۞ ADM Sleipnir
CAPÍTULO XLIII:
O MONGE TANG É CAPTURADO POR UM MONSTRO AO ATRAVESSAR O RIO NEGRO. O PRÍNCIPE DRAGÃO DO MAR OCIDENTAL CAPTURA A IGUANA.
Assim que a Bodhisattva terminou de recitar o feitiço, o monstro parou de sentir dor. Foi então que percebeu que tinha algumas argolas de ouro ao redor do pescoço, dos pulsos e dos tornozelos. Desesperado, tentou arrancá-las, mas não conseguiu movê-las nem um pouco. As argolas estavam profundamente cravadas em sua carne, e quanto mais ele se esforçava para retirá-las, mais elas se fixavam, aumentando a dor.
— Não adianta lutar contra o destino — aconselhou o Peregrino. — A Bodhisattva entendeu que é difícil fazê-lo ouvir a razão e, por isso, deu-lhe esse colar e esses braceletes que agora carrega.
O jovem, impaciente mais uma vez, pegou sua lança e tentou atacar o Peregrino, que rapidamente se refugiou atrás da Bodhisattva, suplicando:
— Por favor, recite o feitiço novamente!
A Bodhisattva mergulhou o ramo de salgueiro no jarro e aspergiu o jovem com o orvalho doce, dizendo:
— Fechem-se!
Nesse momento, o monstro deixou cair a lança, enquanto suas mãos se grudavam firmemente ao peito, impossibilitadas de se separar. Essa cena deu origem à postura conhecida como "torção de Guanyin", em que o servo da Bodhisattva é frequentemente retratado, até os dias de hoje.
Ao perceber que não podia mover as mãos nem pegar a lança, o jovem entendeu que era inútil se rebelar contra o dharma, cujo poder era verdadeiramente profundo e misterioso. Sem alternativas, abaixou a cabeça e aceitou sua derrota. A Bodhisattva recitou algumas palavras mágicas e sacudiu levemente o jarro. Em seguida, as águas do oceano retornaram para dentro dele, sem que uma única gota fosse desperdiçada.
— Como pode ver — disse a Bodhisattva ao Peregrino —, este monstro foi dominado, mas ainda conserva parte de sua natureza primitiva. Por isso, levarei-o comigo para a Montanha Potalaka, onde ele fará uma promessa a cada passo que der. Agora, vá até a caverna e liberte de uma vez seu mestre.
— Agradeço por aceitar vir a um lugar tão distante de sua residência — disse o Peregrino, prostrando-se no chão e batendo a testa repetidamente contra o solo. — Se esperar um pouco, posso acompanhá-la, pelo menos em parte, na viagem de volta.
— Não há necessidade disso — respondeu a Bodhisattva. — Posso cuidar de mim mesma, e você precisa proteger seu mestre. Para que arriscar novamente a vida dele?
Aliviado com essa decisão, o Peregrino despediu-se respeitosamente da Bodhisattva, inclinando-se diante dela antes de partir. O monstro, finalmente, se rendeu a Guanyin e iniciou o caminho da verdade, depois de fazer exatamente cinquenta e três votos (1). Não vamos nos deter mais nele, mas passaremos a falar do Monge Sha, que aguardava em vão o retorno do Peregrino, sentado pacientemente na floresta. Por fim, incapaz de esperar mais, pegou o cavalo e os pertences e saiu do bosque de pinheiros, dirigindo-se ao sul. Felizmente, não demorou a encontrar o Peregrino e, em tom de reprovação, perguntou:
— Por que demorou tanto para voltar? Quase morri de impaciência, esperando à toa.
— Do que está falando? — replicou o Peregrino. — Não demorei tanto assim, especialmente considerando que consegui tanto a ajuda da Bodhisattva quanto a libertação de nosso mestre.
Então, o Peregrino contou em detalhes como a Bodhisattva havia demonstrado seu poderoso dharma.
— Nesse caso, o que estamos esperando? Vamos libertar nosso mestre o mais rápido possível! — exclamou o Monge Sha, cheio de entusiasmo.
