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24 de maio de 2024

A Jornada ao Oeste: Capítulo XX

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO XX:


O MONGE TANG ENFRENTA UMA PROVAÇÃO NA CORDILHEIRA DO VENTO AMARELO. EM MEIO À MONTANHA, BAJIE SE ESFORÇA PARA OBTER A MAESTRIA


"O dharma nasce da mente e à mente deve a sua destruição. Pode estar se perguntando quem será capaz de destruí-lo ou dar-lhe existência, mas a resposta está em você mesmo. Por que incomodar os outros com perguntas inúteis, se tão poderoso agente é a sua própria mente? Tudo que precisa fazer é extrair sangue do minério de ferro. Perfure seu nariz com um fio de seda e amarre-o ao vazio do arbusto da passividade. Dessa forma, escapará do vício e do mal agir. Nunca considere o furto como filho de suas entranhas e esqueça o dharma e a mente. Não deixe o outro lhe enganar: com um grande soco, acerte-o primeiro. O que parece ser mente não é, na realidade. Quando o Touro (1) e o Homem se dissolvem, o céu, esverdeado como jade, torna-se luminoso e a lua de outono atinge seu zênite. Nesse momento, são tão semelhantes que ninguém pode separá-los."

Estes versos (2) enigmáticos foram compostos por Tang Sanzang, mestre da lei, logo após dominar o Sutra do Coração, cujo mistério rompeu a porta de sua compreensão. Conforme ele recitava esses versos com frequência, um raio de luz espiritual penetrava em cada canto de seu ser.

Agora, voltemos a falar sobre os três viajantes, que durante sua jornada se alimentavam do vento e descansavam junto aos cursos d'água, se vestiam com a lua e se cobriam com as estrelas. O verão logo chegou, e o céu tornou-se escaldante. Entristecidos, viram as flores murcharem e os voos das borboletas tornarem-se cada vez mais pesados, enquanto nos topos das árvores, os cantos das cigarras se tornavam mais estridentes. Os vermes se reclusavam em seus casulos, as belas romãs se revestiam de um vermelho tão intenso que pareciam estar em chamas, e os lagos se enchiam de novos lírios. Já estava ficando tarde, quando avistaram uma vila à beira do caminho.

- Veja! - disse Sanzang à Wukong, entusiasmado. - O sol está se pondo atrás das colinas ocidentais, escondendo seu espelho de fogo, enquanto a lua emerge do mar oriental, revelando sua roda de gelo. Ainda bem que ali à frente há algumas casas. Vamos até lá pedir abrigo para passarmos a noite. Continuaremos nossa jornada amanhã.

- Ótima idéia! - exclamou Bajie. - Estou morrendo de fome. Vamos pedir algo para comer em uma dessas casas. Assim, recuperarei minhas forças e poderei continuar carregando a bagagem.

- Você é incorrigível! - repreendeu o Peregrino. - Faz poucos dias que você deixou sua casa, e já está se arrependendo de ter vindo.

- Receio, meu querido irmão, que eu não seja como você - desculpou-se Bajie. - Pelo menos é impossível para mim me alimentar de névoa e ar. Desde que decidi seguir nosso mestre, tenho sentido fome o tempo todo. O que você quer que eu faça? Eu sou assim.

- Se você sente falta do conforto da família, não é a pessoa certa para me seguir - sentenciou Sanzang ao ouví-lo. - O melhor que você pode fazer é voltar para onde nos encontramos.

- Por favor, mestre - suplicou Bajie, ajoelhando-se - , não ouça as palavras de meu irmão mais velho. Ele é alguém que adora colocar a culpa nos outros. Eu não fiz nenhuma reclamação, mas ele diz que eu estava reclamando.  Sou apenas um tolo honesto, que disse que estava com fome e sugeri que pedíssemos comida em alguma dessas casas.  Isso é motivo suficiente para dizer que sinto falta da vida que acabei de deixar? A Bodhisattva me entregou os mandamentos, e você me concedeu seu perdão. Por isso, decidi segui-lo até o Paraíso Ocidental. Juro que não me arrependo disso e estou disposto a me dedicar de corpo e alma à prática da ascese (3).

- Se é verdade o que você diz - concluiu Sanzang - , levante-se e continue conosco.

Sem deixar de murmurar, Bajie se levantou com um salto e mais uma vez pegou a bagagem. Teve que acelerar o passo para alcançar seus companheiros, que já estavam diante de uma das casas. Sanzang desceu do cavalo, o Peregrino imediatamente segurou suas rédeas, e Bajie, por sua vez, deixou novamente a bagagem no chão, todos parados sob a sombra de uma grande árvore. Sanzang pegou seu cajado de nove anéis, ajeitou seu chapéu de palha e se dirigiu até a porta de uma das casas, de onde viu um ancião sentado sobre uma esteira de bambu, repetindo incessantemente o nome de Buda. Sanzang não ousou levantar a voz, apenas sussurrando:

- Saudações, benfeitor.

O ancião imediatamente se levantou e ajeitou suas roupas da melhor maneira possível. Em seguida, abriu a porta e devolveu a saudação aos inesperados visitantes, dizendo:

-Venerável Sacerdote, perdoe-me por não ter ido ao seu encontro. De onde o senhor vem, e o que o traz à minha humilde residência?

