7 de fevereiro de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo XLV

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang

CAPÍTULO XLV:

O GRANDE SÁBIO DEIXA SUA MARCA NO TEMPLO DOS TRÊS PUROS. O REI DOS MACACOS DEMONSTRA O SEU PODER NO REINO DA CARROÇA LENTA.


Percebendo o que estava acontecendo, o Grande Sábio Sun beliscou o Monge Sha com a mão esquerda e Bajie com a direita. Os dois entenderam imediatamente a mensagem e calaram-se, sentando-se nos tronos com postura solene. Os taoístas examinaram as estátuas com atenção, iluminando-as com tochas e lanternas por todos os lados. Por mais que olhassem, não viram nada alem de estátuas de barro pintadas com tinta dourada.


— Não há sinal de ladrões aqui — comentou o Imortal da Força de Tigre, confuso. — Então, quem comeu as oferendas?

— Só pode ter sido alguém de carne e osso — argumentou o Imortal da Força de Cervo. — Percebam como as frutas foram descascadas e as sementes jogadas fora. Nenhum espírito ou entidade faria algo assim.


— Não sejam tão desconfiados, irmãos — aconselhou o Imortal da Força de Carneiro. — Creio que, devido à nossa devoção inquestionável e as orações e textos sagrados que recitamos dia e noite pelo bem do Imperador, os Imortais Celestiais tenham se comovido e decidido nos visitar. Acredito que eles desceram do céu e comeram estas oferendas. Se eles ainda estiverem por aqui, com suas carruagens de garças, podemos pedir humildemente que nos concedam um pouco de elixir dourado e água sagrada. Assim, poderemos presentear Sua Majestade com esses dons. Assim, sua vida será prolongada e ele nunca envelhecerá. Imaginem sua gratidão diante de uma dádiva tão extraordinária!

— Você tem razão — concluiu o Imortal da Força de Tigre. Então, voltando-se para seus discípulos, ordenou:

— Comecem a tocar e a recitar as escrituras. Tragam também as vestes rituais. Precisamos nos elevar até as estrelas para apresentar nossas súplicas.

Os taoístas obedeceram imediatamente, posicionando-se em duas filas opostas. Logo, ao som ritmado dos golpes de gongo, começaram a entoar o texto conhecido como as Autênticas Escrituras da Corte Amarela. Vestindo a túnica ritual, o Imortal da Força de Tigre pegou sua tabuleta de jade e iniciou uma dança solene. De tempos em tempos, interrompia seus passos, prostrava-se com o rosto no chão e elevava a seguinte petição aos céus:

— Inclinamo-nos diante de vós com respeito e reverência. Nossa fé está pronta para buscar a Pureza. Estes clamores que lançamos são para apresentar nossa devoção ao Tao, neste templo sagrado, erguido sob mandato real. Aqui, hasteamos os estandartes do dragão, oferecemos nossas dádivas e queimamos incenso sem cessar. Sabemos que um pensamento sincero é capaz de mover a vontade dos Céus. Por isso, vossas carruagens sagradas tocaram o solo deste humilde lugar. Suplicamos que nos concedam um pouco de vosso elixir e vossa água sagrada, para que possamos entregá-los ao Imperador e, assim, prolongar seus dias por incontáveis anos.

— Tudo isso é culpa nossa — murmurou Bajie, arrependido de suas ações. — Não deveríamos ter tocado nessas oferendas. O que vamos responder a uma súplica tão sincera quanto esta?

O Peregrino imediatamente lhe deu um beliscão para que se calasse.  No entanto, o mais inesperado aconteceu: ele próprio abriu a boca e, sem hesitar, falou em voz alta:

— Parem com as orações, imortais da nova geração. Gostaríamos muito de atender aos seus pedidos, mas, infelizmente, isso não será possível agora. Viemos do Festival dos Pêssegos Imortais e não trouxemos nenhum elixir dourado conosco. Se não se importarem, voltaremos outro dia para entregá-lo.

Os taoístas ficaram petrificados ao ver que a estátua falava. O choque deu lugar ao entusiasmo, e, incapazes de conter sua euforia, gritaram em uníssono:

— Os Respeitáveis Imortais desceram à terra! Devemos fazer tudo ao nosso alcance para que permaneçam conosco para sempre! Como poderíamos deixá-los partir sem que nos ensinem a fórmula da juventude eterna? Seria uma tolice sem tamanho!

Sem perder tempo, o Imortal da Força de Cervo destacou-se do grupo e, prostrando-se com o rosto no chão, entoou a seguinte oração:

— A vós dirigimos nossas súplicas, com o rosto no pó em sinal de humildade. Somos vossos servos, Três Puros, e sempre fizemos tudo o que esteve ao nosso alcance para permanecer fiéis às vossas doutrinas. Desde que chegamos a este lugar, o Tao tem gozado de liberdade absoluta. Nada alegraria mais o Imperador do que alcançar a longevidade. Por isso, elevamos continuamente nossas preces e súplicas, que, como vossa própria presença comprova, jamais foram ignoradas. Atendei-nos mais uma vez, pois buscamos incessantemente vossa glória, e não a nossa.Concedam-nos um pouco de água sagrada, para que nossas vidas se tornem, de fato, eternas!


O Monge Sha deu um beliscão no Peregrino enquanto sussurrava, nervoso:

— Eles começaram com suas preces de novo. O que vamos fazer?

— Acho que devemos atender ao pedido deles — opinou o Peregrino.

Concordo — respondeu Bajie. — Mas de onde tiraremos o que eles pedem?

— Apenas observe e veja como resolvo isso rapidamente — retrucou o Peregrino.

Assim que os taoístas terminaram suas orações, o Peregrino ergueu a voz e disse:

— Não precisam continuar rezando, imortais da nova geração. Confesso que estou relutante em lhes dar a água sagrada, mas também sei que, se não o fizer, vocês podem perecer a qualquer momento. Isso me coloca em um dilema, pois talvez não percebam o verdadeiro valor desse tesouro. Afinal, aquilo que se recebe de graça raramente é apreciado como merece.


