۞ ADM Sleipnir
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Arte de Moyi Zhang
CAPÍTULO XLVII:
O MONGE SANTO ENCONTRA UM OBSTÁCULO DURANTE A NOITE NO RIO QUE ALCANÇA O CÉU. O METAL E A MADEIRA, TOMADOS PELA COMPAIXÃO, LIBERTAM AS CRIANÇAS.
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O rei chorou incessantemente até o cair da noite. O fluxo contínuo de suas lágrimas assemelhava-se ao curso de um riacho. Ao anoitecer, o Peregrino não conseguiu mais suportar aquela cena e, aproximando-se, gritou:
— Como pode ter um espírito tão frágil? Não viu os cadáveres daqueles taoístas? Um era um tigre, outro, um cervo, e o último, embora não o tenha visto, era apenas uma cabra. Se não acredita, peça aos seus soldados que mostrem os ossos. Nenhum ser humano possui um esqueleto como aquele. Esses supostos mestres que protegia eram, na verdade, bestas da montanha que conseguiram se transformar em espíritos e vieram aqui com o único prpósito de acabar com sua vida. Ainda não haviam lhe causado nenhum mal porque seu corpo continua forte e você ainda tem prestígio entre os súditos. Mas, em dois ou três anos, quando suas forças começassem a enfraquecer, eles o matariam e tomariam o controle de todo o reino. Foi sorte sua termos chegado a tempo para salvar sua vida e a de todos os seus servidores. Como pode chorar por eles desse jeito? Enfim, faça como quiser. Apenas entregue de uma vez a nossa autorização de viagem e nos deixe partir o mais rápido possível.
Somente após ouvir esse discurso do Peregrino, o rei pareceu recuperar a compostura. Para confortá-lo, todos os oficiais, tanto civis quanto militares, aproximaram-se e disseram:
— O que este monge acaba de dizer é verdade. Os Grandes Imortais eram, na realidade, um tigre, um cervo e uma cabra, como ficou evidente pelos ossos que ainda flutuam no óleo. Não é sábio ignorar as palavras de um monge santo.
— Se o que afirmam é verdade — concluiu o rei —, devemos agradecer a esses monges. Já está um pouco tarde para retomarem a viagem. Que o meu primeiro conselheiro se encarregue de acompanhá-los pessoalmente até o Monastério da Profunda Sabedoria, para que passem a noite lá. Amanhã de manhã, durante minha primeira audiência matinal, ordenarei que abram a ala oriental do palácio e lhes oferecerei um magnífico banquete vegetariano como forma de gratidão.
Suas ordens foram cumpridas à risca. Na manhã seguinte, durante a quinta vigília, o rei realizou sua primeira audiência matinal, durante a qual decretou que todos os monges budistas tinham permissão para retornar à cidade. Essa proclamação benéfica foi amplamente divulgada em todas as estradas, mercados e locais mais movimentados do reino. Como havia prometido na noite anterior, na mesma sessão, ordenou a preparação de um esplêndido banquete vegetariano, enviando, ao mesmo tempo, a carruagem imperial ao Monastério da Profunda Sabedoria, para que Sanzang e seus companheiros pudessem comparecer ao evento.
Ao ouvirem que um decreto real lhes permitia voltar à cidade, os monges que haviam escapado com vida voltaram apressadamente, com o intuito de encontrar o Grande Sábio Sun,expressar sua gratidão e devolver os fios de cabelo que ele lhes havia emprestado. Após o término do banquete, o mestre recebeu das mãos do rei o tão aguardado salvo-conduto para prosseguir a viagem. Acompanhado da rainha, das concubinas e de todos os oficiais do reino, o soberano foi pessoalmente até os portões da cidade para se despedir. Foi nesse momento que encontraram os monges retornando.
— Grande Sábio, Sósia do Céu! Somos os monges que escaparam do tormento da carroça no outro dia. Ao ouvirmos que o senhor havia eliminado todos os demônios e que o rei havia promulgado um decreto permitindo nosso retorno aos monastérios abandonados, decidimos voltar para devolver seus fios de cabelo e agradece-lo por tudo o que fez por nós.
— Quantos de vocês retornaram? — perguntou o Peregrino, contendo o riso.
— Quinhentos — responderam eles. — Não falta nenhum dos que o senhor viu naquele dia.
O Peregrino sacudiu levemente o corpo e recuperou todos os fios de cabelo que havia emprestado. Em seguida, virou-se para o rei e para todos que o acompanhavam e declarou:
— Fui eu quem libertou todos esses monges, destruiu a carroça e eliminou dois daqueles taoístas malignos. Agora que viram com seus próprios olhos o que aconteceu aqui, devem compreender que não há caminho mais verdadeiro do que o do Zen. De hoje em diante, não deixem que falsas doutrinas desviem sua atenção. Espero, portanto, que respeitem igualmente as três religiões, pois é sábio honrar os monges, estimar os taoístas e valorizar os estudiosos. Dessa forma, o seu reino sempre desfrutará de paz e terá um futuro sólido e próspero.
O rei prometeu que seguiria esse ensinamento e, após agradecer novamente, escoltou o monge Tang até os arredores da cidade. Mais uma vez, cumpria-se nele o propósito dessa longa jornada: a incansável busca pelos três cânones, que, na verdade, é a busca pela luz que brilhou neste mundo no início dos tempos. A partir daquele momento, os peregrinos retomaram sua rotina de viajantes, caminhando durante o dia, descansando à noite, bebendo quando a sede apertava e comendo quando eram tomados pela fome. A primavera passou, o verão chegou ao fim e, mais uma vez, o outono fez sua aparição no grande palácio das estações.
Um dia, já ao entardecer, o monge Tang puxou as rédeas de seu cavalo e perguntou aos seus discípulos:
— Um homem que renunciou à família não deve falar como alguém que não o fez — repreendeu o Peregrino.
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— Pode explicar como falam um e outro? — perguntou Sanzang.