Deixando o riacho para trás, seguiram rapidamente em direção à entrada da caverna, depois de amarrarem o cavalo em um local seguro. Não demoraram a exterminar todos os demônios que haviam no local, o que lhes permitiu descer a bolsa de couro onde Bajie estava preso. Ao ser libertado, ele agradeceu ao Peregrino e perguntou:
— Onde está aquele monstro? Quero acertá-lo algumas vezes com meu ancinho por tudo o que me fez sofrer.
— Acho que é melhor libertarmos o mestre primeiro — sugeriu o Peregrino.
Assim, os três seguiram para a parte de trás da caverna, onde encontraram o monge Tang amarrado, despido e chorando tristemente. O Monge Sha correu para soltá-lo, enquanto o Peregrino procurava algumas roupas decentes. Assim que o monge se vestiu, os três se ajoelharam e disseram:
— Quanto deve ter sofrido, mestre!
— E vocês, quanta dedicação tiveram para conseguir me libertar! — respondeu Sanzang, agradecendo-lhes. — Como fizeram para derrotar aquele monstro?
O Peregrino contou detalhadamente o que a Bodhisattva havia feito, e o mestre imediatamente se ajoelhou, voltando-se para o sul.
— Não deve agradecer somente a ela — disse o Peregrino. — Também tivemos uma boa participação na derrota daquele monstro.
Essa é, em linhas gerais, a história que ainda hoje se ouve sobre como um jovem fez cinquenta e três votos a Guanyin, alcançando a visão de Buda logo após o terceiro.
O Monge Sha recolheu todos os tesouros que havia na caverna, enquanto os outros dois preparavam algo para comer. Não se importavam que o mestre lhes devesse a vida, nem que, sem a ajuda deles, ele jamais conseguiria chegar são e salvo ao Paraíso Ocidental. Após saciarem a fome, retomaram a sua jornada.
Depois de um mês de viagem, ouviram o som de águas caudalosas, e Sanzang, surpreso, exclamou:
— De onde vem esse som?
— Sempre se preocupa com coisas sem importância! — repreendeu o Peregrino, esforçando-se para conter um sorriso zombeteiro. — Somos quatro no total e apenas o senhor ouve essa água misteriosa. Acho que está esquecendo o Sutra do Coração.
— Não é verdade! — defendeu-se Sanzang. — Sei o sutra de cor. Não foi à toa que ele me foi transmitido pelo mestre Zen do Ninho do Corvo, que, como deve lembrar, vivia na Montanha da Pagoda. Esse sutra possui cinquenta e quatro frases e um total de duzentos e setenta caracteres. Memorizei cada palavra e não esqueci uma única frase, pois o recito frequentemente. Qual parte do sutra você acha que esqueci?
— Aquela parte que diz: "nem o olho, nem o ouvido, nem o nariz, nem a língua, nem o corpo, nem a mente". Nós, que renunciamos à vida em família, devemos ver sem nos apegarmos às formas, ouvir sem captar os sons, cheirar sem buscar aromas, saborear sem nos deixarmos levar pelos gostos, ignorar o frio e o calor, e expulsar da mente todos os pensamentos inúteis. Isso é o que chamamos de aniquilação dos Seis Bandidos (2). Mas você, que está em busca das escrituras sagradas, continua se entregando a pensamentos fúteis. Quando teme os monstros, demonstra que não está disposto a abrir mão da própria vida. Ao desejar comida vegetariana, se rende ao domínio do paladar. Ao aspirar por fragrâncias, se submete ao olfato. Ao prestar atenção aos sons, aceita a supremacia do ouvido. E, ao observar atentamente tudo ao seu redor, se torna escravo da visão. Em resumo, está se entregando aos Seis Bandidos. Dessa forma, como pretende alcançar o Paraíso Ocidental e se encontrar cara a cara com Buda?
Sanzang refletiu longamente sobre aquelas palavras e, por fim, respondeu:
— Desde que parti do lado de meu senhor, tenho viajado dia e noite sem descanso. Tanto que minhas sandálias já varreram as neblinas das montanhas, e meu chapéu de monge já alcançou alturas maiores que os picos mais elevados. Durante a noite, ouço o incessante grito dos macacos e os insuportáveis cantos que certas aves entoam para a lua. Não é isso suficiente? Quando verei o fim dessas provações dos três samadhis (3) e poderei, enfim, obter as extraordinárias escrituras de Tathagata?