- Seu humilde servo - respondeu Sanzang - é um monge proveniente da capital dos Tang, cujo reino, como bem sabe, fica a leste. Seguindo o desejo do imperador que o governa, estou indo em direção ao Templo do Trovão para obter as escrituras de Buda. Como estava ficando tarde quando chegamos a este lugar, decidimos pedir abrigo para passar a noite. Dessa forma, amanhã poderemos continuar a jornada com mais energia.

- Vocês estão perdendo tempo - exclamou o ancião, sacudindo as mãos e a cabeça. - Se desejam realmente obter as escrituras que mencionam, em vez de ir para o Paraíso Ocidental, cujo acesso é extremamente difícil, deveriam ir para o Oriente.

- Que estranho! - pensou Sanzang, desconcertado. - A Bodhisattva me ordenou claramente a ir para o Oeste. Por que esse ancião diz que eu deveria ter iniciado a jornada na direção oposta? Pelo que eu saiba, no Oriente não existem escrituras desse tipo.

Totalmente confuso e envergonhado, Sanzang não conseguiu dizer nenhuma palavra por um longo tempo. O Peregrino por sua vez, sempre impulsivo e travesso, era incapaz de se conter e aproximou-se do ancião, dizendo em voz alta: 

- Embora você tenha uma idade avançada, parece que lhe falta bom senso. Percorremos um longo caminho até chegarmos aqui e você está tentando nos dissuadir de nosso propósito. Se não quiser nos abrigar em sua casa, porque é pequena demais e não há lugar para todos, podemos passar a noite sob as árvores sem incomodá-lo. 

- Parece que você é uma pessoa mais sensata do que esse seu discípulo de queixo pontiagudo, bochechas afundadas, olhos vermelhos como sangue e boca de deus do trovão - disse o ancião, dirigindo-se a Sanzang. - Ele é a verdadeira imagem de um demônio, mas isso não lhe dá o direito de insultar uma pessoa tão idosa como eu, não acha?

- Você está completamente carente de juízo! - disse o Peregrino, soltando uma uma risada. -Os bonitos só têm a beleza a seu favor, mas eu possuo algo que muitos desejam e poucos conseguiram alcançar.

- Quer dizer que suas habilidades são incontáveis? - perguntou o ancião.

- Não é que eu queira me gabar, mas é isso mesmo - respondeu o Peregrino.

- De onde você é, e por que decidiu raspar a cabeça e se tornar um monge? - perguntou novamente o ancião.

- Eu sou originário  da Caverna da Cortina de Água, que está situada na Montanha das Flores e Frutos, no país de Ao-Lai do Continente de Purvavideha - explicou o Peregrino. - Em minha juventude, aprendi a ser um monstro maligno, e, após adotar o nome religioso de Wukong, tornei-me o Grande Sábio, Sósia do Céu. No entanto, no mundo celestial, não fui respeitado como eu gostaria, e mergulhei o Palácio Celestial em confusão, cometendo crimes horrendos que trouxeram desgraça sobre minha cabeça. Após sofrer um tremendo castigo, me converti ao budismo e comecei a cultivar os Frutos da Verdade. Por isso, agora acompanho meu mestre, um irmão do Imperador dos Tang, em sua jornada para o Paraíso Ocidental, a fim de prestar seus respeitos a Buda. Por que eu teria medo da altura das montanhas, das artimanhas do caminho, da largura dos cursos d'água ou do estrondoso rugido das ondas? Eu tenho o poder de capturar monstros, derrotar demônios, domar tigres, capturar dragões... Eu sei, resumidamente, um pouco de tudo que uma pessoa precisa saber para ascender aos céus ou adentrar o interior da terra. Se, por acaso, em sua família ocorrerem fenômenos tão estranhos quanto tijolos voando, telhas dançando, panelas falando ou portas se abrindo sozinhas, eu posso acabar com tudo isso em um instante.

- Então você é um desses monges fanfarrões que vivem mendigando seu sustento de porta em porta? - exclamou o ancião, rindo, após ouvir tão longo discurso.

- Aqui o único fanfarrão é você - replicou o Peregrino. - Eu simplesmente, não tenho tempo para isso. Esta jornada tem sido muito cansativa e mal me restam forças para falar.

- Se você não estivesse cansado, e se estivesse no clima para conversar, você provavelmente me deixaria louco com suas palavras! - zombou o ancião. - Enfim, coragem não lhe falta para chegar ao Oeste. Vocês estão em quantos? Por mim, não há problema algum em descansarem sob meu teto.

- Agradeço por ser tão generoso conosco - respondeu Sanzang. - Somos três no total.

- Onde está o outro que falta, se posso saber? - perguntou o ancião.

- Sua visão não deve estar muito boa - comentou o Peregrino. - Não o vê ali, na sombra?

O ancião realmente tinha uma visão muito fraca. Então, ergueu a cabeça e olhou na direção indicada. Assim que conseguiu finalmente ver o rosto estranho e a boca proeminente de Bajie, foi tomado pelo pânico e correu para dentro da casa, tropeçando a cada passo.

- Fechem a porta, depressa! - gritava, exaltado. - Um monstro está vindo!


- Não tenha medo, homem - instigou o Peregrino, segurando-o pela manga. - Esse não é um monstro, é meu irmão.

- Essa é boa! - exclamou o homem, tremendo da cabeça aos pés. - Se um monge é feio, o outro é ainda mais.

- O senhor está muito enganado se julga as pessoas pela aparência - disse Bajie, se aproximando. - Podemos ser feios, mas possuímos habilidades bastante admiráveis.

