20 de dezembro de 2024

A Jornada ao Oeste: Capítulo XXXIX

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO XXXIX:

NO CÉU, WUKONG ENCONTRA UMA PÍLULA DO ELIXIR DAS NOVE DAS NOVE TRANSFORMAÇÕES. NA TERRA, O REI, MORTO HÁ TRÊS ANOS, VOLTA À VIDA.

  

Incapaz de suportar a dor, o Grande Sábio gritava, desesperado:

– Por tudo que há de mais sagrado, pare de recitar esse feitiço! Apenas pare! Deixe-me trazer esse homem de volta à vida!

– Como pretende fazer isso? – perguntou o mestre.

– Indo ao Submundo para descobrir em qual câmara dos Dez Reis o espírito dele está preso – respondeu o Peregrino. – Assim que souber onde está, não será difícil trazê-lo de volta até aqui.

– Não acredite nele, mestre – insistiu Bajie. Ele mesmo me confessou que não havia necessidade de realizar essa viagem, pois seus poderes são tão grandes que ele seria capaz de encontrar uma solução até mesmo no próprio Céu.

O mestre, mais uma vez, deu crédito às palavras maldosas de Bajie e recitou o feitiço mais uma vez. O Peregrino, tomado por uma dor insuportável, não teve escolha senão ceder:

– Pare, mestre, pare! Eu vou trazê-lo de volta à vida com ajuda dos Céus!

– Não pare, mestre – apressava Bajie, dirigindo-se ao monge Tang. – Continue a recitar o feitiço!

– Maldita besta! – rugiu o Peregrino. – O que você ganha com o meu sofrimento?

– Você achava que era o único capaz de zombar dos outros? – retrucou Bajie, gargalhando. – Pois veja bem, eu também posso fazê-lo.

– Por favor, mestre, pare! – suplicou o Peregrino, no limite de suas forças. – Deixe-me ir aos Céus. Prometo que encontrarei um remédio para trazer o rei de volta a vida.

– E como pretende fazer isso? – perguntou Sanzang.

– Com um dos meus saltos mortais – respondeu o Peregrino. – Não será a primeira vez que atravesso a Porta Sul dos Céus usando essa técnica. Para economizar tempo, não passarei pelo Salão da Névoa Divina; irei direto ao Trigésimo Terceiro Céu, o da Suprema Felicidade, onde fica o Palácio Tushita. Lá, pedirei uma audiência com Lao-Tzu e solicitarei uma pílula do Elixir das Nove Transformações. Como sabem, essa pílula é capaz de devolver a alma ao seu corpo original. Assim, o rei voltará à vida.

– Vá imediatamente e não demore a voltar – ordenou Sanzang, impressionado com o plano do Peregrino.

– Agora deve ser mais ou menos a hora da terceira vigília – disse o Peregrino. – Estimo que estarei de volta ao amanhecer. De qualquer forma, é importante que alguém lamente e chore por este homem. Ele não pode continuar deitado assim, como se fosse apenas um pedaço de madeira. Como está morto, deveria receber algum tipo de cerimônia fúnebre.

– Não, não! – disse Bajie, balançando a cabeça. – Você quer que eu cuide disso, não é?

– Exatamente – respondeu o Peregrino. – Mas eu sei que você não vai fazer isso e, se não fizer, nunca conseguirei trazê-lo de volta à vida.

– Nesse caso, eu lamento por ele – concluiu Bajie. – Fique tranquilo. Ninguém jamais lamentou tanto por um morto quanto eu farei. Você verá.

– Existem muitos tipos de lamento – afirmou o Peregrino. – Quando estão totalmente desconectados do coração, são apenas gritos vazios. Quando vêm acompanhados de lágrimas, podem ser chamados de prantos respeitosos. Mas, quando gritos e lágrimas vêm de um verdadeiro sentimento, aí sim são lamentações de verdade.

– Se me permitir – disse Bajie, animado –, vou te mostrar como faço.

Imediatamente, pegou um pedaço de papel, rasgou-o em pequenas tiras e começou a fazer cócegas no próprio nariz. Não demorou muito para começar a espirrar descontroladamente. Seus olhos se encheram de lágrimas, e, nesse momento, ele aproveitou para se lamentar como se tivesse realmente perdido um membro da família. Fez isso tão bem que até o monge Tang perdeu a compostura e acabou cedendo ao choro.

– É assim que quero que façam – disse o Peregrino, soltando uma gargalhada. – Mas lembrem-se de que não podem parar em momento algum. E, Bajie, se acha que, assim que eu partir, poderá se deitar tranquilamente para descansar, está muito enganado. Você sabe que tenho uma audição excelente e posso castigá-lo a qualquer momento. A propósito, meu bastão de ferro está ansioso para acertar alguém.

– Vá tranquilo – respondeu Bajie, chorando de maneira exagerada. – Te garanto que, uma vez que eu começar a me lamentar, ninguém será capaz de me fazer parar por pelo menos dois dias.

O Monge Sha percebeu que os lamentos sozinhos não seriam suficientes para agradar o Peregrino. Então, pegou algumas varetas de incenso e as ofereceu ao falecido.

– Assim está melhor – comentou o Peregrino, rindo. – Agora sim, posso partir tranquilo. Quando uma família trabalha unida, o sucesso é garantido.

Era aproximadamente meia-noite quando o Grande Sábio se despediu do mestre e dos outros dois irmãos. Com um salto, atravessou a Porta Sul dos Céus. No entanto, como havia prometido, não parou no Salão da Névoa Divina e foi direto ao Trigésimo Terceiro Céu, o da Suprema Felicidade, onde se erguia o Palácio Tushita.

Assim que pisou no palácio, viu Lao-Tzu sentado no Salão do Elixir. A concentração dele era absoluta, pois, naquele exato momento, preparava um remédio extraordinário, auxiliado por alguns jovens que avivavam o fogo com grandes abanadores de folhas de plantago. Apesar de toda a concentração, Lao-Tzu notou imediatamente sua presença. Ao vê-lo, alertou seus ajudantes:

– Tenham muito cuidado. Acabou de chegar o desalmado que, um dia, ousou roubar nosso elixir.

– Não seja tão cauteloso, por favor – exclamou o Peregrino, saudando-o com um sorriso malicioso. – Por que tanta precaução comigo? Deveria saber que já não me dedico a essas coisas.

