — Todas as minhas portas estão muito bem protegidas. Você mesmo viu isso. Em cada uma delas há cinco ou seis demônios. Como ele vai conseguir entrar?
— Parece que você não entende nada sobre metamorfoses — criticou o Peregrino. — Aquele macaco pode se transformar em uma mosca, um mosquito, uma pulga, uma abelha, uma borboleta, um grilo ou qualquer criatura que desejar. E mais: ele até tem o poder de se passar por mim. Como você pretende desmascará-lo se ele decidir fazer algo assim?
— Não se preocupe — respondeu o monstro. — Para isso, ele precisaria ter rins de aço e um coração de bronze. E posso garantir que ninguém é tão corajoso a ponto de cometer uma loucura dessas.
— De tudo o que me disse agora, meu filho— respondeu o Peregrino —, concluo que você confia apenas em si mesmo para derrotar aquele macaco. Na verdade, essa certeza é o que o levou a me convidar para provar a carne desse monge Tang. No entanto, há um pequeno problema: eu não posso comer carne.
— Por quê? — exclamou o monstro, surpreso.
— Muito simples — explicou o Peregrino. — Ultimamente, não tenho me sentido muito bem, e sua mãe sugeriu que eu fizesse algumas boas ações. Pensando bem, não há muito o que eu possa fazer na minha idade, além de seguir uma rigorosa dieta vegetariana.
— É algo permanente ou dura apenas um mês? — perguntou o monstro.
— Nem uma coisa, nem outra — respondeu o Peregrino. — Sigo essa dieta durante quatro dias por mês, e ela é chamada de "dieta vegetariana do trovão".
— E quais são esses quatro dias, exatamente? — perguntou novamente o monstro.
— O sexto dia de cada mês — explicou o Peregrino — e também os dias que correspondem ao tronco "sin" na representação sexagesimal (1). Hoje, por acaso, é um desses dias. Além disso, em dias como este, não posso aceitar nenhum tipo de convite. Acho melhor aguardarmos até amanhã. Eu mesmo cuidarei de preparar o monge Tang e colocá-lo na panela.
— No caminho para sua mansão — responderam eles.
— Eu disse para voltarem rápido, mas não tanto a ponto de não chegarem a entrar no palácio dele — repreendeu o monstro. — Foi isso que fizeram, não foi?
— Sim, foi — confirmaram eles.
— Isso explica tudo! — exclamou o monstro, preocupado. — Fomos enganados com uma facilidade impressionante. Aquele ali dentro não é o Velho Rei!
— Não diga isso nem de brincadeira, senhor — aconselharam os comandantes. — Conhecemos bem seu pai.
— Os traços e gestos são, de fato, os dele — explicou o monstro. — Mas a maneira de falar é totalmente diferente. Receio que caímos em um terrível engano. Avisem os outros e alertem-nos sobre o grave perigo que corremos. Todos devem ficar em guarda. Os espadachins devem desembainhar suas espadas, os lanceiros devem afiar suas lanças, e os que forem mestres no uso de porretes e cordas, estejam prontos para o combate. Vou fazer algumas perguntas a ele para ver como responde. Se, como afirma, for o verdadeiro rei, não me importo de esperar um mês para provar a carne do monge Tang. Mas, se as respostas estiverem erradas, darei um grito, e todos vocês atacarão, entendido?
Os pequenos demônios inclinaram a cabeça em concordância e retornaram aos seus postos. O monstro então se aproximou novamente do Peregrino, que lhe disse:
— Não há necessidade de se ajoelhar de novo. Por que ser tão cerimonioso comigo? Se tem algo a dizer, fale com confiança.
Apesar do conselho, o monstro se prostrou ao chão e declarou:
— Mandei chamá-lo por duas razões: a primeira, para convidá-lo a provar a carne do monge Tang; e a segunda, para lhe fazer uma pergunta, que não tenho dúvida de que terá a gentileza de responder. Há algum tempo, decidi tirar um descanso e fui até o Nono Céu. Lá, encontrei o mestre taoísta Zhang Daoling (2).
— O preceptor celeste? — interrompeu o Peregrino.
— O próprio — confirmou o monstro.
— O que ele disse? — perguntou o Peregrino.
— Ao ver como meu rosto era bem formado e notar a perfeição do meu corpo — respondeu o monstro —, ele me perguntou sobre a hora, o dia, o mês e o ano do meu nascimento. Envergonhado, tive de admitir que não sabia, o que lamento profundamente, pois o patriarca é um verdadeiro mestre na arte da adivinhação. Ele baseia seus cálculos na posição dos cinco planetas, e suas previsões são praticamente infalíveis. Por isso, estou muito interessado nelas e tomei a liberdade de chamá-lo, para que me forneça as informações de que preciso. Assim, da próxima vez que o encontrar, ele não terá nenhuma dificuldade em prever o meu futuro.
— Que monstro astuto! — pensou o Peregrino. — Desde que aceitei a Verdade budista e me comprometi a proteger o monge Tang, já me deparei com todo tipo de criaturas e espíritos, mas nenhum era tão astuto quanto este. Se ele me perguntasse qualquer outra coisa, eu poderia inventar uma resposta sem hesitar. Mas me perguntar sobre a hora, o dia e o mês de seu nascimento? Como vou saber algo assim?