Enquanto o ancião conversava com os três monges na frente de sua casa, dois jovens apareceram no extremo sul da vila, acompanhados de uma idosa e um grupo de crianças. Todos estavam com as roupas arregaçadas e os pés descalços, pois voltavam do plantio. Ao ver o cavalo, a bagagem e a agitação na porta da casa, eles se aproximaram e perguntaram:

- O que toda essa gente veio fazer aqui?

Bajie se virou, sacudiu as orelhas algumas vezes e esticou seu longo focinho. Ao vê-lo, os curiosos fugiram apavorados em todas as direções, atropelando-se como se tivessem se deparado com um fantasma.

 Preocupado, Sanzang não parava de gritar para eles:

- Não tenham medo! Não somos monstros, somos monges em busca de escrituras sagradas.

O ancião saiu para ajudar a mulher, que havia caído no chão, e disse, tentando acalmá-la:

- Levante-se e não tenha medo. Este é um monge muito virtuoso que vem da corte dos Tang, e, embora seus discípulos sejam feios ao extremo, posso garantir que possuem um coração de ouro. Agora, leve as crianças para dentro de casa.

Com sua ajuda, a mulher percorreu os poucos metros que a separavam da porta, seguida pelas crianças e os dois jovens. Sanzang sentou-se então na cama de bambu e começou a repreender seus discípulos, dizendo:

-Vocês dois são feios de se ver, e sua linguagem é muito rude. Vocês assustaram toda a família, e o que é pior, estão me fazendo pecar sem parar.

- Acho estranho você dizer isso - replicou Bajie, surpreso. - Verdade seja dita, desde que estou com vocês, me comporto muito melhor do que antes. Quando morava na aldeia do senhor Gao, só precisava mexer uma vez as orelhas para que todos se sentissem mortos de medo.

- Pare de dizer bobagens e conserte a sua feiura! - repreendeu o Peregrino.

- Olhe só quem está falando! - exclamou Sanzang. - A aparência que temos não depende de nós. Nos é dada na hora do nascimento. Como ele poderia consertá-la?

- Ele poderia pressionar o focinho contra o peito o máximo que puder e não tirá-lo para fora.  Além disso, poderia recuar essas orelhas em forma de leque para trás da cabeça e não abaná-las. 

Bajie aceitou imediatamente a sugestão, escondendo o focinho e recuando as orelhas. Em seguida, dobrou as mãos na altura da cabeça, e assim o rosto ficou completamente coberto. O Peregrino se encarregou de colocar a bagagem e amarrar o cavalo a um dos postes no pátio.

Naquele momento, o ancião ordenou a um dos criados que trouxesse três xícaras de chá em uma bandeja de madeira. Assim que os hóspedes terminaram de bebê-las, foi servida uma refeição vegetariana. Antes, outro criado havia trazido para o pátio uma velha mesa sem pintura e três ou quatro banquetas com as pernas quebradas. Estava muito quente dentro de casa, e decidiram que o melhor seria jantar ao ar livre. Assim que se sentaram, Sanzang perguntou ao ancião:

- Qual é o seu sobrenome?

- Seu humilde servo pertence à família Wang - respondeu o ancião.

- E quantos herdeiros você possui? - perguntou novamente Sanzang.

- Tenho exatamente dois filhos e três netos - respondeu o ancião.

- Parabéns - disse Sanzang. - E qual é a sua idade, se posso saber?

- Tenho vivido tolamente, acabando de completar meu sexagésimo primeiro ano - respondeu mais uma vez o ancião.

- Isso é fantástico! - exclamou o Peregrino. - Poucos têm a oportunidade de iniciar um novo ciclo sexagenário.

- Pouco depois de chegar à sua porta - disse Sanzang, mudando de assunto -, você afirmou que as escrituras do Paraíso Ocidental são muito difíceis de conseguir. Você pode nos explicar por quê?

-As escrituras não são difíceis de conseguir - disse o ancião - , mas a jornada até lá é cheia de perigos e dificuldades. Cerca de trinta quilômetros a oeste daqui, ergue-se a Cordilheira do Vento Amarelo, com um comprimento de aproximadamente mil e seiscentos quilômetros. Ela está infestada de monstros; e foi isso que eu quis dizer quando falei em dificuldades. De qualquer forma, como seus discípulos parecem ter poderes muito especiais, acredito que não terão problemas em seguir em frente.

- Você acertou em cheio - exclamou o Peregrino, orgulhoso. - Meu irmão e eu podemos dar conta de todos os monstros que queiram nos importunar. 

Enquanto falavam, um dos filhos trouxe um pouco de arroz e disse aos hóspedes:

- Comam à vontade.

Sanzang dobrou as mãos e agradeceu ao céu. No entanto, antes que a oração terminasse, Bajie já havia devorado uma tigela inteira de arroz. Ele tinha uma fome tão voraz que, num piscar de olhos, engoliu mais três.

- Vocé é mesmo um comilão! - repreendeu o Peregrino. - Parece até um fantasma faminto (4). 

O ancião era um homem muito sensível, e assim que viu o quão rápido Bajie comia, disse:

- Parece que este respeitável monge tem uma fome incrível. Tragam um pouco mais de arroz, por favor. 

O porco tinha, de fato, um apetite enorme. Sem levantar a cabeça da mesa uma única vez, deu conta de dez tigelas de arroz, enquanto Sanzang e o Peregrino mal tiveram tempo de terminar duas. Mas mesmo assim, Bajie continuou comendo como se nada fosse.

