۞ ADM Sleipnir
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Arte de Moyi Zhang
CAPÍTULO XLVIII:
LEVANTANDO UM VENTO GÉLIDO, O MONSTRO PROVOCA UMA GRANDE NEVASCA. MOVIDO PELO DESEJO DE SE ENCONTRAR COM BUDA, O MONGE CAMINHA SOBRE O GELO.
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Os aldeões da vila Chen seguiram em direção ao Templo do Poder Numinoso, levando o Peregrino, Bajie, e uma grande quantidade de ovelhas, porcos, bois e vinho. Lá, dispuseram todas as oferendas, incluindo o menino e a menina, no local mais destacado. O Peregrino moveu ligeiramente a cabeça e percebeu que não haviam poupado esforços nos preparativos. O incenso, as flores e as velas estavam por toda parte, em grande quantidade. No altar, não havia nenhuma imagem, apenas uma simples lápide com letras douradas onde se lia:
"O Deus e Grande Rei do Poder Numinoso."
Quando todos os devotos terminaram de organizar as oferendas, prostraram-se ao chão e, batendo a testa incessantemente contra o solo, clamaram em uníssono:
— Nesta hora, deste dia, deste mês e deste ano, o primeiro dos crentes da aldeia dos Chen, Chen Cheng, oferece, conforme a tradição, um menino e uma menina, chamados Chen Guanbao e Bacia de Ouro. Junto a eles, temos a honra de apresentar uma grande quantidade de porcos e ovelhas, para que possas desfrutar de sua carne à vontade. Em troca, suplicamos que nos concedas chuva na época certa e uma colheita abundante.
Após a invocação, os aldeões queimaram cavalos de papel e uma grande soma em dinheiro simbólico para os espíritos, antes de retornarem às suas casas.
Quando o local já estava deserto, Bajie voltou-se para o Peregrino e sugeriu:
— É melhor voltarmos para casa também.
— E onde exatamente seria sua casa? — perguntou o Peregrino.
— Bem... — murmurou Bajie, tentando se explicar. — Quero dizer, voltar para a casa do velho Chen e descansar um pouco.
— Você só fala besteira! — repreendeu-o o Peregrino. — Só um tolo promete fazer algo e depois não cumpre.
— O tolo aqui é você! — retrucou Bajie. — Viemos para nos divertir um pouco com os Chen. Não vai me dizer que realmente pretende se deixar sacrificar por eles, não é?
— Quem se compromete a ajudar alguém deve ir até o fim — sentenciou o Peregrino. — Precisamos esperar o Grande Rei aparecer e tentar nos devorar. Se fugirmos, ele continuará atormentando essa aldeia, e isso não seria nada justo, concorda?
O Peregrino mal havia terminado de falar, quando um vento fortíssimo rugiu do lado de fora.
— Santo céu! — exclamou Bajie, assustado. — Um vento desses só pode ser sinal de que ele chegou!
— Fique quieto e me deixe falar — ordenou o Peregrino.
Não demorou para que o monstro surgisse na entrada do templo. Ele usava um elmo e uma couraça tão brilhantes que pareciam recém-forjados. Na cintura, ostentava um cinto de valor incalculável, adornado com um padrão de nuvens vermelhas. Seus olhos enormes reluziam na escuridão como estrelas, e seus dentes afiados lembravam a lâmina de uma serra. Ele estava envolto em uma névoa densa e misteriosa, especialmente espessa ao redor das pernas. A cada passo, exalava um frio cortante, mas, quando parava, uma aura quente o envolvia. Sua figura lembrava a do Marechal Que Levanta a Cortina, ou daqueles deuses colossais pintados nas portas dos monastérios.
— Qual família ficou responsável este ano por fornecer as oferendas para o sacrifício? — perguntou o monstro, parando no umbral da porta.
— Agradeço pela pergunta — respondeu o Peregrino, sorrindo com inocência. — Este ano, esse privilégio coube aos senhores Chen Cheng e Chen Qing.
— Esse garoto não é apenas corajoso — pensou o monstro, surpreso —, mas também muito bem-educado. Os outros meninos mal conseguiam abrir a boca. O medo os sufocava, e eles esqueciam até como falar. Quando caíam em minhas mãos, já estavam praticamente mortos. Como pode esse jovem rapaz ainda responder de maneira tão inteligente?
O monstro hesitou em devorar suas vítimas de imediato e continuou a interrogá-las:
— Como vocês se chamam?
— Eu me chamo Chen Guanbao — respondeu o Peregrino, mantendo o sorriso —, e ela se chama Bacia de Ouro.
— Como já devem saber — explicou o monstro —, esse sacrifício é uma tradição anual. Lamento que tenha sido a vez de vocês, mas irei devorá-los agora mesmo.
— Não se preocupe — disse o Peregrino. — Não temos a menor intenção de resistir. Pode nos devorar quando quiser.
Ao ouvir isso, o monstro hesitou ainda mais em atacar. Ainda parado no umbral, ele bradou:
— Não seja tão insolente! — exclamou. — Todos os anos começo devorando o menino, mas acho que, desta vez, irei começar pela menina.
— Ó Grande Rei, siga o costume por favor! — exclamou Bajie, apavorado. — Por que mudar uma tradição tão antiga?
O monstro se recusou a ouvi-lo e estendeu os braços na tentativa de agarrá-lo. No entanto, nesse exato momento, Bajie saltou da mesa e retomou sua forma original. Empunhando seu ancinho, ele desferiu um golpe violento nos braços do monstro.
O monstro recuou rapidamente tentando fugir, mas Bajie avançou novamente sobre ele conseguido arrancar-lhe algo, que caiu no chão com um estrondo metálico.
— Acho que perfurei a couraça dele! — gritou Bajie.
O Peregrino se livrou do disfarce e correu para ver do que se tratava. Ao se aproximar, constatou que eram apenas duas escamas de peixe, cada uma do tamanho de um prato.