O macaco, no entanto, era um ser de vastos recursos e, sem deixar transparecer a inquietação que o dominava, sorriu de maneira paternal e disse:
— Levante-se, por favor. Como acabei de confessar, sinto-me cada vez mais velho, e há muitas coisas que já não consigo lembrar. Entre elas, lamento dizer, está a data do seu nascimento. Os velhos são assim. Se não for um problema, perguntarei isso à sua mãe quando ela voltar para casa amanhã.
— Que mentiroso descarado! — pensou o monstro. — Meu verdadeiro pai nunca deixou de se gabar dos detalhes do meu nascimento (3), pois sempre disse que meu futuro seria tão brilhante quanto o céu. Não há como ele ter esquecido algo assim! Só pode ser um impostor!
Com um grito estrondoso, o monstro deu início a um ataque. Imediatamente, incontáveis demônios avançaram contra o Peregrino, armados com porretes, espadas e lanças.
Felizmente, o Grande Sábio conseguiu desviar dos golpes a tempo, rebatendo o ataque inesperado com seu invencível bastão de ferro com extremidades de ouro.
— Que falta de piedade! — exclamou o Peregrino, retomando sua forma habitual. — Onde já se viu um filho atacar seu próprio pai dessa maneira?
Envergonhado, o monstro não teve coragem de levantar os olhos do chão. O Peregrino aproveitou a oportunidade para transformar-se em um raio de luz e fugir rapidamente da caverna.
— O Peregrino Sun está escapando! — gritaram os demônios, alarmados.
— Não importa. Deixem-no ir. Tenho de admitir que desta vez ele zombou de mim. Fechem as portas imediatamente e preparem o monge Tang para ser cozido.
O Peregrino se afastou da caverna e correu até o riacho, rindo como um louco. Ao ouvir a risada, o Monge Sha veio ao seu encontro e perguntou:
— Você esteve fora por mais de meio dia. O que aconteceu para voltar rindo desse jeito? Conseguiu libertar o mestre?
— Ainda não — respondeu o Peregrino —, mas consegui vencer uma batalha.
— O que quer dizer com isso? — perguntou novamente o Monge Sha.
— Aquele monstro — explicou o Peregrino, rindo sem parar — tomou a forma da Bodhisattva Guanyin e conseguiu enganar Zhu Bajie, que agora está preso dentro de um saco de couro pendurado em uma viga. Isso me fez perceber que eu precisava elaborar um plano igualmente engenhoso. Enquanto estava concentrado pensando nisso, ouvi o monstro ordenar que seis de seus comandantes fossem até ao palácio do antigo rei para convidá-lo a experimentar um pouco da carne do monge Tang. Logo percebi que esse tal rei só podia ser meu velho amigo, o Rei Touro Demônio. Assim, assumi a forma dele e enganei os mensageiros sem nenhuma dificuldade. Disfarçado, o monstro abriu as portas de sua caverna para mim e me colocou no lugar de honra, enquanto me prestava reverências. Você não faz ideia da alegria que isso me deu. Consegue imaginar o monstro ajoelhado diante de mim? Foi uma vitória completa, e é por isso que disse que acabei de ganhar uma batalha.
— Tudo isso me parece muito bom — admitiu o Monge Sha —, mas temo que, em vez de facilitar as coisas, isso torne ainda mais difícil libertar nosso mestre. Para ser sincero, estou cada vez mais preocupado com a vida dele.
— Não se preocupe — disse o Peregrino, tentando tranquilizá-lo. — Irei imediatamente pedir ajuda à Bodhisattva.
— Você não pode fazer uma viagem tão longa — protestou o Monge Sha. — Seu corpo ainda está dolorido.
— Já não está mais — respondeu o Peregrino com um sorriso. — Como dizem os antigos: "Um momento de alegria revigora o espírito". Cuide do cavalo e da bagagem enquanto eu estiver fora.
— Vá e volte rápido — aconselhou o Monge Sha, apreensivo. — É bem possível que sua estratagema tenha irritado o monstro, levando-o a decidir acabar de uma vez com nosso mestre.
— Existe essa possibilidade — reconheceu o Peregrino. — mas fique tranquilo. Retornarei o mais rápido que puder.
Mal havia terminado de falar, o Monge Sha já não conseguia mais vê-lo, tamanha foi a velocidade com que o Peregrino se lançou pelos ares em direção aos Mares do Sul. Ele não havia voado por mais de meia hora quando avistou, ao longe, a Montanha Potalaka.
Em poucos instantes, já estava em terra firme, sendo recebido por um grupo de vinte e quatro devas, que lhe perguntaram:
— Para onde está indo, Grande Sábio?
— Vim falar com a Bodhisattva — respondeu ele, devolvendo o cumprimento com respeito.
— Por favor, aguarde um momento — disseram os devas. — Vamos anunciar sua chegada imediatamente.
O deva Hariti foi encarregado de ir até a Caverna do Som das Marés para informar sua senhora:
— Tenho a honra de anunciar que Sun Wukong acaba de chegar e solicita respeitosamente ser recebido por vossa presença.
A Bodhisattva ordenou que o deixassem entrar. Assim que o Peregrino se lançou aos seus pés, ela perguntou em tom de repreensão:
— Por que não está ao lado de seu mestre, a Cigarra Dourada, em sua jornada para o Ocidente em busca das escrituras sagradas? Por que veio aqui?