- Receio que, com a pressa, não pudemos preparar nada realmente saboroso para vocês - desculpou-se o ancião. - Não me atrevo, por isso, a insistir que comam mais. No entanto, também não gostaria que ficassem com fome.

- Não se preocupem - tentaram tranquilizá-lo Sanzang e o Peregrino. - O que nos serviram foi o suficiente.

- Do que você está falando? - protestou Bajie.- Pode-se saber com o que está brincando? Por que se desculpar por algo que nunca teve intenção de fazer? Se você tem arroz, apenas traga mais, é só isso!

Bajie terminou com todo o arroz da casa em uma única refeição. Mas o mais surpreendente foi que ele disse que ainda não estava cheio. Felizmente, ninguém o ouviu. Depois de arrumar a mesa, todos se retiraram para descansar. Na manhã seguinte, bem cedo, o Peregrino cuidou de selar o cavalo, enquanto Bajie organizava a bagagem. O senhor Wang pediu à esposa que preparasse algo para beber. Os três tomaram com inesperada satisfação e foram se despedir do anfitrião, que se desculpou, dizendo:

- Perdoem-me por não tê-los tratado como merecem. De qualquer forma, saibam que se encontrarem alguma desgraça pelo caminho, as portas desta casa estarão sempre abertas para vocês, e podem retornar quando quiserem.

- Ancião - disse o Peregrino, não diga palavras tão desconcertantes. Aqueles que deixaram a família para trás jamais retornam!

Eles estão carregaram a bagagem, esporearam o cavalo, e continuaram sua jornada em direção ao Oeste. No entanto, como sua viagem demonstrou claramente, não havia segurança nos caminhos que levavam ao Paraíso Ocidental. Neles, espreitavam demônios horripilantes, cujo único pensamento era fazer o mal a quem ousasse atravessá-los. O grupo mal havia viajado meio dia quando alcançaram uma montanha muito alta e íngreme. Sanzang esporeou o cavalo e subiu a encosta. Logo, no entanto, parou e, sentando-se de lado na sela, olhou curioso ao redor. 

A montanha era, de fato, muito alta. Por toda parte, viam-se penhascos inacessíveis e precipícios profundos. A pouca distância dos monges, havia uma grande depressão por onde a força avassaladora de um rio se precipitava. As flores que cresciam às suas margens eram, no entanto, abundantes e frescas. O cume da montanha se perdia no azul do céu, e era de se supor que o rio que recolhia todas as suas águas chegasse às portas do inferno. A brancura das nuvens que o cercavam contrastava com as formas estranhas das rochas, altas e assustadoras. Atrás delas, podia-se vislumbrar um verdadeiro labirinto de cavernas, onde os dragões se escondiam e podia-se ouvir o constante gotejar da água. Sanzang viu também ao longe o complicado traçado dos chifres dos veados, o olhar desconfiado e lento dos antílopes, as escamas vermelhas das serpentes-píton, os rostos estúpidos e esbranquiçados dos macacos, o esforço dos tigres subindo pela encosta em busca de suas tocas, e as inacessíveis tocas dos dragões onde descansavam até o amanhecer. As folhas murchas emitiam um som seco ao serem pisadas, alertando os habitantes das cavernas e toda espécie de aves que voavam para longe, batendo as asas ruidosamente. Na floresta, as bestas rugiam e, imediatamente, mais de dez mil bestas selvagens fugiam apavoradas. Toda a montanha estava tingida de uma cor azul-esverdeada como jade. Nas primeiras horas da manhã, no entanto, a névoa atuava como um véu que suavizava delicadamente as cores. 

Sanzang conduzia com cuidado sua montaria, e o próprio Grande Sábio reduziu o ritmo de sua caminhada. Bajie, por outro lado, continuava a andar como se estivesse em terreno completamente plano. No entanto, todos se sentiam de alguma forma impressionados pela beleza da montanha. Quando pareciam mais encantados, levantou-se de repente um vento furioso, e Sanzang gritou alarmado:

-Wukong, o vento está ficando mais forte!

- E daí? - replicou Wukong. - Não me diga que está com medo? Este é o sopro do Céu nas quatro estações. Não há nada a temer!

- Tudo bem - respondeu Sanzang. - Mas esse vento é extremamente forte, e não se parece em nada com o que vem diretamente do céu.

- Como assim? - insistiu o Peregrino.

- Você não reparou na sua força? - disse Sanzang. - Sua maneira de soprar é, além disso, muito arrogante, algo que raramente se vê naqueles que têm sua origem nos céus cor de jade. Você não ouve o rangido das árvores ao passar pela cordilheira? Seus troncos se agitam como galhos mortos. Ao longo dos cursos d'água, os salgueiros parecem fazer parte dos juncos. Por toda parte voam flores murchas e folhas desgarradas. Os pescadores recolhem às pressas as redes e amarram os barcos, embora as cordas estejam tensas e prestes a se romper. Os navios maiores buscam lugares abrigados e lançam suas âncoras ali. Os viajantes são obrigados a interromper sua jornada e os lenhadores não podem avançar com suas pesadas cargas de lenha nas costas. Os macacos abandonam as copas das árvores e não sabem onde se esconder. Os cervos fogem apavorados, sem coragem de voltar para os maciços de flores, onde encontram abrigo. Os ciprestes plantados nas bordas dos penhascos estão caindo um a um. A corrente dos rios arrasta bambus e pinheiros arrancados. O pó forma uma espécie de neblina que dificulta a visão e não deixa respirar. Até os mares e os rios transbordam, suas ondas arrebentando tudo o que encontram.