— Vamos, mestre! — exclamou o Peregrino, sacudindo as mãos como um louco e rindo às gargalhadas. — Não me diga que ainda sente saudade de sua casa! Se pensar bem, as provações dos três samadhis não são tão difíceis de suportar. Como diz o velho provérbio: "o sucesso só vem para aqueles que realizam grandes feitos".
— Mas, com tantos perigos no caminho — objetou Bajie —, não alcançaremos a perfeição nem em mil anos.
— Bajie, você e eu somos parecidos, mas não devemos aborrecer nosso irmão com essas ideias sem sentido — aconselhou o Monge Sha. — O que nos cabe é carregar as bagagens. Um dia, também alcançaremos a perfeição.
Falando dessa forma, logo se depararam com uma enorme massa de água negra, que impedia o cavalo de seguir adiante. Suas ondas eram tão escuras que pareciam feitas de óleo enegrecido ou de uma estranha seiva sombria. Nada se refletia naquela água. As árvores pareciam ter fugido das margens por onde ela corria. Era como se um imenso pote de tinta tivesse sido derramado sobre a terra, ou uma torrente de cinzas, ou uma chuva intensa de carvão de todas as formas. Quem ousaria dar daquela água para beber às ovelhas e ao gado? Até as pegas e os corvos evitavam sobrevoar o rio, percebendo sua estranha opacidade. Os juncos e taboas haviam desaparecido de suas margens, assim como as flores silvestres e os trechos de grama verde. Há no mundo inúmeros lagos, riachos e rios de todos os tamanhos e formas, mas quem já viu algo parecido com o Rio Negro do Oeste?
— Por que a água é tão escura? — perguntou o monge Tang aos discípulos, desmontando do cavalo.
— Provavelmente alguém derramou barris inteiros de tinta nela — comentou Bajie.
— Se não foi isso — disse o Monge Sha —, provavelmente alguém estava lavando pincéis e pedras de tinta.
— Parem de perder tempo com especulações inúteis — sugeriu o Peregrino. — O que precisamos fazer é levar o mestre até a outra margem.
— Para mim, atravessar esse rio não seria nada difícil — disse Bajie. — Bastaria subir em uma nuvem e, antes mesmo de engolir um grão de arroz, eu já estaria do outro lado.
— Ora essa! — exclamou o Monge Sha. — Eu também poderia fazer isso, e até mais rápido que você.
— É claro que, para nós, não há dificuldade alguma — confirmou o Peregrino. — Mas o problema é o mestre.
— Vocês sabem qual é a largura deste rio? — perguntou Sanzang.
— Aproximadamente dez quilômetros — respondeu Bajie.
— Bom, não é tanto quanto eu imaginava — disse Sanzang. — Já decidiram quem vai me carregar?
— Bajie — respondeu o Peregrino sem hesitar.
— Eu não consigo — defendeu-se Bajie. — Com ele nas costas, não conseguiria me elevar nem alguns centímetros do chão. Não é à toa que dizem: “Um mortal pesa mais que uma montanha”. Vocês têm ideia do que aconteceria se, por acaso, meu pé encostasse na água? Nós dois cairíamos de cabeça.
Enquanto discutiam, viram um homem se aproximando em um pequeno bote. O monge Tang deu um salto de alegria e exclamou:
— Aí está a solução para todos os nossos problemas. Peçam a ele que nos leve até a outra margem.
— Ei, barqueiro! — gritou o Monge Sha com todas as forças. — Leve-nos para o outro lado do rio!
— Esta não é uma barca de passageiros — respondeu o homem. — Como acha que vou conseguir transportar todos vocês?
— Não há nada mais digno sob as estrelas do que fazer o bem aos outros — afirmou o Monge Sha com certa solenidade. — Admito que sua barca não seja feita para passageiros, mas também não somos pessoas comuns. Como deve ter percebido, somos monges da família de Buda e estamos a caminho de buscar escrituras sagradas, a pedido direto do Imperador das Terras do Leste. Se aceitar nos levar para o outro lado do rio, terá nossa eterna gratidão.
O homem remou até a margem e, segurando o remo com uma das mãos, disse com tom respeitoso:
— Minha barca é muito pequena, e vocês são muitos. Como posso transportá-los todos para o outro lado?
Sanzang aproximou-se da embarcação e viu que era uma simples canoa, feita de um tronco oco de árvore. Mal havia espaço para duas pessoas além do barqueiro.