– Cerca de quinhentos anos atrás – replicou Lao-Tzu –, você causou uma enorme confusão nos Céus, roubou nosso elixir e bebeu tudo o que quis. Após o Sábio Erlang capturá-lo e trazê-lo até mim, você foi refinado no interior do meu braseiro por mais de quarenta e nove dias, um esforço inútil que me fez gastar uma quantidade absurda de carvão. Teve sorte ao aceitar a fé budista e se comprometer a acompanhar o monge Tang em sua jornada ao Paraíso Ocidental, em busca das escrituras sagradas. A verdade é que você não mudou muito. Só para recuperar os tesouros que tomou dos monstros da Montanha Altíssima já deu um grande trabalho. Como quer que eu confie em você? Agora, se não se importa, gostaria de saber o motivo da sua visita.

– Que eu me lembre, nunca fui descortês com o senhor – desculpou-se o Peregrino. – De fato, devolvi os tesouros que menciona assim que me pediu. Por que tanta desconfiança?

— Por que você não está na estrada, então? — retrucou Lao-tzu. — Por que veio ao meu palácio?

– Depois que nos despedimos do senhor – explicou o Peregrino –, continuamos nossa jornada sem nenhum incidente até chegarmos ao Reino do Galo Negro. Lá, soubemos que o verdadeiro rei havia sido assassinado por um demônio que, em tempos passados, se fez passar por um taoísta com poderes para controlar a chuva e o vento. Esse demônio assumiu a identidade do rei e está há anos ocupando o trono no Salão dos Carrilhões de Ouro (1)Na noite de nossa chegada, meu mestre passou o tempo lendo sutras, mas não conseguiu concluí-los, porque o espírito do rei assassinado apareceu a ele em sonhos, pedindo que eu destruísse o demônio que o matou. Após considerar todas as possibilidades, decidi investigar o jardim imperial com Bajie, na tentativa de encontrar provas. Encontramos o corpo do rei, perfeitamente preservado, no fundo de um poço de mármore com paredes octogonais. Carregamos o cadáver e o mostramos ao nosso mestre, que ficou tão emocionado ao vê-lo que me exigiu que trouxesse o rei de volta à vida. Ele, no entanto, estabeleceu algumas condições, entre elas a de que eu não deveria ir ao Submundo em busca de seu espírito. Deveria realizar essa tarefa apenas com os recursos do Céu. A única alternativa disponível era vir ao senhor e pedir mil pílulas do Elixir das Nove Transformações, para que o rei pudesse, finalmente, voltar à vida.

– Esse macaco está delirando! – exclamou Lao-Tzu. – Mal abre a boca e já pede mil ou duas mil pílulas. Para que quer tantas? Vai comê-las com arroz, por acaso? Além disso, elas são extremamente difíceis de fabricar. Não é como se crescessem no barro, prontas para serem colhidas. “Rápido, quero todas as que puder encontrar!” Para sua informação, eu não tenho nenhuma.

– Tudo bem. Mil pílulas é demais – admitiu o Peregrino. – Que tal cem, então?

– Não tenho nenhuma – repetiu Lao-Tzu.

– E dez? – insistiu o Peregrino.

– Esse macaco é uma verdadeira peste! – exclamou Lao-Tzu, irritado. – Já disse que não tenho nenhuma pílula! O melhor que você pode fazer agora é ir embora.

– Tem certeza de que não tem sequer uma? – perguntou o Peregrino, com um sorriso malicioso. – Nesse caso, vou precisar buscar ajuda em outro lugar.

– Saia daqui! – rugiu Lao-Tzu.

Sem dizer mais nada, o Grande Sábio deu as costas e deixou o palácio. Porém, ao contrário de se sentir aliviado, esse gesto inesperado deixou Lao-Tzu ainda mais apreensivo

– Não confio nesse macaco! – murmurou, inquieto. – É estranho que ele tenha saído tão rápido. O mais provável é que tenha ido para os fundos tentar roubar algo.

Para evitar maiores problemas, Lao-Tzu mandou um de seus assistentes trazer o Peregrino de volta e, ao recebê-lo, disse:

– Parece que está com pressa demais. Não sabe esperar? Tudo bem, vou lhe dar uma pílula do meu elixir.

– Sabendo das habilidades que possuo – respondeu o Peregrino –, deveria ser mais generoso e dividir comigo, de forma justa, todo o elixir de ouro que tem por aí. Caso contrário, vou deixá-lo tão careca quanto a cabeça de um monge budista.

O Patriarca pegou sua cabaça, virou-a de cabeça para baixo e retirou uma única pílula de ouro. Entregou-a ao Peregrino e insistiu:

– É a única que tenho. Pegue. Quando o rei recuperar seu espírito, o mérito será exclusivamente seu, não meu.

– Calma, sem pressa – sugeriu o Peregrino. – Vou experimentá-la primeiro, porque, como deve imaginar, não quero correr o risco de engolir uma pílula falsa.

Tão logo terminou de dizer essas palavras, o Peregrinou colocou a pílula na boca. Lao-tzu ficou tão desconcertado que, por um momento, não soube como reagir. Em seguida, lançou-se sobre o Peregrino, agarrou-o pela cabeça e, com o punho erguido, ameaçou:

– Maldito macaco! Se engolir isso, eu mato você!

– Que vergonha! – replicou o Peregrino, soltando uma gargalhada. – Como pode ser tão mesquinho? Quem disse que eu ia engolir a sua pílula? Ela nem vale grande coisa para mim. Veja! Ela está bem aqui.

O macaco tinha uma pequena bolsa sob a mandíbula, e foi exatamente lá que ele guardou o elixir de ouro. Mesmo assim, o patriarca quis se certificar de que não era algum truque, apalpando a bolsa com os dedos. Quando confirmou que se tratava da mesma pílula que havia entregado, gritou, aborrecido:

– Vá embora e não me incomode mais!

O Grande Sábio agradeceu e deixou o Palácio Tushita. Não demorou a passar pelas arcadas de jade, que emanavam incontáveis raios de luz celestial. Montou novamente em uma nuvem e, em um piscar de olhos, retornou a este mundo de sombra e poeira. O sol já despontava no horizonte quando ele finalmente chegou à porta do Monastério da Gruta Sagrada.