— Nesta época do ano — respondeu o Peregrino —, quem não renunciou à família desfruta dos prazeres de uma cama quente e lençóis limpos. Seus filhos se aconchegam em seu colo, e sua esposa se acomoda aos seus pés. Como não dormir bem assim? Já nós, que renunciamos à família, não podemos nos entregar a esses prazeres. Somos aquecidos pela lua e pelas estrelas, nos alimentamos do vento e descansamos junto aos cursos d’água. Nosso destino é caminhar, enquanto houver um caminho, e parar apenas quando ele chegar ao fim.
— Você é incrível! — resmungou Bajie. — Nunca conheci alguém com ideias tão rígidas e inabaláveis como as suas. Será que não percebe o quão difícil é percorrer esse caminho que seguimos? Estou carregando um fardo pesadíssimo, e cada passo que dou é um sacrifício. Seria muito bom encontrar um lugar para passar a noite e recuperar as forças para continuarmos a viagem amanhã. Se não fizermos isso, pode ter certeza de que vou morrer de cansaço!
— Está bem — concluiu o Peregrino. — Então, vamos andar mais um pouco até encontrarmos algum lugar com casas.
O mestre e os discípulos não tiveram outra escolha senão seguir os passos do Peregrino. No entanto, não foram muito longe, pois, em pouco tempo, ouviram o estrondoso barulho de uma poderosa corrente de água.
— Estamos perdidos! — exclamou Bajie. — Chegamos ao fim do caminho.
— Um rio está bloqueando nossa passagem — comentou o Monge Sha.
— Como vamos atravessá-lo? — perguntou o monge Tang, preocupado.
— Primeiro, vou ver qual é a sua profundidade — respondeu Bajie.
— Não diga bobagens, Wuneng! — repreendeu-o Sanzang. — Como pretende descobrir isso?
— Muito simples — explicou Bajie. — Pegarei uma pedra em formato de ovo e a jogarei na água. Se formar espuma ao cair, significa que é raso, mas se, ao afundar, produzir um som borbulhante, então é profundo.
— O que está esperando para testar? — instigou o Peregrino.
Bajie tateou o chão até encontrar uma pedra adequada, jogou-a na água e, então, ouviu-se apenas um som estranho e prolongado, semelhante ao de um peixe respirando — um sinal claro de que a profundidade era grande.
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— Fundo demais! — exclamou Bajie, desanimado. — Acho que não vamos conseguir atravessar.
— Esse método que usou também serve para medir a largura do rio? — indagou o monge Tang.
— Receio que não — respondeu Bajie.
— Isso é comigo — anunciou o Peregrino e, dando um salto, elevou-se acima da água.
A lua refletia-se no leito do rio, enquanto o céu parecia querer mergulhar em sua profundidade extraordinária. O volume de água era tão grande que poderia engolir cadeias de montanhas inteiras. Por isso, ele era considerado o pai de mais de cem rios. Sua fúria espalhava espuma pelas margens e criava ondas altíssimas no centro da correnteza. Nenhum pescador ousava atravessá-lo. Apenas as garças se atreviam a beber de suas águas, cientes de que sua largura era maior que a de um oceano. Por isso, não era possível enxergar a margem oposta.
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O Peregrino percebeu imediatamente que se tratava de um curso d’água imenso e, descendo das nuvens, informou ao seu mestre:
— É extremamente largo. Tanto que receio que não conseguiremos atravessar. Na verdade, não consegui ver a outra margem. Como sabem, eu possuo olhos de fogo e pupilas de diamante, que me permitem distinguir o bem do mal a uma distância de mais de mil quilômetros durante o dia e de quatrocentos a quinhentos à noite. Mesmo assim, não posso afirmar com certeza a largura real deste rio.
Por um longo tempo, Sanzang permaneceu incapaz de dizer uma única palavra. Por fim, reuniu forças e suspirou:
— O que podemos fazer? — e lágrimas começaram a escorrer por seu rosto.
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— Não chore, por favor — aconselhou o Monge Sha. — Olhe naquela direção. Aquilo não parece um homem?
— Não pode ser um pescador — comentou o Peregrino. — Melhor eu me aproximar e descobrir.
Empunhando sua barra de ferro, o Peregrino avançou em direção ao que parecia ser um homem. Quando chegou perto, percebeu que todos haviam se enganado. O que imaginaram ser um pescador era, na verdade, uma grande laje de pedra, onde estavam gravadas três letras enormes e, abaixo delas, duas linhas com letras menores. As letras grandes diziam: "O Rio que Alcança o Céu". Já as menores informavam: "Possui uma largura de mais de oitocentos quilômetros, que poucos conseguiram atravessar".
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— Mestre! — chamou o Peregrino. — Venha ver isso.
Quando Sanzang se aproximou e leu a inscrição, lágrimas escorreram por seu rosto.
— Ah, discípulo! Quando deixei Chang-An naquele ano, imaginei que o caminho até o Paraíso Ocidental seria fácil. Como poderia prever os inúmeros obstáculos, os demônios e monstros que teríamos de enfrentar, além das vastas montanhas e rios a atravessar?
— Ouçam com atenção! — sugeriu Bajie. — Não estão ouvindo o som de tambores e címbalos? Deve haver por perto uma família piedosa, oferecendo um banquete aos monges que vivem nesta região. Acho que deveríamos ir até a porta deles e perguntar se existe alguma maneira de atravessar este rio. Faremos isso amanhã, logo após desfrutarmos uma boa refeição vegetariana.
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Sanzang aguçou os ouvidos o máximo que pôde e, de fato, escutou os sons que Bajie havia mencionado.
— Tem razão — comentou, mais animado. — Esses não são instrumentos taoístas. Deve estar acontecendo uma cerimônia budista por perto. Concordo com você. Vamos nos aproximar e dar uma olhada.