— Permita-me contar o que aconteceu — respondeu o Peregrino. — Nosso esforço para obter as escrituras nos levou até a Caverna da Nuvem de Fogo, junto ao Riacho do Pinheiro Seco, onde habita um monstro chamado Menino Vermelho, que prefere ser chamado de Rei Menino Sábio, e que foi responsável por sequestrar nosso mestre. Zhu Wuneng e eu tentamos libertá-lo, enfrentando o monstro na entrada de sua caverna, mas ele era mestre no uso do Fogo de Samadhi, e não fomos capazes de prevalecer contra ele. Por isso, voei até o Oceano Oriental e solicitei a ajuda dos Reis Dragões dos Quatro Mares, que prontamente aceitaram me ajudar. Contudo, a chuva que eles produziram não foi capaz de apagar as chamas do monstro, e sofri queimaduras tão graves que quase perdi a vida.
— Se este fogo era de fato o Fogo de Samadhi, e se esse monstro possui tantos poderes mágicos, por que foi procurar a ajuda dos Reis Dragões e não a minha?
— Eu estava prestes a fazer isso — justificou-se o Peregrino —, mas o fogo e a fumaça me deixaram em condições tão precárias que não consegui voar sobre uma nuvem. Por isso, deleguei a Wuneng e a tarefa de vir pedir sua ajuda.
— Wuneng não veio até aqui — comentou a Bodhisattva.
— De fato, não — reconheceu o Peregrino. — O monstro o impediu, assumindo a sua aparência e enganando-o, fazendo-o entrar em sua repugnante caverna. Agora, o pobre Wuneng está preso em um saco de couro, pendurado em uma viga, aguardando o momento de ser cozido a vapor.
— Como essa besta ousa adotar minha aparência! — bradou a Bodhisattva, muito irritada.
Ela ficou tão furiosa que lançou contra as ondas o jarro de porcelana que segurava nas mãos. Ao se estilhaçar, o jarro transformou-se em milhares de pérolas, que se perderam nas águas. O Peregrino ficou tão desconcertado que, de um salto, se ergueu. Todos os pelos do seu corpo se arrepiaram.
— Que temperamento essa Bodhisattva tem! — pensou, surpreso. — Eu deveria ter falado com mais cautela. Que pena ela ter destruído um jarro tão precioso por minha causa. Se soubesse que faria algo assim, teria pedido para que me o desse de presente. Não acredito que poderia encontrar um presente melhor em outro lugar.
O Peregrino mal havia terminado de pensar isso, quando o jarro surgiu repentinamente entre uma agitação de ondas gigantescas. Sobre ele estava uma estranha criatura, que o Peregrino observou com atenção, intrigado. Ela respondia pelo nome de Ajudante do Lodo, e era responsável por conferir força às águas. Embora tímida e pouco sociável, conhecia perfeitamente as leis do Céu e da Terra, assim como a natureza dos deuses e espíritos. Sua cabeça e cauda eram retráteis, e ela podia voar ao estender completamente as patas. Seu conhecimento do passado e do futuro era tão vasto que, quando o rei Wen desenhava os triagramas e Zheng Yuan (4) estabelecia os fundamentos da arte adivinatória, ela já dominava a ciência de Fu Xi (5).Sua maior alegria era brincar sobre as águas e divertir-se com as marés. A criatura usava uma armadura de fios de ouro, cujos desenhos lembravam o casco de uma tartaruga. Em sua túnica de um verde profundo, estavam bordados os Oito Trigramas e os Nove Palácios. Em vida, havia sido tão valente que conquistara o respeito dos Reis Dragões. Após a morte, tinha gravado na cabeça o nome de Buda. Essa extraordinária criatura não era outra senão a temível Tartaruga Negra, que ajudava os ventos a agitar as ondas.
A tartaruga se aproximou, carregando o jarro sobre as costas, até onde estava a Bodhisattva. Inclinou a cabeça vinte e quatro vezes seguidas, indicando com isso que havia feito tantos votos. O Peregrino sorriu, refletindo consigo mesmo:
— Então, essa tartaruga é a responsável pelo jarro! Se algum dia ele se perder, só ela será a culpada.
— Posso saber no que está pensando, Wukong? — perguntou a Bodhisattva.
— Em nada, em nada — respondeu o Peregrino apressado.
— Nesse caso — ordenou a Bodhisattva —, desça para pegar o jarro.
O Peregrino obedeceu sem questionar, mas, por mais que tentasse, não conseguiu mover o jarro. Era como se uma libélula tentasse derrubar um monte de pedras.
Desconcertado, ele voltou até a Bodhisattva e informou:
— Lamento, senhora, mas não consigo movê-lo.
— A única coisa que sabe fazer é causar problemas! — repreendeu a Bodhisattva. — Como pretende capturar monstros e derrotar bestas, se não consegue sequer erguer um simples jarro?
— Se me permite falar sem parecer presunçoso — respondeu o Peregrino —, direi que já fiz isso inúmeras vezes. Mas devo reconhecer que, com vosso jarro, não consigo. Parece que o castigo que aquele monstro me impôs reduziu bastante as minhas forças.