Os lamentos de Bajie podiam ser ouvidos de longe, mas ele estava atento a tudo. Ao ver o Peregrino se aproximando, disse ao mestre:

– Wukong acabou de chegar.

– Trouxe o elixir que prometeu? – perguntou Sanzang, esperançoso.

– Sim – respondeu o Peregrino. – Como poderia ousar voltar sem ele?

– Já era esperado – comentou Bajie. – Todos nós tínhamos certeza de que você conseguiria obtê-lo, nem que fosse roubando.

– É melhor não se intrometer – aconselhou o Peregrino. – Não preciso mais de você para nada. Então, enxugue os olhos e vá chorar em outro lugar, se quiser – disse, voltando-se para o Monge Sha e acrescentando: – Traga um pouco de água.

O Monge Sha correu até o poço que ficava nos fundos. Usando um balde, tirou pouco mais de meio recipiente de água e entregou ao Peregrino, que dissolveu o elixir no líquido e o levou aos lábios do rei. Com certo esforço, conseguiu abrir as mandíbulas dele e foi vertendo o maravilhoso líquido pouco a pouco em sua boca.

Depois de meia hora, o estômago do rei começou a emitir sons estranhos, mas seu corpo permaneceu imóvel, como antes.

– Que estranho! – exclamou o Peregrino. – Esse elixir já deveria tê-lo trazido de volta à vida. Será que o rei está tentando me enganar?

– Bobagem! – disse Sanzang. – Não há razão para que ele não possa voltar à vida. Na verdade, está voltando aos poucos. Como poderia, de outra forma, engolir essa água após ter permanecido morto por tanto tempo? Além disso, está ouvindo esses ruídos intestinais? Isso indica que o pulso e a circulação voltaram a funcionar de forma harmônica. No entanto, sua respiração ainda está bloqueada e não consegue operar como antes. O que mais se poderia esperar de um homem que passou mais de três anos no fundo de um poço? Até mesmo o ferro mais resistente se cobre de fuligem em um tempo tão longo. Precisamos fazer respiração boca a boca, pois está claro que seu sopro vital está completamente esgotado.

Bajie prontificou-se imediatamente a fazê-lo, mas Sanzang o impediu, dizendo:

– Deixe que Wukong faça isso. Ele é nosso irmão mais velho, e a responsabilidade recai sobre ele.

A verdade, no entanto, era que, desde sua juventude, Zhu Bajie havia sido um devorador de homens, e seu hálito era impuro. Já o Peregrino se dedicara à prática da virtude desde o nascimento, alimentando-se exclusivamente de frutas e verduras. Por isso, seu hálito não possuía nenhuma impureza.

O Grande Sábio inclinou-se sobre o rei, encostou sua proeminente boca de deus do trovão nos lábios dele e soprou com toda a força. O ar poderoso percorreu a garganta do morto, alcançou a Torre do Palácio da Respiração e invadiu os Campos de Mercúrio. Ali, mudou de direção e voltou rapidamente para a glote. O rei tossiu alto, e sua respiração e espírito se uniram novamente.

Logo depois, ele se levantou, ajoelhou-se diante de Sanzang e exclamou, com voz cheia de gratidão:

– Jamais imaginei, quando fui até vocês em sonhos para pedir ajuda, que, em apenas uma noite, passaria do Mundo dos Espíritos para o da Luz!

– Majestade – replicou Sanzang, tentando fazê-lo se levantar –, eu não fiz absolutamente nada. Todo o mérito é de meu discípulo. A ele deve agradecer por sua boa fortuna.

– O que você está dizendo, mestre? replicou o Peregrino, soltando uma gargalhada. – Com razão diz o provérbio: "Para que uma casa funcione bem, basta uma liderança justa." É justo, portanto, que aceite o reconhecimento dele.

Sanzang, porém, não sabia que rumo tomar. Estendeu as duas mãos e, depois de ajudar o rei a se levantar, conduziu-o ao salão Zen. Antes de se sentar, Sua Majestade insistiu em agradecer pessoalmente ao Peregrino, a Bajie e ao Monge Sha.

Naquele momento, os monges do monastério entraram no salão com o desjejum. Ao verem o rei encharcado da cabeça aos pés, começaram a tremer e a fazer todo tipo de perguntas absurdas. O Peregrino, no entanto, tentou acalmá-los dizendo:

– Não se assustem. Este que vocês veem aqui é o Senhor do Reino do Galo Negro, o verdadeiro governante de vocês. Há três anos, ele foi assassinado por um demônio, mas eu consegui trazê-lo de volta à vida. Nossa intenção é acompanhá-lo até a cidade para desmascarar o impostor. Se já prepararam algo para comer, tragam, para que possamos organizar nossos planos.

Sem demora, os monges trouxeram água quente para que o rei pudesse se lavar e trocar de roupa. A túnica avermelhada de monarca foi descartada de imediato e substituída por vestes simples, cedidas pelo guardião do monastério. Ele também trocou as botas e o cinto de jade por uma faixa e sandálias monacais.

Antes de selarem o cavalo, sentaram-se à mesa. O Peregrino perguntou a Bajie:

– Quanto pesa a bagagem?

– Estou carregando isso nas costas há tanto tempo que nem sinto mais – respondeu Bajie –, mas não faço ideia do peso exato.

– Não importa – disse o Peregrino. – Divida-a em duas partes e entregue uma ao rei. Precisamos chegar à cidade o mais rápido possível.

– Que sorte! – exclamou Bajie, satisfeito. – Carreguei isso até aqui achando que seria em vão. Mas agora vejo que foi uma boa ideia trazer o corpo. Quem diria que ele seria minha salvação em poucas horas?

Bajie fez o que o Peregrino ordenou, mas ficou com a parte mais leve e entregou a mais pesada ao rei.

– Espero que não se importe com a informalidade com que o tratamos – disse o Peregrino, virando-se para o rei. – Não é comum vestir um Filho do Céu como monge e ainda fazê-lo carregar uma vara, como se fosse um carregador comum.

– Para mim, vocês são como meus pais – respondeu o rei, ajoelhando-se diante deles. – Não foi em vão que acabaram de me trazer de volta à vida. Para mim, é como se tivesse renascido. Que importância tem carregar metade da bagagem? Estou até disposto a renunciar a tudo e seguir o mestre até o Paraíso Ocidental.