Todos os taoístas prostraram-se com o rosto no chão e suplicaram:

— Por favor, conceda-nos um pouco desse tesouro. Somos seus discípulos e saberemos valorizá-lo devidamente. Isso fortalecerá ainda mais o Tao e fará com que o Filho do Céu honre ainda mais a Porta do Mistério.


Muito bem — concluiu o Peregrino. — Tragam-nos alguns recipientes.

Os taoístas, em sinal de gratidão, tocaram repetidamente o chão com a testa. Tomado pela ambição, o Imortal da Força de Tigre ordenou que trouxessem um tonel enorme para o salão das oferendas. O Imortal da Força de Cervo optou por uma tinaja do jardim, enquanto o Imortal da Força de Carneiro escolheu um vaso menor, que colocou entre os outros dois recipientes. 


Ao observar a rapidez com que haviam agido, o Peregrino disse com uma voz solene:

— Agora, gostaríamos que saíssem por um momento e fechassem bem as portas. Não é adequado que olhos profanos contemplem diretamente os mistérios celestiais. Quando voltarem, os recipientes estarão cheios de água sagrada.

Os taoístas obedeceram sem hesitar, retirando-se do salão e fechando cuidadosamente as portas. Enquanto aguardavam do lado de fora, ajoelharam-se diante das escadarias vermelhas. Sem perder tempo, o Peregrino ergueu a túnica de pele de tigre e encheu o vaso com urina. Ao ver aquilo, Bajie exclamou, animado:

— Estamos juntos há tantos anos, mas nunca me diverti tanto com você quanto hoje! Comi demais e estou louco para urinar.

Sem hesitar, Bajie levantou as roupas e soltou um jato mais volumoso do que o das cataratas de Lü-Liang (1). A força era tamanha que chegou a quebrar algumas tábuas do chão. Sozinho, Bajie encheu a tinaja de barro com sua urina. O Monge Sha também deu seu jeito e conseguiu preencher metade do tonel. Assim que terminaram, abaixaram suas roupas, sentaram-se solenemente em seus lugares e  anunciaram:

— Podem entrar e pegar a água sagrada, se quiserem.

Os taoístas abriram as portas de imediato e, agradecidos, golpearam o chão com as testas várias vezes. Primeiro, retiraram o tonel, depois o jarro e a tinaja, e, por fim, misturaram todo o conteúdo com extremo cuidado antes de servi-lo. Ansioso para provar a tão esperada água sagrada, o Imortal da Força de Tigre ordenou a um de seus discípulos:

— Traga-me uma taça para que eu possa experimentar.

Sem demora, o discípulo pegou uma xícara de chá e a entregou ao mestre, que bebeu tudo de um só gole. No entanto, o sabor era tão forte que seus lábios se contraíram em uma expressão de puro desgosto, como se tivesse acabado de mastigar um limão.

— Está bom? — perguntou o Imortal da Força de Cervo.

— Nem um pouco — respondeu ele, ainda com a boca franzida. — O gosto é horrível.


— Deixe-me provar — disse o Imortal da Força de Carneiro, pegando outra taça. Após degustar cuidadosamente o líquido, fez uma careta e comentou: 

— Que estranho! Para mim, tem cheiro de urina de porco.

Ao ouvir esse comentário, o Peregrino percebeu que o disfarce não duraria muito tempo e pensou consigo mesmo:

— É hora de agir para que eles jamais se esqueçam de nós.

Ele então ergueu a voz e declarou, em tom solene e ao mesmo tempo zombeteiro:

— Como vocês são tolos, taoístas! Que estupidez ridícula! Como poderiam os Três Puros ser tão humanos como fizemos parecer? Nós não somos quem vocês imaginam. Somos apenas monges da Grande Nação Tang, viajando rumo ao Oeste por ordem imperial. Sem ter o que fazer nesta noite, resolvemos nos divertir um pouco, sentando-nos em seus lugares de honra e devorando todas as suas oferendas. Como podem ver, suas preces e reverências não serviram de muita coisa. E para piorar, o que acabaram de beber não é água sagrada, mas urina fresca, que acabamos de produzir especialmente para vocês!


Os taoístas, furiosos, fecharam as portas e, armados com paus, ancinhos, pedras e tijolos, lançaram-se contra o altar, determinados a punir os profanos impostores. O Peregrino, ágil como sempre, agarrou o Monge Sha com a mão esquerda e Bajie com a direita, voando em direção à porta e destruindo-a em pedaços. Em seguida, subiu em uma nuvem e fugiu com facilidade em direção ao Monastério da Profunda Sabedoria.


Ao chegarem aos aposentos do abade, tomaram o cuidado de não acordar o mestre e retiraram-se, cada um para seu leito. Dormiram profundamente até o terceiro quarto da quinta vigília, quando o rei realizava sua primeira audiência do dia, cercado por cerca de quatrocentos funcionários civis e militares. No amplo salão do trono, lâmpadas e tochas iluminavam o ambiente, enquanto uma névoa aromática subia dos incensários espalhados pelo local.

Sanzang despertou naquele momento e disse aos discípulos:

— Precisamos obter o consentimento real para que possamos prosseguir com a viagem.


O Peregrino, o Monge Sha e Bajie vestiram-se apressadamente e, aproximando-se do mestre, alertaram:

— Não esqueça que o governante destas terras acredita apenas no Tao e se propôs a erradicar o budismo. É possível que ele não esteja disposto a conceder o salvo-conduto que mencionou. O mais sensato seria irmos juntos à corte.

Satisfeito com a sugestão, o monge Tang vestiu sua túnica bordada, enquanto o Peregrino preparava o documento de viagem, Wujing pegava a tigela para pedir esmolas e Wuneng apanhava seu ancinho. O cavalo e a bagagem ficaram sob os cuidados dos monges do Monastério da Profunda Sabedoria.