— Tudo isso tem uma explicação — disse a Bodhisattva. — Normalmente, este jarro é muito leve, mas, ao ser lançado nas águas, percorreu os Três Rios, os Cinco Lagos, os Oito Mares e os Quatro Grandes Oceanos, acumulando em seu interior todo o poder aquático desses corpos. É como se dentro dele tivesse se concentrado um oceano imenso que abarcasse todos os outros. Por mais forte que seja, não consegue carregar toda a água do mundo. Por isso, não conseguiu movê-lo.
— Não sabia disso, senhora — respondeu o Peregrino, unindo as mãos respeitosamente.
A Bodhisattva estendeu sua mão direita e, sem o menor esforço, pegou o jarro, passando-o em seguida para sua palma esquerda. A tartaruga balançou levemente a cabeça e se retirou lentamente para as águas.
— Então, essa é a tartaruga que cuida do vosso jarro! — exclamou o Peregrino, ainda impressionado.
A Bodhisattva não deu a menor atenção ao comentário. Ela apenas sentou-se novamente em sua lótus e disse:
— O doce orvalho contido no meu jarro é algo único, completamente diferente da chuva dos dragões. Ele tem o poder de apagar o Fogo de Samadhi desse monstro. Minha intenção era emprestá-lo a você, mas sei que não será capaz de carregá-lo sozinho. Por isso, considerei enviar a Donzela Dragão para acompanhá-lo. No entanto, teu coração está longe de ser bondoso, e tua fama de enganador é bem conhecida. Minha Donzela Dragão é extremamente bela, e o meu jarro é inestimável; se você roubasse qualquer um deles, eu perderia tempo demais tentando recuperá-los. Assim, se deseja levá-los, terá de deixar algo como garantia.
— Mas que macaco presunçoso! — repreendeu-o a Bodhisattva. — Não estou interessada em suas roupas, nem em seu bastão de ferro, e muito menos em sua coroa de ouro. O que eu quero é um desses três fios de cabelo com o poder de proteger a vida em sua nuca.
— Mas esses fios foram um presente seu — protestou o Peregrino. — Além disso, se eu arrancar um deles, pode ser que os outros se quebrem, e eles não poderão mais salvar minha vida.
— Macaco! — voltou a repreendê-lo a Bodhisattva. — Você é tão avarento que não está disposto a se desfazer de um único fio de cabelo. Com uma atitude assim, você não me deixa confortável em deixá-lo partir acompanhado por minha Donzela Dragão.
— Não existe no mundo uma pessoa mais desconfiada que você! — exclamou o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Lembre-se do ditado que diz: “Se não está disposto a fazer por um monge, faça-o ao menos por Buda.” Suplico de todo o coração que salve a vida de meu mestre.
Ao ouvir essas palavras, a Bodhisattva deixou seu trono de lótus e subiu a montanha, espalhando um delicado aroma por onde passava. Pensando no perigo que ameaçava o monge santo, decidiu libertá-lo pessoalmente das garras do monstro. Os Devas, encantados, prestaram-lhe reverência no pico de Potalaka.
— Vamos atravessar o oceano, Wukong — sugeriu a Bodhisattva.
— Pode ir na frente — respondeu o Peregrino com uma inesperada delicadeza.
— Não, você vai primeiro — replicou a Bodhisattva.
— Eu não ouso mostrar meus poderes diante da Bodhisattva — insistiu o Peregrino. — Além disso, se eu usar o meu salto nas nuvens, minhas roupas podem se levantar e revelar minhas intimidades, e temo que a Bodhisattva se ofenda com minha irreverência.
Ao ouvir essas palavras, a Bodhisattva pediu à Donzela Dragão, que pegasse uma pétala de flor lótus e a deixasse cair no mar. Voltou-se então para o Peregrino e disse:
— Suba nessa pétala de flor de lótus e eu o enviarei para o outro lado do oceano.
— Essa pétala é muito fina e leve — protestou o Peregrino. — Como ela irá suportar o meu peso? Assim que eu colocar o pé sobre ela, cairei na água de cabeça, e minha pele de tigre ficaria encharcada. Como poderei me proteger do frio sem ela?
— Suba nela e veja o que acontece! — exclamou a Bodhisattva.
O Peregrino não se atreveu, dessa vez, a desobedecê-la, e com um salto, foi parar justamente no centro da pétala. No início, ela parecia leve e pequena, mas, ao pousar nela, percebeu que a pétala era na verdade maior do que um pequeno barco. Satisfeito, o Peregrino disse:
— Bodhisattva, isso deve ser capaz de suportar meu peso.
— Então, por que não atravessa o oceano? — perguntou a Bodhisattva.
— Porque não tem um timão, um mastro e nem sequer um remo — respondeu o Peregrino. — Como posso me aventurar a cruzar o oceano assim?
— Você não precisa de nada disso para fazê-lo — replicou a Bodhisattva.
Ela soprou suavemente sobre a pétala de lótus, e esta começou a se afastar da costa. Repetiu o gesto, e logo o Peregrino atravessou o tempestuoso Oceano Austral. Assim que o Grande Sábio pisou em terra firme, soltou uma gargalhada e exclamou:
— Essa Bodhisattva tem poderes realmente incríveis. Consegue me levar de um lado para o outro sem o menor esforço.
Depois de ordenar aos devas que cuidassem do Palácio das Rochas e à Donzela Dragão que fechasse os portões da caverna, a Bodhisattva subiu numa nuvem e partiu rapidamente do pico de Potalaka. Ao chegar à parte de trás da montanha, gritou com todas as suas forças:
— Onde está você, Huei-An?