— Não o deixe escapar! — ordenou o Peregrino, e os dois alçaram voo quase ao mesmo tempo.
O monstro, certo de que participaria de um banquete, não havia trazido consigo nenhuma arma. Após parar sobre uma camada de nuvens, ele perguntou aos seus perseguidores:
— Pelo visto, você é apenas um monstro ignorante — rebateu o Peregrino. — Somos discípulos do monge Sanzang, um sábio do Grande Império Tang, das Terras do Leste. Recebemos uma missão do próprio imperador para buscar as escrituras sagradas no Paraíso Ocidental. Ontem à noite, a família Chen nos recebeu em sua casa, onde soubemos da existência de um monstro cruel que se faz passar por uma divindade chamada de Grande Rei do Poder Numinoso. Você é tão sanguinário que exige, todos os anos, o sacrifício de uma menina e um menino. Comovidos pelo sofrimento daquele povo, decidimos salvar as vidas das vítimas deste ano e cobrar explicações sobre sua conduta desprezível. Se reconhecer sua culpa e explicar as razões que o levaram a assumir essa falsa identidade, talvez o perdoemos. Caso contrário, terá o mesmo destino das crianças inocentes que devorou sem piedade. Há quanto tempo comete esses atos desumanos?
Ao ouvir essas palavras, o monstro não respondeu. Apenas virou-se e fugiu o mais rápido que pode. Bajie tentou atingi-lo com o ancinho mas não teve sucesso, pois a criatura transformou-se em uma rajada de vento violenta e desapareceu entre as águas do Rio que Alcança o Céu.
— Não há necessidade de persegui-lo — comentou o Peregrino. — Esse monstro, sem dúvida, é uma besta aquática. O melhor é esperarmos o amanhecer para capturá-lo. Assim, poderemos obrigá-lo a levar o mestre até a outra margem.
Bajie aceitou a ideia sem hesitar. Eles retornaram ao templo, recolheram as oferendas e o gado e seguiram para a casa da família Chen. Os anciãos, o mestre e o Monge Sha estavam apreensivos com a demora. Assim que os viram chegar ao pátio, trazendo tudo o que fora destinado ao sacrifício, correram ao encontro deles e perguntaram:
— Como foi o encontro com a criatura?
O Peregrino então contou como o monstro havia fugido, desaparecendo entre as águas do rio assim que soube quem eles eram. Os anciãos ficaram encantados e ordenaram aos criados que preparassem os aposentos para que o mestre e seus discípulos pudessem descansar.
Enquanto isso, no coração do rio, o monstro havia retornado ao seu palácio submerso. Sentou-se em silêncio por tanto tempo que seus súditos começaram a temer que algo estivesse errado. Por fim, um deles tomou coragem, aproximou-se e perguntou:
— Grande Rei! O senhor normalmente volta para casa satisfeito após o sacrifício. Por que, este ano, parece tão irritado?
— Nos anos anteriores — respondeu o monstro —, depois de me banquetear, sempre conseguia trazer algumas sobras para que vocês também pudessem desfrutar. Hoje, porém, nem mesmo eu pude comer nada. Tive o grande azar de encontrar um adversário e quase perdi a vida.
— Como isso é possível, Grande Rei? — exclamaram, horrorizados. — Quem ousou se opor à sua vontade?
— Um discípulo de um monge do Grande Império Tang, das Terras do Leste. Ele está a caminho do Paraíso Ocidental para buscar as escrituras sagradas. Aquele atrevido se disfarçou como um menino e ficou me esperando no templo, acompanhado de um amigo que assumiu a forma de uma menina. Em um momento em que eu menos esperava, recuperaram suas verdadeiras aparências e quase me destruíram. Há algum tempo, ouvi dizer que esse tal Tang Sanzang é, na verdade, um homem virtuoso, que se dedicou à prática do bem por mais de dez reencarnações consecutivas. Dizem que aquele que provar um pedaço sequer de sua carne alcançará a imortalidade. No entanto, eu não imaginava que teria discípulos tão ferozes. Esses miseráveis não apenas arruinaram minha reputação, como também se apoderaram de todas as minhas oferendas. Eu tinha esperança de capturar o monge Tang, mas agora não sei se conseguirei.
Dentre os súditos do monstro, uma perca listrada, já envelhecida, avançou, inclinou-se respeitosamente e disse:
— Se deseja capturar o monge Tang, nada poderia ser mais fácil. A questão é: estaria disposto a me recompensar com um pouco de licor e carne pelos meus serviços?
— Se conseguir capturar o monge Tang — afirmou o monstro —, selarei contigo um pacto de irmandade e permitirei que se sente à minha mesa, para que também desfrute de sua carne.
A perca agradeceu a generosidade e acrescentou:
— Sei que Vossa Majestade possui o poder de levantar ventos, provocar chuvas e agitar mares e rios. Mas será que também pode fazer nevar?
— É claro que sim — respondeu o monstro.
— E cobrir toda a paisagem com gelo, fazendo cair geada dos céus? — insistiu a perca.
— Sim, também sou capaz disso — confirmou o monstro.
— Nesse caso — concluiu a perca, batendo palmas de alegria —, seu desejo está prestes a se realizar.
— Não estou entendendo — disse o monstro, impaciente.
— Esta noite, na durante a terceira vigília — explicou a perca —, Vossa Majestade deve usar sua magia para convocar um vento gelado e uma forte nevasca, tão intensa que irá congelar o Rio que Alcança o Céu. Aqueles entre nós que têm a capacidade de se transformar assumirão formas humanas e viajarão para o Oeste, carregando bagagens e puxando carroças pesadas. Nos posicionaremos sobre o rio e faremos de tudo para que o monge nos veja. O monge Tang deve estar ansioso para obter às escrituras e, ao ver pessoas atravessando dessa maneira, certamente tentará cruzar o rio andando sobre o gelo. Então, tudo o que precisará fazer é aguardar no centro do rio. Assim que ouvir o som leve de seus passos, quebre o gelo e capture tanto o mestre quanto seus discípulos. Eles cairão em suas mãos como frutas maduras.
