31 de janeiro de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo XLIV

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang

CAPÍTULO XLIV:

O CORPO DO DHARMA NO CICLO PRIMORDIAL ENCONTRA A FORÇA DA CARROÇA. A MENTE, CORRIGINDO DESVIOS MONSTRUOSOS, ATRAVESSA A LADEIRA ESPINHAL. 


"Eles partem para o Oeste, em busca das escrituras e da liberdade,
Uma luta sem fim, atravessando montes de fama incansáveis.
Os dias passam rápido como lebres que correm e corvos que voam;
À medida que as pétalas caem e os pássaros cantam, as estações seguem seu curso.
Um simples grão de poeira – o olhar revela três mil mundos;
O cajado do sacerdote – sua ponta já viu quatrocentas ilhas.
Alimentam-se do vento e repousam sobre o orvalho para alcançar seu objetivo,
Sem saber qual será o dia em que todos poderão retornar."


Depois de cruzarem o Rio Negro, o mestre e seus discípulos prosseguiram rumo ao oeste. Enfrentavam o vento cortante e a luminosidade ofuscante da neve, mas a lua os envolvia com suavidade, enquanto as estrelas pareciam protegê-los. Esses sinais renovaram suas forças e, em pouco tempo, a primavera chegou. ano novo (1) surgiu pontualmente, trazendo renovação para tudo ao redor. O céu parecia uma pintura iluminada, e a terra se cobriu com o fino tecido das flores. A neve derretia-se sobre as ameixeiras, enquanto rebanhos de nuvens cruzavam o céu. O gelo dava lugar às torrentes que desciam das montanhas, enquanto as sementes germinavam por toda parte. Mais uma vez, o velho ditado se cumpria: "Com a chegada do deus do ano novo, o espírito das florestas desperta de seu sono". A brisa espalhava o perfume das flores, e as nuvens permitiam que a luz do sol as atravessasse em sua pureza. Os salgueiros, renovados, exibiam as delicadas curvas de seus ramos verdes, e a chuva trazia vida por onde passava. Onde quer que se olhasse, era impossível não perceber o vigor da primavera.

Os peregrinos admiravam a beleza da paisagem quando ouviram um grito tão estrondoso que parecia ser formado por mais de dez mil vozes. O monge Tang, tomado pelo medo, puxou as rédeas do cavalo e parou de imediato. Virando-se para Wukong, perguntou, tremendo dos pés à cabeça:

— Sabe de onde vem esse barulho?

— Parece que a terra se abriu e engoliu todas as montanhas daqui — comentou Bajie.

— Para mim, parece mais um trovão — opinou o Monge Sha.

— Acho que são vozes humanas ou relinchos de cavalos — disse Sanzang.


Wukong sorriu antes de responder:

— Nenhum de vocês acertou. Fiquem aqui enquanto vou investigar.

Mal terminou de falar, deu um grande salto e alçou voo. De cima, examinou o horizonte em todas as direções e logo avistou uma cidade cercada por um fosso. Esforçando ainda mais a visão, percebeu que uma aura de serenidade pairava sobre o lugar.


— Que estranho! — murmurou o Peregrino. — Como pode esse grito vir dali, se o lugar não parece amaldiçoado? Não há bandeiras nem lanças, então o barulho não é causado por canhões. O que será que provoca tamanha algazarra?

Enquanto tentava entender a situação, viu um grande grupo de monges fora dos portões da cidade. Eles tentavam empurrar uma carroça muito pesada por uma ladeira íngreme. Para coordenar o esforço, gritavam em uníssono: 

— Rei Poderoso Bodhisattva! 

Aquelas vozes eram exatamente o som que havia assustado tanto o monge Tang.


O Peregrino desceu um pouco para observar mais de perto e constatou que a carroça estava carregada com madeiras, telhas, tijolos, adobes e outros materiais semelhantes. A ladeira era extremamente íngreme, e o caminho por onde tentavam conduzir a carroça ficava entre duas enormes formações rochosas, dificultando ainda mais o avanço. O esforço dos monges parecia, de fato, fadado ao fracasso. No entanto, algo mais chamou sua atenção. O dia era muito quente, e seria normal que as pessoas usassem roupas leves, mas aqueles monges estavam vestidos apenas com trapos. O Peregrino nunca tinha visto monges tão pobres.

— Que estranho! — murmurou para si mesmo. — Devem estar tentando reformar algum mosteiro, mas não encontraram quem os ajudasse. Talvez porque esta seja a época da colheita, e todos estejam ocupados nos campos.

Enquanto refletia, dois jovens taoístas saíram da cidade. Eles usavam chapéus brilhantes como estrelas, túnicas ricamente bordadas, botas com acabamentos em seda e cintos feitos do melhor tecido. Seus rostos, redondos como a lua cheia, irradiavam saúde. A elegância deles era tamanha que pareciam criaturas vindas diretamente do Paraíso de Jade.


O que mais desconcertou o Peregrino foi a reação dos monges ao avistarem os taoístas. Eles começaram a tremer de medo e redobraram desesperadamente seus esforços, para empurrar a carroça ladeira acima e adentrar a cidade. Percebendo o que acontecia, o Peregrino exclamou, indignado:

— Isso explica tudo! Já tinha ouvido falar de um lugar na rota para o Oeste onde o taoísmo é amplamente privilegiado, enquanto o budismo é tratado com completo desprezo, até mesmo negando-se o direito à existência. Parece que, sem querer, encontramos esse lugar. Preciso informar o mestre imediatamente.

Ele hesitou por um momento e concluiu:

— No entanto, para evitar equívocos, é melhor investigar mais a fundo o que está acontecendo aqui. Vou descer e perguntar diretamente. Não há método melhor para descobrir a verdade do que interrogar as partes envolvidas.

Desceu da nuvem e, após sacudir levemente o corpo, transformou-se em um mendicante taoísta da Seita da Verdade Absoluta, carregando uma cesta no ombro esquerdo, enquanto batia em um pequeno peixe de madeira e recitava textos sagrados. Em seguida, caminhou em direção aos portões da cidade e inclinou-se em cumprimento aos dois taoístas, dizendo:

— Mestres, este humilde taoísta presta suas saudações.