Huei-An era o nome religioso de Muzha, o segundo filho do Devaraja Li Jing. Ele era o discípulo preferido da Bodhisattva e, em gratidão pelos ensinamentos recebidos, jamais se separou dela. Sua fidelidade lhe rendeu o título de Guardião do Dharma.
Muzha juntou as mãos e inclinou-se respeitosamente diante da Bodhisattva, que lhe disse:
— Vá imediatamente às Regiões Superiores e peça emprestadas ao seu pai algumas espadas das constelações.
— Quantas devo trazer? — perguntou Muzha.
— Todas as que ele tiver — respondeu a Bodhisattva.
Muzha subiu numa nuvem e, após passar pelo Portão Sul dos Céus, dirigiu-se ao Palácio da Torre das Nuvens. Lá, lançou-se aos pés de seu pai, que lhe perguntou, surpreso:
— A que devo a honra da sua visita?
— Sun Wukong pediu ajuda à minha mestra para derrotar um monstro, e ela me enviou para pedir emprestadas as espadas das constelações ao senhor.
O Devaraja ordenou imediatamente a Nezha que trouxesse as trinta e seis espadas e as entregasse a Muzha.
— Cumprimente nossa mãe por mim — pediu Muzha ao irmão. — Estou muito ocupado no momento. Quando voltar com as espadas, irei pessoalmente prestar meus respeitos.
Os dois irmãos se despediram rapidamente, pois, assim que Muzha obteve as espadas, subiu novamente em uma nuvem e retornou aos Mares do Sul. A Bodhisattva agradeceu pela rapidez com que a tarefa foi cumprida, pegou as espadas e as lançou ao alto, recitando um feitiço. Surpreendentemente, as lâminas se transformaram em um lótus com mais de mil pétalas. A Bodhisattva sentou-se sobre ela, e o Peregrino, ao vê-la, pensou:
— Essa Bodhisattva é tão avarenta! Em seu lago crescem infinitos lótus de cinco cores, mas ela preferiu incomodar metade do céu para não ter que usar um deles. É, de fato, impressionante!
— Você pode me dizer o que está murmurando sozinho? — repreendeu a Bodhisattva. — Vamos, pare de falar bobagens e venha comigo.
Mal ela terminou de falar, os dois já estavam do outro lado do oceano. Embora rápido, o trajeto foi realizado de maneira impecável, com a Bodhisattva abrindo o caminho e Muzha fechando-o.
— Aquela montanha ali embaixo — disse o Grande Sábio Sun, do alto — é onde o monstro reside. Estimo que a porta de sua caverna esteja a aproximadamente quinhentos quilômetros daqui.
A Bodhisattva desceu de sua nuvem e recitou um feitiço que começava com a letra "OM". Num piscar de olhos, os deuses e espíritos que habitavam aquela região remota apareceram diante dela. Todos se prostraram no chão, tremendo de medo e sem ousar levantar os olhos.
— Não se assustem — tentou acalmá-los a Bodhisattva. — Vim para capturar o monstro que os escraviza, mas para isso é necessário que limpem completamente a área. Não deve restar nenhum ser vivo em um raio de trezentos quilômetros. É melhor que retirem as feras de suas tocas e as aves de seus ninhos, levando-as até o ponto mais alto desta cordilheira. Caso contrário, morrerão sem remédio. Portanto, apressem-se.
Os deuses se retiraram com a mesma rapidez com que haviam atendido ao chamado, retornando pouco depois para informar à Bodhisattva que suas ordens haviam sido cumpridas à risca.
— Nesse caso — disse a Bodhisattva —, podem voltar aos seus santuários. Já não preciso de sua ajuda.
Em seguida, ela virou o jarro de cabeça para baixo, e dele começou a jorrar uma corrente imensa de água. A força da torrente foi tamanha que submergiu muros altíssimos e cobriu o topo de várias montanhas. Era como se o mar tivesse transbordado de seu leito e os oceanos decidissem saltar sobre as cordilheiras. Logo, uma névoa escura tomou conta do céu, mergulhando tudo em uma escuridão total. A luz do sol tornou-se tão fria que apenas o verde das ondas conseguia refletir algum brilho. Todo o cenário parecia repleto de lótus dourados, enquanto a Bodhisattva manifestava seu imenso poder. Com o dharmakaya (6) em mãos, o local onde a Bodhisattva pousava os pés transformou-se em uma réplica de Potalaka. A semelhança com os Mares do Sul era tão marcante que, por toda parte, floresciam botões de udumbara, e a grama se cobria com a sombra das palmeiras. Cacatuas pousavam nos bambus, enquanto perdizes cantavam entre os pinheiros. Onde quer que o olhar se voltasse, via-se um mar repleto de lótus e ondas gigantes. O vento soprava com tanta força que as águas se erguiam, chegando a tocar o próprio Céu.
— Que extraordinária é a misericórdia desta Bodhisattva! — exclamou, maravilhado, o Grande Sábio. — Se eu tivesse esses poderes, teria despejado o jarro sobre a montanha sem pensar duas vezes. Com certeza, não perderia meu tempo me preocupando com as criaturas que ali habitam. Para que perder tempo com essas trivialidades?
— Estenda a mão, Wukong — ordenou a Bodhisattva.