Ao chegarem à Torre dos Cinco Fênices, saudaram o Guardião do Portão Amarelo e explicaram o motivo da visita, identificando-se como enviados do Imperador dos Tang em missão sagrada para o Paraíso Ocidental. O oficial responsável pela defesa do portão correu para informar seu senhor sobre a chegada dos viajantes.

Prostrando-se com o rosto no chão diante dos degraus dourados, ele disse:

Lá fora, há quatro monges budistas que afirmam estar a caminho das Terras do Oeste em busca das escrituras sagradas, cumprindo uma ordem direta do Imperador dos Tang. Eles pedem um salvo-conduto e esperam, humildemente, ser recebidos por Vossa Majestade às portas da Torre dos Cinco Fênices.


— Esses monges não fazem ideia de onde vieram parar! — exclamou o rei, irritado. — Será que não encontraram lugar melhor para morrer? Prendam-nos imediatamente e tragam-nos à minha presença!

Ao ouvir as ordens do rei, o Grande Conselheiro deu um passo à frente e declarou:

O Grande Império dos Tang está situado nas Terras do Leste, no coração do continente de Jambudvipa. Dez mil milhas de distância nos separam, e ele representa o centro da grandiosa nação chinesa. Esses monges devem possuir poderes extraordinários, pois o caminho até aqui está repleto de obstáculos quase intransponíveis e incontáveis hordas de monstros. Somente alguém com grande domínio das artes mágicas ousaria empreender uma jornada tão perigosa.  Suplico, portanto, que aceite o pedido deles e permita que atravessem suas terras pacificamente. Não seria sábio criar inimizade com um império tão poderoso por causa de meros monges.


O rei refletiu por um momento e considerou o conselho sensato, Então, concordou em receber o monge Tang e seus discípulos no Salão dos Carrilhões de Ouro. Quando os viajantes se apresentaram diante do rei, entregaram seus documentos de viagem e uma carta escrita, de próprio punho, pelo próprio imperador. O rei abriu a carta com uma calma majestosa, mas, antes que pudesse lê-la, o Guardião do Portão Amarelo entrou e anunciou solenemente:

— Os Três Preceptores acabam de chegar.

Imediatamente, o rei deixou o documento de lado e levantou-se apressadamente do Trono do Dragão. Ordenou que trouxessem almofadas ricamente bordadas e inclinou-se respeitosamente diante dos recém-chegados. Surpresos, Sanzang e seus discípulos viraram-se e viram os três imortais entrarem, seguidos por um jovem que carregava dois rabos de porco já depenados. Enquanto caminhavam entre os funcionários, todos abaixavam a cabeça em sinal de reverência, mantendo o olhar fixo no chão.


Os imortais chegaram ao trono e, sem cumprimentar o rei, sentaram-se diretamente nele. Com um tom submisso, o rei perguntou:

— A que devo a honra de vossa visita? Pelo que sei, não enviei nenhum convite.

— Viemos porque temos algo importante a dizer, nada mais, nada menos — respondeu um dos taoístas. — De onde saíram esses quatro monges que estão ali?

— Eles foram enviados ao Paraíso Ocidental pelo Grande Imperador dos Tang, em busca de escrituras sagradas, e vieram solicitar permissão para atravessar nossas terras — explicou o rei.
— Ainda bem! — exclamaram os três taoístas, aplaudindo freneticamente. — Pensávamos que haviam fugido. Que sorte encontrá-los aqui!

— O que querem dizer com isso? — perguntou o rei, confuso. — Assim que soube de sua chegada, pensei em prendê-los, mas o Grande Conselheiro me convenceu de que seria imprudente tomar uma decisão tão precipitada. Eles viajaram por anos e não seria sábio criar inimizade com o país de onde vieram. Por isso, concedi o pedido deles. Como poderia imaginar que vocês tinham alguma queixa contra eles? Poderiam me explicar o que fizeram?


— Parece que não está ciente do que aconteceu — disse um dos taoístas. — Assim que chegaram, ontem à tarde, mataram dois de nossos discípulos nos arredores do Portão Oriental, libertaram quinhentos prisioneiros budistas e destruíram a carroça que puxavam. Como se não bastasse, durante a noite, invadiram nosso templo às escondidas, zombaram das imagens dos Três Puros e comeram as oferendas imperiais. No início, nos enganaram, fazendo-nos acreditar que eram os Respeitáveis Imortais que haviam descido à Terra. Pedimos a eles um pouco de água sagrada, com a intenção de presenteá-lo e garantir sua juventude eterna, mas ao invés disso, o que esses miseráveis nos deram foi sua urina. Só descobrimos depois que cada um de nós provou um bom gole. Foi sorte terem fugido, porque, se os tivéssemos capturado, os teríamos feito em pedaços. O que menos esperávamos era encontrá-los justamente aqui, na corte. Como diz o provérbio: “O caminho dos inimigos tocados pelo destino é extremamente estreito.”

O rei ficou tão furioso que quis executá-los naquele instante. No entanto, o Grande Sábio juntou as mãos na altura do peito e exclamou com voz estrondosa:

— Acalme sua ira, Majestade, e permita-me apresentar minha versão dos fatos.


— Como ousa afirmar que não é verdade o que esses respeitáveis preceptores acabaram de dizer? — rugiu o rei.

— Disseram que ontem matamos dois de seus discípulos nos arredores da cidade. Mas quem nos viu fazer isso? — questionou o Peregrino. — Mesmo que fosse verdade e admitíssemos ter cometido um crime tão terrível, seria uma grande injustiça condenar nós quatro à morte, já que, se dois fossem culpados, os outros dois seriam inocentes. Por que não permitir que esses últimos continuem a jornada em busca das escrituras? Além disso, afirmam que fomos nós que destruímos a carroça e libertamos os prisioneiros budistas. Novamente, não há nenhuma testemunha. Quem poderia ter feito isso? Os quatro ao mesmo tempo? Duvido. Um só já seria o suficiente. Então, por que punir os outros três? Por fim, nos acusam de desrespeitar as imagens dos Três Puros e de causar o caos em seu templo. Com todo respeito, digo que isso é uma armadilha grosseira.