— De onde o senhor vem? — perguntou um deles, retribuindo o cumprimento.

— Nem eu mesmo sei — respondeu o Peregrino. — Percorri os confins dos mares e alcancei os limites dos céus. Se cheguei até aqui, foi com o único propósito de obter algumas esmolas. Poderiam me indicar qual rua desta cidade é mais piedosa e acolhedora com os seguidores do Tao? Gostaria de sentar-me nela e pedir um pouco de comida aos transeuntes.

— Por que fala de forma tão pouco elegante? — repreendeu-o um dos taoístas.

— O que quer dizer com isso? — retrucou o Peregrino, surpreso.

— Não há nada mais indelicado do que mendigar o alimento que se leva à boca — respondeu o taoísta.

— Nós, que renunciamos à vida familiar, vivemos da esmola — replicou o Peregrino. — Como espera que eu me sustente, se não recorrer à mendicância?

— Percebo que vem de muito longe e desconhece como as coisas funcionam em nossa cidade — disse o taoísta, sorrindo. — Aqui, não apenas os funcionários civis e militares são partidários do Tao, mas até as pessoas comuns, sem distinção de classe ou idade, competem entre si para nos alimentar assim que nos veem. Nesta cidade, temos o sustento garantido. Além disso, o governante é extremamente devoto e não cessa de favorecer aqueles que seguem os caminhos do Tao.


— Reconheço que venho de muito longe e, devido à minha pouca idade, desconheço o que se passa nesta cidade — admitiu o Peregrino. — Poderiam me dizer o nome deste lugar e explicar por que o rei é tão generoso com os que se dedicam ao Tao?

— Este reino é chamado de Reino da Carroça Lenta, e o homem que ocupa o trono é nosso parente — informou o taoísta.

— Quer dizer que um taoísta foi elevado ao cargo de rei? — perguntou o Peregrino, arregalando os olhos em espanto.

— Não, não — respondeu o taoísta. — O que aconteceu foi o seguinte: há cerca de vinte anos, esta região enfrentou uma seca terrível. Nenhuma gota de chuva caiu do céu, e todas as plantações, inclusive os campos de arroz, secaram. Desde o rei até o mais humilde camponês, todos oraram incessantemente aos céus, implorando por ajuda. Quando tudo parecia perdido, três imortais desceram das alturas e nos salvaram.

— Três imortais? Quem eram eles? — perguntou o Peregrino.

— Nossos mestres, é claro — explicou o taoísta.

— Quais são os seus nomes? — insistiu o Peregrino.

— O primeiro — respondeu o taoísta — é conhecido como Grande Imortal da Força de Tigre (2); o segundo, Grande Imortal da Força de Cervo (3); e o terceiro, Grande Imortal da Força de Carneiro (4).

— Que tipo de poderes mágicos esses mestres tão eminentes possuem? — perguntou novamente o Peregrino.

Para eles disse o taoísta, com um tom condescendente —, produzir chuva é tão fácil quanto bater palmas. Podem invocar ventos à vontade, transformar água em óleo com um simples gesto e converter pedras em ouro apenas com um toque. Eles fazem tudo isso com a mesma naturalidade de quem se vira na cama. Com habilidades tão extraordinárias, logo dominaram os segredos do Céu e da Terra, controlando completamente as influências das estrelas e constelações. Depois de tais feitos, não é de se estranhar que o rei tenha declarado todos os taoístas como pertencentes à casta real.

— Que governante de sorte! — exclamou o Peregrino, admirado. — Não é à toa que dizem: “A magia conquista os reis e ministros”. Com poderes tão extraordinários, não me surpreende que o rei os tenha considerado parte de sua própria casta. Será que também posso encontrá-los?

— Se deseja ver nossos mestres — concluiu o taoísta, com um sorriso —, pode fazê-lo sem dificuldade. Nós somos justamente os discípulos mais avançados deles. Além disso, estão tão imersos no Tao que, se você simplesmente pronunciasse a palavra “Tao” agora mesmo, eles viriam imediatamente para recebê-lo. Apresentá-lo a eles é tão fácil quanto soprar um punhado de cinzas.

— Agradeço de coração — respondeu o Peregrino. — Vamos entrar na cidade o quanto antes.

— Não seja tão apressado, por favor — aconselhou o taoísta. — Sente-se um pouco enquanto concluímos a tarefa que nos trouxe até aqui.

— Tarefa? — exclamou o Peregrino, franzindo a testa em indignação. — Nós, que renunciamos à família, somos completamente livres, sem preocupações nem amarras que nos prendam!

— Tudo bem, como quiser — disse o taoísta, apontando com o dedo para o grupo de monges —, mas vivemos do trabalho realizado por eles. Por isso, precisamos garantir que não se entreguem à preguiça.


— Acho que estão enganados — comentou o Peregrino, com um leve sorriso. — Dizem em toda parte que budistas e taoístas são irmãos, já que ambos renunciaram à família. Como podem, então, submeter esses homens ao trabalho? Que tipo de fraternidade é essa, onde há submissão?

— Você não faz ideia do que aconteceu nos tempos da seca — respondeu o taoísta, em um tom sério. — Quando todos imploravam por chuva, os monges suplicaram a Buda, enquanto nós dirigíamos nossas preces à Estrela Polar, ambos pelo bem de todo o reino. Mas as súplicas deles foram inúteis, e apenas nossas orações tiveram efeito. Assim que nossos mestres apareceram, o vento soprou e a chuva caiu em abundância, salvando a todos de um destino trágico. O rei observou o ocorrido e acusou os monges de serem incompetentes. Ele ordenou que seus mosteiros fossem arrasados até os alicerces, que suas imagens de Buda fossem destruídas sem piedade, e que eles mesmos fossem exilados. Contudo, Sua Majestade refletiu melhor e decidiu entregá-los a nós como escravos. Agora, são eles que mantêm os templos: alimentam o fogo, varrem o chão e fecham as portas. Recentemente, decidimos concluir um edifício na parte posterior da cidade e ordenamos que esses monges trouxessem telhas, tijolos e madeira para terminar a obra o quanto antes. Mas não confiamos neles, por isso viemos verificar. Além disso, alguns se recusaram a puxar a carroça no início. Provavelmente um ou outro deve ter fugido, e por isso trouxemos uma lista para conferir.