O Peregrino prontamente arregaçou a manga do braço esquerdo e estendeu a mão. A Bodhisattva retirou do jarro um galho de salgueiro,e escreveu com orvalho em sua palma a palavra "enganoso", enquanto lhe dava uma nova ordem:
— Feche o punho e enfrente novamente aquele monstro. É necessário que você deixe ele vencer, e ao fugir, atraia-o até aqui . Eu mesma cuidarei de dar-lhe o destino que merece.
Sem hesitar, o Peregrino partiu rumo à entrada da caverna. Com a mão esquerda fechada em punho e empunhando o bastão de ferro na mão direita, ele começou a gritar como um louco:
— Abram imediatamente essa porta!
Os demônios que vigiavam a entrada correram assustados para informar ao seu senhor:
— O Peregrino Sun está lá fora novamente, exigindo que abramos a porta!
— Fechem-na bem e não se preocupem com ele — ordenou o monstro.
— Não seja assim, meu filho — continuou gritando o Peregrino. — Não é justo se recusar a abrir a porta para o seu pai, depois de tê-lo expulso da sua própria casa.
Sua insistência foi tamanha que os demônios, inquietos, voltaram correndo para o relatar ao seu senhor:
— O Peregrino Sun não para de insultá-lo.
— Não deem atenção a ele — sugeriu novamente o monstro.
Ao perceber que ninguém respondia aos seus gritos, o Peregrino perdeu a paciência. Ele levantou o seu bastão de ferro acima da cabeça e o deixou cair sobre a porta, quebrando-a em mil pedaços.
— O Peregrino Sun destruiu a porta!
A paciência do monstro havia chegado ao limite. Furioso, ele pegou sua lança de fogo e saiu ao encontro do Peregrino, gritando:
— Maldito macaco! Você nunca se cansa? Como ousa destruir a porta da minha mansão? Que tipo de punição merece por isso?
— Meu filho — respondeu o Peregrino —, você ousou expulsar seu velho pai de casa. Que tipo de punição você acha que merece?
O monstro desferiu um golpe violento com a lança, mirando o peito do Peregrino. No entanto, o Grande Sábio desviou habilmente com o seu bastão de ferro. Assim, iniciou-se uma feroz batalha, na qual o Peregrino parecia estar em desvantagem. Contudo, o monstro não parecia interessado em enfrentá-lo novamente. Quando parecia certo de sua vitória, interrompeu o ataque e declarou:
— Já perdi tempo demais com você. Preciso voltar a lavar o monge Tang.
— Vamos, não seja tão covarde! — gritou o Peregrino, irritado. — Não percebe que o céu está te observando? Vai desistir agora, em pleno combate?
Essas palavras enfureceram ainda mais o monstro. Com um grito aterrador, ele avançou novamente contra o Peregrino com a lança em punho. O Grande Sábio resistiu com firmeza, mas logo foi forçado a recuar mais uma vez.
— O que há com você, macaco? — bradou o monstro, com desprezo, ao vê-lo retroceder. — Não consegue aguentar sequer três golpes? Que tipo de lutador é você, que prefere fugir a me enfrentar de frente?
— Para ser sincero — confessou o Peregrino, com um olhar de desprezo —, não gosto nada dessas chamas que você costuma usar.
— Pode ficar tranquilo — respondeu o monstro. — Desta vez não irei usá-las.
— Nesse caso — concluiu o Peregrino —, é melhor que se afaste um pouco da porta da sua casa. Afinal, não é nada educado brigar bem em frente à própria morada.
O monstro, completamente alheio à astúcia do Peregrino, caiu na armadilha. Decidido, lançou-se na perseguição de Wukong, que corria desajeitado, arrastando o bastão de ferro como se estivesse esgotado. Porém, em um movimento sutil, o Peregrino abriu a mão esquerda, fazendo-se parecer uma isca irresistível para o monstro. A perseguição não poderia ser mais emocionante: um parecia um meteoro, enquanto o outro lembrava uma flecha no instante em que deixava o arco. Não demorou para que ambos avistassem a Bodhisattva Guanyin, serena em seu trono de lótus. Virando-se em direção ao monstro, Wukong gritou:
— Desista dessa perseguição, por favor, e me deixe ir! Reconheço que, mais uma vez, você me fez passar vergonha. Não percebe que sua obstinação nos trouxe até os Mares do Sul, onde reside a Bodhisattva Guanyin? Voltar atrás seria melhor para nós dois.
O monstro ignorou as palavras do Peregrino. Rangendo os dentes de raiva, acelerou ainda mais o passo, decidido a capturá-lo. Num instante, Wukong sacudiu levemente o corpo e desapareceu atrás da luz sagrada que envolvia a Bodhisattva.
— Você é a pessoa que o Peregrino Sun foi buscar?
A Bodhisattva permaneceu em silêncio, o que deu mais confiança ao monstro. Agitando a lança diante dela, ele repetiu, agora mais insolente:
— Perguntei se você é a pessoa que o Peregrino Sun foi buscar! Está me ouvindo ou não?
A Bodhisattva continuou sem dizer uma palavra. Isso irritou o monstro, que levantou a lança e desferiu um golpe direto contra seu coração. Mas, no exato momento em que a lâmina quase a atingiu, a Bodhisattva se transformou em um raio de luz e subiu aos céus.