- O mestre está certo - disse Bajie ao Peregrino, puxando-o pela manga. - Esse vento é muito forte. O melhor é nos refugiarmos em algum lugar até que ele se acalme.

- Parece que você é muito fraco - zombou o Peregrino, soltando uma risada. - Só porque nos deparamos com um furacão, já quer se esconder? O que aconteceria se encontrarmos um  monstro cara a cara?

- Talvez, meu caro irmão - replicou Bajie -, você não conheça o provérbio que diz: "Fuja da sensualidade como de um inimigo, e do vento como de uma flecha". De qualquer forma, não perdemos nada buscando abrigo por um tempo.

-Pare de falar! - ordenou o Peregrino. - Deixe eu agarrar esse vento e cheirá-lo!

- Deixe de ser mentiroso! - exclamou Bajie, rindo. - Como seria possível agarrar o vento para depois cheirá-lo? Ele é tão escorregadio que, ao tentar detê-lo, ultrapassa facilmente as barreiras e continua tranquilamente seu caminho.

- Você pode não saber - disse o Peregrino -, mas eu tenho o poder de agarrar o vento! - e, para provar que era verdade, ele o agarrou pela cauda e o cheirou com cuidado. Ele o achou tão repugnante que o soltou imediatamente e disse:

- Vocês tinham razão. Esse vento não é nada bom. Cheira a tigre ou a monstro. Definitivamente há algo de estranho nele!

Wukong mal havia terminado de dizer isso quando, por cima de um dos penhascos da montanha, apareceu um tigre corpulento com uma cauda que parecia um chicote. Sanzang assustou-se tanto ao vê-lo que perdeu o equilíbrio e caiu de cabeça, ficando deitado no chão, mais pelo medo do que pelo efeito da queda. Bajie, por sua vez, jogou a bagagem de lado e, segurando seu ancinho de nove dentes, lançou-se contra a fera, gritando:

- Maldita besta! Pode-se saber para onde você vai? - e desferiu-lhe um tremendo golpe na cabeça.

O tigre se ergueu sobre as patas traseiras e, usando a pata esquerda, perfurou o próprio peito com um golpe. Em seguida, agarrou a própria pele e a rasgou de cima para baixo, produzindo um som arrepiante. Totalmente esfolado, permaneceu em pé na beira da estrada. O sangue escorria por todo o corpo nu, formando uma poça ao redor das patas traseiras. Apenas na região das têmporas, conservava alguns pelos que mais pareciam dardos de fogo. Suas sobrancelhas afiadas apontavam para o céu, suas presas indestrutíveis possuíam o brilho da morte, e seus olhos amarelados emitiam raios de luz assustadores. À impressionante imagem, somava-se a ferocidade de seus rugidos, que ressoavam por todas as rochas, antes de se perderem na distância.

- Parem e não deem mais um passo! - ordenou o monstro com gesto autoritário. - Sou a vanguarda das forças enviadas pelo Rei do Vento Amarelo, de quem recebi a ordem de vagar por estas montanhas em busca de alguns humanos para que ele possa devorar como aperitivo. De onde vocês vêm e quem são para se atreverem a virar suas armas contra mim?

- Você é apenas uma besta maldita! - repetiu Bajie. - Parece que não nos reconheceu, hein? Nós não somos meros mortais, mas sim discípulos de Sanzang, irmão do Grande Imperador Tang das Terras do Leste, que se dirige ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras de Buda. O melhor que pode fazer é nos deixar passar e não assustar nosso mestre. Se fizer isso, pouparei sua vida; caso contrário, não mostrarei misericórdia e o despedaçarei com meu ancinho.

O monstro encerrou a conserva e, aproximando-se de Bajie, desferiu-lhe um tremendo golpe com sua pata. Bajie conseguiu esquivar-se a tempo e descarregou todo o peso de seu ancinho sobre o adversário. 

Percebendo que estava em clara desvantagem, o monstro deu meia-volta e fugiu, enquanto  Bajie o perseguia. No meio da encosta, o monstro parou, revirou algumas pedras e pegou um par de cimitarras de bronze, com as quais enfrentou seu perseguidor. Os dois mediram forças repetidamente, sem que nenhum deles conseguisse uma vantagem considerável. 

Enquanto isso, o Peregrino ajudou o monge Tang a levantar, dizendo:

- Não tenha medo, mestre. Sente-se aqui e não se mova. Vou ajudar Bajie a dominar esse monstro, para que possamos retomar a viagem o mais rápido possível.

Somente então Sanzang reuniu forças suficientes para se sentar. No entanto, estava tão abalado que tremia como uma folha no meio de um furacão. Percebendo o mau exemplo que estava dando, começou a recitar o Sutra do Coração. 

Enquanto isso, o Peregrino se aproximou do local onde Bajie lutava contra o monstro e, empunhando seu bastão de ferro, gritou:

- Agarre-o! Não o deixe escapar!

Isso deu novo ânimo a Bajie, que intensificou a ferocidade de seus ataques. O monstro, percebendo que estava prestes a ser derrotado, deu meia-volta e fugiu apressadamente.

- Temos que pegá-lo! gritou novamente o Peregrino, e os dois partiram em sua perseguição morro acima.