— Acho que perdi completamente o interesse em conhecer seus mestres — disse o Peregrino de repente, com os olhos marejados.

— Por quê? — perguntou o taoísta, surpreso.

— É simples — respondeu o Peregrino. — Se saí pelo mundo, foi com o propósito de encontrar um parente.


— Que parente? — insistiu o taoísta.

— Um tio — explicou o Peregrino. — Quando jovem, ele raspou a cabeça e se tornou monge. Há alguns anos, uma grande fome assolou nossa cidade, e ele precisou emigrar em busca de esmolas. Desde então, nunca mais tivemos notícias dele. Sei das obrigações que tenho com os mais velhos da minha família, e foi isso que me levou a viajar pelo mundo em busca dele. É bem provável que ele esteja entre esses pobres infelizes ali. Se me permitirem, gostaria de verificar antes de entrar na cidade com vocês.


— Não há problema algum — afirmou o taoísta. — Pode descer e fazer a contagem, se quiser. No total, devem ser quinhentos. Veja se o seu tio está entre eles. Se estiver, deixaremos que ele vá embora com você. Afinal, você é um de nós. Enquanto isso, ficaremos aqui sentados e entraremos juntos na cidade depois, certo?

O Peregrino agradeceu com gestos exagerados e inclinou a cabeça respeitosamente antes de se despedir. Sem deixar de bater em seu pequeno peixe de madeira, dirigiu-se até onde os monges estavam, lutando desesperadamente para empurrar a carroça ladeira acima. Assim que o viram surgir pelo estreito caminho que levava à base do aclive, todos se jogaram ao chão, exclamando com vozes trêmulas:

— Nenhum de nós caiu na indolência. Continuamos sendo quinhentos, e todos estamos tentando levar esta carroça para a cidade.


— Esses monges — pensou o Peregrino, com pesar — devem ter sofrido muito nas mãos desses taoístas. Até de alguém como eu, que não tem ar de autoridade, eles têm medo. O que fariam se enfrentassem um verdadeiro taoísta? Certamente morreriam de pavor.

Aproximou-se mais deles, acenando com a mão para transmitir confiança, e lhes disse:

— Levantem-se, não tenham medo. Não vim inspecionar o trabalho de vocês. Na verdade, estou aqui para procurar um parente.

Ao ouvir isso, os monges, cheios de esperança, correram até ele, esticando o pescoço e saltando, ansiosos para saber se poderiam ser o familiar que ele procurava.

— Quem de nós é o seu parente? — perguntavam, entusiasmados.

O Peregrino os observou por um momento e, de repente, soltou uma gargalhada estrondosa.

— Por que está rindo assim? — perguntaram os monges, confusos. — Não encontrou a pessoa que procura?

— Querem mesmo saber por que estou rindo? — respondeu ele, ainda com o riso nos lábios. — Estou rindo porque, apesar da idade, vocês são tão imaturos quanto crianças.

Os monges o encararam, surpresos, enquanto ele continuava:

— Vocês nasceram em um momento tão desfavorável que seus pais os abandonaram para evitar que a má sorte de vocês contaminasse toda a família, incluindo seus irmãos e irmãs. Por que não seguem o caminho das Três Joias? Por que não respeitam as leis de Buda? Como puderam abandonar o recitar das orações e a leitura dos sutras? E ainda aceitam, sem resistência, servir aos taoístas como escravos, submetendo-se a esse tratamento degradante, como se fossem meros servos! É realmente inacreditável!


— Está zombando de nós? — exclamaram os monges, espantados. — Deve ter vindo de muito longe para não saber o que está acontecendo por aqui. Acha que não temos apresentado queixas e súplicas continuamente?

— É verdade, venho de muito longe — reconheceu o Peregrino. — Mas, até agora, não ouvi nenhuma queixa de vocês.


— O senhor que governa a nossa cidade é tendencioso e perverso — confessaram os monges de repente, caindo em lágrimas. — Ele só se preocupa com os taoístas e despreza os budistas.

— O que pode justificar uma atitude tão estranha? — questionou o Peregrino.

— Há algum tempo — explicaram os monges —, esta região enfrentava uma grande seca que devastou quase todos os campos. Então, apareceram esses três imortais. Eles enganaram o rei e o convenceram a demolir nossos mosteiros, proibindo-nos, ao mesmo tempo, de retornar às nossas origens. Além disso, tiraram todos os nossos direitos como cidadãos deste reino e nos transformaram em escravos desses falsos mestres. Vocês não fazem ideia de como nossa situação é insuportável! Quando aparece por aqui um taoísta, ele é recebido em audiência pelo rei e recompensado com uma generosa quantia em dinheiro. Mas, se é um monge, ele é preso e enviado ao palácio desses miseráveis como um simples servo, independentemente da idade ou da origem.


— Querem dizer que esses taoístas possuem poderes mágicos especiais com os quais vivem enganando o rei? — perguntou o Peregrino, intrigado. — Ora, fazer chover é uma das coisas mais simples que existem. Basta um truque básico. Como conseguiram enganar o vosso governante por tanto tempo?

— Eles são mestres em refinar mercúrio e praticar meditação — explicaram os monges. — Se querem óleo, basta apontar para a água, e, ao tocarem uma pedra, ela se transforma em ouro no mesmo instante. A influência deles sobre o rei é tão grande que decidiram construir um enorme templo dedicado aos Três Puros. Lá, realizam rituais à vontade, homenageando o Céu e a Terra, entoando encantamentos e lendo escrituras dia e noite. Dizem que isso fará o rei viver mais de dez mil anos, o que, como pode imaginar, deixou nosso soberano extremamente satisfeito.

— Isso explica tudo! — exclamou o Peregrino. — Mas por que não fugiram e acabaram logo com isso?