— Uma armadilha? — repetiu o rei.

— Como bem sabe, viemos das Terras do Leste e acabamos de chegar a esta região — explicou o Peregrino. — Esta cidade nos é completamente desconhecida, e nem sabemos onde ficam seus monumentos mais importantes. Como poderíamos ter encontrado exatamente o templo deles e ainda por cima à noite? Além disso, se tivéssemos dado a eles nossa urina, teriam nos prendido antes de terminarmos de urinar. Afinal, não é tão difícil capturar alguém nesse momento. Por que esperaram até hoje para apresentar essas acusações absurdas? Há muitas pessoas no mundo que assumem a identidade de outros para fazê-los carregar crimes inimagináveis. Como sabem que somos os culpados de tudo isso? Peço que controle sua ira, Majestade, e ordene uma investigação cuidadosa sobre o ocorrido.

O rei, que sempre foi uma pessoa volúvel e indecisa, mergulhou em um profundo dilema após ouvir o longo discurso do Peregrino. Nesse momento, o Guardião da Porta Amarela reapareceu e anunciou:

— Majestade, há um grupo de cidadãos lá fora que desejam ser recebidos por Vossa Alteza.

— Com que propósito? — perguntou o rei. Mas, antes que alguém respondesse, ordenou que fossem conduzidos à sua presença. Logo, cerca de trinta ou quarenta pessoas entraram no salão. 

Depois de baterem repetidamente a testa contra o chão em sinal de respeito, um deles se adiantou e disse:

— Durante toda a primavera deste ano, não caiu uma única gota de chuva. Tememos que, se essa seca continuar até o fim do verão, a fome devastará todos os vossos territórios. Viemos, portanto, pedir aos santos padres aqui presentes que elevem suas orações para que a chuva caia e nosso povo seja libertado dessa angústia.

— Podem se retirar — concluiu o rei. — A chuva cairá em breve.

Os cidadãos então agradeceram e se retiraram do palácio.

— Sabem por que favoreço o Tao e persigo o budismo? — perguntou o rei aos peregrinos. — Há algum tempo, os monges deste reino oraram pela chuva, mas não conseguiram arrancar uma única gota do céu. Felizmente, esses mestres taoístas desceram dos céus e nos salvaram daquela situação tão desesperadora. É por isso que os valorizo tanto. O que há de errado em exigir que paguem por terem ofendido esses sábios assim que puseram os pés nessas terras?Ainda assim, quero ser generoso com vocês. Se conseguirem fazer chover antes deles, concederei meu perdão e permitirei que sigam sua viagem para o Oeste. Caso contrário, serão presos e decapitados em praça pública.

O Peregrino sorriu e respondeu rapidamente:

— Está bem. Acham que não sabemos como produzir chuva? Para sua informação, não há nada no mundo mais fácil do que isso.


Imediatamente, o rei ordenou que preparassem um altar e trouxessem sua carruagem.

— Quero ir à Torre das Cinco Fênices para ver o que está acontecendo — declarou, visivelmente animado.

Todos os oficiais o seguiram até o local. Os taoístas se sentaram com ele no topo da torre, enquanto o monge Tang, o Peregrino, o Monge Sha e Bajie permaneceram ao pé da mesma. Não demorou muito para que um oficial se aproximasse dos três taoístas e anunciasse:

— O altar já está preparado. Podem usá-lo quando desejarem.


O Imortal da Força de Tigre juntou as mãos à altura do peito e começou a descer da torre, mas o Peregrino o interrompeu, perguntando:

— Posso saber para onde vai?

— Estou indo invocar a chuva no altar que acabaram de preparar — respondeu o taoísta.

— Mas que falta de educação! — repreendeu o Peregrino. — Deveriam nos deixar tentar primeiro, já que viemos de tão longe. Mas, como diz o provérbio, "há momentos em que um dragão não pode derrotar um verme". Se querem tentar primeiro, não me oponho. No entanto, precisamos combinar uma coisa antes.

— Combinar o quê? — perguntou o taoísta, confuso.

Supõe-se que ambos vamos invocar a chuva — explicou o Peregrino. — Mas como saberemos se a chuva foi obra sua ou minha? É claro que cada um vai querer levar o crédito. Não concorda?


— Que monge astuto! — pensou o rei, claramente satisfeito.

O Monge Sha, por sua vez, balançou a cabeça e murmurou para si mesmo:

— Ele mal começou... Espere e verá.

— Não preciso de nenhum tipo de acordo prévio — afirmou o Imortal da Força de Tigre — Sua Majestade conhece bem a minha forma de agir.

— Mas eu não conheço — respondeu o Peregrino. — Venho de muito longe, nunca os vi antes e não estou familiarizado com seus métodos. Não quero acabar discutindo com vocês. Discutir não faz parte da minha natureza. Prefiro deixar tudo claro antes de agir.

— Está bem — admitiu o Imortal da Força de Tigre. — Quando eu estiver diante do altar, usarei minha tábua ritual como prova irrefutável de que todo o mérito será meu. Assim que a agitar uma vez, o vento se levantará; na segunda, as nuvens se agitarão; na terceira, o estrondo do trovão será ouvido e o raio rasgará o céu; na quarta, a chuva começará a cair; e na quinta, a chuva cessará e as nuvens se dissiparão com a mesma rapidez com que se formaram.

— Parece impressionante — disse o Peregrino, sorrindo. — Vá em frente. Nunca vi tamanha eficácia.