– Não é necessário que faça isso – explicou o Peregrino. – Mas, no momento, precisamos que colabore conosco dessa forma. Assim que entrarmos na cidade e capturarmos o impostor, poderá voltar a ser rei, e nós continuaremos nossa missão de buscar as escrituras.

– Quer dizer que ele só vai carregar isso por uns cinquenta quilômetros? – perguntou Bajie, desanimado. – Eu achei que ele nos acompanharia até o final da jornada.

– Pare de dizer tolices e siga na frente – aconselhou o Peregrino.

Enquanto Bajie assumia a dianteira, o Monge Sha ajudou o mestre a montar. Sempre cauteloso, o Peregrino ocupou a retaguarda. Os quinhentos monges que viviam no monastério os acompanharam até a porta, em fila organizada e tocando incessantemente seus instrumentos musicais.

– Não é necessário que venham conosco – disse o Peregrino, sorrindo. – Se os funcionários reais os virem, irão suspeitar de algo, e nossa missão estará perdida. Se quiserem ajudar, ajustem as vestes do rei e aguardem pacientemente por nosso retorno. Quanto ao cinto de jade, enviem-no ao palácio esta noite ou, no mais tardar, amanhã pela manhã. Serão recompensados por sua discrição.

Os monges então se retiraram para seus aposentos, enquanto o Peregrino caminhava a passos largos em direção ao mestre. A busca pela Verdade no misterioso Ocidente é sempre louvável. Quando metal e madeira se harmonizam, o espírito se purifica. Em vão, uma mãe revive incessantemente um sonho sem sentido, enquanto o filho lamenta sua impotência. É preciso resgatar o grande rei do fundo do poço e buscar a assistência de Lao-Tzu no Palácio Celestial.Tudo o que se contempla neste mundo é puro vazio (2), do qual apenas o próprio Buda se salva.

Depois de meio dia de caminhada, o mestre e seus discípulos avistaram, ao longe, uma cidade.

– Esse não é o Reino do Galo Negro? – perguntou Sanzang.

– Sim – respondeu o Peregrino. – É exatamente esse. Precisamos entrar na cidade o quanto antes para resolver o assunto que nos trouxe até aqui.

A capital fervilhava de vida, e sua população parecia ser extremamente cortês. Não demorou para que os peregrinos avistassem as Torres do Dragão e da Fênix. Sobre sua grandeza e beleza, há um poema que diz:

"Tão esplêndida quanto a arquitetura dos Tang,
No interior, a nobreza desfilava com distinção.
Até os estandartes balançavam com riqueza evidente,
E a paz absoluta reinava, mesmo com o ir e vir constante no palácio."

– Acho que deveríamos renovar nossos salvoconductos – sugeriu Sanzang, descendo do cavalo. – Assim evitamos problemas desnecessários.

– Concordo – opinou o Peregrino. – Se não houver objeções, entraremos com você. Notei que você se expressa melhor quando estamos por perto..

– Como preferirem – respondeu Sanzang. – Mas seria bom que fossem corteses. Antes de falar, apresentem seus respeitos ao governante destas terras.

– Quer dizer que teremos de nos prostrar no chão? – perguntou o Peregrino.

– Exatamente – respondeu Sanzang. – A etiqueta exige que nos inclinemos cinco vezes seguidas e toquemos o chão com a testa outras três vezes.

– Não pode estar falando sério! – exclamou o Peregrino. – Como pode mostrar tanto respeito por um monstro como esse? Deixe-me entrar primeiro. Vou avaliar a situação e decidir o que fazer. Se ele nos dirigir a palavra, eu respondo. Se eu me inclinar, você faz o mesmo. Se eu me sentar, ocupe a cadeira mais próxima que encontrar.

Sem pedir permissão a ninguém, o Rei dos Macacos dirigiu-se à entrada do palácio e disse diretamente ao oficial que montava guarda:

– Fomos enviados ao Ocidente pelo Grande Imperador dos Tang, com a missão de prestar nossos respeitos a Buda e obter as escrituras sagradas. Por isso, precisamos de um salvoconducto que nos permita atravessar estas terras sem dificuldades. Informe isso ao vosso rei imediatamente. Caso contrário, atrasaremos nossa jornada, e o sucesso de nossa missão estará gravemente ameaçado.

O oficial, apressado, correu até o salão principal. Ao chegar diante dos degraus vermelhos, lançou-se ao chão com o rosto virado para baixo e anunciou:

– Acabaram de chegar cinco monges que afirmam estar a caminho do Paraíso Ocidental por ordem do Imperador dos Tang. Eles buscam as escrituras sagradas de Buda e humildemente solicitam de vossa majestade um salvoconducto para continuar sua jornada. Eles não vieram pessoalmente até aqui, pois aguardam o vosso consentimento.

O Rei Demônio ordenou que os monges fossem trazidos à sua presença. O primeiro a entrar foi o monge Tang, seguido pelo rei, que havia acabado de ser revivido. Este não conseguiu conter as lágrimas e, caminhando, murmurava para si mesmo:

– Que tragédia! Jamais imaginei perder um império tão bem protegido e seguro como este!

– Procure controlar sua tristeza, majestade – disse o Peregrino em voz baixa. – Se não o fizer, nossa identidade será revelada, e não poderemos continuar com nosso plano. Acalme-se e lembre-se de que o bastão que carrego na orelha é invencível. Com ele, derrotarei esse monstro, e então poderá recuperar seu império perdido.

O rei acatou o conselho do Peregrino. Secou as lágrimas com a borda da túnica e seguiu com passos decididos em direção ao Salão dos Sinos de Ouro, onde todos os funcionários, civis e militares, estavam reunidos – cerca de quatrocentos ao todo. Eram figuras de postura nobre e altiva. O Peregrino caminhou entre eles como se não existissem, indo direto até os degraus de jade branco. Ali parou, mas não se inclinou nem fez qualquer reverência.

Desconcertados, os funcionários começaram a murmurar entre si:

– Como este monge pode ser tão estúpido e mal-educado? Por que não se prostra diante de nosso rei e exalta suas incomparáveis virtudes? Nem mesmo inclinou a cabeça! Que audácia absurda!

Antes que terminassem de falar, o Rei Demônio levantou a voz e perguntou:

– De onde vem este monge?