— Fantástico! — exclamou o monstro, visivelmente satisfeito. — Este é um plano extraordinário!
Então, abandonando sua morada aquática, o monstro ergueu-se pelos ares, começando a acumular o ar frio, que logo congelou tudo ao redor, desencadeando uma intensa nevasca.
Enquanto isso, o monge Tang e seus três discípulos dormiam tranquilamente na casa da família Chen. Pouco antes do amanhecer, um frio cortante tomou conta do ambiente, tornando as mantas e cobertores praticamente inúteis. Bajie não parava de espirrar, incapaz de pegar no sono. Por fim, tremendo da cabeça aos pés, exclamou:
— Que frio terrível! Vocês também estão sentindo?
— Mas que exagero! — repreendeu o Peregrino. — Quando vai entender que aqueles que renunciaram à vida mundana não podem se deixar abalar nem pelo frio, nem pelo calor? Impressionante como um monge como você dá tanta importância à temperatura.
— Para falar a verdade, está realmente insuportável — interveio Sanzang. — As mantas são espessas, mas não aquecem nem um pouco. Minhas mãos estão dentro das mangas, mas quase não as sinto. Não me surpreenderia se todas as flores tivessem murchado e as folhas sucumbido à geada. Até os pinheiros devem estar cobertos de gelo. Com um frio desses, a terra se racha como a pele de um ancião, e a água dos lagos se torna sólida como pedra. Os pescadores certamente abandonaram seus barcos, e nos templos das montanhas, talvez não tenha restado um único monge. Que destino amargo o do lenhador, que não pode sair para cortar madeira e produzir carvão! A temperatura está tão baixa que a barba dos soldados deve ter congelado, parecendo feita de aço. O mesmo deve ter acontecido com o pincel do poeta, impedindo-o de escrever seus devaneios. Nem os casacos de couro são páreo para essa geada, e até as peles mais grossas parecem leves demais. Os monges idosos devem estar encolhidos sobre suas esteiras de palha, mal conseguindo se mover. Que azar o dos viajantes que se aventuraram pelas estradas numa noite como esta! Ninguém escapou do açoite do frio. Por mais pesadas e grossas que sejam as mantas, o corpo não para de tremer.
Nem o mestre nem os discípulos conseguiram mais dormir, então se levantaram e se vestiram. Ao abrir a porta para olhar lá fora, ficaram surpresos ao ver que tudo estava coberto por um branco absoluto, imerso em uma nevasca avassaladora.
— Agora entendo por que estavam reclamando do frio — comentou o Peregrino, observando a paisagem. — A nevasca ainda nem parou.
Todos ficaram a observá-la, hipnotizados. A paisagem era, verdadeiramente, esplêndida. No céu, acumulavam-se sem cessar nuvens escuras, rapidamente dispersas por um vento gelado e insuportável. Ao nível do solo, tudo estava mergulhado numa névoa cinzenta, que mal permitia a passagem do brilho pálido da neve, que cobria cada centímetro. A neve assemelhava-se a uma flor insistente, determinada a desabrochar seis vezes, com pétalas de jade branco. Às vezes, dava a impressão de ser nada mais que uma floresta de três mil árvores de jade alvo. Quem poderia afirmar com certeza? Ora parecia farinha recém-peneirada, ora parecia sal. Uma coisa era clara: a água que se transformara em neve naquela noite era superior à que corre pelos leitos dos rios Chu ou Wu, ou à que faz florescer anualmente as incontáveis ameixeiras do sudeste. Por vezes, a nevasca se assemelhava a milhões de escamas de dragões de jade, suspensas no ar após serem arrancadas de seus donos em uma batalha feroz e humilhante. Quantas lembranças aquela visão evocava! Como não se recordar dos sapatos de Dong Guo (1), do descanso de Yuan An (2) e da forma como Sun Kang (3) estudava? A qualquer momento, esperava-se ver surgir o barco de Ziyu (4), a túnica de Wang Gong (5) ou a manta da qual Su Wu (6) se alimentou. No entanto, não havia tais maravilhas naquela paisagem, apenas uma aldeia humilde, com casas de tijolos que pareciam esculpidos em prata. Que esplêndida nevasca era aquela, conferindo dignidade ao cotidiano e fazendo tudo parecer esculpido em blocos de jade! As estalactites de gelo pendiam das pontes como galhos de salgueiro e dos beirais das casas como se fossem peras cristalinas deixadas para secar ao sol. De repente, o vento se intensificou, e os blocos de gelo tremularam como mantos de algas pendurados pelos pescadores nas pontes, ou como raízes suspensas nos telhados, que mais tarde seriam colhidas pelas mulheres em seus lares. Ninguém ousava se aventurar pelas estradas. Que importância tinha o fato de os convidados ficarem sem vinho ou de os criados não terem frutas para oferecer a seus senhores? A neve, em certos momentos, lembrava o tremular delicado das asas das borboletas, apenas para, logo depois, se transformar no voo dos gansos, dançando suavemente ao sabor do vento. Montada na brisa, saltava sobre os penhascos e apagava todos os caminhos da terra. Nada resistia ao frio que abrigava tanta beleza desoladora. Com incrível facilidade, a neve atravessava as janelas e perfurava as pesadas cortinas, que supostamente deveriam impedi-la de entrar. Ainda assim, sua presença era um presságio de prosperidade para o ano inteiro, descendo gratuitamente dos céus como uma dádiva.
Tanto o mestre quanto os discípulos permaneceram ali, hipnotizados, observando a cena como se estivessem diante de fios de seda flutuantes ou fragmentos de jade que, pouco a pouco, se fundiam em uma única pedra.Enquanto estavam encantados com tamanha beleza, viram o irmão mais velho da família Chen se aproximar, seguido por dois criados que tentavam abrir um caminho na neve com vassouras. Um pouco mais atrás, vinham outros dois carregando água quente para lavarem as mãos, chá quente e tortas de leite. Com surpreendente rapidez, reacenderam o fogo e convidaram os monges a se aproximarem da lareira.