O Peregrino segurou as rédeas do cavalo, e todos seguiram em direção ao local de onde parecia vir a música. Não havia nenhum caminho, apenas uma sucessão interminável de areais. Ainda assim, logo avistaram um grupo de casas bem construídas. Situadas entre o rio e as colinas próximas, eram cerca de quatrocentas ou quinhentas. Tanto os portões das cercas quanto os dos pomares estavam firmemente fechados. Ninguém perturbava o sono das garças, que descansavam em pares entre as dunas, enquanto os pássaros aninhados nos salgueiros soltavam seus tristes cantos. De repente, os instrumentos musicais silenciaram, e nem mesmo o som das mulheres ocupadas com as tarefas domésticas podia ser ouvido. À luz da lua, as penas das oropéndolas tremulavam, enquanto o vento agitava os juncos. Um cão latia ao longe, escondido entre as cercas que separavam os campos. Um velho pescador dormia em seu barco, embalado pela escuridão quase absoluta e pelo plácido silêncio da noite. O brilho da lua fazia parecer um enorme espelho pendurado no céu. Do oeste, o vento trazia o perfume de milhares de flores aquáticas recém-floridas.
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Ao desmontar, Sanzang avistou uma casa à beira do caminho, diante da qual se erguia um mastro com um estandarte. O interior estava profusamente iluminado por velas e lamparinas, e um forte aroma de incenso impregnava o ar.
— O que temos diante de nós — disse Sanzang, dirigindo-se a Wukong — é, sem dúvida, um lugar muito melhor para descansar do que o abrigo de uma montanha ou a curva de um rio. Até mesmo sob os beirais podemos encontrar proteção contra o frio da noite e o perigo das feras. Fiquem aqui enquanto vou pedir hospedagem ao dono da casa. Se ele permitir, chamarei vocês, mas, se recusar, peço que não causem nenhum problema. Em qualquer caso, não se mostrem até que eu diga. Vocês são bastante feios, e temo que possam assustá-los demais. Lembrem-se de que, se não formos bem recebidos aqui, não teremos outra porta onde bater e teremos que passar a noite ao relento.
— Tem razão — reconheceu o Peregrino. — Vá, mestre. Ficaremos aqui, esperando.
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Após tirar o chapéu de bambu e sacudir um pouco a poeira, o mestre caminhou até a porta da casa com seu báculo monástico em mãos. Encontrou-a entreaberta, mas não ousou atravessá-la sem permissão. Permaneceu ali, hesitante. Felizmente, pouco tempo depois, um ancião apareceu. Ele trazia um colar de contas no pescoço e repetia incessantemente o nome de Buda enquanto caminhava. Ao notar que o velho se preparava para fechar a porta, o mestre juntou as mãos rapidamente na altura do peito e saudou-o com respeito:
— Espere, ancião. Gostaria de lhe prestar meus cumprimentos.
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— Chegou tarde — respondeu o ancião, retribuindo a saudação.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Sanzang, surpreso.
— Que não conseguirá nada, porque chegou tarde demais — explicou o ancião. — Se tivesse chegado antes, teria participado do banquete que preparamos para os monges. Além disso, depois de saciar sua fome, teríamos lhe dado três onças de arroz, um pedaço de tecido branco e dez cordões de moedas de cobre. Como pôde vir tão tarde?
— Este humilde monge, senhor, não veio até aqui para comer — confessou Sanzang, inclinando-se respeitosamente.
— Então, por que veio? — perguntou o ancião.
— Sou um enviado do Grande Imperador dos Tang, Senhor das Terras do Leste, e estou a caminho do Paraíso Ocidental em busca das escrituras sagradas — respondeu Sanzang. — Ao passar por aqui, a noite caiu e ouvimos o som de tambores e címbalos. Ao nos aproximarmos, percebemos que vinham de sua casa e então decidimos pedir abrigo. Continuaremos nossa jornada amanhã de manhã, logo ao amanhecer
— Um homem que renunciou à família não deveria mentir — repreendeu o ancião, balançando a mão. — Há cerca de cinquenta e quatro mil quilômetros entre este lugar e o Reino dos Tang, nas Terras do Leste. Como uma pessoa sozinha pode ter percorrido essa distância?
— Percebo que o senhor é um homem perspicaz e atento aos detalhes — comentou Sanzang. — Mas não fiz essa jornada sozinho. Viajam comigo três discípulos, tão habilidosos e dedicados que abriram caminhos através das montanhas e construíram pontes sobre os rios para que eu pudesse continuar minha missão. É a eles que devo o fato de estar aqui hoje.
— E por que seus discípulos não vieram até aqui? — perguntou o ancião mais uma vez. — Chame-os para entrar. Minha casa é grande o suficiente para acomodar todos vocês.
Sanzang então se virou e gritou:
— Aproximem-se!
Como o Peregrino tinha uma natureza muito impulsiva, Bajie não conhecia boas maneiras e o Monge Sha era extremamente impetuoso, assim que ouviram a voz do mestre, avançaram como um verdadeiro vendaval em direção à casa, arrastando o cavalo e o restante da bagagem.
Ao vê-los, o ancião ficou tão apavorado que caiu no chão, gritando desesperado:
— Monstros! Tem monstros aqui!
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— Não tenha medo, senhor — apressou-se a dizer Sanzang, ajudando-o a se levantar. — Eles não são monstros, mas sim meus discípulos.
— Como um mestre tão bem-apessoado como você pode ter discípulos tão feios? — retrucou o ancião, tremendo dos pés à cabeça.
— É verdade que não são muito atraentes — reconheceu Sanzang —, mas posso garantir que são mestres na arte de domar tigres, subjugar dragões, capturar monstros e derrotar demônios.
Ainda desconfiado, o ancião se apoiou no monge Tang e caminhou lentamente para dentro da casa. Enquanto isso, os três discípulos já haviam invadido o salão principal, largando a bagagem de qualquer jeito e amarrando o cavalo de forma desajeitada. Naquele momento, vários monges recitavam sutras. Bajie esticou o focinho e gritou sem o menor respeito
— Ei, monges! Que sutras estão recitando?
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Todos levantaram a cabeça ao mesmo tempo e se depararam com uma criatura de focinho protuberante, orelhas enormes, corpo robusto, ombros largos e uma voz que mais parecia um trovão. Os outros dois eram ainda mais assustadores. Apesar disso, nenhum dos monges entrou em pânico. Pelo contrário, continuaram suas recitações como se nada tivesse acontecido, até que concluíram os cânticos e o líder deu a ordem para encerrarem.