O Peregrino subiu com ela e reclamou:
— Pode me dizer o que está fazendo? O monstro lhe fez uma pergunta e você fingiu que não ouviu! Está tentando me deixar ainda mais envergonhado? Por que você também está fugindo? Como pode abandonar seu trono de lótus tão facilmente?
— Pare de falar e me siga — respondeu a Bodhisattva, com calma. — Vamos observar o que esse monstro fará a seguir.
O Peregrino e Muzha lançaram seus olhares para baixo, observando o monstro que, soltando uma gargalhada, debochava dizendo:
— Que ingênuo é esse macaco! Quem ele pensa que sou? Enfrentou-me várias vezes seguidas, e, vendo que não conseguia me derrotar, correu para buscar ajuda de uma bodhisattva de terceira categoria, completamente inútil! Com um único golpe de minha lança, ela se desintegrou mais rápido do que a névoa sob o sol. O mais engraçado é que nem teve tempo de levar consigo o trono de lótus. Pois bem, agora ele é meu. Acho melhor tomá-lo para mim imediatamente!
Sem hesitar, o monstro subiu no lótus e se acomodou, dobrando as pernas e cruzando as mãos como faziam as bodhisattvas.
O Peregrino, observando a cena, exclamou:
— Fantástico! Essa lótus agora pertence a outra pessoa!
— O que você está dizendo, Wukong? — questionou a Bodhisattva, com uma sobrancelha arqueada.
— Que esss lótus agora pertence a ele — respondeu o Peregrino. — Não está vendo? Ele acabou de tomá-la para si. Você está enganada se pensa que ele irá devolvê-la.
— Ele fez exatamente o que eu esperava que fizesse — retrucou a Bodhisattva, confiante.
— Bem, de qualquer forma — continuou o Peregrino —, como ele tem um corpo menor que o seu, parece até que cabe melhor nesse trono do que você.
— Pare de dizer tolices e preste atenção no poder do meu dharma — ordenou a Bodhisattva, lançando-lhe um olhar firme.
Assim que terminou de falar, ela ergueu seu ramo de salgueiro, apontou-o para o monstro e bradou com autoridade:
— Retirem-se!
Instantaneamente, as folhas, pétalas e a aura luminosa que adornavam o trono desapareceram. Para o terror do monstro, ele percebeu que agora estava sentado sobre as pontas afiadas de nada menos que vinte e quatro espadas.
Sua reação de espanto foi rápida, mas antes que pudesse agir, a Bodhisattva já havia ordenado a Muzha:
— Pegue o bastão para destruir monstros e bata nas empunhaduras das espadas!
Muzha segurou o bastão com firmeza e se lançou do alto, caindo com precisão. Sem perder tempo, começou a desferir golpes tão intensos que pareciam destinados a derrubar uma muralha. Em poucos instantes, já havia acertado pelo menos cem vezes as empunhaduras das espadas, fazendo com que elas atravessassem as pernas do monstro de lado a lado. O sangue jorrava abundantemente, revelando a carne e a pele dilaceradas. Rangendo os dentes para suportar a dor excruciante, a besta largou a lança e tentou, com ambas as mãos, arrancar as espadas cravadas em seu corpo. Diante da cena, o Peregrino exclamou, surpreso:
— Viu isso, Bodhisattva? O monstro está tentando arrancar as espadas, mesmo com a dor sendo, sem dúvida, insuportável!
Com compaixão, a Bodhisattva ordenou a Muzha:
— Não o mate.
Novamente, ela apontou para o monstro com o seu ramo de salgueiro e recitou um feitiço que começava com a letra "Om". As espadas, como as constelações, se transformaram instantaneamente em ganchos tão afiados quanto dentes de lobo e tão curvos que era praticamente impossível retirá-los.
O monstro compreendeu que estava perdido e parou de se debater. Atormentado pela dor, ergueu a voz e implorou:
— Embora tenha olhos, este discípulo é cego de espírito. Como não percebi o extraordinário poder do seu dharma assim que a vi? Suplico que seja misericordiosa com a minha ignorância e perdoe a minha vida. Se o fizer, juro nunca mais matar ninguém e me tornarei seu discípulo!
A Bodhisattva desceu suavemente de seu raio de luz e, acompanhada de seus dois discípulos e da sua cacatua branca, aproximou-se do monstro. Olhando-o nos olhos, perguntou:
— Estás disposto a aceitar os mandamentos?
— Sim, se poupar a minha vida — respondeu o monstro, com os olhos cheios de lágrimas.
— Deseja se tornar meu discípulo? — perguntou novamente a Bodhisattva.
— Se poupar a minha vida — repetiu o monstro —, pode ter certeza de que atravessarei as portas do dharma.
— Nesse caso — concluiu a Bodhisattva —, tocarei em sua cabeça e lhe entregarei os mandamentos.
De dentro de suas mangas, a Bodhisattva tirou uma lâmina de ouro e se aproximou ainda mais do monstro. Com precisão e destreza, raspou a sua cabeça, no estilo conhecido como "Coroa do Monte Tai". A cabeça ficou completamente careca, exceto por uma franja, que, em algumas ocasiões, poderia ser trançada. Ao ver o resultado, o Peregrino comentou, com tom zombeteiro:
— Que azar desse monstro! Agora, não há como saber se é um menino ou uma menina!