– Da Grande Nação dos Tang – respondeu o Peregrino com firmeza. – Essa terra encontra-se no Leste, no continente de Jambudvipa. Fui enviado por ordem expressa do imperador para ir ao Monastério do Trovão, nos Territórios Ocidentais, buscar as escrituras sagradas. Ao passar por aqui, percebi que necessitava de um salvoconducto e decidi vir imediatamente solicitá-lo a vossa excelência.

– Então você é originário das Terras do Leste! – bradou o Rei Demônio, com evidente mau humor. – Como é possível que não se incline diante de mim, se meu reino não é vassalo do seu e não mantém nenhuma relação com ele?

– Não entendo como se atreve a dizer uma coisa dessas – respondeu o Peregrino, soltando uma risada provocadora. – O Reino das Terras do Leste existe desde o princípio dos tempos e é considerado o mais respeitável entre todos os que já existiram, existem e existirão. O vosso, ao contrário, não goza de grande prestígio e é praticamente desconhecido fora de suas fronteiras. Nunca ouviram o provérbio que diz: "o senhor de um reino poderoso é pai e legislador, enquanto o de um reino sem poder é filho e, portanto, sujeito à obediência"? Como ousam me acusar de não me inclinar, quando nem sequer me ofereceram o tratamento que mereço?

– Capturem esse macaco mal-educado e reclamador! – gritou o Rei Demônio, ordenando aos seus subordinados.

Imediatamente, os guardas e oficias se prepararam para atacar o Peregrino, mas ele os deteve, agitando um dedo contra eles, enquanto advertia:

– Desistam!

Todos ficaram paralisados no lugar, incapazes de avançar um único passo. Os corajosos capitães dos exércitos imperiais pareciam simples estátuas de madeira, enquanto os marechais lembravam figuras modeladas em argila. Ao perceber a facilidade com que o Peregrino imobilizou seus homens, o Rei Demônio saltou do trono, decidido a enfrentá-lo pessoalmente.

O Rei Macaco, no entanto, ficou secretamente satisfeito e pensou:

– Ótimo! Exatamente o que eu queria! No momento em que você se aproximar, sua cabeça, mesmo que seja feita de ferro bruto, vai ganhar um belo buraco assim que meu bastão a encontrar!

Mas, no exato momento em que se preparava para desferir o golpe, o príncipe entrou na sala e arruinou todos os seus planos. Ágil como uma flecha, ele agarrou a manga do Rei Demônio e, ajoelhando-se diante dele, suplicou:

– Não se entregue à ira, por favor!

– O que pretende com isso, meu filho? - indagou o Rei Demônio.

– Permita-me contar algo – começou o príncipe. – Há três anos, ouvi rumores de que o Imperador dos Tang, Senhor das Terras do Leste, enviara um monge virtuoso ao Paraíso Ocidental em busca de escrituras sagradas. Agora vejo que aqueles rumores eram verdadeiros, pois temos a honra de contar entre nós com pessoas tão ilustres. Sei que possuem um caráter forte, pouco dado a concessões. Porém, se prenderem este monge e ordenarem sua execução, o Senhor dos Tang ficará profundamente ofendido e voltará seus exércitos contra os nossos. Lembrem-se de que, não contente em reunificar o império, Li Shimin (3) conquistou vários reinos com sua astúcia e inteligência formidável. O que acham que ele fará quando souber que mataram o monge que ele enviou e que, ao mesmo tempo, é seu irmão? Com certeza, reunirá um grande exército e marchará sobre nossas fronteiras. Não haverá espaço para lamentações, pois é evidente que nossos exércitos são reduzidos e nossos generais carecem da confiança e coragem que os deles possuem. Suplico que permitam que estes monges sejam interrogados pessoalmente, para que possam esclarecer as razões de sua conduta.

O príncipe era uma pessoa muito prudente e astuta, e pensou que, se não interviesse a tempo, o monge Tang poderia sair prejudicado. Por isso, decidiu fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para apaziguar a ira do monstro. O que menos imaginava era que o Peregrino estava prestes a atacar. O Rei Demônio aceitou o conselho e voltou a se sentar no trono, enquanto perguntava em voz alta:

– Quando este monge partiu das Terras do Leste e por que o Imperador dos Tang o enviou em busca das escrituras?

– Meu mestre – respondeu o Peregrino com a mesma arrogância de antes – fez um pacto de irmandade com ele, recebendo o nome honorífico de Tang Sanzang. Um dos principais conselheiros do senhor Tang, Wei Zheng, teve que executar, por ordem do Céu, o dragão do rio Jing, motivo pelo qual foi forçado a percorrer em sonhos o Mundo das Trevas. Assim que retornou à vida, realizou uma cerimônia em homenagem aos espíritos de todos os falecidos, que foi presidida por meu mestre. Foi ele quem dirigiu as preces e recitou os sutras que deveriam mover o coração compassivo da Bodhisattva Guanyin dos Mares do Sul. Sua intercessão alcançou tal perfeição que a própria Mãe da Misericórdia lhe revelou que deveria empreender, o mais rápido possível, uma longa jornada ao Oeste. O mestre aceitou prontamente sua sugestão, oferecendo-se, de boa vontade, a sacrificar seu bem-estar pessoal pelo bem de todo o povo e partiu imediatamente. O imperador pessoalmente se encarregou de organizar uma expedição que teve início no décimo segundo dia do nono mês do décimo terceiro ano do período Zhenguan dos Grandes Tang. Após várias jornadas, o mestre chegou à Montanha das Duas Fronteiras, onde me aceitou como discípulo. Meu nome é Sun Wukong, embora todos me conheçam como o Peregrino. Juntos percorremos o caminho até o Tibete, reino ao qual pertence o povo da Família Gao. Lá, o mestre tomou o segundo discípulo, pertencente à família Zhu, a quem deu o nome religioso de Wuneng, embora também seja conhecido como Bajie. No Rio da Corrente de Areia, uniu-se a nós o terceiro discípulo, chamado Sha Wujing, embora sempre nos referimos a ele como o Monge Sha. Finalmente, ao passar ontem pelo Mosteiro da Gruta Sagrada, ofereceu-se para nos seguir um dos taoístas mendicantes que lá vivem. Sua oferta não poderia chegar em melhor momento, pois o caminho se tornava cada vez mais difícil e precisávamos de alguém que carregasse o equipamento.