— Não podemos fazer isso — responderam os monges, resignados. — Aqueles imortais receberam permissão do rei para espalhar retratos nossos em todos os cantos do reino. Embora o território seja imenso, nossos rostos estão expostos nos mercados e nas áreas mais movimentadas de cada aldeia, cidade e vila deste amaldiçoado Reino da Carroça Lenta. Acima das imagens, há uma inscrição que informa que qualquer militar que capturar um monge será promovido três graus. Se for uma pessoa comum, será recompensada com cinquenta onças de prata. Esse é o motivo pelo qual nunca tentamos fugir. O curioso é que não somos os únicos a sofrer nas mãos dos militares. Até mesmo pessoas com cabelos curtos estão sendo perseguidas. É como se uma obsessão tivesse tomado conta deste reino. Espiões e delatores estão por toda parte, tornando qualquer tentativa de fuga praticamente impossível. Não nos resta alternativa além de permanecer aqui, suportando tudo.

— Viver assim é pior do que morrer — opinou o Peregrino.

— Muitos de nós já morreram — confessaram os monges. — No início, éramos cerca de dois mil monges. Entre seiscentos e setecentos não suportaram a dor de perder a liberdade ou pereceram por causa do frio e das duras condições climáticas. Outros setecentos ou oitocentos tiraram a própria vida. Os que restam, aproximadamente quinhentos, simplesmente não conseguem morrer.

— Como assim? — perguntou o Peregrino, surpreso.

— Alguns tentaram se enforcar, mas as cordas se romperam — explicaram os monges. — Outros tentaram cortar os pulsos, mas as lâminas eram muito cegas. Houve aqueles que se jogaram no rio, mas flutuaram, como se fossem feitos de madeira. Por fim, alguns ingeriram veneno, mas ele não teve nenhum efeito.

— Considerem-se afortunados — disse o Peregrino. — Isso significa que o Céu está protegendo suas vidas.

— Não é bem assim — retrucaram os monges. — Em vez de vida, deveríamos chamar isso de tormento. Nossa comida se resume a uma sopa de farelo. À noite, dormimos ao relento, jogados no chão como sacos abandonados. Mas, mesmo quando conseguimos fechar os olhos, vemos os deuses que deveriam nos proteger.

— Quer dizer que o trabalho do dia é tão árduo que vocês vêem fantasmas à noite? — perguntou o Peregrino.

— De forma alguma! — exclamaram os monges. — Não são fantasmas, mas os Seis Deuses da Luz e das Trevas e os Protetores dos nossos mosteiros. Quando a noite cai, eles vêm até nós e revigoram aqueles que estão à beira da morte.

— Isso não faz muito sentido — comentou o Peregrino. — Eles deveriam deixar vocês morrerem e alcançar o Mundo Superior. Por que os protegem dessa maneira?

— Em nossos sonhos — responderam os monges —, eles tentam nos animar, aconselhando-nos a desistir de buscar a morte e a suportar um pouco mais. Dizem que não demorará para chegar, do Reino dos Grandes Tang, nas Terras do Leste, um monge santo em busca das escrituras do Paraíso Ocidental. Segundo os deuses, ele está acompanhado por um discípulo, o Grande Sábio, Sósia do Céu, que possui poderes mágicos imensos. Apesar de todo o seu poder, dizem que ele é sensível e justo. Ele vingará todas as injustiças do mundo, protegerá os oprimidos e consolará órfãos e viúvas. Por isso, nos pedem que esperemos pacientemente a chegada dele. Ele usará toda a sua força para destruir os taoístas e devolver às práticas do Zen e à pobreza absoluta o lugar de honra que merecem.

Ao ouvir essas palavras, o Peregrino sorriu e pensou, satisfeito:

— Não se pode dizer que o velho Macaco não possui poderes, quando até os próprios deuses andam espalhando minha fama por aí.

Rapidamente, ele se virou, bateu novamente no peixe de madeira e deixou os monges, retornando ao portão da cidade e aproximando-se dos dois taoístas, que lhe perguntaram:.

— Encontrou o seu parente?

— Sim — respondeu o Peregrino, sorrindo com malícia. — Todos aqueles lá embaixo são meus parentes.

— Os quinhentos? — exclamaram os taoístas. — Como é possível que tenha tantos parentes?

— Cem são meus vizinhos, que vivem à minha esquerda — explicou o Peregrino. — Outros cem vivem à minha direita. Cem são parentes por parte de meu pai, e mais cem por parte de minha mãe. Os cem restantes são nossos servos. Isso satisfaz a curiosidade de vocês? Se os deixarem partir, entrarei com vocês na cidade; caso contrário, jamais pisarei nela.

— Está fora de si? — repreenderam os taoístas. — Não sabe o que está dizendo! Esses monges são um presente do rei. No máximo, podemos liberar dois ou três, caso informemos aos nossos mestres que eles adoeceram e, posteriormente, apresentemos o certificado de óbito para encerrar o caso de uma vez por todas. Como poderíamos libertar todos? É impossível! Sem contar que ficaremos sem servos e escravos, e até mesmo a corte pode se sentir ofendida. É muito provável que o rei envie oficiais para inspecionar as obras e, ao perceber que não há ninguém, ficará furioso. Como vamos deixá-los partir?

— Vocês não pretendem libertá-los? — perguntou o Peregrino.

— Não! responderam os taoístas.

O Peregrino repetiu a pergunta três vezes, e sua fúria crescia a cada resposta. Finalmente, ele retirou seu bastão de ferro da orelha, girou-o levemente contra o vento, e ele tomou a espessura de uma tigela de arroz. Testou o peso com a própria mão antes de desferir um golpe com força total sobre as cabeças dos taoístas.O impacto foi devastador: os crânios se partiram, o sangue jorrou em abundância, pedaços de miolos saltaram, a pele foi rasgada, os pescoços quebraram, e os corpos caíram sem vida ao chão.


Ao perceberem de longe o destino dos taoístas, os monges abandonaram a carroça e correram em direção ao Peregrino, gritando alarmados:

— Que tragédia terrível! Você acabou de matar membros da família real!


— De que família real estão falando? perguntou o Peregrino com desdém.