— O que podemos fazer? — perguntou Sanzang, visivelmente desanimado.
— Teremos que fazer duas viagens — sugeriu o Monge Sha.
— Wujing e você — disse Bajie ao Peregrino — fiquem aqui com o cavalo e a bagagem, enquanto eu levo o mestre até a outra margem. Depois, o Monge Sha atravessa com nossas coisas. Você pode cruzar pelo ar, não é?
— Parece uma boa ideia — concordou o Peregrino, balançando a cabeça.
Bajie ajudou o monge Tang a subir no barco, e o barqueiro começou a atravessar a correnteza. No entanto, quando chegaram ao meio do rio, levantou-se um vento tão violento que as águas formaram ondas gigantescas, quase tocando o céu, obscurecendo o sol e mergulhando o dia em completa escuridão.
As ondas, tão altas como edifícios de mil andares, avançavam furiosas em direção às sombrias nuvens de tempestade. Redemoinhos de areia giravam como lanças no ar, enquanto árvores nas margens tombavam com estrondos ensurdecedores, fazendo até o céu estremecer. Os oceanos e mares transbordavam de seus limites, enquanto dragões fugiam de suas moradas, dominados pelo pânico. Lama flutuava por todos os lados, e flores murchavam como se fossem criaturas de outro mundo. O rugido do vento lembrava as ferozes tempestades de primavera, tão intenso que evocava a fúria de um tigre faminto. Caranguejos, tartarugas, camarões e peixes deixavam suas tocas às pressas, enquanto aves selvagens viam, desoladas, seus ninhos sendo levados pelo vento. Marinheiros dos Cinco Lagos pereceram no vendaval, e os habitantes das costas dos Quatro Mares tiveram suas vidas ameaçadas a cada instante. Os barqueiros que cruzavam os rios naquele momento eram lançados como palhas ao sabor do turbilhão. Não poderia ser diferente, já que até os pescadores perdiam o controle de seus anzóis. Telhas e tijolos abandonavam as casas como filhos ingratos, e muitas construções desabavam de forma lastimável. O furacão era tão feroz que a própria Terra parecia estremecer, e até o Monte Tai sentiu suas raízes abaladas.
Na verdade, aquele vento não era natural: o barqueiro era na verdade um monstro que habitava o estranho Rio Negro. O Peregrino e o Monge Sha observaram impotentes enquanto Bajie e o monge Tang eram engolidos pelas águas junto com o barco. Em pouco tempo, desapareceram sem deixar rastros.
— E agora, o que faremos? — exclamaram aflitos, presos à margem do rio. — A cada passo que o mestre dá, ele encontra uma dificuldade maior que a anterior. Mal escapou de um monstro sanguinário e já está novamente nas garras de um monstro desconhecido, que habita estas águas negras e misteriosas.
— Talvez não seja um monstro e o barco tenha apenas naufragado — sugeriu o Monge Sha. — Podemos descer um pouco pelo rio e procurar vestígios.
— Não acredito nisso — retrucou o Peregrino. — Bajie é um excelente nadador. Se fosse apenas um naufrágio, ele teria salvado o mestre e o trazido de volta. Havia algo maligno naquele barqueiro. Tenho certeza de que foi ele quem criou o vento para arrastar o mestre até sua toca.
— Se estava tão certo disso — criticou o Monge Sha —, por que não avisou antes? Fique aqui cuidando da bagagem e do cavalo enquanto eu entro na água para descobrir o que realmente aconteceu.
— Acho melhor não fazer isso — alertou o Peregrino. — Estas águas são escuras demais e podem ser perigosas.
— Não são mais perigosas do que o Rio de Areia, isso posso te garantir — replicou o Monge Sha. — Estou preparado para enfrentar qualquer rio, seja qual for.
Antes mesmo de terminar a frase, o Monge Sha já havia tirado a camisa e as meias. Com agilidade, pegou seu cajado, usado para subjugar monstros, e mergulhou corajosamente na correnteza. Movia-se pela água com a mesma facilidade com que caminhava em terra firme.
Enquanto caminhava, ouviu o som de alguém falando. Ele se moveu para o lado, buscando uma posição mais discreta, e espiou ao redor. Logo avistou um pavilhão. Na entrada, em grandes caracteres, lia-se: “Garganta de Hang-Yang, morada do Deus do Rio Negro”.