O Imortal da Força de Tigre desceu a torre a passos largos, seguido por Sanzang e os outros. Ao se aproximarem do altar, notaram que era uma plataforma de cerca de dez metros de altura. De ambos os lados, erguiam-se fileiras de estandartes com os nomes das vinte e oito constelações, projetando sombra sobre um grande incensário disposto sobre uma mesa no topo do altar. Dois candelabros com velas acesas ladeavam o incensário, junto ao qual repousava uma tábua de ouro com os nomes dos deuses do trovão gravados. Logo abaixo, cinco recipientes transbordavam com água pura, onde flutuavam ramos de salgueiro amarrados a finas placas de ferro contendo feitiços para compelir os espíritos do trovão a agirem. Ao redor da mesa, erguiam-se cinco colunas imponentes, cada uma ostentando o nome de um senhor do trovão dos cinco pontos cardeais. Dois taoístas, postados junto a cada coluna, batiam incessantemente suas varas com bastões de ferro, enquanto outros escreviam preces e as queimavam em braseiros atrás do altar. Figuras em papel representando espíritos e divindades locais também eram lançadas nesses braseiros. Com um gesto solene, o Imortal da Força de Tigre dirigiu-se ao altar. Um jovem taoísta aproximou-se e lhe entregou feitiços escritos em papéis amarelos, além de uma espada ricamente ornamentada. O Imortal pegou os papéis e os queimou em um dos candelabros. enquanto outros taoístas lançaram às chamas uma oração sagrada e uma imagem portando um amuleto. Em seguida, ele ergueu a tábua ritual e a golpeou contra a mesa. No mesmo instante, uma brisa suave começou a soprar, intensificando-se a cada segundo que passava.


— Santo céu! — exclamou Bajie, surpreso. — Esse taoísta sabe bem o que está fazendo. Prometeu que ao primeiro golpe o vento se levantaria, e foi exatamente o que aconteceu.

— Fique quieto e vá se juntar ao mestre — advertiu o Peregrino. — Deixe-me resolver isso do meu jeito.

Ele então arrancou um fio de cabelo e soprou nele, ordenando:

— Transforme-se!

Imediatamente, o fio de cabelo se transformou em uma cópia sua, que ficou ao lado do monge Tang. 


Enquanto isso, o verdadeiro Peregrino subiu aos céus e perguntou com autoridade:

— Quem é o responsável pelo vento aqui?


Seus gritos assustaram tanto a Velha do Vento que ela imediatamente fechou sua bolsa de furacões, enquanto seu filho a amarrava firmemente com uma corda. Sem perder tempo, prestaram seus respeitos ao Peregrino, que, antes que pudessem falar, explicou:

— Estou a caminho do Paraíso Ocidental, acompanhando o monge Tang em busca das escrituras sagradas. Ao chegar no Reino da Carreta Lenta, fui forçado a competir contra um taoísta arrogante para ver quem faria chover primeiro. Como ousam ajudá-lo e prejudicar a mim? Vocês mereciam levar uma surra, mas estou disposto a perdoá-los… desde que recolham o vento agora mesmo. Se um único sopro de brisa persistir, juro que lhes darei vinte golpes com meu bastão de ferro. Entenderam?

— Sim, senhor, entendemos perfeitamente — respondeu a Velha do Vento com a voz trêmula, e num instante, o vento cessou.

O rosto de Bajie se iluminou, e ele gritou, zombando do Imortal:

— Ei, desçam daí! Vocês bateram na tábua uma vez, e o vento parou de soprar. Por que não nos deixam tentar também?

O taoísta ignorou a provocação de Bajie, queimou outro pedaço de papel com um feitiço e bateu mais uma vez a tábua sobre a mesa. Imediatamente, as nuvens se agitaram. Irritado, o Grande Sábio gritou:

— Quem é o responsável pelas nuvens?

O Jovem que Empurra as Nuvens e o Menino que Espalha a Névoa correram para cumprimentá-lo e pedir desculpas. Quando o Peregrino explicou o que estava acontecendo, eles fizeram as nuvens desaparecerem, deixando o sol brilhar mais forte do que o habitual. O céu permaneceu limpo num raio de dez mil quilômetros.


— Este falso imortal conseguiu enganar o rei e seus súditos uma vez, mas está claro que ele não possui poder algum! — exclamou Bajie, soltando uma gargalhada. — Como pode não haver uma única nuvem depois que ele bateu na tábua duas vezes? Nunca vi alguém tão mentiroso!


O taoísta parecia nervoso e não parava de passar as mãos pelos cabelos. Finalmente, pegou a espada, queimou outro papel amarelo e bateu a tábua na mesa com força. De imediato, apareceram, vindos da Porta Sul dos Céus, o Senhor Celeste Deng, o Conde do Trovão e a Mãe do Relâmpago. Ao avistarem o Peregrino, eles o saudaram respeitosamente.

— O que os trouxe tão depressa? — perguntou o Grande Sábio.

— A magia desse taoísta é genuína — respondeu o Senhor Celeste. — Suas orações chegaram aos ouvidos do Imperador de Jade, que enviou sua aprovação à residência do Imortal do Trovão, no Nono Céu. Ele, por sua vez, nos ordenou vir para trazer a chuva e espalhar trovões e relâmpagos por toda parte.

— Poderiam esperar um momento e me prestar um favor? — perguntou o Peregrino.

Eles concordaram e, no instante seguinte, o som do trovão e o brilho do raio cessaram.


Desesperado, o taoísta queimou mais incenso, recitou novos feitiços e bateu na tábua de ouro com ainda mais força. Dessa vez, surgiram os Reis Dragões dos Quatro Mares. Depois de saudá-los, o Peregrino perguntou:

— Posso saber para onde estão indo?

Ao-Kuang, Ao-Shun, Ao-Jun e Ao-Shin devolveram o cumprimento e ouviram atentamente as explicações do Peregrino.