— Quando entram na corte, os mestres deles não se curvam diante do rei e, ao sair, sequer se despedem — explicaram os monges, aglomerando-se ao redor dele. — Sua Majestade os trata com os títulos respeitosos de preceptores reais, irmãos mais velhos e mestres veneráveis. Como pode dizer que o que acabou de fazer não é algo terrível? Além disso, por que os matou, se eles em nada lhe faltaram com respeito? Apenas vieram supervisionar nosso trabalho. O que será de nós se esses imortais alegarem que fomos nós os responsáveis por suas mortes? Infelizmente, somos obrigados a entrar na cidade e reportar às autoridades o seu crime.


— Parem de lamentar como carpideiras! — exclamou o Peregrino. — Não sou um taoísta da Seita da Verdade Absoluta, mas sim o seu libertador.

— Você acabou de matar dois homens e deve pagar por isso — sentenciaram os monges. — Não nos envolva nos seus ideais libertadores. Não queremos ter parte em nada disso.

— Eu sou o Peregrino Sun Wukong — declarou ele. — Discípulo do monge Tang, e estou aqui para salvar suas vidas.

— Não, não! — gritaram os monges. — Isso é impossível! Você não se parece em nada com aquele que virá nos salvar.

— Como sabem disso, se nunca o viram? — retrucou o Peregrino.

— Em nossos sonhos — explicou um dos monges — vimos um ancião que se apresenta como a Estrela Dourada do Planeta Vênus. Ele nos descreveu detalhadamente como é o Peregrino Sun. Repetiu tantas vezes que não podemos errar. Assim que o virmos, iremos reconhecê-lo sem dificuldade.

— O que disse aquele ancião? — perguntou, curioso, o Peregrino.

— Que o Grande Sábio possui olhos tão vivos que parecem raios, sobrancelhas proeminentes e bem densas, uma cabeça redonda, um rosto peludo e sem queixo, dentes notavelmente separados, uma boca pontiaguda e um caráter travesso e astuto. Sua aparência é tão estranha quanto a de um deus do trovão. Além disso, ele é um lutador experiente. Maneja com perfeição um bastão de ferro com extremidades de ouro, de tal forma que, em certa ocasião, conseguiu dominar todo o Céu com ela. No entanto, agora ele é um defensor da Verdade e discípulo do monge mais virtuoso que se possa imaginar. Sua maior obsessão, na verdade, é libertar de suas angústias aqueles que se encontram em perigo.

Quando o Peregrino ouviu essas palavras, sentiu-se ao mesmo tempo satisfeito e irritado. Estava satisfeito porque os deuses haviam espalhado sua fama, mas irritado, pensou consigo mesmo:  "Aqueles velhos canalhas, como ousam revelar a esses mortais como realmente sou?"

— Vocês estão certos ao dizer que não sou o Peregrino Sun — concluiu ele em voz altaSou apenas um servo dele que veio aqui para se divertir enquanto causa alguma confusão. Mas o verdadeiro Peregrino Sun está chegando. Não é ele vindo logo ali?

Ele apontou para o leste com o dedo, e os monges, curiosos, viraram a cabeça para olhar. Aproveitando o momento, o Peregrino recobrou sua forma habitual. Os monges o reconheceram de imediato e, ajoelhando-se diante dele, disseram emocionados:

— Olhávamos com nossos olhos mortais e fomos incapazes de perceber que o senhor estava disfarçado entre nós. Imploramos que vingue nossas injustiças e dissipe nossos infortúnios, entrando rapidamente na cidade para exterminar os demônios.


— Sigam-me! — gritou o Peregrino, e os monges obedeceram, confiantes na vitória.

Com seus extraordinários poderes, o Grande Sábio fez a carroça subir pela íngreme ladeira. Mas, antes de alcançar o topo, abandonou-a à própria sorte. A carroça rolou descontrolada pela encosta até se despedaçar contra uma parede de pedra. Tijolos, madeira e telhas se espalharam pelas redondezas.

— Agora preciso que me deixem sozinho — ordenou o Peregrino aos monges. — É necessário que não nos vejam juntos. Amanhã irei até o rei e acabarei com aqueles taoístas.

— Não ousamos ir muito longe — disseram os monges, preocupados. — Se nos afastarmos, os oficiais podem nos capturar, e depois de nos espancarem, nos entregarão às autoridades. A recompensa por nossa cabeça fez de nós inimigos de todos.

— Nesse caso — concluiu o Peregrino —, darei a vocês uma proteção especial.

Ele arrancou um punhado de cabelos, mastigou-os cuidadosamente e, entregando um pedaço a cada um dos monges, ordenou:

— Coloquem esses fios na unha do dedo anelar e fechem o punho com força. Podem ir onde quiserem. Se alguém tentar capturá-los, apertem o punho com força e gritem: "Grande Sábio, Sósia do Céu", e num piscar de olhos, estarei ao vosso lado.


— Mas, e se nos afastarmos demais? — perguntou um dos monges, aflito. — Não poderá nos ouvir. O que faremos então?

— Não se preocupem com isso — tentou tranquilizá-los o Peregrino. — Mesmo que estejam a mais de dez mil quilômetros daqui, nada lhes acontecerá.


Um dos monges, mais ousado que os outros, fechou o punho de repente e gritou:

— Grande Sábio, Sósia do Céu!

Imediatamente, apareceu diante dele um deus do trovão, segurando um enorme bastão de ferro. Sua aparência era tão aterradora que nem mesmo dez mil cavaleiros ousariam enfrentá-lo. Animados, outros monges repetiram o gesto, e, mais uma vez, o milagre se deu, surgindo diante deles réplicas exatas do Grande Sábio. Ao testemunharem tal prodígio, os monges se jogaram ao chão, exclamando, cheios de gratidão:

— Quão inquebrantável é o vosso poder!

— Quando quiserem que essa visão desapareça — explicou o Peregrino —, basta dizerem "pare!", e ela se desvanecerá imediatamente no ar.

Os monges seguiram suas instruções e recolheram os fios de cabelo para as unhas. Revigorados pelo que haviam presenciado, começaram a se dispersar em todas as direções, mas o Peregrino os advertiu:

— Não se afastem muito e fiquem atentos às notícias sobre o que ocorrer na cidade. Se for proclamado um édito permitindo que todos os monges retornem, entrem sem hesitar e me devolvam os cabelos que lhes emprestei. Combinado?