Foi então que algo inesperado aconteceu. De repente, todos se levantaram às pressas, largando tambores, címbalos e imagens de Buda, e correram desordenadamente para as portas. A pressa era tanta que tropeçavam uns nos outros, dificultando ainda mais a fuga. Para piorar, as tochas se apagaram de repente, e muitos caíram no chão, batendo a cabeça como se fossem cabaças rolando sem sustentação. Num instante, o ambiente passou de um profundo recolhimento a um completo caos e confusão.
Ao verem aquele caos inesperado, os Peregrinos começaram a aplaudir e rir tão alto que os monges acharam que sua hora havia chegado. Aterrorizados, fugiram em todas as direções, desaparecendo em um piscar de olhos. Quando Sanzang e o ancião chegaram ao salão, encontraram-no completamente vazio e às escuras, embora ainda ecoassem as gargalhadas selvagens dos três irmãos em religião.
— Mal-educados! — repreendeu-os o monge Tang. — Não consigo entender como podem ser tão inconsequentes. Não lhes lembro todos os dias que é preciso respeitar as normas de conduta e seguir as regras de etiqueta? Com razão diziam os antigos: "Não é sábio aquele que busca a virtude mesmo sem instrução? Não é nobre aquele que alcança a virtude após dominar os ensinamentos? E não é tolice se afastar da virtude mesmo depois de ter sido ensinado?" O comportamento de vocês revela pura estupidez e uma completa falta de princípios! Como podem invadir a casa dos outros desse jeito? Por que assustaram aqueles monges, obrigando-os a interromper seus recitais de sutras e fugir apavorados, como se tivessem visto um demônio? Não percebem que arruinaram uma boa ação e me colocaram em uma situação muito difícil?
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O mestre falou com tanta firmeza que nenhum dos discípulos ousou responder. Isso acabou convencendo o ancião de que aquelas figuras grotescas eram, de fato, seus discípulos. Ele então se virou para Sanzang e, inclinando levemente a cabeça, disse:
—Não importa. A cerimônia já havia terminado, e é natural que as tochas estejam apagadas.
— Nesse caso — concluiu Bajie —, o que estão esperando para nos trazer algo para comer? Quanto antes fizerem isso, mais cedo iremos dormir.
— Luzes! — ordenou o ancião. — Tragam luzes para o salão!
Pouco depois, apareceram alguns familiares, que o repreenderam, dizendo:
— Por que pedir luzes, se o salão está cheio de velas? Nós mesmos as colocamos para que o serviço religioso pudesse ser realizado.
Mas, ao chegarem ao salão, os criados o encontraram mergulhado na mais absoluta escuridão. Assustados, correram de volta para buscar tochas e lampiões. No entanto, ao avistarem Bajie e o Monge Sha, ficaram tão aterrorizados que deixaram as tochas caírem no chão e fugiram em pânico, gritando desesperados:
— Monstros! Há monstros lá dentro!
O Peregrino pegou uma das tochas e acendeu as lâmpadas e velas. Em seguida, pegou uma cadeira, colocou-a bem no centro do salão e convidou Sanzang a sentar-se. Ele e os outros sentaram-se ao lado do mestre, enquanto o ancião sentava-se bem à sua frente. Mal haviam se acomodado quando uma porta interior se abriu, revelando outro ancião, que se apoiava em um bastão. Com o semblante irritado, ele olhou para os recém-chegados e perguntou furioso:
— Que tipo de monstros são vocês para se atreverem a entrar assim, sem mais nem menos, na casa de uma família virtuosa?
O ancião que já estava sentado levantou-se apressado e, aproximando-se do recém-chegado, levou-o para trás de alguns biombos e sussurrou:
— Não há necessidade de tanta irritação. Eles não são monstros, mas arhats enviados pelo Grande Imperador da dinastia Tang ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras sagradas. Apesar da aparência assustadora, possuem um coração sensível e virtuoso.
Só então o outro ancião baixou o bastão e cumprimentou os recém-chegados com respeito, sentando-se também na parte da frente do salão.
— Tragam chá e preparem uma refeição vegetariana! — ordenou ele, dirigindo-se ao interior da casa.
O ancião teve que repetir a ordem várias vezes antes que os criados aparecessem, tremendo da cabeça aos pés. Estavam tão assustados que hesitavam em se aproximar dos viajantes.
Bajie então se virou para o ancião e perguntou:
— O que seus criados estão fazendo por lá?
— Ordenei que preparassem algo para comer — respondeu o ancião.
— Quantos vão se encarregar de nos servir? — perguntou novamente Bajie.
— Oito — respondeu o ancião.
— E esses oito vão servir quantas pessoas? — insistiu Bajie.
— Como assim, quantas? — exclamou o ancião. — A vocês quatro, é claro.
Bajie inclinou-se e cochichou:
— Preciso lhe dizer algo muito importante. O mestre só precisa de uma pessoa para servi-lo. Aquele outro, com o rosto coberto de pelos e aparência de deus do trovão, precisa de dois. O de aparência esquisita ali, oito. Já no meu caso, não menos que vinte.
O ancião o olhou por um instante e concluiu:
— Se entendi bem, está tentando me dizer que tem um apetite extraordinário.
— Sim, algo assim — admitiu Bajie.
— Não se preocupem com isso — tranquilizou o ancião. — Nesta casa, há gente mais do que suficiente.
De fato, logo surgiram mais de trinta pessoas de todas as idades para servi-los.
Todos pareciam sentir-se mais tranquilos agora que viam os dois anciãos conversando calmamente com aqueles que haviam acabado de considerar monstros perigosíssimos. A mesa foi colocada bem no centro do salão, e ao monge Tang foi concedido o lugar de honra. Ao lado dele, foram dispostas duas outras mesas para seus discípulos, enquanto os anciãos ocuparam uma mesa diante deles. O primeiro prato servido foram frutas e verduras, seguidas por vários pratos temperados à base de arroz, sopa e noodles. Quando tudo estava distribuído nas mesas, o monge Tang pegou os hashis e recitou o "Sutra para quebrar o jejum". Bajie era um devorador insaciável e, antes que o mestre terminasse suas preces, pegou uma tigela de madeira envernizada, encheu-a de arroz até a borda e engoliu tudo de uma só vez. Fez isso com tanto entusiasmo que não sobrou um único grão.