— Posso perguntar — disse então o mestre, dirigindo-se ao ancião — se nesta respeitável região em que vivem as quatro estações do ano se manifestam plenamente? Primavera, Verão, Outono e Inverno?
— Reconheço que nossa terra fica um pouco distante daquela de onde vêm — respondeu o ancião —, mas, exceto pelos costumes, não há diferenças. Os cereais e os rebanhos são os mesmos, os benefícios que recebemos do céu não diferem, e o calor do sol nos vivifica igualmente. Como poderíamos ter estações diferentes?
— Não me interprete mal — desculpou-se Sanzang —, mas, se o que diz é verdade, como pode ter nevado tanto nesta época do ano e feito um frio tão intenso?
— Aqui — explicou o ancião —, temos geadas e neve durante todo o oitavo mês. Ontem mesmo ultrapassamos o período Bailu (7), marcando o fim do sétimo mês. O que há de estranho, então, em ainda nevar?
— Embora pareça inacreditável — respondeu Sanzang —, nas Terras do Leste só neva no inverno.
Enquanto conversavam, mais criados chegaram e montaram a mesa, servindo uma sopa de arroz para que todos pudessem se aquecer. No entanto, a nevasca não só não cessou, como se intensificou ainda mais, acumulando-se até ultrapassar meio metro de altura. Ao ver aquilo, Sanzang foi tomado pelo desespero e começou a chorar.
— Não se preocupe com isso, mestre — aconselhou o ancião Chen. — Nesta casa há comida suficiente para nos mantermos por um bom tempo. Não dê tanta importância à neve.
— Vejo que não entendem o motivo da minha angústia — respondeu Sanzang. — No ano em que parti de minha terra natal para buscar as escrituras sagradas, o próprio imperador veio se despedir de mim nos portões da capital. Com uma taça em mãos, brindou ao sucesso da missão e me perguntou: "Quando pretende retornar?". Como eu não tinha ideia da quantidade de montanhas que teria de atravessar nem dos inúmeros perigos que enfrentaria, respondi ingenuamente: "Dentro de três anos, as escrituras sagradas estarão em suas mãos". No entanto, já se passaram sete ou oito anos, e ainda não pude contemplar o rosto de Buda. Temo ter ultrapassado, e muito, o prazo que estabeleci para mim mesmo, pois esses malditos monstros insistem, vez após vez, em colocar obstáculos no meu caminho. Hoje, contudo, tive a imensa sorte de ser acolhido em sua casa. Minha intenção era pedir um barco para atravessar o rio, em retribuição pelos serviços que meus dois discípulos lhes prestaram ontem. Mas quem poderia imaginar que uma nevasca tão forte cairia, apagando todos os caminhos? Agora, duvido que consiga alcançar meu objetivo e retornar à cidade de onde parti.
— Acalme-se — disse o irmão mais velho da família Chen. — Olhando bem, você já percorreu a maior parte do caminho. O que importa se precisar ficar alguns dias em minha casa? Assim que o tempo melhorar e o gelo derreter, cuidarei pessoalmente para que atravesse esse rio, nem que para isso tenha que empregar toda a minha fortuna.
Naquele momento, um criado apareceu e os convidou para o desjejum. A conversa se tornou mais animada e, sem que percebessem, logo chegou a hora do almoço. Os pratos servidos eram tão requintados que Sanzang não pôde deixar de comentar:
— Deveriam nos tratar como membros da família, não como príncipes.
— Devemos tanto a vocês por terem salvo a vida de nossos filhos — respondeu o irmão mais velho da família Chen — que, mesmo que oferecêssemos banquetes todos os dias, jamais conseguiríamos pagar essa dívida.
A neve finalmente cessou, permitindo que as pessoas retomassem suas atividades habituais. Percebendo a tristeza de Sanzang, o irmão mais velho dos Chen ordenou que os criados removessem toda a neve do jardim. Não satisfeito, mandou buscar um enorme braseiro, que colocou ao ar livre para garantir que ninguém sentisse frio.
— Esse homem deve ter perdido o juízo! — exclamou Bajie, soltando uma gargalhada. — Quem em sã consciência sairia para apreciar um jardim depois de uma nevasca? Isso se faz no segundo ou terceiro mês, quando a primavera está em seu auge. Agora está frio demais, não há nada para admirar.
— Como você é tolo! — repreendeu o Peregrino. — A paisagem coberta de neve transmite uma calma profunda. Isso pode ajudar nosso mestre a encontrar a serenidade que parece ter perdido.
— Exatamente — confirmou o ancião, inclinando levemente a cabeça antes de conduzir seus hóspedes até o coração do jardim.