Do interior do pavilhão, ouviu a voz do monstro, dizendo aos seus súditos:
— Passei por momentos difíceis, mas posso garantir que encontrei algo extremamente valioso. O monge que capturei dedicou-se à virtude por mais de dez reencarnações consecutivas. Se eu provar um pouco de sua carne, minha vida será prolongada consideravelmente, e jamais envelhecerei. Esperei por esse momento por muito tempo e, hoje, finalmente, meu sonho foi realizado. Tragam as jaulas de ferro e cozinhem esses monges no vapor. Enquanto isso, enviarei um convite ao meu tio, que está prestes a comemorar seu aniversário.
Ao ouvir isso, o Monge Sha não conseguiu conter sua fúria. Brandindo seu cajado, começou a golpear a porta com força, gritando sem parar:
— Maldito monstro! Libere imediatamente meu mestre, o monge Tang, e meu irmão Bajie!
Os demônios que guardavam a porta ficaram tão atônitos que correram para informar seu senhor, dizendo:
— Senhor, uma desgraça nos atingiu!
— Que desgraça é essa de que falam? — perguntou o monstro, irritado.
— Lá fora — responderam eles — há um monge de aparência muito estranha que não para de bater na porta de sua mansão, exigindo que liberte imediatamente aqueles dois que o senhor capturou.
Sem perder tempo, o monstro ordenou que lhe trouxessem sua armadura. Os demônios prontamente ajustaram a peça em seu corpo e lhe entregaram um chicote de aço, cujo cabo parecia feito de bambu. Sua aparência era aterrorizante. O rosto, quadrado e severo, sustentava olhos redondos que brilhavam com raios de mil cores. Seus lábios grossos e ondulados emolduravam uma boca grande, semelhante a um prato de arroz cheio de sangue. Os poucos pelos que cobriam seu corpo pareciam feitos de aço, enquanto seus cabelos tinham a cor vibrante do cinábrio. Sua imagem era semelhante a de um deus do trovão irado. A armadura que vestia, feita de ferro, era adornada com flores esculpidas em padrões estranhos. Já o elmo, de ouro puro, resplandecia com pedras preciosas incrustadas. Ao empunhar o chicote de aço, seus passos levantavam redemoinhos de vento. Originalmente, ele havia sido uma criatura aquática, mas logo aprendeu a se mover com maestria única em terra firme. Na verdade, tratava-se de uma iguana.
— Quem ousa bater dessa forma na minha porta? — rugiu o monstro.
— Maldito monstro! — exclamou o Monge Sha, indignado. — Como ousa sequestrar meu mestre, disfarçando-se de barqueiro com a ajuda de magia? Se deseja continuar vivo, liberte-o imediatamente!
— Você é quem deveria se preocupar com a própria vida! — retrucou o monstro, soltando uma gargalhada estrondosa. — Sim, capturei seu mestre, e vou mais além: planejo cozinhá-lo no vapor e servi-lo como banquete aos meus convidados. Mas sou generoso e lhe ofereço uma chance. Proponho um acordo: se resistir a três dos meus ataques, atenderei ao seu pedido e libertarei o monge. Caso contrário, você também será servido à mesa. Combinado? E, antes que pense em me derrotar, asseguro que jamais pisará no Paraíso Ocidental.
Enfurecido, o Monge Sha ergueu seu cajado e o deixou cair com toda a sua força sobre a cabeça do monstro. Este, no entanto, conseguiu bloquear o ataque a tempo com seu chicote de aço. Assim teve início uma batalha feroz no fundo do rio estranho. Ambos lutaram com determinação incomparável. De um lado, o deus milenar do Rio Negro, que sonhava provar a carne do monge Tang; do outro, um imortal do Palácio da Névoa Celeste, disposto a tudo para proteger o seu mestre.
O confronto não poderia resultar em menos do que um duelo devastador. A intensidade era tanta que camarões, caranguejos, tartarugas e peixes fugiram em desespero, buscando abrigo entre as rochas. Apenas os demônios aquáticos se atreveram a se aproximar para assistir, batendo tambores e gritando palavras de incentivo ao seu senhor. Que notável era a coragem demonstrada pelo humilde Wujing! No entanto, apesar das ondas agitadas e da ferocidade dos ataques, a batalha permaneceu equilibrada. O chicote e o cajado se cruzaram incontáveis vezes, mas nenhum dos dois conseguia obter uma vantagem real. Era algo inevitável, afinal, o destino de Tang Sanzang, um homem virtuoso em busca das escrituras sagradas no Paraíso de Buda, estava em jogo.