Após ouvir uma explicação tão detalhada, o Rei Demônio não encontrou nada que pudesse incriminar o monge Tang e, muito menos, o Peregrino. Ele se voltou então para o rei que acabara de voltar à vida e disse:

– Devo reconhecer que vocês três formam um grupo homogêneo,  mas o mesmo não pode ser dito sobre esse taoísta. Há algo nele que claramente destoa de vocês. Não sei por quê, mas tenho a impressão de que foi arrancado à força de algum lugar que ainda desconheço. Poderiam me dizer qual é o nome dele e se ele possui algum documento que comprove sua condição de monge? Tragam-no até aqui para que eu possa interrogá-lo.

– O que eu faço agora? – perguntou o rei a Wukong, tremendo da cabeça aos pés. – Não tenho sua esperteza e jamais enfrentei um interrogatório assim.

– Não se preocupe – tranquilizou-o o Peregrino, dando-lhe um leve beliscão. – Eu responderei por você.

Antes que alguém pudesse detê-lo, deu um passo à frente e disse em voz alta ao demônio:

– Perdoe-o, Majestade. Este taoísta não só é mudo como também um pouco surdo. Nós o aceitamos em nossa companhia porque ele conhece o caminho para o Paraíso Ocidental, que percorreu quando jovem. Garanto, no entanto, que conheço todos os detalhes de sua vida: o nome de seus ancestrais, seus altos e baixos na fortuna... enfim, tudo. Se permitir, posso responder por ele a qualquer pergunta que desejar fazer.

– Está bem – assentiu o Rei Demônio. – Mas seja breve e honesto. Caso contrário, será julgado e severamente punido.

– Este taoísta – explicou o Peregrino – já é bastante idoso, o que justifica sua surdez, sua mudez e até mesmo seu temperamento apático. Ele é originário destas terras, mas sofreu uma grande desgraça há cerca de cinco anos. Naquela época, o céu se recusava a derramar uma gota de chuva, e a seca devastava os campos e o ânimo dos homens. O rei e seus súditos jejuaram e rezaram ao Céu, mas nenhuma nuvem apareceu. Quando tudo parecia perdido, surgiu de Zhongnan um charlatão que se dizia portador da Verdade Absoluta. Ele convocou os ventos e trouxe a chuva. No entanto, ele acabou assassinando o rei e jogando seu corpo em um poço no jardim imperial. Depois, usurpou o trono e se proclamou descendente direto do dragão. Foi uma sorte que nossa jornada nos trouxe até aqui, pois isso nos deu a chance de corrigir essa injustiça. Como prova de que não minto, trouxemos o rei morto de volta à vida. Ele ficou tão grato que se ofereceu para nos acompanhar até o Oeste, assumindo a aparência de um monge mendicante. Este taoísta, portanto, é o verdadeiro e legítimo governante destas terras.

O Rei Demônio ficou tão assustado com o que ouviu que seu coração começou a bater descontroladamente, como o de um cervo selvagem, e a vergonha tingiu seu rosto de vermelho. Queria fugir, mas não tinha nenhuma arma à mão. Desesperado, virou-se e viu que um dos capitães de sua guarda carregava uma esplêndida cimitarra de aço. O oficial, vítima da magia imobilizadora do Peregrino, mais parecia um simples boneco do que uma pessoa. Em um piscar de olhos, o monstro arrancou a sua arma e se elevou pelos ares, tentando escapar montado em uma nuvem. 

Diante do rumo que os acontecimentos estavam tomando, Zhu Bajie e o Monge Sha gritaram ao Peregrino:

– Como pode ser tão imprudente? É incompreensível que tenha desmascarado-o dessa maneira. Deveria ter usado de astúcia, preparando uma armadilha da qual ele não pudesse escapar. Agora já é tarde demais. Como vamos encontrá-lo, se ele subiu tão facilmente aos ares?

– Para que tanto grito? – retrucou o Peregrino, soltando uma gargalhada. – Há tempo para tudo. Antes de sair em perseguição a esse monstro, é conveniente que o príncipe preste homenagens a seu pai e a rainha se incline perante seu verdadeiro marido. Recitarei agora um feitiço e todos esses oficiais estarão livres da magia que os aprisiona, para que também possam entender o que aconteceu e reconhecer as virtudes de seu verdadeiro senhor. Só então partirei em busca desse demônio.

Assim que fez o que havia dito, chamou novamente Bajie e o Monge Sha e disse:

– Cuidem do rei, de seus súditos, de sua família e do mestre enquanto estou fora – e, antes que alguém pudesse falar, desapareceu da vista deles.

O Peregrino subiu acima do Nono Céu e, abrindo os olhos ao máximo, olhou em todas as direções. Ele não demorou a perceber que o demônio fugia na direção nordeste. Então, como uma flecha, ele se lançou na mesma direção. 

Quando finalmente alcançou o demônio, o Peregrino gritou, triunfante:

– Posso saber para onde vai tão depressa? Por mais que você corra, não irá conseguir me enganar.

– Seu Macaco insolente! – respondeu o demônio, sacando a cimitarra. – É verdade que usurpei o trono de um mortal, mas não entendo por que você transformou isso em uma questão de honra pessoal. Afinal, o que isso te importa? Parece que você não consegue evitar meter o nariz onde não é chamado.

Então você acha que eu deveria ter deixado você continuar sendo rei? – perguntou o Peregrino, soltando uma gargalhada. – Que pretensões as suas! É tão arrogante que não conseguiu perceber a tempo que chegara o momento de fugir. É incompreensível que, tendo me reconhecido, tenha optado por interrogar meu mestre, pedindo-lhe uma confissão completa. Como pôde ser tão cego? A confissão eu vou te dar agora mesmo. Então, não tente fugir, porque você irá provar o meu bastão de ferro.

O demônio se afastou e, com a ajuda da cimitarra, desviou o terrível golpe do Peregrino. Assim, começou uma batalha verdadeiramente espetacular. À fúria do Rei dos Macacos, o demônio opunha sua força, fazendo com que a cimitarra e o bastão de ferro se chocassem uma vez após a outra. A poeira levantada pelos dois combatentes logo escureceu as Três Regiões, mas ninguém parecia se importar, pois naquele dia, um rei deposto voltou a ocupar seu antigo trono.