Os quinhentos monges prometeram retornar e correram, alegres, para onde lhes aprouvesse, e, por ora, não falaremos mais deles. Voltemos, no entanto, ao monge Tang, que aguardava, impaciente, à beira do caminho, o retorno do Peregrino. Percebendo que ele demorava, ordenou a Zhu Bajie que assumisse as rédeas do cavalo e continuasse a jornada em direção ao oeste. Pouco tempo depois, eles se depararam com grupos de monges correndo, alegres, em todas as direções. Já perto da cidade, avistaram o Peregrino, cercado por dezenas de religiosos que pareciam se recusar a deixá-lo partir.

O monge Tang imediatamente parou sua montaria e repreendeu-o, dizendo:

— Wukong, enviei você para descobrir a origem daquele som estranho. Por que demorou tanto e ainda assim não retornou?

O Peregrino então relatou o que havia acontecido, e Sanzang exclamou, surpreso:

— Se essa é a situação, o que podemos fazer?

— Não tema, mestre — aconselharam os outros monges. — O Grande Sábio Sun é a reencarnação de um deus e nos protegerá de todo mal com seus poderes extraordinários. Nós pertencemos ao Monastério da Profunda Sabedoria, um edifício construído por ordem do pai do atual rei. Se ele ainda está de pé, é porque guarda, em seu interior, uma imagem do rei, que ninguém ousa tocar. Se desejarem, podem entrar conosco na cidade e honrar nossa humilde residência com sua presença. O Grande Sábio Sun sabe muito bem o que deve fazer quando se dirigir à corte amanhã pela manhã.


— Vocês tem razão — admitiu o Peregrino. — O melhor que podemos fazer agora é entrarmos na cidade.

O mestre desmontou do cavalo e caminhou em direção às portas da cidade. O sol já estava se pondo quando cruzaram a ponte que os conduzia até elas. Quando as pessoas nas ruas perceberam que sacerdotes do Monastério da Profundidade da Sabedoria carregavam bagagens e conduziam um cavalo, todas se afastaram, evitando-os. 


Não demorou muito até que eles alcançassem a entrada do monastério, onde avistaram, pendurada no alto do portão, uma enorme placa com letras douradas onde se lia:

"Monastério da Profunda Sabedoria, construído por ordem imperial."

Os monges abriram as portas e conduziram seus ilustres convidados através do salão de Vairocana, até o templo principal. O monge Tang rapidamente vestiu sua túnica bordada e se prostrou no chão diante da imagem dourada de Buda. Somente após terminar suas preces, decidiu seguir seus anfitriões para o interior do monastério.

— Ei, quem está cuidando da casa! — chamaram os monges.

Imediatamente surgiu um ancião, que, ao ver o Peregrino, se prostrou aos seus pés, chorando de emoção:

— Finalmente chegou, mestre!

— Quem sou eu para que me trate com tanta reverência? — perguntou o Peregrino, surpreso.

— Você é o Grande Sábio, Sósia do Céu — respondeu o ancião com convicção. — Todas as noites sonhamos contigo, pois a Estrela de Ouro do Planeta Vênus nos assegura por meio dos nossos sonhos de que nossas desgraças desaparecerão assim que você chegar. Seria possível reconhecê-lo até de olhos fechados. Não sabe o quanto estou feliz por você ter vindo! Se demorasse mais dois ou três dias, todos já teriam se transformado em espíritos.

— Levante-se do chão, por favor — aconselhou o Peregrino, sorrindo. — Amanhã falaremos sobre tudo isso que acabou de dizer.

Os monges apressaram-se em preparar uma refeição vegetariana e arrumaram o quarto do abade para que os Peregrinos pudessem descansar com dignidade. Apesar disso, Wukong estava tão inquieto que, quando chegou a segunda vigília, ainda não havia conseguido dormir. O som de gongos e flautas, vindo de algum lugar próximo, tornou ainda mais difícil se concentrar nos pensamentos. Sem que ninguém percebesse, ele levantou da cama, vestiu suas roupas e alçou voo. Então pôde ver, ao sul de onde estava, um grande brilho de tochas e lâmpadas. Desceu da nuvem e, focando ainda mais a visão, percebeu que os taoístas do Templo dos Três Puros estavam dirigindo suas súplicas e orações às estrelas.


O salão era vasto e tão alto quanto o próprio Monte Penglai. Além disso, possuía uma imponência que lembrava o Palácio da Alegria Transfigurada. De ambos os lados, viam-se fileiras de taoístas tocando instrumentos. No centro, os mestres estavam ocupados na leitura do Tao Te Ching (5) no recitar da Ladainha para Afastar os Inimigos. Alguns escreviam encantamentos e oravam com o rosto prostrado no chão, empoeirado pela devoção. Outros lançavam pequenas gotas de água sobre as tochas, que imediatamente geravam chamas intensas, alcançando, sem dúvida, as Regiões Superiores.Os taoístas consultavam as Estrelas sobre o destino dos homens, queimando incessantemente incenso, cujas volutas se misturavam ao azul do firmamento, e fazendo ofertas esplêndidas dispostas sobre mesas artisticamente esculpidas. De ambos os lados da porta, pendiam dois rolos de seda amarela com as seguintes palavras bordadas:

"Pelo vento e pela chuva na época certa,
Invocamos o poder ilimitado dos Sábios Celestiais.
Que o império seja pacífico e próspero,
E que o reinado de nosso senhor dure por mais de dez mil anos."

Entre todos os taoístas, três se destacavam pelas roupas luxuosas, e o Peregrino deduziu de imediato que se tratavam do Imortal da Força de Tigre, o Imortal da Força de Cervo e o Imortal da Força de Carneiro. Em uma posição inferior a eles, havia pelo menos setecentos ou oitocentos de seus seguidores, organizados em duas fileiras opostas, e não cessavam de bater tambores, queimar incenso e entoar suas súplicas. Encantado com a cena, o Peregrino pensou:

— Gostaria de descer lá e me divertir um pouco com eles, mas como diz o provérbio, "não se pode aplaudir com uma só mão". Além disso, outro ditado diz: "É necessário mais de um fio de seda para formar uma linha". Melhor chamar Zhu Bajie e o Monge Sha. Assim podemos nos divertir juntos.