Após cruzarem suas armas por mais de trinta vezes, o Monge Sha refletiu:
— Que força impressionante tem este monstro! Nunca enfrentei alguém tão poderoso dentro da água. Acho que a melhor estratégia será atraí-lo para fora do rio, para que o Peregrino o derrote de vez.
Não havia terminado de refletir sobre seu plano quando se virou, fingindo estar à beira das suas forças. O monstro, no entanto, desistiu de persegui-lo e gritou, satisfeito:
— Vá embora, se quiser! Estou muito ocupado com os convites para perder tempo com você.
Profundamente preocupado, o Monge Sha saiu da água e, ofegante, disse ao Peregrino: ofegante:
— Essa criatura é uma das mais cruéis que já enfrentei.
— De que família ela é? — perguntou o Peregrino. — Imagino que você saiba, já que passou tanto tempo lá embaixo. Conseguiu ver o mestre?
— Lá embaixo — explicou o Monge Sha — há uma construção estranha, cuja porta está marcada com grandes caracteres: "Garganta de Hang-Yang, morada do Deus do Rio Negro". Cheguei até lá e ouvi alguém ordenando que uns demônios colocassem Bajie e o mestre em uma jaula de ferro e os cozinhassem a vapor. O monstro parecia querer oferecê-los como banquete de aniversário para um tio seu. Fiquei tão indignado que comecei a bater na porta com meu cajado. Logo, apareceu um monstro empunhando um chicote de aço com um cabo que parecia feito de bambu. Lutamos por mais de trinta vezes, mas ele domina as artes da batalha de forma impressionante, e não fui capaz de obter nenhuma vantagem. Por isso, pensei em fingir que estava exausto para atraí-lo até aqui, para que você o enfrentasse. Mas ele foi mais astuto do que eu imaginava. Preferiu voltar para cuidar dos convites que estava planejando fazer, e eu não tive outra opção além de abandonar as águas.
— Que tipo de monstro é esse? — perguntou novamente o Peregrino.
— Ele se parece com uma tartaruga... ou talvez uma iguana — respondeu o Monge Sha.
— Fico me perguntando quem é esse tio de quem ele falava — disse o Peregrino, interessado.
Enquanto o Peregrino falava, um homem apareceu vindo de um dos meandros do rio. Ele ajoelhou-se a uma boa distância e gritou:
— Grande Sábio! O Deus do Rio Negro vos saúda respeitosamente!
— Como assim? — exclamou o Peregrino. — Não me diga que esse monstro decidiu vir zombar de nós outra vez.
— Não, não, Grande Sábio! — gritou o homem, com evidente respeito. — Eu não sou um monstro, mas o verdadeiro Deus deste rio. No quinto mês do ano passado, durante a maré alta, aquele monstro veio do Mar Ocidental e me desafiou com insultos e ameaças. Como podem perceber, sou uma pessoa fraca e já avançada em anos, e ele me derrotou com grande facilidade.
Após minha derrota, não foi difícil para ele se apoderar da minha residência oficial, a Garganta de Hang-Yang, matando inúmeras criaturas aquáticas que permaneciam leais à minha autoridade.
Não me restou outra alternativa, então, senão apresentar uma queixa contra ele, sem imaginar que o Rei Dragão do Mar Ocidental fosse nada menos do que seu tio. O Rei Dragão ignorou minhas queixas, expulsando-me do palácio dizendo que eu deveria ceder minha posição ao sobrinho.
Não me restou alternativa além de recorrer ao Céu, mas como o Imperador de Jade daria ouvidos a um deus insignificante como eu? Quando soube que vocês estavam por aqui, vim na esperança de pedir ajuda. Suplico, Grande Sábio, que não ignore meu pedido e me ajude a vingar essa afronta!