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— Este venerável monge não é muito esperto! — exclamou um dos criados. — Por que não pegou alguns pãezinhos no vapor, já que queria tanto esconder algo nas mangas? Uma tigela de arroz é bem mais difícil de esconder, sem contar que irá sujar a roupa toda.
— Eu não escondi nada nas mangas — confessou Bajie, rindo. — Eu comi tudo.
— Não posso acreditar — comentou o criado. — Como pode ter comido tudo, se nem sequer abriu a boca?
— Eu nunca minto, rapaz — afirmou Bajie. — Se digo que comi, é porque comi. Se não acredita, vou fazer outra demonstração.
O criado, então, pegou novamente a tigela, a encheu com arroz e entregou-a a Bajie, que por sua vez, fez um movimento ligeiro com a mão e engoliu o arroz de uma só vez. Ao ver aquilo, os criados gritaram, empolgados:
— Certamente, sua garganta deve ser feita de azulejos e ser extremamente suave! Caso contrário, não conseguiria fazer tamanhas proezas.
Antes que o monge Tang terminasse de recitar um novo sutra, Bajie já havia devorado cinco ou seis tigelas de arroz. Os outros dois se comportaram um pouco melhor e esperaram pelo mestre para começarem a comer. Para Bajie, tanto faz se era fruta, arroz ou verdura o que ele colocava na boca. Engolia tudo a uma velocidade impressionante e exigia, com um gesto autoritário:
— Tragam mais arroz! Onde está o resto?
— Não coma tanto — aconselhou o Peregrino. — O que comemos já é muito mais do que comeríamos se tivéssemos parado para descansar em algum canto da montanha. Além disso, é aconselhável sempre ficar com um pouco de fome.
— Isso não me preocupa — respondeu Bajie. — Como diz o provérbio: "Um monge mal alimentado é muito pior que um morto".
— Levem essa comida e não se preocupem com ele — pediu o Peregrino aos criados.
— Para ser sincero — comentaram os dois anciãos —, se fosse de dia, não nos importaria alimentar cem monges tão gordos e esfomeados quanto o seu irmão. Mas já é tarde e preparamos apenas uma leva de bolinhos, cinco barris de arroz cozido e algumas dúzias de pratos vegetarianos. Quando vocês chegaram, estávamos prestes a convidar alguns vizinhos para compartilharem tudo isso com os monges, mas eles fugiram, tomados pelo pânico, e não ousamos chamar ninguém por medo que acontecesse o mesmo. Por isso, servimos o que tínhamos preparado. Se ainda tiverem fome, podemos pedir que tragam mais comida.
— Sim, sim. Façam isso! — apressou-se a dizer Bajie.
Assim que terminaram de comer, retiraram todas as mesas e cadeiras. Sanzang então levantou-se de seu assento, fez uma reverência aos dois anciãos em sinal de gratidão e perguntou:
— Podem nos dizer como se chamam?
— Eu me chamo Chen — respondeu um deles.
— Temos os mesmos ancestrais — disse Sanzang, juntando as mãos à altura do peito.
— Então o senhor também se chama Chen? — exclamou o ancião.
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— Exatamente — respondeu Sanzang. — Esse é o sobrenome que eu tinha quando ainda pertencia ao mundo secular. Posso perguntar que tipo de serviço religioso acabaram de celebrar?
— Por que pergunta isso? — retrucou Bajie. — Não consegue deduzir por si mesmo? Com certeza foi algum ritual por uma boa colheita, pela paz ou pela conclusão rápida e bem-sucedida de alguma construção. Que outra coisa um homem poderia pedir ao céu?
— Receio que não acertou — disse o ancião.
— Então não foi por nada disso? — indagou Sanzang.
— Não, não — respondeu o ancião. — Era simplesmente um ritual preparatório para os mortos.
— Os senhores não são muito espertos! — exclamou Bajie, rindo com tanta força que mal conseguia ficar quieto. — Somos especialistas em meias-verdades e mestres na arte do embuste! Como pode achar que nos enganaria com esse título fajuto? Somos monges e conhecemos perfeitamente todos os tipos de ritos religiosos. Isso nos dá plena e absoluta certeza de que existem rituais preliminares a uma oferenda votiva, mas não a um falecimento. Sem contar que ninguém morreu na sua casa. Como poderiam ter celebrado um ritual para os mortos?
Ao ouvir essas palavras, o Peregrino sorriu em silêncio e pensou consigo mesmo:
— Esse idiota está ficando mais esperto!
Virou-se então para o ancião e perguntou:
— Vocês devem estar se confundindo. Querem nos explicar o que é esse ritual preparatório para os mortos?
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Em vez de responder diretamente, os dois anciãos inclinaram-se com respeito e perguntaram, por sua vez:
— Como foi que desviaram do caminho principal para buscar as escrituras e vieram parar em nossa casa?
— Porque nos deparamos com um enorme curso d'água que nos impediu de seguir adiante — respondeu o Peregrino. — Quando estávamos tentando descobrir como atravessá-la, ouvimos sons de tambores e címbalos, e, nos deixando guiar por eles, chegamos até sua porta.
— Viram algo ao se aproximarem da água? — insistiu o ancião.
— Sim — reconheceu o Peregrino. — Um monumento de pedra, no qual estava escrito, em letras grandes: "O Rio que Alcança o Céu", e em outras um pouco menores: "Possui uma largura de mais de oitocentos quilômetros, que poucos conseguiram atravessar". Só isso.
— Se tivessem se afastado do monumento cerca de um quilômetro — esclareceu o ancião —, teriam encontrado o Templo do Grande Rei do Poder Milagroso. Não o viram, não é mesmo?
— Não — respondeu o Peregrino. — Podem nos explicar quem é esse Poder Milagroso?