— Já que aceitou os meus mandamentos — disse a Bodhisattva com tom solene — não irei tratá-lo mal. A partir de agora, você será chamado de Menino da Riqueza Celestial. Você aceita?
O monstro expressou sua concordância movendo ligeiramente a cabeça, disposto a salvar sua vida a qualquer custo. Satisfeita, a Bodhisattva apontou com o dedo e ordenou:
— Retirem-se!
Instantaneamente, as espadas das constelações caíram no chão e o monstro, surpreendentemente, não apresentava o menor arranhão em seu corpo.
A Bodhisattva voltou-se para Muzha e ordenou-lhe com serenidade:
— Pegue as espadas e devolva-as ao seu pai. Não é necessário que volte aqui. Vá para a Montanha Potalaka e espere-me lá junto com os outros devas.
Muzha obedeceu de imediato e retornou aos Céus, onde se encontrou com os seus e cumpriu fielmente os desejos de sua preceptora.
No entanto, os impulsos malignos do monstro não haviam sido totalmente extintos, mesmo após aceitar os mandamentos. Assim que a dor cessou e percebeu que nada mais o prendia à terra, ele apanhou sua lança novamente e ameaçou a Bodhisattva, dizendo:
— Você não tem poder para me dominar! Tudo o que fez até agora não passou de truques baratos. Por que deveria aceitar seus mandamentos?
Em seguida, ele lançou um terrível golpe de lança contra o rosto da Bodhisattva. O Peregrino ficou tão furioso que imediatamente ergueu o bastão de ferro, pronto para agir. No entanto, a Bodhisattva ergueu a mão em um gesto calmo, interrompendo-o:
— Não o golpeie. Tenho algo mais refinado em mente para castigá-lo.
De dentro de sua manga, ela retirou uma coroa de ouro reluzente e explicou:
— Este tesouro pertenceu a Buda. Ele mesmo me entregou, quando me incumbiu de encontrar alguém disposto a ir ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras sagradas. Na verdade, ele me confiou três coroas muito parecidas, embora com nomes totalmente distintos: a Dourada, a Constritiva e a Proibitiva. A segunda está sobre sua cabeça, Wukong, enquanto a última repousa sobre a cabeça do guardião da minha montanha. A primeira ainda não tem dono, mas acredito que ela será útil para conter este monstro rebelde.
Com um leve movimento, a Bodhisattva sacudiu a coroa na direção do vento e gritou:
— Transforme-se!
Imediatamente, a coroa se dividiu em cinco, idênticas entre si, que voaram em direção ao monstro. Uma delas se prendeu firmemente à sua cabeça, enquanto as outras quatro se fixaram em seus pés e mãos.
— Afaste-se, Wukong — disse a Bodhisattva ao Peregrino. — Vou recitar um feitiço para ensinar a este monstro a obedecer e a controlar sua natureza rebelde.
— Pedi que viesse aqui para subjugar o monstro, não para me castigar! — protestou o Peregrino.
— Não se preocupe — tranquilizou a Bodhisattva. — Cada coroa tem um feitiço diferente. O dele é único, e nada tem a ver com o seu.
Mais calmo, o Peregrino se afastou. A Bodhisattva fez um gesto mágico com os dedos e recitou várias vezes o mesmo feitiço. Uma dor avassaladora tomou conta do monstro, que começou a se coçar nas orelhas como um louco e a cravar as unhas no rosto. Depois, caiu no chão e começou a dar voltas desesperadas, como uma bola rolando ladeira abaixo. Assim, o monstro aprendeu que as palavras podem alcançar até as regiões arenosas e que o poder do dharma é profundo, vasto e ilimitado.
Não sabemos se após tudo isso, o monstro aceitou ou não submeter-se os mandamentos. Quem desejar descobrir, terá que ouvir com atenção as explicações que serão dadas no próximo capítulo.
CAPITULO XLIII EM BREVE ...
Notas do Capítulo XLII
- Dentro da cultura tradicional chinesa, o cálculo dos dias seguia um sistema cíclico baseado na combinação das dez seções celestes, chamadas tian-gan, com as doze divisões terrestres, conhecidas como dìzhī (地支). Esse sistema resultava em um ciclo completo de sessenta dias;
- Zhang Daoling foi um alquimista do século II, que conseguiu fundar um pequeno estado teocrático entre as regiões que hoje correspondem às províncias de Sichuan e Shensi;
- Na tradição chinesa, os dados sobre o nascimento de uma pessoa são considerados essenciais para prever seu futuro, especialmente quando se recorre a especialistas em técnicas adivinhatórias;
- Zheng Yuan foi um funcionário da dinastia Sung que se destacou por seu profundo conhecimento do I Ching e dos cálculos relacionados ao tempo;
- Entre os grandes mestres adivinhos da história chinesa estão Fu Xi, um dos lendários Cinco Imperadores, e o rei Wen. Fu Xi é creditado com a descoberta dos oito trigramas, resultado do estudo detalhado do casco de uma tartaruga. Já o rei Wen é reconhecido por ter desenvolvido e ampliado essa técnica adivinatória;
- No Zen, ou na meditação, o conceito de dharmakaya representa uma das cinco características do corpo espiritual (panca-dharmakaya) de Tathagata. Essa característica enfatiza a quietude e a superação das falsas ideias, essenciais para a iluminação.
- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
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