— Então o Rei Dragão do Mar Ocidental colaborou com tudo isso? — concluiu o Peregrino, pensativo. — Saiba que esse monstro sequestrou meu mestre e um de meus irmãos, e pretende cozinhá-los a vapor para oferecê-los ao tio como presente de aniversário. Foi sorte nossa você aparecer agora. Se não se importar, quero que fique aqui vigiando com o Monge Sha, enquanto vou atrás do Rei Dragão do Mar Ocidental. Se ele se recusar a resolver isso, será ele quem acabará em maus lençóis.
— Não tenho palavras para expressar minha gratidão, Grande Sábio! — exclamou, emocionado, o Deus do Rio Negro.
O Peregrino subiu em uma nuvem e voou diretamente ao Mar Ocidental. Não demorou a chegar ao seu destino e, após fazer o gesto para separar as águas, penetrou nelas com a mesma facilidade de quem anda em terra firme.
Pouco tempo depois, viu surgir das profundezas um peixe negro que carregava uma pequena caixa de ouro. O Peregrino pegou o seu bastão de ferro e deu um golpe terrível na cabeça do peixe. Foi tão certeiro que deslocou suas mandíbulas e espalhou seus miolos, transformando-o em um cadáver que as ondas arrastaram implacavelmente.
O Peregrino então abriu a caixa, encontrando dentro dela um convite, que dizia:
"Vosso indigno sobrinho, a Iguana Limpa, toca, em sinal de respeito, cem vezes seguidas o solo com a testa e envia todo o carinho que sente por tão respeitável senhor. São tantos os benefícios que recebi de vossa generosidade que não poderei retribuí-los, mesmo se viver mais de mil existências. A sorte, no entanto, tem sido favorável a mim ultimamente, trazendo até minha porta dois monges provenientes das Terras do Leste. Eles são espécimes únicos no mundo, e não achei conveniente desfrutar deles sozinho, especialmente sabendo que o vosso aniversário está próximo. Decidi, portanto, oferecê-los em um banquete, pois não duvido de que sua carne tem a virtude de aumentar em mais de mil anos a vida de quem tiver a sorte de prová-la. Espero ter a honra de desfrutar do prazer de sua companhia."
— Que audácia! — exclamou o Peregrino, sorrindo. — Ainda bem que esse convite caiu primeiro nas minhas mãos; caso contrário, estaríamos em sérios apuros!
Após guardar o bilhete dentro de uma das mangas, o Peregrino seguiu seu caminho. Não demorou muito para ser avistado por um yaksa que patrulhava as águas.
Com urgência, o yaksa voltou ao Palácio de Cristal de Água para anunciar a chegada do visitante:
— O Grande Sábio, Sósia do Céu, acaba de chegar.
O Rei Dragão Ao-Jun levantou-se imediatamente do trono e saiu, acompanhado de todos os seus subordinados, para dar as boas-vindas ao Peregrino.
— Entre, Grande Sábio, e sente-se — disse o Dragão em tom cortês. — Gostaria de oferecer-lhe um pouco de chá.
— Eu — respondeu o Peregrino — ainda não provei seu chá, enquanto você já saboreou meu vinho.
— Ora, Grande Sábio! — retrucou o Dragão com um sorriso. — Agora você é um servo de Buda, e não lhe é permitido beber licor ou comer carne. Quando foi que me convidou para beber vinho?
— Não quis dizer que bebemos juntos — explicou o Peregrino. — O que quero dizer é que cometeu um crime, e está relacionado com bebida.
— Que crime seria esse? — perguntou o Rei Dragão, alarmado.
Sem hesitar, o Peregrino tirou a carta da manga e a entregou ao Dragão. O Dragão leu rapidamente, e sua expressão logo se encheu de desespero. Sentindo suas forças se esvaírem, ajoelhou-se e começou a bater a testa no chão, enquanto dizia:
— Perdoe-me, Grande Sábio! O autor dessa carta é o nono filho de minha irmã. Seu pai cometeu um erro ao liberar ventos e espalhar a chuva sem permissão, e por isso foi condenado pelos juízes celestes a morrer decapitado em um sonho pelas mãos de Wei Zheng. Minha irmã não tinha a quem recorrer, então cuidei dela. minha irmã contraiu uma doença misteriosa e morreu, deixando esse rapaz órfão. Como ele não tinha um feudo, sugeri que fosse ao Rio Negro e se dedicasse à prática da virtude, para se tornar um verdadeiro imortal. Nunca imaginei que ele pudesse cometer crimes tão terríveis quanto os mencionados nesta carta. Mandarei alguém prendê-lo imediatamente!