O outono parecia estar se despedindo naquela paisagem coberta de neve. A proximidade do ano novo já podia ser sentida. Os antigos pinheiros pareciam estar adornados por botões de jade, enquanto os salgueiros estavam cobertos por delicados fios de prata. O gelo não se limitava apenas a essas árvores; também se acumulava sobre os musgos congelados que revestiam os degraus do jardim. Os bambus davam a impressão de possuírem raízes de jaspe. Os pingentes de gelo formados no lago e nas montanhas artificiais lembravam brotos impossíveis de jade. Nos tanques dos peixes, a água havia se transformado em placas de gelo. Às margens, os hibiscos haviam perdido sua cor e delicadeza. O frio queimara as begônias, mas incentivara as ameixeiras de inverno a florescer novamente. A neve acumulada sobre as peônias, romãzeiras e acácias dava a impressão de que uma revoada de gansos brancos havia pousado sobre elas. Parecia que tudo estava coberto por borboletas de asas alvas. Os crisântemos, espalhados ao longo da cerca, lembravam pedaços de jade branco com bordas douradas. Os bordos, por sua vez, exibiam um vermelho vibrante, realçado por uma fina camada branca. Era impossível caminhar pelo jardim, pois o gelo tornava os caminhos intransitáveis. Assim, os visitantes se refugiaram em uma caverna, onde os criados haviam posicionado um grande braseiro, adornado com patas de elefante e rostos de bestas esculpidas. No interior, o carvão incandescente lançava brilhos avermelhados, refletindo-se nos móveis laqueados ao redor. Sobre os assentos, repousavam peles de tigre, macias ao toque e extremamente quentes. Das paredes pendiam antigas pinturas feitas por artistas renomados. Os temas eram todos bastante semelhantes: Sete Imortais atravessando um desfiladeiro (8), um pescador solitário à beira de um rio coberto de gelo, montanhas altíssimas coroadas pela neve, paisagens onde a solidão era absoluta. Outro grupo de pinturas retratava Su Wu comendo sua manta ou saindo ao encontro do mensageiro, após quebrar seu ramo de ameixeira. Para onde quer que se olhasse, repetiam-se os motivos de neve e gelo. Essa preferência era totalmente compreensível, considerando que a neve frequentemente apagava os caminhos e isolava seus habitantes do resto do mundo. Apesar de tudo, aquele era um lugar ideal para viver. Que necessidade tinham seus habitantes de sonhar em ir morar em Penghu (9)?
Os peregrinos passaram um bom tempo admirando a beleza da paisagem. Depois, acomodaram-se na caverna e começaram a conversar com seus anfitriões sobre as dificuldades da jornada em busca das escrituras. Os criados serviram um chá de aroma intenso, e o mais velho dos Chen aproveitou a oportunidade para perguntar aos visitantes:
— Gostariam de tomar um pouco de vinho?
— Perdoe-me, mas não bebo — respondeu Sanzang. — Meus discípulos, no entanto, podem tomar algumas taças de vinho vegetariano, se quiserem.
— Nesse caso — disse o ancião Chen, voltando-se para os criados —, aqueçam o vinho e tragam algumas frutas e verduras. Não podemos deixar nossos convidados passarem frio.
Os servos logo trouxeram pequenos fogareiros para aquecer o vinho e prepararam novamente a mesa. Os Peregrinos e seus anfitriões beberam algumas taças e, em seguida, todos os utensílios foram retirados. A noite já havia caído, e decidiram retornar à casa para o jantar. Eles mal haviam se sentado à mesa quando ouviram alguém comentando na rua:
— Que tempo terrível! Está tão frio que até o Rio que Alcança o Céu congelou!
Sanzang franziu a testa e perguntou a Wukong, preocupado:
— O que faremos se o rio estiver completamente congelado?
— Esse frio veio rápido demais para congelar o rio todo assim, de repente — ponderou o mais velho dos Chen. — O mais provável é que apenas as margens estejam cobertas de gelo.
No entanto, a voz na rua voltou a se manifestar:
— Toda a superfície do rio está congelada! Os oitocentos quilômetros de uma margem à outra parecem um enorme espelho. O gelo é tão resistente que as pessoas podem caminhar sobre ele sem dificuldade.
Ao ouvir que era possível atravessar o rio caminhando, Sanzang quis ir imediatamente verificar, mas foi dissuadido pelo velho Chen:
— Não seja tão impaciente, por favor. Não percebe que já está muito tarde? Sairemos amanhã para ver com calma.
Após o jantar, os Peregrinos se despediram de seus anfitriões e foram descansar nos mesmos aposentos da noite anterior. Ao amanhecer, Bajie comentou com Wukong:
— Não sei se percebeu, mas hoje está ainda mais frio do que ontem. Não me surpreenderia se o rio tivesse congelado por completo.
Sanzang voltou-se para a porta, ajoelhou-se e, inclinando-se respeitosamente para o céu, declarou:
— Guardiões da Fé, este humilde discípulo se propôs a chegar ao Oeste e encontrar-se com Buda. Por isso, não hesitei em cruzar mil montanhas e atravessar mil rios, sem jamais reclamar das dificuldades do caminho. Sou imensamente grato por terem vindo em meu auxílio, congelando o rio e tornando-o transitável. Jamais esquecerei tão grande e imerecido favor. Prometo que, quando obtiver as escrituras e estiver novamente diante do Imperador dos Tang, pedirei que recompensem tudo o que fizeram por mim.
Concluída a oração, o mestre ordenou ao Monge Sha que preparasse o cavalo para a travessia, antes que o degelo começasse.
— Não seja tão impaciente — aconselhou o mais velho dos Chen. — É mais seguro esperar alguns dias. Quando a neve derreter, poderão atravessar o rio na minha barca.
— Creio que devemos partir — opinou o Monge Sha. — Ninguém pode garantir que teremos outra oportunidade como esta. De qualquer forma, seria prudente que, enquanto eu preparo o cavalo, o mestre vá até lá e veja a situação para decidir por si mesmo.
— Têm razão — concordou o mais velho dos Chen. Voltou-se então para os criados e ordenou:
— Preparem seis cavalos imediatamente. Mas não selem o cavalo do Mestre Tang ainda.