Em pânico, o monstro recorreu ao truque da cigarra dourada trocando sua casca: ele rolou no chão e assumiu novamente a forma de um tigre. Wukong e Bajie não se intimidaram, e aumentaram a velocidade de sua corrida, dispostos a alcançá-lo e acabar com ele de uma vez por todas. Quando o monstro os viu se aproximando, ele novamente se despiu de sua própria pele e jogou-a sobre um grande rocha, assumindo mais uma vez a forma de uma feroz rajada de vento. 

Percorreu novamente o caminho que o havia levado até ali, ele acabou encontrando Sanzang, que continuava recitando o Sutra do Coração, sentado à beira da estrada. Felicitando-se por tamanha sorte, o monstro o agarrou pelos ombros e o arrastou montanha acima. Que má sorte a de Sanzang, condenado a sofrer desde antes que lhe fosse imposto o nome "Aquele-que-flutua-no-rio"! É extremamente difícil conquistar méritos aos olhos de Buda!

O monstro logo chegou à caverna de seu senhor. Abandonou seu disfarce de vento e, dirigindo-se à besta que guardava a porta, disse:

- Vá informar ao Grande Rei que o Tigre da Vanguarda capturou um monge e está aguardando suas ordens.

O Senhor da Caverna deu a ordem para que o deixassem entrar. O Tigre da Vanguarda carregava as duas cimitarras de bronze à cintura, enquanto arrastava o monge Tang com as mãos levantadas. Quando se encontrou diante de seu senhor, ajoelhou-se com respeito e disse:

- Grande Rei! Embora seu humilde subordinado não seja talentoso, ele agradece por lhe conceder a honrosa tarefa de patrulhar a montanha. Eu encontrei um monge chamado Sanzang, Mestre da Lei e irmão do Grande Imperador dos Tang na Terra do Leste. Enquanto ele seguia rumo ao Oeste em busca das escrituras de Buda, eu o capturei e tenho a honra de oferecê-lo para que o devore quando tiver vontade.

- Ouvi dizer - replicou o Senhor da Caverna, um tanto surpreso - que esse tal Sanzang é um monge muito santo, que se dirige ao Oeste em busca das escrituras budistas por ordem expressa do Imperador dos Tang. Ouvi também que um de seus discípulos, um tal Sun Wukong, o acompanha nesta jornada e que seus conhecimentos mágicos e sua inteligência não têm igual. Como você conseguiu capturá-lo e trazê-lo até aqui?

- Na verdade, ele possui dois discípulos - respondeu o Tigre da Vanguarda. - O primeiro que apareceu usava um ancinho de nove dentes, e tinha um focinho comprido e orelhas enormes. O outro usava um bastão de ferro com aros dourados, e tinha olhos flamejantes e pupilas de diamanteAmbos tentaram me capturar, mas consegui ludibriá-los usando o truque da cigarra que muda de casca. Não apenas consegui deixá-los para trás, como também capturei o mestre deles, que agora  apresento respeitosamente ao Grande Rei como refeição.

- Não irei comê-lo agora - disse o Senhor da Caverna. - Deixarei para mais tarde.

- Apenas um cavalo sem valor recusa comida pronta - citou o Tigre da Vanguarda.

- Você não entendeu - disse o Senhor da Caverna. - Não tenho nenhum problema em comê-lo agora mesmo. Mas temo que, se o fizer, seus discípulos não demorarão a aparecer aqui para nos cobrar. Acredito que o melhor é amarrá-lo a um dos postes do pátio dos fundos e deixá-lo lá por três ou quatro dias. Se esses dois não aparecerem por aqui, teremos evitado uma batalha, e então poderemos devorá-lo tranquilamente. Podemos comê-lo da maneira que mais gostarmos: cozido, frito, defumado ou no vapor. Ninguém nos impedirá.

- Vossa sabedoria e previsão são, certamente, dignas de elogios - comentou, admirado, o Tigre da Vanguarda. - Ninguém poderia ter tomado uma decisão tão sabia. Ele então virou-se então para os criados e ordenou-lhes:

- Levem o monge.

Seis ou sete demônios se lançaram sobre Sanzang e o arrastaram para fora, onde o amarraram com força, como se fossem falcões perseguindo pardais. "O-que-flutua-no-rio" se sentiu completamente abatido, mas, tirando forças de sua fraqueza, mentalmente chamou seus discípulos Wukong e Bajie, dizendo:

-Não sei em que montanha vocês estão capturando monstros, ou em que região estão subjugando duendes. Mas fui capturado por este demônio de quem tenho que sofrer grande humilhação. Quando nos veremos novamente? Se vocês dois vierem ao meu auxílio o mais rápido possível, talvez consigam salvar minha vida. Mas se demorarem, temo que não irei sobreviver!

Agora vamos falar sobre o Peregrino e Bajie que, tendo perseguido o tigre pela encosta da montanha, o viram cair e desmoronar ao pé do penhasco. Erguendo seu bastão, o Peregrino golpeou o tigre com toda a sua força, mas a mesma ricocheteou e voltou-se contra ele, atingindo suas mãos. Bajie também desferiu um golpe com seu ancinho de nove dentes que também ricochetearam. 


Dessa forma, eles descobriram que o que pensavam ser o tigre era na verdade uma pele de tigre cuidadosamente colocada sobre uma grande pedra. Surpreso, o Peregrino exclamou: 

- Oh, não! Como fomos tolos? Ele nos enganou usando o truque mais simples do mundo!

- De que truque você está falando? - perguntou Bajie.

- Do truque da "cigarra dourada que troca de casca" - respondeu o Peregrino. - Ele abandonou a pele sobre esta rocha e fugiu. É melhor retornarmos imediatamente para onde deixamos o nosso mestre. Espero que nada de mal tenha acontecido a ele.