— Oh, respeitáveis monges! — exclamaram os dois anciãos ao mesmo tempo, com o rosto coberto de lágrimas. — Esse Grande Rei de quem falamos tem poder suficiente para obrigar toda a região a construir esse santuário e é tão milagroso que suas bênçãos alcançam todos os tipos de pessoas, tanto as que vivem por aqui quanto as que moram mais longe. De fato, ele faz com que todos nós recebêssemos a chuva mês após mês, e as bênçãos celestiais ano após ano.
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— Levando em consideração tudo o que disseram, ele parece ser muito bondoso — admitiu o Peregrino. — Mas por que parecem tão abatidos ao falar disso?
— Apesar de todos os favores que nos concede — responderam os anciãos, suspirando e batendo no peito —, ele também é extremamente cruel conosco. Mesmo quando está de bom humor, mata pessoas. Na verdade, ele adora devorar jovens e moças. Parece que não é um deus iluminado e que possui uma mente um tanto peversa.
— Então estão dizendo que ele gosta de devorar jovens e moças? — repetiu o Peregrino.
— Exatamente— assentiram os anciãos.
— Imagino que agora cabe à sua família fazer essa oferenda monstruosa, não é? — perguntou o Peregrino.
— Acertou em cheio — responderam os anciãos. — Cerca de cem famílias vivem nesta vila, que pertence ao condado de Yuanhui, do Reino da Carroça Lenta, e que é conhecida como Vila dos Chen. Todos os anos, o Grande Rei exige o sacrifício de um jovem e uma moça que ainda não tenham se casado, junto com uma grande quantidade de gado e ovelhas. Quando ele se sacia, podemos ter certeza de que a chuva virá no momento certo. Mas, se nos recusarmos a oferecer o sacrifício que mencionamos, ele volta sua fúria contra nós, cobrindo-nos de desgraças e calamidades.
— Quantos filhos vocês têm? — perguntou novamente o Peregrino.
— Ora, homem! — exclamou o mais velho dos dois, batendo no peito. — Falar de filhos nos enche de vergonha. Meu irmão, aqui presente, chama-se Chen Qing, e eu me chamo Chen Cheng. Embora ele tenha cinquenta e oito anos e eu sessenta e três, nunca tivemos sorte no que diz respeito a filhos. Como não conseguia ter nenhum, ao completar cinquenta anos, tanto meus parentes quanto meus amigos me pressionaram a tomar uma concubina em casa. Eu não era muito favorável a isso, mas, no final, acabei cedendo. Foi assim que me tornei pai de uma menina, a quem dei o nome de Bacia de Ouro. Ela acabou de completar oito anos.
— Que nome mais valioso! — exclamou Bajie. — Por que deram esse nome a ela?
— Como eu nunca havia conseguido ter filhos — explicou o ancião —, durante todos esses anos me dediquei à reparação de pontes e estradas, à construção de pagodas e templos, e ao cuidado dos monges. Registrei cada detalhe dessas ações e, quando minha filha nasceu, percebi que havia gasto com elas exatamente trinta quilos de ouro. Trinta quilos formam, de fato, uma bacia, e foi por isso que a batizei assim.
— E seu irmão, não tem nenhum filho? — perguntou novamente o Peregrino.
— Sim, ele tem um — respondeu o ancião. — Também nasceu de uma concubina. O nome dele é Chen Guanbao e acaba de completar sete anos.
— Por que deram esse nome a ele? — indagou o Peregrino.
— Nossa família sempre reverenciou o grande protetor Guan — explicou o ancião. — Temos certeza de que esse menino nasceu graças à sua bênção, por isso quisemos que carregasse seu nome. É triste pensar que, somando a idade do meu irmão e a minha, passamos dos cento e vinte anos, mas temos apenas dois filhos para continuar nosso legado. O pior de tudo é que, neste ano, nossa família foi escolhida para oferecer o sacrifício ao Grande Rei. Claro, não ousaríamos recusar, mas nos parte o coração ter que entregar nossos filhos tão preciosos. Foi justamente para eles que realizamos esta cerimônia de hoje, que, por razões óbvias, chamamos de ritual preparatório para os mortos.
Sanzang não conseguiu conter as lágrimas, que escorreram abundantemente por seu rosto, enquanto dizia:
— A situação de vocês é como a descrita pelo provérbio: "Em vez das ameixas maduras, são as verdes que caem da árvore. Quão pesado é o fardo que o Céu coloca sobre os ombros de um homem sem filhos!"
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— Permitam-me fazer mais algumas perguntas — disse o Peregrino, sorrindo. — Como são as propriedades que vocês possuem?
— Bastante grandes — responderam os dois anciãos ao mesmo tempo. — Possuímos mais de setecentos e cinquenta acres de terra irrigada e mais de mil acres de terra seca. Sem contar os terrenos destinados a pastagem, que somam mais de noventa, trezentos búfalos, cerca de trinta cavalos e mulas, e incontáveis ovelhas, porcos, patos e gansos. Em nossos armazéns, guardamos mais grãos do que conseguimos comer e mais tecido do que podemos usar. Como podem ver, nossas propriedades, embora não excessivas, são consideráveis, assim como nossa riqueza.
— Não compreendo como, com tanta riqueza, podem ser tão avarentos! — exclamou o Peregrino.
— O que o faz pensar isso? — retrucou um dos anciãos.
— Como permitem, com tantas riquezas, que seus filhos sejam sacrificados? — insistiu o Peregrino. — Por que não se desfazem de cem libras de prata e compram um jovem e uma moça, para substituir os seus filhos? Por menos de duzentas libras de prata, incluindo todos os custos, podem assegurar tranquilamente o futuro de sua família.
— Há algo que você desconhece — replicaram os anciãos, chorando ainda mais. — O Grande Rei está ciente de tudo o que acontece. Além disso, ele nos visita com frequência.
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— Isso é, francamente, interessante — comentou o Peregrino. — Podem me dizer como ele é?