Seguidos pelos servos, os anciãos e os Peregrinos chegaram às margens do rio para observar a paisagem. A neve havia formado montanhas imponentes, que reluziam sob os tímidos raios de um sol que tentava abrir caminho entre as nuvens. Tudo parecia congelado e uniforme: o gelo de fato. havia suavizado as diferenças da paisagem. Lagos e rios haviam se transformado em superfícies planas e reflexivas, indistinguíveis entre si. O vento permanecia frio e cortante, e o solo, escorregadio e rígido como pedra. Nos lagos, os peixes se refugiavam entre a vegetação densa, enquanto as aves selvagens se aglomeravam nas árvores secas, buscando calor. Os viajantes, que haviam vindo de longe, perderam todos os dedos devido à congelamento, e os barqueiros viram, impotentes, seus dentes caírem um a um, de tanto estalarem devido ao frio. As baixas temperaturas haviam partido as serpentes ao meio e destruído os pés das aves. Onde quer que os olhos se voltassem, viam-se montanhas de neve e gelo. Nos fundos dos barrancos, haviam pedaços de gelo tão enormes que podiam ser confundidos com minas de prata recém-descobertas. O rio inteiro parecia uma enorme placa de jade branco. Se o Leste é famoso por seus bichos de seda, o Norte deveria ser por suas tocas de ratos. Aquele local bem poderia ser o cenário onde Wang Xiang (10) se deitou e Guangwu (11) realizou a façanha de sua famosa travessia. Em uma única noite, todo o rio havia se solidificado por completo. Do fundo à superfície, tudo era um único bloco de gelo, sem fissuras nem rachaduras. Mais do que um curso d’água, parecia um caminho firme, assentado sobre a terra, embora um pouco mais liso e brilhante.
Sanzang e seus acompanhantes pararam as montarias ao chegarem à margem do rio e observaram, ansiosos, a distância. Não demoraram a perceber que, de fato, várias pessoas caminhavam a pé sobre o gelo.
— Sabem quem são essas pessoas? — perguntou Sanzang ao ancião Chen.
— Provavelmente mercadores — respondeu ele. — Do outro lado do rio fica o Reino Ocidental das Mulheres. O que aqui custa pouco mais de cem moedas, lá vale mil vezes mais. O mesmo acontece com os produtos deles. Diante de lucros tão altos, muitos se arriscam a fazer a travessia entre os dois reinos sem pensar no perigo. Às vezes, grupos de seis ou sete pessoas se lançam ao rio em pequenos botes, na esperança de alcançar a outra margem. Hoje, ao verem o rio congelado, parecem ter se animado a atravessá-lo a pé.
— No mundo dos homens — sentenciou Sanzang —, a fama e o lucro são o que mais importa. Não é de se estranhar que os homens arrisquem a vida por isso. Nós, por outro lado, estamos cumprindo uma missão imperial que, sem dúvida, nos trará justa fama. Será que somos assim tão diferentes deles?
Voltando-se para Wukong, Sanzang ordenou, decidido:
— Retorne imediatamente à casa dos Chen e providencie tudo o que for necessário para seguirmos viagem. Não se esqueça de selar o cavalo. O gelo nos oferece a oportunidade de seguir nossa viagem, e não vamos desperdiçá-la.
O Peregrino sorriu e se preparou para obedecer de imediato. Apenas o Monge Sha sse atreveu a sugerir algo contrário, dizendo:
— Há um provérbio que diz: "Após mil dias, ninguém pode comer mais do que alguns poucos quilos de arroz". Por que não ficamos mais um pouco na casa do ancião Chen e esperamos o tempo melhorar? Podemos atravessar o rio de barco quando as condições forem mais seguras. Não é bom agir com pressa, se queremos evitar erros.
— Como pode ser tão imprudente? — repreendeu-o Sanzang. — Se estivéssemos no segundo mês do ano, teríamos certeza de que, mais cedo ou mais tarde, a neve derreteria. Mas já estamos no oitavo mês, e o frio só tende a aumentar. Como poderia ocorrer um degelo repentino? Se ficarmos aqui, o mais provável é que tenhamos que esperar pelo menos meio ano.
— Parem com essa discussão inútil — interrompeu Bajie, saltando do cavalo. — Se me permitem, vou testar a espessura do gelo.
— Lembro-me de que ontem você jogou uma pedra para ver a profundidade da água — comentou o Peregrino. — Como vai fazer para verificar a espessura de algo tão sólido e pesado como o gelo?
— Esqueceu que tenho meu ancinho? — replicou Bajie. — Se eu golpear o gelo e ele se partir, saberemos que o mesmo é fino demais para suportar nosso peso. Mas, se não quebrar, significa que é espesso o suficiente, e não haverá motivo para não atravessarmos.
— O que você disse faz muito sentido — concluiu Sanzang.
Bajie arregaçou a túnica e, com grandes passadas, foi até a margem do rio. Levantou os braços o mais alto que pôde e os deixou cair com toda a força, desferindo um golpe tremendo sobre o gelo. Ouviu-se um som abafado, mas a superfície permaneceu tão sólida quanto antes. Como único testemunho do impacto, restaram nove pequenas marcas no gelo e um inesperado formigamento nas mãos de Bajie, que, rindo, anunciou:
— Podemos caminhar sobre o rio sem nenhum perigo! Até o fundo está congelado!
Nada agradou mais a Sanzang do que aquele anúncio. Ele retornou apressadamente à mansão dos Chen e tudo o que conseguia dizer era que precisava partir imediatamente. Nem as súplicas dos dois anciãos, que imploravam para que continuassem honrando-os com sua presença, foram suficientes para fazê-lo mudar de ideia. Compreendendo que sua decisão era irreversível, os irmãos ordenaram aos servos que preparassem provisões para a viagem dos Peregrinos. Toda a família saiu para se despedir, ajoelhando-se diante deles. Apenas os anciãos permaneceram de pé, com duas bandejas cheias de prata e ouro. Também se ajoelharam ao oferecer os presentes, dizendo:
— Sempre estaremos em débito convosco por terem salvo nossos filhos. Rogamos que aceitem este humilde sinal de nossa gratidão, como auxílio para a jornada.
Sem parar de balançar a cabeça e as mãos, Sanzang recusou o presente, dizendo:
— Aqueles que renunciaram à família não precisam de dinheiro. Mesmo que decidisse aceitá-lo, não poderia usá-lo, pois vivemos apenas da esmola. Para nós, é mais que suficiente a comida que acabaram de nos entregar.
Os anciãos insistiram, e o Peregrino não teve outra opção senão pegar uma peça que pesava apenas quatro ou cinco dracmas e entregá-la ao monge Tang, dizendo:
— Aceite isto ao menos, para que não pensem que desprezamos sua gratidão.