— Receio que terei que abusar da vossa confiança mais uma vez — disse o Peregrino.

— Não se preocupe com isso — responderam os dragões. — Para nós, é um prazer poder ajudá-lo.

— Ainda não lhe agradeci por enviar seu filho para capturar o monstro que mantinha o meu mestre prisioneiro — disse o Peregrino a Ao-Jun.

— Ele está acorrentado no fundo do mar, mas ainda não decidi o que fazer com ele — respondeu Ao-Jun. — Gostaria de saber, o que você faria, se estivesse no meu lugar?

— Faça com ele o que achar melhor — respondeu o Peregrino. — O que me preocupa agora é derrotar esse taoísta. Ele já bateu quatro vezes na tábua de ouro. Acho que chegou a hora de mostrar do que sou capaz. O problema é que não conheço nenhum feitiço para produzir chuva, então dependo completamente de vocês.

— Quem se oporia a obedecer suas ordens? — replicou o Senhor Celeste. — No entanto, é preciso que nos dê um sinal claro, para que possamos agir de forma ordenada. Caso contrário, o trovão e o raio se misturarão, e ninguém acreditará nas suas palavras.

Entendo — reconheceu o Peregrino. — Neste caso, usarei então o meu bastão de ferro.

— O bastão de ferro? — repetiu, aterrorizado, o Conde do Trovão. — Não seremos capazes de suportar sua força.

— Não pretendo bater em ninguém — afirmou o Peregrino, tentando tranquilizá-lo. — Só preciso que vocês fiquem atentos a ele. Quando eu levantar o bastão pela primeira vez, vocês devem criar um vento forte.

— Entendido — disseram a Velha do Vento e seu filho. — Quando virmos você levantar o bastão pela primeira vez, abriremos a bolsa dos ventos.

— Quando eu o levantar pela segunda vez — continuou o Peregrino —, vocês devem espalhar as nuvens.

— Entendido — responderam o Jovem que Empurra as Nuvens e o Menino que Espalha a Névoa. —  Levante-o duas vezes e nós agiremos.

— Quando eu o levantá-lo pela terceira vez  prosseguiu o Peregrino —, vocês farão os trovões rugirem e os raios relampejarem.

— Pode contar conosco — disseram apressados o Conde do Trovão e a Mãe do Relâmpago. — Tenha a certeza de que não falharemos.

— E, por fim — concluiu o Peregrino —, quando eu o levantar pela quarta vez, a chuva começará a cair.

 Assim será feito — afirmaram em conjunto os Reis Dragões.


— Mais uma coisa — acrescentou o Peregrino. — Quando eu levantar a barra novamente, quero que o sol brilhe e o tempo volte a ficar bom. Não errem. Já sabem o que os espera se falharem.

Assim que deu essas ordens, o Peregrino saltou do alto e recuperou o fio de cabelo que havia arrancado. Ninguém percebeu a mudança, pois todos o olhavam com olhares mortais. Ao ver que todas as tentativas do taoísta haviam falhado, o Grande Sábio exclamou:

— Desistam de uma vez! Quatro vezes seguidas bateram sua tábua, e tudo o que conseguiram foi um vento fraco, umas nuvens murchas, alguns trovões dispersos… e nada de chuva.  Acho que chegou a hora de me deixarem agir.


O taoísta não teve outra escolha a não ser ceder seu posto e abandonar o altar. Com um gesto abatido, retornou à torre.

— Acho que vou segui-lo e ver o que ele vai contar ao rei — pensou o Peregrino.

Discretamente, ele acompanhou o taoísta até a presença do rei. Ao chegar, ouviu o rei perguntar, impaciente:

— Todos aguardamos ansiosos pelos seus golpes na tábua. Como explica que a ouvimos quatro vezes  e não tenha caído nem uma gota de chuva?

— Sinto muito, majestade — respondeu o taoísta, envergonhado —, mas os dragões não estavam em casa hoje.

— Como assim, não estavam? — retrucou o Peregrino com voz firme. — É claro que eles estavam em seus palácios! O problema é que sua magia não é poderosa o bastante para trazê-los até aqui. Se nos permitir tentar, verá como é verdade o que acabei de lhe dizer.


— Está bem — concluiu o rei. — Suba ao altar e mostre do que é capaz.

O Peregrino se dirigiu à parte de trás do altar e, empurrando suavemente o monge Tang, ordenou:

— Suba ao altar.

— Para quê? — protestou o monge Tang. — Sou incapaz de fazer chover!

— Ele está tentando se esconder atrás de você, mestre — comentou Bajie soltando uma gargalhada. — Não percebe que, se falharem, será você o primeiro a ser lançado na pira dos sacrifícios?

— Embora não saiba nada sobre magia — disse o Peregrino, ignorando a provocação de Bajie e olhando nos olhos do monge Tang —, você sabe recitar escrituras, certo? Faça isso, enquanto eu cuido do resto.

O mestre subiu ao altar com um ar solene e sentou-se, entrando imediatamente em um estado de profunda concentração. Com devoção indescritível, ele começou a recitar o Sutra do Coração. Pouco depois, um soldado enviado pelo rei chegou a galope e perguntou:

— Por que não estão queimando feitiços nem fazendo soar suas tábuas?


— Porque não é necessário fazer barulho para conseguir o que se deseja — respondeu o Peregrino. — Confiamos no silêncio e na concentração da oração.

O soldado transmitiu fielmente a resposta ao rei. Assim que o Peregrino percebeu que o mestre havia terminado a recitação do sutra, ele retirou o bastão da orelha e a agitou uma única vez na direção do vento. Imediatamente, ela se estendeu até alcançar doze metros de comprimento e a grossura de uma grande tigela de arroz. Com incrível destreza, ele a ergueu e a sacudiu vigorosamente. 