Eles voltaram às pressas, mas não conseguiram encontrar Sanzang em lugar algum. 


- O que faremos? - gritou o Peregrino, com uma voz estrondosa como um trovão. - Ele levou nosso mestre!

- Céus! Céus! - lamentou-se Bajie, conduzindo o cavalo enquanto lágrimas escorriam de seus olhos. - Para onde devemos ir procurá-lo?

- Não chore! - ordenou o Peregrino com a cabeça erguida. - Quem cede ao choro já admitiu a derrota. Ele deve estar em algum lugar desta montanha. Vamos partir imediatamente em sua busca.


Sem perder tempo, eles se aventuraram na cordilheira, escalando picos e deixando para trás impressionantes penhascos. Depois de caminhar por muito tempo, viram surgir um grandioso palácio esculpido diretamente na encosta da montanha.

Era, de fato, um lugar esplêndido. Era como uma fortaleza inexpugnável, acessada por um caminho sinuoso aberto na rocha. Acima dela, podiam-se ver o verde azulado dos pinheiros, o frescor dos bambus e o verde dos salgueiros e outras árvores. No fundo do precipício, pares de rochas com formas muito estranhas eram habitadas por aves de espécies desconhecidas. Um riacho pulava entre as rochas em direção às distantes margens arenosas do mar. Acima, as nuvens formavam cachos acinzentados que realçavam o verde da vegetação. Raposas e lebres corriam pela espessura, enquanto veados exibiam sua força, chocando suas magníficas galhadas. No meio do penhasco, havia uma videira cuja idade não ficava nada atrás da de um cedro centenário que se elevava um pouco mais adiante. A majestade e grandeza daquele lugar superavam as do monte Hua (5). Além disso, a quantidade de flores e pássaros era tão grande que nem mesmo o monte Tiantai poderia se vangloriar de superá-los.


- Deixe a bagagem neste recuo da montanha - disse o Peregrino a Bajie. - Assim estará protegida dos ventos. Se quiser, pode levar o cavalo para pastar. Eu sozinho sou suficiente para derrotar esse monstro. Preciso capturá-lo antes de resgatar nosso mestre.

- Não precisa me dar tantas instruções - respondeu Bajie. - Vá o mais rápido possível.

O Peregrino ajustou a túnica e apertou o cinto. Em seguida, pegou seu bastão de ferro e correu em direção à porta da caverna, onde estava gravada a seguinte inscrição:
"Caverna do Vento Amarelo. Pico do Vento Amarelo".
O Peregrino se preparou imediatamente para a luta. Assumindo uma postura firme e brandindo seu bastão, ele gritou: 

- Monstros! Libertem meu mestre imediatamente, se não quiserem que eu arrase sua caverna e destrua para sempre seu refúgio!


Quando os demônios que guardavam a porta ouviram isso, correram apavorados para informar seu senhor, dizendo: 

- Uma terrível desgraça se abateu sobre nós, grande senhor! 

- Posso saber o que está acontecendo? - perguntou o Monstro do Vento Amarelo. 

- Lá fora, na entrada da caverna - explicou um dos demônios -, há um monge com a aparência de um deus do trovão e um bastão de ferro muito grosso nas mãos, exigindo a libertação imediata de seu mestre. 

Temeroso, o Senhor da Caverna se virou para o Tigre da Vanguarda e disse: 

- Eu lhe ordenei que patrulhasse a montanha e me trouxesse alguns carabus, javalis, cervos bem alimentados e cabras selvagens. Como você teve a ideia de prender o monge Tang? Por sua culpa, o discípulo dele está lá fora procurando confusão. O que faremos agora? 


- Fique tranquilo e não se preocupe - aconselhou o Tigre da Vanguarda. - Embora este seu servo não tenha a sua inteligência prodigiosa, estou disposto a liderar cinquenta soldados lá fora e trazer esse tal Peregrino Sun como condimento para sua refeição.

- Que assim seja - disse o Senhor da Caverna, mais calmo. - Além dos oficiais, contamos com um número aproximado de setecentos soldados. Você pode levar quantos quiser para essa operação. Somente se esse Peregrino for capturado, é que poderemos desfrutar à vontade da carne de seu mestre. E se isso acontecer, estou disposto a me tornar seu irmão de juramento. Mas temo que, se você falhar, nenhum de nós viverá para contar a história.


- Fique tranquilo - respondeu o Tigre da Vanguarda. - Com a sua permissão, irei agora mesmo enfrentá-lo. 

Imediatamente, convocou cinquenta demônios dentre os mais fortes, os quais começaram a agitar as bandeiras e bater os tambores. Em seguida, ele pegou as duas cimitarras de bronze e, saindo da caverna, gritou com uma voz potente: 

- Pode me dizer de onde vem, monge macaco, para ousar romper a paz que reina aqui? 


- Maldita besta esfolada! - gritou o Peregrino. - Você usou um truque grosseiro para prender meu mestre, e ainda tem a audácia de me perguntar o que estou fazendo aqui? Em vez de falar, a melhor coisa que você pode fazer é libertá-lo. Caso contrário, vou acabar com a sua vida.

- Eu capturei seu mestre - disse o Tigre da Vanguarda - para que ele pudesse ser servido ao meu Grande Rei como carne para seu arroz. Se você tiver algum juízo, vá embora. Se não, também irei capturá-lo, e você será servido junto com ele. Como já capturei um de vocês, posso deixá-lo escapar.