— Nunca vimos o seu rosto — responderam os dois anciãos. — Sabemos que ele está entre nós porque sempre é precedido por uma brisa aromática. Essa é o sinal que ele nos dá, para que possamos rapidamente queimar grandes quantidades de incenso e nos inclinarmos, com o rosto voltado para o vento. Ele é tão astuto que conhece todas as famílias deste lugar, lembrando-se, inclusive, do dia e da hora dos nossos nascimentos. Como poderíamos enganá-lo, se ele sabe mais sobre nós do que nós mesmos? Quem nos dera pudéssemos nos desfazer de duzentas ou trezentas libras e ficarmos, assim, livres de sua perspicácia! Agora compreendem por que nos é impossível adquirir, a qualquer preço, substitutos para nossos filhos?
— A situação de vocês é, de fato, complicada — comentou o Peregrino. — Poderia trazer seu filho? Gostaria de conhecê-lo.
Chen Qing se retirou para o interior da casa e retornou logo depois, acompanhado de Guanbao. Era um menino comum, absolutamente alheio à terrível tragédia que estava prestes a se abater sobre ele. Suas mangas estavam cheias de doces e frutas cristalizadas, e ele mastigava incessantemente com evidente prazer.
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Ao vê-lo, o Peregrino o conduziu até o ponto mais iluminado da sala, observou-o atentamente e, após recitar um feitiço e balançar ligeiramente o corpo, transformou-se em uma cópia exata do menino.
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O ancião ficou tão atônito que caiu de joelhos no chão, clamando ao monge Tang em voz alta:
— Diga-me qual desses dois é meu filho! Isso é inacreditável! Como pode o vosso discípulo ter-se transformado em meu filho se, até agora, conversava conosco? Se falo com um, ambos me respondem da mesma forma. Somos indignos de contemplar tais prodígios! Peça ao seu discípulo para voltar à forma original! É o apelo de um pai desesperado, à beira da loucura!
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O Peregrino atendeu imediatamente ao pedido do ancião, passando simplesmente a mão sobre o rosto. Isso fez com que o ancião exclamasse, maravilhado:
— Você é realmente impressionante!
— Eu me parecia com o seu filho? — perguntou o Peregrino, sorrindo.
— Era idêntico a ele — respondeu o ancião. — Tinha os mesmos traços, a mesma voz, as mesmas roupas e até a mesma altura.
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— É verdade — confirmou o Peregrino. — Mas suas observações foram apenas superficiais. Tragam uma balança e verão que não há sequer um grama de diferença entre nós.
O ancião, surpreso, fez o teste e exclamou, espantado:
— Extraordinário! O peso de vocês é exatamente o mesmo!
— Acredita que essa substituição funcionaria para o sacrifício? — perguntou o Peregrino, com um olhar perspicaz.
— Sem dúvida alguma — respondeu o ancião. — Ninguém perceberia a troca, disso tenho certeza.
— Nesse caso — concluiu o Peregrino —, ofereço minha vida no lugar da de seu filho. Assim, seu nome será preservado por muitas gerações. Estou disposto a ser entregue a esse Grande Rei de quem me falaram.
— Se realmente fizer isso — disse o ancião, curvando-se e batendo a testa no chão em sinal de gratidão —, darei ao monge Tang mais de mil libras de prata pura, para que ele possa alcançar o Paraíso Ocidental sem nenhum contratempo.
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— Ei, ei, um momento! — interrompeu o Peregrino. — E não vão me agradecer por isso?
— Agradecer para quê? — retrucou o ancião. — Se tomar o lugar do meu filho, estará completamente acabado.
— Como assim "acabado"? — questionou o Peregrino.
— O Grande Rei vai devorá-lo como se fosse um frango — respondeu o ancião.
— Se ele ousar tentar, vai se arrepender amargamente — advertiu o Peregrino.
— Está dizendo que ele não conseguirá comê-lo porque sua carne é dura demais? — perguntou o ancião, confuso.
— Deixemos isso de lado — disse o Peregrino. — Se ele conseguir me devorar, morrerei muito antes do que planejei. Mas não se preocupem. Prometi ocupar o lugar de seu filho, e é exatamente isso que farei.
Desconcertado, Chen Qing intensificou seus agradecimentos e, tomado pela emoção, prometeu recompensar cada um dos monges com quinhentas libras de prata, caso tudo ocorresse conforme esperado. Enquanto isso, Chen Cheng retirou-se para trás de um biombo e desabou em prantos, incapaz de conter sua tristeza. Compreendendo o motivo de sua tristeza, o Peregrino aproximou-se dele e, puxando-lhe a manga, disse:
— Vejo que não compartilha da alegria de seu irmão. Imagino que esteja preocupado com o destino de sua filha. Estou certo?
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Chen Cheng assentiu com a cabeça e, caindo de joelhos, respondeu:
— Não posso me separar dela, mestre. Sei que deveria estar grato pelo que fará pelo meu sobrinho, mas a verdade é que só tenho essa menina. Morrerei de dor quando a perder. Compreende agora o meu sofrimento? Abrir mão dela é o mesmo que abrir mão de mim mesmo.
— Vão depressa e preparem cinco barris de arroz — ordenou o Peregrino. — Acrescentem alguns pratos vegetarianos e ofereçam tudo a esse meu irmão de focinho alongado. Assim que ele tiver satisfeito, peçam-lhe que se transforme na sua filha. Dessa forma, os dois jovens continuarão vivos e nossa fama crescerá ainda mais. O que acham?
— Pode fazer o que quiser com sua vida — retrucou Bajie, dirigindo-se ao Peregrino. — Mas não tem o direito de me arrastar para essa sua louca aventura.
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— Vamos, vamos! — disse o Peregrino. — Como diz o provérbio: "Até os frangos só comem o que valem." Desde que pôs os pés nesta casa, só fez comer. Agora quer se recusar a ajudar quem o alimentou tão generosamente?
— Compreendo o seu ponto de vista — reconheceu Bajie. — Mas não sou nenhum mestre nas artes da transformação.
— O que quer dizer com isso? — retrucou o Peregrino. — Sei muito bem que domina trinta e seis metamorfoses.