Ao ver isso, a Anciã do Vento abriu sua bolsa de ventos, enquanto seu filho puxava a corda que a mantinha fechada. No instante seguinte, um vendaval poderoso varreu a cidade. O estrondo do vento mergulhou os habitantes em pavor absoluto. Telhas e pedras voaram dos telhados como folhas de salgueiro, e um furacão com uma força nunca antes vista varreu a região. Árvores foram arrancadas, flores destruídas e os bosques tornaram-se intransitáveis. Até os salões imperiais foram atingidos. Paredes racharam, ameaçando ruir a qualquer momento, e a majestosa Torre das Cinco Fênices tremeu em seus alicerces. A tempestade levantou tanta areia que o sol perdeu seu brilho, adquirindo uma estranha tonalidade avermelhada. Os guerreiros do império tremiam de medo em seus quartéis, assim como os ministros mais capacitados e as donzelas que serviam nos Três Palácios. O terror era tão grande que elas mesmas se encarregaram de fechar as portas. As mulheres das Seis Câmaras  perderam seus adornos elegantes, e seus cabelos ficaram tão desarrumados quanto os de uma camponesa. Até os nobres perderam seus chapéus dourados, e os mais ricos viram, impotentes, seus enfeites de jade serem arrancados pelo vento. A túnica do primeiro-ministro voava como uma nuvem negra no horizonte. Ninguém se atrevia a falar. Pelos corredores do palácio, voavam papéis oficiais, peixes dourados, cintos de jade, tábuas de marfim e túnicas de seda. Biombos de turquesa foram destruídos, e milhares de portas e janelas arrebentadas. O vento arrancou telhas e tijolos do Salão dos Carilhões de Ouro, e as portas decoradas do Salão das Nuvens Bordadas caíram no chão. Do rei ao mais humilde súdito, todos correram para se abrigar. As ruas e mercados ficaram desertos. A cidade inteira se refugiou na segurança de suas casas.

O Peregrino demonstrou, assim, o poder de sua magia, mas ele não estava satisfeito. Segurando firmemente o seu bastão com as extremidades douradas, ergueu-o pela segunda vez. Foi então que o Jovem que Empurra as Nuvens e o Rapaz que Espalha a Névoa mostraram seus extraordinários poderes. Do céu, desceu uma massa densa de nuvens, mergulhando a cidade em uma escuridão quase absoluta. Era impossível atravessar os três grandes mercados e as seis avenidas da cidade. As nuvens, vindas do mar, eram arrastadas para o interior pelo vento, obscurecendo tudo em seu caminho. Parecia que o caos do início dos tempos havia retornado. A escuridão era tão densa que nem a porta da Torre dos Cinco Fênices podia ser vista. Antes que as nuvens atingissem seu auge, o Peregrino ergueu seu bastão de ferro pela terceira vez. 

Imediatamente, o Conde do Trovão e a Mãe do Relâmpago entraram em ação, com uma fúria que sacudiu o universo. O Conde cavalgava uma besta selvagem, enquanto a Mãe brandia serpentes de ouro como se estivesse enlouquecida.O trovão explodiu com um estrondo ensurdecedor, fazendo tremer as raízes da Montanha do Tridente de Ferro. Os relâmpagos pareciam vir do fundo do Oceano Oriental, iluminando o céu como carroças de fogo.

O barulho da tempestade era tão forte que parecia reviver os mortos, fazer as sementes brotarem antes da hora e acordar os insetos de seu sono invernal (2). O rei e seus súditos ficaram apavorados. Mercadores e comerciantes  tomados pelo terror, acreditavam estar à beira da loucura. Era como se a terra estivesse se abrindo e as montanhas fossem jogadas em abismos de fogo. Os moradores da cidade, em desespero, queimavam incensos e papéis-moeda, implorando aos céus por misericórdia.

Velho Deng (3)! gritou o Peregrino. — Elimine alguns oficiais gananciosos e corruptos, e os filhos ingratos que não cumprem seu dever para com os pais! Que isso sirva de exemplo ao povo.

Para tornar suas palavras mais convincentes, o Senhor do Trovão intensificou os estrondos. Visivelmente satisfeito, o Peregrino ergueu o bastão de ferro pela quarta vez, e os reis dragões ordenaram que a chuva fosse liberada. Ela caiu com tanta fúria que cobriu o mundo em um véu de águas torrenciais. Sua força foi tamanha que derrubou diques e muros de contenção, e fez com que os rios transbordassem, arrastando pontes e inundando as mesetas mais altas. Era como se as comportas celestiais tivessem se aberto e o Rio da Prata tivesse desabado sobre a terra, danificando torres e alagando os terraços dos palácios mais imponentes. As ruas se transformaram em canais por onde fluía o conteúdo de enormes tonéis virados de cabeça para baixo.


Não é de se estranhar que as casas estivessem completamente inundadas e que as pontes tivessem desaparecido sob as águas. Os campos cultivados foram transformados em vastos oceanos, onde ondas revoltas se espalhavam. Outros dragões menores também contribuíram, elevando o nível do rio Yangtze e despejando suas águas impiedosamente sobre a terra. A chuva começou pela manhã e não cessou até depois do meio-dia. A precipitação foi tão intensa que todas as vielas e ruas do Reino da Carroça Lenta ficaram submersas. 

Assustado, o rei ordenou:

— Que essa chuva pare imediatamente! Caso contrário, as colheitas serão destruídas e o remédio terá sido pior do que a doença.

Imediatamente, um soldado da Torre das Cinco Fênices partiu para informar aos monges:

— Nosso rei considera que já choveu o suficiente.

O Peregrino ergueu novamente o bastão de ferro para o alto e, instantaneamente, os trovões cessaram, o vento amainou, a chuva parou e as nuvens se dispersaram. 