Após se despedirem dos anciãos, os peregrinos seguiram em direção ao rio.
Ao chegarem à beira do rio, os cascos do cavalo escorregaram no gelo, fazendo com que Sanzang quase caísse.
— Mestre! — gritou o Monge Sha. — Não podemos continuar a viajar assim.
— Esperem um pouco— sugeriu Bajie. — Vamos pedir aos anciãos Chen um pouco de palha.
— Para que? — perguntou o Peregrino.
— Parece que você não entende nada disso — respondeu Bajie. — Amarraremos a palha nos cascos do cavalo. Assim, ele poderá caminhar sobre o gelo sem dificuldade.
Ao ouvir da margem o que Bajie tinha acabado de dizer, o irmão mais velho dos Chen ordenou aos criados que trouxessem um pouco de palha. O monge Tang então retornou à margem, e Bajie envolveu os quatro cascos do cavalo com a palha. O resultado foi imediato: o animal conseguiu manter-se em pé sobre o gelo sem escorregar nenhuma vez mais.
Depois de se despedirem dos irmãos Chen e percorrerem cerca de uma milha a partir da margem do rio, Bajie entregou o bastão monástico de nove anéis a Sanzang.
— Mestre — disse ele —, segure este bastão na horizontal enquanto cavalga.
— Não seja preguiçoso, seu idiota! — repreendeu-o o Peregrino. — Não é sua responsabilidade carregar esse cajado monástico? Então carregue-o. Por que pedir ao mestre para carregá-lo?
— Dá para ver que você não tem experiência em andar sobre o gelo — defendeu-se Bajie. — Mesmo o gelo mais sólido possui buracos, e, se pisar em um deles, pode acabar caindo na água. Se você não estiver carregando algo como um bastão atravessado, será impossível sair, como se estivesse dentro de um grande caldeirão com a tampa fechada. É preciso um apoio como este para garantir a segurança.
Rindo para si mesmo, o Peregrino pensou:
— Quem ouve esse idiota falar pensa que ele tem anos de experiência andando sobre o gelo!
Então, todos seguiram a sugestão de Bajie. O monge Tang segurou seu bastão monástico sobre a sela; o Peregrino e o Monge Sha carregaram respectivamente seu bastão de ferro e o seu cajado sobre os ombros. Por último, Bajie, que estava carregando a bagagem, segurou seu ancinho na altura da cintura. A noite caiu sobre eles, mas não ousaram parar, nem mesmo para provar as iguarias que os Chen lhes haviam dado. As estrelas e a lua pareciam lançar um brilho próprio sobre o gelo, que resplandecia de maneira quase fantasmagórica. Esse brilho incomum ajudava a manter os olhos bem abertos, tanto do mestre quanto dos discípulos, que não pararam nem uma vez durante toda a noite.
Ao amanhecer, fizeram um dejejum simples e continuaram sua jornada rumo ao Oeste. De repente, ouviu-se um som muito estranho, que parecia vir do coração do gelo. O cavalo se assustou tanto que quase caiu.
— O que foi isso? — perguntou Sanzang, assustado.
— Este rio está tão congelado — explicou Bajie — que o gelo deve ter se formado da superfície até o fundo, e agora está roçando contra o leito do rio. Talvez tenha sido isso que ouvimos.
Ainda assustado, mas satisfeito com a explicação, Sanzang instigou o cavalo a seguir adiante, e retomaram o caminho. Enquanto isso, o monstro permanecia escondido sob a superfície do rio, aguardando os Peregrinos em silêncio.
Logo, ouviu claramente o som dos cascos de um cavalo e, utilizando sua magia, fez uma enorme fissura na superfície gelada. O Grande Sábio conseguiu saltar pelos ares, mas seus três companheiros não tiveram a mesma sorte e afundaram na água.
Assim que conseguiu capturar Sanzang, o monstro e os espíritos retornaram, triunfantes, à sua mansão submersa.
— Onde está você, minha irmã perca? — gritou o monstro.
— Não sou digna de ser chamada assim — respondeu a perca, saindo ao encontro dele e saudando-o com respeito.
— O que quer dizer com isso? — retrucou o monstro. — Nem uma manada de cavalos pode destruir a palavra que sai da minha boca. Eu prometi selar um pacto de irmandade contigo caso o plano que arquitetou para capturar o monge Tang fosse bem-sucedido. Hoje, seu plano provou ser magnífico, e o monge Tang foi capturado. Eu jamais poderia voltar atrás em minha promessa.
Então, virou-se para seus subordinados e ordenou:
— Preparem a mesa e tragam os facões mais afiados deste palácio. Precisamos abrir esse monge, desossá-lo, arrancar-lhe a pele e extrair seu coração. Enquanto isso, avisem os músicos para começarem a tocar. Quero dividir sua carne com minha nova irmã, para que possamos viver tanto quanto o próprio céu.
— Melhor não comermos ele ainda — advertiu a perca. — Não me surpreenderia se os discípulos dele aparecessem quando menos esperássemos e arruinassem a festa. Esperem dois dias, e se ninguém vier nesse tempo, então sigam com o plano. Preparem um grande banquete, reúnam toda a sua família e seus parentes e façam os escravos cantarem e dançarem. Em um ambiente assim, a comida fica muito mais saborosa, e vocês poderão desfrutar do monge à vontade.
O monstro aceitou de imediato essa sugestão e ordenou que o monge Tang fosse trancado em uma enorme caixa de pedra, com mais de três metros de altura, escondido nos fundos do palácio
Enquanto isso, Bajie e o Monge Sha recuperaram a bagagem no rio, carregaram-na nas costas do cavalo branco e nadaram contra as ondas, abrindo caminho pelas águas. Ao vê-los de longe, o Peregrino perguntou, com certo nervosismo:
— Onde está o mestre?
— Temo que ele tenha mudado de nome — respondeu Bajie. — Ele não é mais o monge Tang. Agora é o "Monge Afogado". Procuramos por toda parte, mas não conseguimos encontrá-lo. Melhor voltarmos para a margem e pensarmos no que fazer.