— Wukong está certo — interveio Sanzang. — Não há causa mais justa do que essa. Como diz o provérbio: "Salvar uma vida é mais valioso do que erguer uma pagoda de sete andares." Primeiro, devemos agradecer a esses anciãos por tudo o que fizeram por nós. Segundo, é nossa obrigação acumular méritos. A noite está fria, e vocês não têm nada para fazer. Acredito que o melhor que podem fazer é se divertir por um tempo.
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— Como pode dizer isso, mestre?! — protestou Bajie. — Não nego que posso me transformar em uma montanha, em uma rocha, em uma árvore, em um elefante, em um búfalo e até em um homem forte. Mas é impossível para mim me transformar em uma menina.
— Não acredite nele — disse o Peregrino a Chen Cheng. — Traga sua filha.
O ancião correu para o interior da casa e, pouco depois, retornou com Bacia de Ouro, sua esposa, suas concubinas e toda a família. Antes que os monges pudessem dizer qualquer coisa, as mulheres se lançaram aos pés deles, implorando, entre gritos e soluços, que salvassem a vida da menina. A jovem usava uma tiara de pérolas, esmeraldas e outras pedras preciosas, vestia uma túnica de seda vermelha com detalhes amarelos e se protegia do frio com uma capa de cetim verde com o colarinho branco e preto. Sua saia era de seda, com flores vermelhas estampadas, e suas calças foram tecidas com fios de ouro. Usava sapatos de palha cor de rosa e, assim como seu primo, mastigava doces e frutas.
— Aqui está a menina — disse o Peregrino, dirigindo-se a Bajie. — Olhe bem para ela e se transforme logo, para que possamos ser oferecidos como sacrifício.
— Eu não consigo! — protestou Bajie. — Ela é fina e delicada demais para mim.
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— Vamos, ande logo! — insistiu o Peregrino. — Ou quer que eu lhe dê uma surra?
— Não me bata, por favor — suplicou Bajie, tremendo da cabeça aos pés. — Vou tentar e ver o que acontece.
Bajie recitou um feitiço e balançou a cabeça várias vezes, gritando repetidamente:
— Transforme-se!
Porém, apesar de conseguir reproduzir o rosto da menina, não foi capaz de imitar sua delicadeza e graça. Sua enorme barriga continuava ali, impossível de esconder.
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— Tente de novo! — incentivou o Peregrino, soltando uma gargalhada.
— Não consigo fazer isso — defendeu-se Bajie. — Não está vendo? Pode me bater, se quiser. Isso simplesmente vai além das minhas forças!
— Você não pode andar por aí com o rosto de uma menina e o corpo de um monge! — exclamou o Peregrino. — Todos vão rir de você! Assim, você não será nem homem nem mulher! Vamos, adote a postura da estrela e eu verei o que posso fazer.
Então, o Peregrino soprou uma rajada de ar mágico sobre Bajie, e seu corpo ganhou a delicadeza e o frescor de uma menina.
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Resolvido o problema, ele se voltou para os dois anciãos e disse:
— Levem seus filhos para dentro, para não nos confundirmos. Se não o fizerem, este meu irmão pode se esgueirar até o quarto deles e se passar por quem não é. Para evitar problemas, aconselho que dêem a eles todos os doces e frutas que quiserem e, acima de tudo, se certifiquem de que não chorem. Não quero que o Grande Rei suspeite de nada. Isso arruinaria nossos planos e não poderíamos nos divertir como queremos.
O Grande Sábio então ordenou ao Monge Sha que cuidasse do monge Tang, enquanto Bajie e ele usurpavam as identidades de Chen Guanbao e Bacia de Ouro. Quando tudo estava pronto, o Peregrino perguntou:
— Como pretendem nos oferecer àquela besta? Atados, cozidos ou picados?
— Não faça piada com isso, por favor! — suplicou Bajie. — Você sabe muito bem que eu não suportaria passar por uma provação dessas.
— Não, não! — respondeu um dos anciãos. — Vocês se sentarão em dois bancos de laca vermelha, e os servos se encarregarão de levá-los ao templo do Grande Rei.
— Excelente — comentou o Peregrino. — Tragam essas bandejas das quais falam. Quanto antes nos sentarmos nelas, melhor.
Os anciãos fizeram o que lhes foi pedido, e o Peregrino e Bajie se acomodaram sobre as mesas da melhor maneira possível. Em seguida, quatro jovens criados ergueram-nas e as carregaram até o pátio, onde as colocaram sobre duas mesas preparadas especialmente para a ocasião.
— Mais uma dessas — comentou o Peregrino para Bajie, visivelmente satisfeito — e nos venerarão como deuses.
— Eu não me importaria de viajar sempre assim — replicou Bajie. — O problema é que isso não vai durar muito. Assim que nos levarem ao templo, nossos minutos estarão contados.
— Não tenha medo. Apenas faça o que eu fizer — aconselhou o Peregrino. — Ou, se preferir, não faça nada. O melhor é fugir assim que perceber que querem me devorar.
— Isso parece um bom plano — respondeu Bajie. — Mas e se ele decidir me devorar primeiro? Talvez ele prefira meninas a meninos, quem sabe?
— Há alguns anos — interveio um dos anciãos —, alguns moradores do vilarejo se esconderam sob as mesas durante o sacrifício e viram que ele sempre devorava o menino primeiro e depois a menina.
— Ainda bem! — exclamou Bajie, aliviado.
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Enquanto conversavam e tentavam manter o ânimo, um grande alvoroço se fez ouvir do lado de fora. Vozes agitadas misturavam-se ao som de tambores e gongos. Todo o vilarejo se reunira diante da casa, empunhando tochas e lanternas, exigindo insistentemente:
— Tragam o menino e a menina de uma vez!
Enquanto os anciãos se entregavam ao choro, os quatro criados ergueram as mesas e saíram da casa. Não sabemos se o Peregrino e Bajie conseguiram salvar suas vidas ou não. Quem quiser descobrir, terá que prestar atenção às explicações oferecidas no próximo capítulo.
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- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
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