Depois de vários encontros, as forças do demônio começaram a fraquejar e ele não conseguiu mais resistir aos ataques do Rei dos Macacos. Mas, ao invés de continuar fugindo, decidiu retornar à cidade da qual havia sido senhor. 

Lá, ele logo se escondeu entre as filas apertadas de funcionários reais que estavam de pé diante das escadas de jade branco e, após sacudir levemente o corpo, transformou-se na imagem exata do monge Tang. 

Eram tão idênticos que ninguém conseguia dizer qual era o verdadeiro. Para aumentar ainda mais a confusão, os dois se colocaram no mesmo lugar. O Grande Sábio tentou desferir seu bastão sobre o impostor, mas o mesmo disse:

– Por que quer me golpear? Não vê que sou eu? 

Naquele momento, o Peregrino não soube o que fazer. Desconcertado, ele se virou para o verdadeiro monge Tang, que também lhe perguntou:

– Por que quer me golpear? Não vê que sou eu?

– Se eu acabar com o monstro – comentou, indeciso, o Peregrino – todos irão louvar minha façanha. Mas, se eu me enganar e matar o mestre, meu mérito se transformará em uma vergonha irreparável.

Ele então se voltou para Bajie e o Monge Sha e lhes perguntou:

– Podem me dizer quem é o demônio e quem é o mestre? Apontem o falso e eu o matarei na hora.

– Receio que não possamos ajudá-lo – respondeu Bajie. – Para nós também é difícil distingui-los. Vocês estavam lá em cima gritando e lutando, e, de repente, apareceram dois mestres. Descubra você qual é o verdadeiro!

O Peregrino recitou um feitiço e fez uma série de gestos mágicos com as mãos. Imediatamente, responderam ao seu chamado os Seis Deuses das Trevas e os Seis Deuses da Luz, os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais, os Quatro Sentinelas, os Dezoito Protetores da Fé, o espírito local e o deus daquela região montanhosa.

– Estou tentando matar um demônio, mas ele se transformou na cópia exata do meu mestre e não consigo distingui-los – explicou o Peregrino. – Sei que para vocês isso não representa a menor dificuldade, por isso, ficaria muito grato se conseguissem fazer meu mestre andar alguns passos, para que eu possa dar o que é devido ao impostor o mais rápido possível.

O demônio era um mestre consumado na arte da magia e não teve a menor dificuldade em ouvir o que o Peregrino dizia. Assim, mal ele terminara de falar com os deuses, o monstro se adiantou em direção ao Salão dos Carilhões de Ouro. O Peregrino levantou o bastão de ferro acima da cabeça e o deixou cair com uma força extraordinária sobre a cabeça do desprevenido monge Tang. Se não fosse pelos deuses que ele mesmo havia chamado, o golpe teria despedaçado não apenas um, mas vinte monges Tang. Felizmente, os deuses conseguiram neutralizar o impacto do bastão a tempo.

– Esse demônio é mais habilidoso do que imaginávamos, Grande Sábio – disseram os deuses. – Foi ele quem se moveu.

O Peregrino correu atrás dele, mas o demônio conseguiu, mais uma vez, se posicionar ao lado do verdadeiro monge Tang. 

A situação continuou tão confusa quanto no começo, e o Peregrino não sabia o que fazer. Sentia-se tão desapontado consigo mesmo que, ao ver Bajie sorrindo como um tolo, ficou irritado e lhe perguntou:

– Pode me dizer o que está acontecendo com você? Agora a situação está pior do que antes. Em vez de um mestre, temos dois para obedecer e proteger. Isso é motivo de riso para você, seu tolo?

– Quem aqui é tolo? – perguntou Bajie, com um sorriso. – Se for para falar de tolice, você certamente é mais tolo do que eu. Para que gastar tanta energia só porque não consegue distinguir o verdadeiro mestre do impostor? Tenho a solução, mas, como sempre, você não pediu minha opinião. Agora, depende de você estar disposto a suportar um pouco de dor de cabeça. Se estiver, peça ao mestre que recite aquele feitiço. O Monge Sha e eu nos encarregaremos de desmascarar o impostor. Quem não for capaz de recitar o feitiço será o demônio. Bem, o que achou da idéia?

– Excelente – confessou o Peregrino. – Tenho que admitir que você às vezes é mais astuto do que parece. Esse feitiço só é conhecido por três pessoas: o Buda Tathagata, que o criou, a Bodhisattva Guanyin, que o ensinou ao mestre, e o nosso mestre. Vamos em frente, mestre, não tenha medo! Estou disposto a suportar toda dor que for necessária por sua causa.

Embora com relutância, o monge Tang começou a recitar o feitiço. O demônio, por sua vez, não teve outra opção senão improvisar, murmurando palavras que, na realidade, não significavam nada. Porém, o engano não passou despercebido por Bajie, que exclamou imediatamente:

– Este que está murmurando bobagens é o monstro!

Sem perder tempo, Bajie ergueu o ancinho e o deixou cair com toda a força. sobre o demônio, que imediatamente se elevou em direção ao céu e tentou fugir, escondendo-se nas nuvens. 

Bajie não perdeu tempo, soltando um grito poderoso, montando em uma nuvem e iniciando a perseguição. O Monge Sha logo o seguiu, deixando o monge Tang para trás, e brandindo seu bastão ansioso para entrar na luta. Por fim, Sanzang interrompeu a recitação do feitiço.

O Grande Sábio se recuperou rapidamente da terrível dor de cabeça e subiu ao céu, empunhando seu bastão de ferro. A batalha prometia ser, de fato, esplêndida. Os três monges, ferozes como guerreiros lendários, cercaram o demônio e o atacaram sem descanso. Bajie cuidou do ataque pela direita, enquanto o Monge Sha o fazia pela esquerda. Analisando a situação, o Peregrino disse:

– Se eu o atacar de frente, ele tentará fugir, porque conhece meu estilo de luta e sabe que não tem chance contra mim. É melhor que eu suba a uma posição mais alta e desça sobre ele com um daqueles golpes conhecidos como "esmaga-alhos". Isso deve acabar com ele.

O Grande Sábio subiu em uma nuvem sagrada e logo alcançou o Nono Céu. Mas, quando estava prestes a desferir seu golpe definitivo, ouviu alguém gritar de uma nuvem colorida que se via ao nordeste:

– Não faça isso, Sun Wukong!