O rei estava encantado e, maravilhado, exclamou junto a seus subordinados:

— Que monge extraordinário! Hoje, de fato, se tornou realidade o que diz o provérbio: "Por mais forte que alguém seja, sempre há outro que o supera". É verdade que nossos mestres taoístas têm o poder de produzir chuva, mas a deles é muito mais fraca que essa e, leva meio dia para cessar por completo. O que acabamos de presenciar é realmente inacreditável. Esses monges podem controlar o clima como bem entendem! O sol acaba de surgir, e não resta uma única nuvem no céu!

O rei subiu em sua carruagem e ordenou que seu séquito retornasse ao palácio para conceder ao monge Tang a autorização de viagem que ele havia solicitado. 


No momento em que estava prestes a carimbar o documento com o selo imperial, os taoístas apareceram e protestaram:

— A chuva de hoje não é obra dos monges, mas sim da superioridade invencível do taoísmo!

— Não tentem se vangloriar agora — repreendeu o rei. — Vocês mesmos disseram que não conseguiram fazer chover porque os Reis Dragões não estavam em casa quando os conjuraram. O monge, porém, subiu ao altar, recitou algumas orações e, instantaneamente, a chuva veio. Como podem afirmar que o mérito não é dele?

— Está se esquecendo de algo muito importante — retrucou o Imortal da Força de Tigre. — As ordens já haviam sido dadas. Eu mesmo as enviei à morada dos dragões por meio de feitiços, encantamentos e do rítmico golpe de minhas tábuas de ouro. Se os Reis Dragões não atenderam meu chamado de imediato, foi porque, sem dúvida, estavam em outro lugar, realizando os mesmos serviços que eu lhes havia solicitado. O mesmo ocorreu com os responsáveis pelo vento, pelas nuvens, pelo raio e pelo trovão. Afinal, todos trabalham em equipe. Mas, assim que minha ordem chegou aos seus ouvidos, apressaram-se em vir aqui, chegando exatamente no momento em que eu descia do altar e o monge subia. O budista não perdeu a oportunidade e a chuva caiu em abundância. No entanto, fui eu quem trouxe os dragões e pedi que fizessem chover. Como pode afirmar, então, que todo o mérito é dos monges?

O rei, com sua natureza volúvel, acreditou de imediato nas explicações dos mestres taoístas. O Peregrino percebeu de imediato a mudança de atitude e, juntando as mãos à altura do peito, deu um passo à frente e disse:

— Vamos esquecer o passado e deixemos de discutir sobre quem merece os créditos pelo  ocorrido. Para estabelecer de uma vez por todas a superioridade de nossa doutrina, proponho o seguinte: os Reis Dragões dos Quatro Mares ainda estão voando pelos ares de vosso reino, aguardando que lhes conceda a permissão para se retirar. Se o Imortal Preceptor for capaz de fazê-los se apresentar neste palácio, para que todos possam vê-los, admitirei que o mérito foi exclusivamente dele.


— Ocupo este trono há vinte e três anos e nunca vi um dragão — afirmou o rei, entusiasmado. — Aceito sua proposta. Façam uso de seus poderes mágicos e aquele que conseguir ficará com o mérito de ter causado a chuva.

Os taoístas não possuíam tanta autoridade e, mesmo que possuíssem, os Reis Dragões os ignorariam, pois respeitavam mais o Grande Sábio. Derrotados, abaixaram a cabeça e admitiram:

— Não podemos fazer algo tão absurdo. Que ele tente, então!


O Grande Sábio ergueu a cabeça e gritou com toda a sua força:

— Ei, Ao-Kuang! Onde você está? Chame seus irmãos e venham até aqui!

Os Reis Dragão obedeceram de imediato e se manifestaram diante de todos que estavam naquele momento no Salão dos Carilhões de Ouro, movendo-se entre uma nuvem de incenso e neblinas. Seus movimentos eram circulares, traçando desenhos complicadíssimos no ar. Suas garras pareciam anzóis de jade branco, suas escamas de prata brilhavam como espelhos, seus pelos lembravam seda e eram completamente distintos uns dos outros. Seus chifres possuíam uma perfeição própria de joias, suas frentes eram tão rugosas quanto uma montanha, e seus olhos redondos emitiam a luz de dez mil fogueiras. Sua natureza era tão carregada de mistério que, mesmo naquela epifania, não podia ser totalmente compreendida. Até seu voo era impossível de descrever. Assim eram os seres que concedem a chuva a quem a pede com humildade e semeiam os céus de luz a pedido de quem a suplica com devoção. A forma como se manifestaram naquele dia era a mais apropriada para criaturas tão poderosas e santas como eles. Todo o palácio imperial foi envolvido por uma aura de luz sagrada. O rei apressou-se a queimar um pouco de incenso, enquanto os outros funcionários corriam para se inclinar diante dos degraus de jade.


— Vocês foram muito amáveis ao nos revelar vosso verdadeiro rosto — exclamou o rei —, mas agradeceria se retornassem aos vossos palácios assim que possível. Prometo realizar uma grande cerimônia em reconhecimento a este gesto que tiveram conosco hoje.

— Vocês já podem se retirar — repetiu o Peregrino. — Já ouviram o que o rei lhes prometeu.

Os dragões retornaram aos seus respectivos mares, e os outros deuses seguiram seu exemplo, dirigindo-se diretamente aos céus. Assim ficou demonstrado que o verdadeiro poder mágico é ilimitado e que nada pode resistir à verdade contra os excessos da heresia.

Por enquanto, não sabemos se isso foi suficiente para fazer os taoístas se curvarem. Quem desejar descobrir, terá que ouvir as explicações que serão dadas no próximo capítulo.

CAPITULO XLVI EM BREVE ...

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Notas do Capítulo XLV

  1. As cataratas de Lü-Liang são duas cachoeiras gêmeas localizadas em Dungshan, na província de Jiangsu;
  2. Uma clara alusão ao terceiro dos vinte e quatro períodos solares, "o reavivamento dos insetos", que costumava coincidir com a primeira quinzena de março;
  3. Deng é o sobrenome do Deus do Trovão.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:

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