Ao ouvir isso, o Peregrino ficou furioso. Seus dentes rangeram de raiva, e ele parecia lançar fogo pelos olhos. Sem poder se conter, ergueu seu bastão de ferro e gritou: 

- Que poderes você tem para se atrever a falar comigo desta maneira? Não se mexa, e enfrente o meu bastão!


O Tigre da Vanguarda pegou as cimitarras e se preparou para enfrentar seu adversário. Foi uma batalha digna de figurar entre as mais ferozes da história. No entanto, o monstro era como um ovo de ganso determinado a derrotar o ovo de pedra do qual havia surgido Wukong. Diante do Belo Rei dos Macacos, as cimitarras de bronze se comportavam, de fato, como ovos atacando rochas. Como podem os pardais enfrentar as fênixes, ou as pombas enfrentarem os falcões e águias? O monstro levantava montanhas de poeira com o vento de sua respiração, mas Wukong expelia uma névoa densa que obscurecia o sol. Durante cinco assaltos, os dois trocaram golpes, mas o Tigre da Vanguarda começou a sentir suas orças o abandonarem e fugiu, derrotado, tentando salvar sua vida. Mas Wukong havia sido ferido em seu orgulho, e não estava disposto a perdoá-lo.


O monstro havia se gabado tanto de seus poderes diante de seu senhor que não teve coragem de se refugiar na caverna e em vez disso, fugiu em direção à encosta da montanha. Mas o Peregrino não estava disposto a deixá-lo escapar desta vez. Empunhando o bastão de ferro o tempo todo, correu atrás dele como um caçador atrás de sua presa. Eles logo chegaram a um recuo na montanha, um local abrigado do vento, onde Bajie estava cuidando do cavalo. 


Ao ouvir os gritos, Bajie virou-se e viu o Peregrino perseguindo o Tigre derrotado. Rapidamente, Bajie soltou o cavalo, levantou o ancinho o máximo que pôde e o cravou na cabeça do monstro. Que má sorte a do Tigre da Vanguarda! Pensou que havia escapado da rede mas na verdade havia caído armadilha do pescador. 


O ancinho de Bajie fez nove buracos terríveis, pelos quais fluíam tanto sangue que a cabeça e o cérebro do monstro secaram. Sobre tal proeza de Bajie, existe um poema que diz:
"Há algum tempo, converteu-se à verdadeira doutrina e desde então segue uma dieta pura que o levará ao Vazio. Ele se propôs a servir a Sanzang e matou um monstro em uma batalha feroz e desigual."
Bajie colocou o pé nas costas do monstro e desferiu-lhe outro golpe com o seu ancinho. Ao vê-lo, o Peregrino ficou muito satisfeito e disse: 

- Você fez muito bem em matá-lo. Ele foi audacioso o suficiente para liderar dezenas de pequenos demônios contra mim, mas isso não impediu que eu o derrotasse. Em vez de fugir e se refugiar na caverna, ele tentou fugir morro acima. Ainda bem que você estava aqui, senão ele teria escapado novamente.


- Foi ele quem levou nosso mestre? - perguntou Bajie. 

- O mesmo! - respondeu o Peregrino. 

Você perguntou a ele sobre o paradeiro de nosso mestre? - Bajie perguntou novamente.

- Ele o levou para a caverna de seu senhor - respondeu o Peregrino - para que fosse comido com um pouco de arroz. Isso me deixou furioso e me moveu a lutar contra ele. No entanto, foi você quem o matou. O mérito é, portanto, apenas seu. Se quiser, fique aqui cuidando do cavalo e da bagagem, enquanto eu levo o corpo do monstro até a entrada da caverna e desafio as bestas que lá habitam. É necessário capturar o mestre dele antes de libertar o nosso.

- Você está certo - concordou Bajie. - Vá o mais rápido possível e não se esqueça de que estou aqui. Não seria ruim se o perseguisse como fez com o outro e me permitisse acabar com ele. 

Segurando o bastão de ferro com uma mão e arrastando o tigre morto com a outra, o Peregrino voltou à entrada da caverna. Em seu interior, o Mestre da Lei estava sujeito a uma terrível prova, mas espíritos selvagens não podem prevalecer contra quem mantém equilíbrio entre os sentimentos e a mente.


Não sabemos se desta vez o Peregrino conseguiu superar o monstro e resgatar o Monge Tang. Quem quiser descobrir, deve ouvir com atenção as explicações que são oferecidas no próximo capítulo.


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Notas do Capítulo XX

    1. Às vezes, Buda é chamado de "senhor dos touros", pois se acredita que seu nome, Gautama, tem a mesma raiz que "bovino": "gaus";
    2. Na verdade, é um "gatha", um canto rimado de proporções reduzidas que busca a instrução religiosa e moral dos ouvintes;
    3. A ascese consiste em uma prática que visa ao desenvolvimento espiritual;
    4. Também conhecidos como "preta", Acredita-se que esses espíritos tenham sido pessoas falsas, corruptas, compulsivas, enganosas, invejosas ou gananciosas em uma vida anterior. Como resultado de seu carma, eles são afligidos por uma fome insaciável por uma determinada substância ou objeto;
    5. O Monte Hua se eleva na província de Shensi. Fazia parte do grupo de montanhas sagradas e exercia sua influência protetora na região ocidental.


                                    • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
                                    • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
                                    fontes consultadas para a pesquisa:
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                                    Ruby