Sem perder tempo, dirigiu-se aos aposentos do abade, onde encontrou Bajie e o Monge Sha dormindo profundamente. O Peregrino tentou acordar primeiro Bajie, mas quem respondeu foi o Monge Sha, murmurando:

— Ainda não foi dormir?

— Levante-se — apressou-se o Peregrino. — Acho que chegou a hora de nos divertirmos um pouco.

— Divertir? — repetiu o Monge Sha, surpreso. — Onde vamos nos divertir numa hora dessas? E como pode ter tanta energia? Minha boca está seca, mal consigo abrir os olhos.
— Acabei de encontrar o Templo dos Três Puros — informou o Peregrino. — Neste exato momento, os taoístas estão celebrando uma cerimônia, e o salão principal está repleto de oferendas. Parece que não lhes falta nada, e te digo mais: os pãezinhos são tão grandes quanto barris e os bolos devem pesar entre cinquenta e sessenta quilos. Isso sem contar os pratos de arroz e as frutas enormes que descansam sobre as mesas. Vamos, levante-se, e vamos nos divertir!

Embora ainda estivesse meio adormecido, ao ouvir falar de tanta comida, Bajie acordou imediatamente, deixando de lado o sono e perguntando, alarmado:

— Não pensam em me levar com vocês?

— Se deseja comer — disse o Peregrino —, levante-se sem fazer barulho e nos siga.


Os dois monges se vestiram rapidamente e saíram do quarto com muito cuidado para não acordar o mestre. O Peregrino os esperava à porta. Sem dizer nada, subiram nas nuvens e se elevaram imediatamente aos céus. Bajie não demorou a ver as luzes das tochas e quis descer de imediato, mas o Peregrino o impediu, puxando-lhe a roupa e aconselhando:

— Espere um pouco. Não seja tão impaciente. Desceremos quando eles já estiverem se retirando para descansar.

— E quando será isso? — perguntou Bajie, claramente inquieto. — Pelo ritmo dessas cerimônias, parece que ainda vai demorar.

— Não se preocupe — tentou acalmá-lo o Peregrino. — Vou usar um pouco de magia e logo não haverá mais ninguém por aqui.

Mal terminou de falar, o Peregrino fez um gesto mágico com os dedos e recitou o feitiço correspondente, olhando para o sudoeste. Imediatamente, um redemoinho se formou e varreu o Templo dos Três Puros, derrubando vasos e candelabros, estilhaçando ex-votos pendurados nas paredes. 


O local ficou completamente às escuras, e os taoístas, assustados, ouviram o Imortal da Força de Tigre sugerir:

— É melhor que todos se retirem para seus aposentos, pois este vento, sem dúvida de origem divina, apagou todas as nossas tochas, lanternas e lâmpadas. Amanhã nos levantaremos um pouco mais cedo do que o habitual e recitaremos algumas escrituras extras para compensar a interrupção desta noite.

Os taoístas obedeceram prontamente e o Peregrino, Bajie e o Monge Sha puderam, enfim, descer da nuvem e se dirigir ao interior do Templo dos Três Puros. Sem se preocupar em verificar se a comida estava crua ou cozida, Bajie pegou uma travessa de verduras e a engoliu de uma vez. O Peregrino pegou então seu bastão de ferro e tentou dar um golpe em sua mão. Bajie conseguiu desviar a mão a tempo e protestou, irritado:

— Por que quer me bater? Nem deu tempo de sentir o gosto disso!

— Deve cuidar um pouco dos seus modos — repreendeu o Peregrino. — Antes de começar a comer, é preciso sentar-se com educação.

— Como você é chato! — reclamou Bajie. — Roubamos toda essa comida e ainda tem a coragem de falar sobre modos. O que diria se fôssemos simples convidados?

— Quem são esses bodhisattvas que estão sentados ali? — perguntou de repente o Peregrino.


— De quem está falando? — exclamou Bajie.

— Não consegues reconhecer os Três Puros?

— Que Três Puros? — repetiu Bajie.

— O do meio — explicou o Peregrino — é o Respeitável Imortal dos Origens; o da esquerda, o Senhor dos Tesouros Espirituais; o da direita, Lao-Tzu. Acho que, se quisermos comer sem ser incomodados, o melhor que podemos fazer é assumir suas figuras e nos passar por eles.

O aroma das oferendas era embriagador, e Bajie não conseguiu esperar mais. Com um salto, subiu ao altar, derrubou a imagem de Lao-Tzu com o focinho e disse:

— Sinto muito, mas você já está sentado aqui há muito tempo. Permita-me ocupar o seu lugar por um momento.

Assim, Bajie transformou-se em Lao-Tzu. O Peregrino assumiu a forma do Respeitável Imortal das Origens, e o Monge Sha assumiu a forma do Senhor dos Tesouros Espirituais. As imagens divinas, agora, estavam espalhadas pelo chão. Sentado no altar, Bajie começou a devorar a comida sem cerimônia, o que lhe valeu uma nova repreensão do Peregrino:

— Não pode esperar um pouco? — disse ele.

— Não há quem te entenda! — queixou-se Bajie. — Qual o motivo de esperar? Não nos transformamos nos imortais de que falava?


— Comer é o de menos — sentenciou o Peregrino. — O mais importante é nos divertirmos. Não percebe que esses taoístas vão se levantar cedo para tocar o sino e varrer o chão? O que vão pensar quando encontrarem as imagens sagradas jogadas pelo chão? Se quisermos manter nosso disfarce, precisamos escondê-las em algum lugar.

— Sim, mas onde? — retrucou Bajie. — Não conhecemos este lugar e não sabemos qual é o melhor local para guardar essas coisas.

— Ao entrar — explicou o Peregrino —, vi uma porta à direita. Pelo cheiro que exalava, parece ser o Gabinete para a Transmigração dos Cinco Grãos. Acho que seria um bom lugar para escondê-las.

Bajie era perfeito para as tarefas mais difíceis. Sem hesitar, saltou ao chão, pegou as imagens e as levou para fora da sala. 