Como devem se lembrar, Bajie era a reencarnação do Marechal dos Juncos Celestes. Seu poder era tão grande que lhe permitia comandar mais de oitocentos mil marinheiros, todos estacionados nas margens do Rio Celeste. O Monge Sha, por sua vez, vinha do Rio da Corrente de Areia, e o cavalo era descendente direto do Rei Dragão do Mar Ocidental. Isso explicava a facilidade com que os três se moviam pelas águas. O Grande Sábio, no entanto, não possuía tais prerrogativas e permaneceu no ar, guiando-os até a margem oriental. Assim que alcançaram à margem, escovaram o cavalo com cuidado e torceram suas roupas encharcadas.
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Enquanto se ocupavam com essas tarefas, o Peregrino desceu das nuvens e se dirigiu ao povoado dos Chen. Um dos criados o avistou e correu para informar seus senhores:
— Quatro monges partiram em busca das escrituras, mas apenas três retornam.
Os dois anciãos saíram para recebê-los e, alarmados, perceberam que as vestes de seus antigos hóspedes estavam encharcadas, como se fossem feitas de nuvens.
— Suplicamos que ficassem conosco, e vocês não quiseram nos ouvir — disseram, em tom recriminatório. — O que custava aceitarem nosso conselho? Se tivessem feito isso, não estariam agora nessa situação. Sabem onde está o venerável monge Tang?
— Ele não é mais o monge Tang — respondeu Bajie. — Agora é o "Monge Afogado".
— Que desgraça! — exclamaram os anciãos, chorando desconsolados. — Avisamos que mais adiante colocaríamos um bote à sua disposição, mas ele se recusou a esperar. Sua teimosia lhe custou a vida. Que tragédia!
— Lamentar-se pelos mortos não nos levará a lugar algum — retrucou o Peregrino. — Algo me diz que o mestre não só não morreu, como ainda tem muito tempo de vida pela frente. Estou convencido de que tudo isso é obra do Grande Rei do Poder Numinoso, que tramou sua captura desde o início. Se desejam nos ajudar, lavem nossas roupas, sequem nosso passe de viagem e alimentem o nosso cavalo. Enquanto isso, partiremos em busca daquele sujeito. Quando o encontrarmos, não apenas libertaremos nosso mestre, mas também livraremos o povo de suas garras. Assim, vocês poderão viver em paz para sempre.
Os planos do Peregrino devolveram a serenidade e a alegria aos anciãos, que imediatamente ordenaram que preparassem comida para os peregrinos recuperarem suas forças. Depois de se alimentarem, confiaram o cavalo e a bagagem à família Chen e, armados, seguiram até a margem do rio, prontos para resgatar o mestre e dar ao monstro o que ele merecia. Cometeram um erro ao pisar no gelo. A natureza saiu prejudicada com tal atitude, mas como pode a perfeição existir quando o grande elixir escapa?
Ainda não sabemos, por enquanto, se ele conseguiram libertar o monge Tang. Quem desejar saber o desfecho deverá ouvir com atenção o que será dito no próximo capítulo.
CAPITULO XLIX EM BREVE ...
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Notas do Capítulo XLVIII
- Segundo o Shr-Chi, antes de ingressar no funcionalismo, Dong Guo era tão pobre que sempre andava vestido com trapos e calçava sapatos sem sola;
- Yuan An, um homem da dinastia Han Oriental, era famoso por sua retidão. Conta-se que, quando uma nevasca assolou Luoyang e paralisou a cidade, ele preferiu morrer de fome a sair pelas ruas pedindo esmolas;
- Sun Kang, um literato da dinastia Tsin, era tão pobre que, à noite, precisava ler à luz refletida pela neve;
- Wang Ziyu, filho do renomado calígrafo Wang Xizhi, tinha um temperamento tão instável que, em uma noite de tempestade, decidiu visitar um amigo de barco. No entanto, ao chegar à casa dele, mudou de ideia e retornou sem sequer vê-lo;
- Wang Gong, um funcionário da dinastia Jin, era um homem de aparência tão impressionante que, certa vez, ao sair para caminhar na neve vestindo um manto de penas de garça, um amigo o confundiu com um imortal;
- Su Wu, um mensageiro imperial do século II a.C., passou dezenove anos vivendo entre os hunos em condições tão extremas que, para não morrer de fome, foi forçado a comer a própria manta que o aquecia e a sobreviver apenas com neve derretida;
- Bailu (Orvalho Branco) é um dos 24 termos solares tradicionais do calendário lunar chinês, ocorrendo tipicamente entre 7 de setembro de cada ano. Este termo solar significa o resfriamento gradual do clima, com a chegada de condições outonais mais pronunciadas. Durante o Bailu, a diferença de temperatura entre o dia e a noite aumenta. As manhãs e as noites são frescas, enquanto o meio-dia permanece relativamente quente. Este período também marca o início da colheita de outono, quando as plantações começam a amadurecer;
- "Os Sete Imortais Atravessando um Desfiladeiro” é um dos temas recorrentes da pintura chinesa. Embora sua identidade ainda seja motivo de debate, geralmente são associados aos "Sete Sábios do Bosque de Bambu";
- Penghu é um dos nomes atribuídos à ilha de Penglai, o lendário lar dos imortais;
- Wang Xiang é um dos personagens da obra Vinte e Quatro Exemplos de Piedade Filial (chinês: 二十四孝, Èrshí-sì xiào). Conta-se que, para agradar sua mãe, que adorava carpas, ele deitou-se de peito nu sobre um lago congelado até que, por fim, duas carpas saltaram para fora da água;
- Guangwu, primeiro imperador da dinastia Han, durante uma de suas inúmeras expedições, encontrou um rio cujo fluxo carregava enormes blocos de gelo. Sem embarcações adequadas, cruzou-o caminhando sobre o gelo.
- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
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