O Peregrino olhou com mais atenção e viu que se tratava do Bodhisattva Manjusri. Deixou de lado o bastão de ferro e, inclinando-se respeitosamente, perguntou:

– Para onde vai, Bodhisattva?

– Estou aqui para capturar esse demônio para você – respondeu Manjusri.

– Muito obrigado pelo seu esforço – agradeceu o Peregrino.

Retirando de sua manga um espelho refletor de demônios, o Bodhisattva apontou-o na direção da criatura, revelando instantaneamente a imagem de sua forma original.

O Peregrino então ordenou a Bajie e ao Monge Sha que se aproximassem para prestar suas homenagens ao Bodhisattva e verem o que o espelho refletia. A real aparência do demônio, de fato, não poderia ser mais aterradora. Tinha olhos tão grandes quanto uma taça de cristal, uma cabeça que lembrava uma jarra, um corpo tão azul quanto o índigo do verão, garras que evocavam as geadas do outono, orelhas tão grandes que caíam sobre os ombros como cascatas, e uma cauda tão longa quanto uma vassoura. Sua juba azulada exalava um desejo de batalha, seus olhos eram tão vermelhos que pareciam emitir raios dourados, e seus dentes planos e bem formados lembravam lascas de jade. Por fim, seus pelos, grossos e fortes, projetam-se como lanças. Tal imagem aterradora refletida no espelho, nada mais era do que a imagem do leão do próprio Bodhisattva Manjusri.

– Então esse é o seu leão de pelo azulado! — exclamou o Peregrino, desconcertado. — Pode me dizer quando foi que ele fugiu e se refugiou aqui? Imagino que irá capturá-lo agora mesmo!

– Ele não fugiu – explicou o Bodhisattva. – Se ele está aqui, é por desejo expresso de Buda.

– Quer dizer que ele se transformou em um demônio e tomou um reino do seu legítimo senhor por ordem do próprio Buda? – exclamou novamente o Peregrino. – Deveriam ter me informado sobre isso, assim teríamos evitado todas as provações pelas quais passamos aqui, sem nenhuma razão aparente.

— Vejo que conhecem apenas parte da história — comentou o Bodhisattva. — O Senhor do Reino do Galo Negro era uma pessoa virtuosa, dedicada ao cultivo de boas ações e ao cuidado dos monges. Seu coração era tão sincero que Buda me incumbiu de levá-lo para o Oeste, para que recebesse o corpo dourado de um arhat. Claro, eu não me apresentei a ele como sou, mas sob a forma de um monge comum, que precisava de algo para comer. 

Durante nossa conversa, algumas palavras minhas o colocaram em uma posição desconfortável. Sem perceber que eu era, na verdade, uma boa pessoa, ele ordenou que me amarrassem com uma corda e me lançassem no poço imperial. 

Fiquei lá três dias e três noites, até que, finalmente, os Seis Deuses das Trevas vieram em meu auxílio e me levaram de volta ao Oeste. Quando Tathagata soube de sua conduta inesperada, fez com que essa besta fosse enviada até aqui com a ordem de jogá-lo em um poço e deixá-lo submerso por três anos, como uma forma de vingança pela adversidade que enfrentei na água por três dias. 

Nada do que acontece escapa à predestinação, nem mesmo um gole ou uma leve mordida. Por isso, precisamente, tivemos que esperar sua chegada, ao mesmo tempo em que lhe oferecemos a oportunidade de aumentar os seus já abundantes méritos.

– Tudo isso está muito bem dito – comentou o Peregrino. – Mas não parece justo que, por um gole ou uma leve mordida, como você mesmo disse, tantas pessoas tenham sido prejudicadas, especialmente aquelas que foram obrigadas a satisfazer os desejos dessa besta.

– Garanto que ninguém foi prejudicado – afirmou o Bodhisattva. – Durante os três anos em que ela ocupou o trono, os ventos foram favoráveis, as chuvas caíram no momento certo, e a prosperidade se espalhou por todo o reino. Pode me dizer o nome de alguém que tenha sido prejudicado?

– Ainda assim – retrucou o Peregrino –, as damas dos três palácios dormiram e despertaram ao lado dele. Seu corpo profanou muitas delas e violou inúmeras vezes as grandes relações humanas. E você ainda afirma que ele não prejudicou ninguém?

– Ele não profanou ninguém, pois é um leão castrado  replicou o Bodhisattva.

Ao ouvir isso, Bajie se aproximou da criatura, deu-lhe um tapinha nas costas e, em tom zombeteiro, disse:

– Quem diria! Essa besta é como aqueles homens que possuem um nariz vermelho, mesmo sem ter provado uma gota de álcool. 

– Está bem – concluiu o Peregrino. – Pode levá-lo. Mas quero deixar algo bem claro: eu só poupei a vida dele porque você me pediu.

Agradecido, o Bodhisattva recitou um feitiço. Em seguida, levantando a voz, perguntou à besta:

– O que está esperando para voltar ao caminho reto?

A besta então recobrou sua forma habitual, e o Bodhisattva colocou sobre seu lombo o trono de flor de lótus. Assim que o leão sentiu o peso do trono, ele se elevou pelos ares e os peregrinos nunca mais o viram. Ele se dirigiu diretamente para o monte WuTai (4) para ouvir as explicações dos sutras, ministrados aos pés do trono de lótus.

Não sabemos como o monge Tang e seus discípulos conseguiram finalmente deixar a cidade. Quem desejar descobrir, deve prestar atenção ao que será dito no próximo capítulo.


CAPITULO XL EM BREVE ...

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Notas do Capítulo XXXIX

  1. A partir da dinastia Han, os salões do palácio imperial passaram a receber nomes que foram repetidos em construções similares em épocas posteriores. Considerava-se que esses salões eram idênticos aos do Palácio Celeste, e o que se destacava, na verdade, era a conexão entre o Céu e o imperador.
  2. Uma clara alusão ao Sutra do Coração, que começa precisamente com a célebre frase: "A forma é o vazio, e o vazio é a forma."
  3. Li Shimin é o nome pessoal do Imperador dos Tang, Tang Taizong;
  4. O monte Wu-Tai, localizado no extremo nordeste da província de Shansi, é a morada de Manjusri.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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Ruby