Com um pontapé, abriu a porta indicada pelo Peregrino e viu que se tratava de um simples banheiro.

— Como esse “pi-ma-wen” gosta de distorcer as palavras! — pensou Bajie, segurando uma gargalhada. — Até para um banheiro ele inventa um nome religioso. Gabinete para a Transmigração dos Cinco Grãos? Só ele para inventar uma besteira dessas!


Antes de deixar as imagens, no entanto, Bajie sentiu um certo medo e dirigiu-lhes a seguinte oração:

— Em vós confio, Três Puros. Viemos de muito longe, derrotando incontáveis inimigos e enfrentando perigos sem fim. Ao longo de nossa jornada, não tivemos um único momento de conforto. Não vos importará, portanto, que tenhamos tomado emprestados os vossos tronos por um tempo. Estão sentados há tanto tempo neles, que sequer os abandonaram para vir até o banheiro. Que triste sorte a vossa, sempre acomodados nesses assentos! Jamais vos faltou nada, sendo conhecidos em todo momento por vossa limpeza e pureza. Temo que hoje tenham que suportar um pouco de sujeira e que, quando saírem daí, sejam os Respeitáveis Imortais que mais cheiram mal.

Assim que terminou sua prece, Bajie arremessou as imagens sem nenhum cuidado para dentro do banheiro. Quando caíram no centro da latrina, uma onda de água fétida se ergueu, sujando metade de sua túnica com o lixo espalhado.

— Escondeu bem as imagens? — perguntou o Peregrino ao vê-lo voltar ao salão.

— Sim — respondeu Bajie —, mas sujei minha túnica de merda. Não está sentindo o cheiro? Espero que consiga aguentar.

— Não se preocupe com isso — disse o Peregrino —. Agora venha se divertir um pouco. Fico imaginando se vamos conseguir sair dessa sem problemas.

Bajie voltou a assumir a forma de Lao-Tzu e, ao se sentar nos tronos, os três começaram a aproveitar a refeição. Primeiro, devoraram os enormes pães, seguidos dos pratos de vegetais, condimentos de arroz, empanadinhas, biscoitos, doces, frituras e pratos cozidos no vapor, sem se importar se estavam quentes ou frios. O Peregrino Sun não era muito fã desse tipo de comida e se contentou com algumas frutas, mais para acompanhar os outros do que para encher a barriga. Bajie e o Monge Sha, por sua vez, continuaram a comer sem parar, como cometas que perseguem a lua ou ventos que dispersam as nuvens. Em pouco tempo, não restava mais nada. No entanto, não pareciam desanimados. Sentaram-se tranquilamente nos tronos e começaram a conversar, enquanto esperavam pela digestão.

Mas o inevitável aconteceu. No ala leste, um jovem taoísta, ao deitar a cabeça no travesseiro, levantou-se num salto, assustado:

— Que cabeça a minha! Esqueci meu sininho no salão das ofertas. Se eu perder, os mestres vão me dar uma bronca terrível amanhã. Melhor ir busca-lo agora.

Virou-se então para o companheiro de quarto e disse:

— Durma tranquilo. Preciso pegar uma coisa que esqueci.

Sem sequer vestir a roupa de baixo, cobriu-se com uma túnica e foi em direção ao salão das ofertas em busca do sininho. Estava muito escuro, e ele precisou tatear nas sombras até finalmente encontrar o sininho. 


Contudo, ao se virar para sair, ouviu alguém respirando no escuro. Apavorado, seu corpo começou a tremer. Reuniu coragem e tentou fugir, mas pisou em uma casca de noz, perdeu o equilíbrio e deixou o sininho cair, quebrando-o. Ao ver o ocorrido, Bajie não conseguiu se segurar e soltou uma gargalhada estrondosa, o que assustou ainda mais o jovem taoísta. Cambaleando desajeitadamente, o pobre rapaz correu para os aposentos dos mestres.

— Mestres! — gritou, desesperado, enquanto batia na porta com força. — Aconteceu um desastre!


Os mestres taoístas, ainda acordados, abriram a porta e perguntaram, repreendendo-o:

— Que desastre é esse de que está falando?

— Deixei meu sininho no salão das ofertas e voltei para pegá-lo antes de dormir — explicou o jovem, tremendo da cabeça aos pés. — Estava muito escuro e, ao fechar a porta, ouvi uma gargalhada terrível, que quase me fez perder o juízo.

— Tragam tochas — ordenaram os três mestres. — Precisamos verificar imediatamente o que está acontecendo.


Todos os taoístas que moravam ao longo dos dois corredores levantaram-se apressadamente e correram para o salão das ofertas com lâmpadas e tochas nas mãos. O que aconteceu a seguir ainda é um mistério. Quem desejar saber, terá que esperar as explicações que serão dadas no próximo capítulo.

CAPITULO XLV EM BREVE ...

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Notas do Capítulo XLIV

  1. No original, menciona-se "triplo yang", mas o trecho foi traduzi-lo como "ano novo", pois, no início do ano lunar, costumava-se atribuir-lhe esse nome. A razão para essa denominação está relacionada ao trigrama "chien" do I Ching, que era composto por três linhas paralelas, cada uma simbolizando o yang;
  2. Em chinês  虎力大仙 (Huli daxian);
  3. Em chinês  鹿力大仙 (Luli daxian);
  4. Em chinês 羊力大仙 (Yangli daxian);
  5. O Tao Te Ching, Dao de Jing ou Tao-te king (em chinês: 道德經ⓘ, Dàodé jīng), comumente traduzido como O Livro do Caminho e da Virtude, é uma das mais conhecidas e importantes obras da literatura da China. Foi escrito entre 350 e 250 a.C. A sua autoria é tradicionalmente atribuída a Lao Tzu, porém a maioria dos estudiosos atuais acredita que Lao Tzu nunca existiu e que a obra é, na verdade, uma reunião de provérbios pertencentes a uma tradição oral coletiva, versando sobre o tao (a "realidade última" do universo). A obra inspirou o surgimento de diversas religiões e filosofias, em especial o taoismo e o budismo chan (e sua versão japonesa, o zen).


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:

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Ruby