— Quantos filhos teve sua irmã? — perguntou o Peregrino. — Algum deles se tornou um monstro ao longo desses anos?
— No total, trouxe ao mundo nove — respondeu o Dragão. — E posso garantir que oito deles são extremamente virtuosos. O mais velho, chamado Pequeno Dragão Amarelo, habita no Rio Hwai; o segundo, que atende pelo nome de Pequeno Dragão Negro, vive no Rio Chi; o terceiro, o Dragão da Espalda Azulada, mora no Rio Yang-Tsé; o quarto, o Dragão do Pelo Vermelho, tem sua residência no Rio Amarelo; o quinto, o Dragão Infrutífero, é o responsável por tocar o sino do Patriarca Budista; o sexto, o Dragão da Besta Deitada, tem a missão de proteger os beirais do palácio do Patriarca Taoísta; o sétimo, o Dragão Respeitoso, vigia os arcos comemorativos do Imperador de Jade; e, por fim, o oitavo, o Dragão Serpente do Mar, reside no palácio de meu irmão mais velho, sendo responsável por proteger o monte Tai-Yüar, que se ergue na província de Shanshi. Quanto ao nono filho, você já o conhece: o Dragão Iguana. Inicialmente, ele não foi designado para nenhuma função oficial, razão pela qual, como acabei de lhe dizer, foi enviado ao Rio Negro para aperfeiçoar sua natureza mortal. Planejava transferi-lo para uma posição de maior responsabilidade assim que ele estivesse pronto. Jamais imaginei que me desobedeceria e cometeria tamanha ofensa!
— Quantos maridos teve sua irmã? — perguntou o Peregrino, sorrindo com uma ponta de malícia.
— Somente um — respondeu Ao-Jun. — O Dragão do Rio Ching, que, como acabei de mencionar, morreu decapitado. Durante toda sua viuvez, minha irmã viveu comigo, até falecer há cerca de dois anos.
— Como é possível que, de um único marido e uma única esposa, tenha surgido uma descendência tão diversa e peculiar? — indagou o Peregrino, intrigado.
— Isso é exatamente o que diz o provérbio — respondeu Ao-Jun. — "Um dragão pode ter até nove filhos, tão diferentes entre si quanto o sol e a lua."
— Devo confessar — reconheceu o Peregrino — que estava tão furioso que estava prestes a apresentar uma queixa contra você perante a Corte Celestial, usando esta carta como prova. Já tinha em mente acusá-lo de conspiração e sequestro. Mas agora vejo que a culpa não é sua, mas do jovem que se negou abertamente a obedecer suas ordens. Desta vez irei perdoá-lo, considerando a amizade que tenho com você e seus irmãos, e levando em conta que esse dragão é jovem e, pelo que parece, bastante imprudente. No entanto, é necessário que envie alguém imediatamente para prender o rapaz e libertar meu mestre. Depois disso, decidiremos os próximos passos.
Ao-Jun não perdeu tempo. Chamou o príncipe Moang e ordenou:
— Pegue quinhentos dos nossos melhores soldados e parta imediatamente para prender o Dragão Iguana. Além disso, peça para que preparem um banquete para o Grande Sábio. Não custa nada oferecer nossas desculpas.
— Não é necessário ser tão cortês comigo — replicou o Peregrino. — Já disse que não guardo nenhuma animosidade contra vocês. Não há necessidade de tanto incômodo. Acho melhor acompanhar seu filho, pois estou muito preocupado com a sorte do meu mestre. Além disso, um dos meus irmãos está me esperando.
O dragão insistiu com relação ao banquete, mas, ao perceber que o Peregrino estava decidido a partir, ordenou a uma de suas filhas que trouxesse um pouco de chá. O aroma era irresistível, e o Peregrino acabou aceitando uma xícara. Após se despedir do velho dragão, dirigiu-se para o Rio Negro, acompanhado de Moang, chegando rapidamente às suas margens.
— Tenha cuidado, príncipe — aconselhou o Peregrino. — Enquanto cumpre seu dever, eu sairei da água.
— Não se preocupe comigo, Grande Sábio — respondeu Moang com confiança. — Assim que capturar aquele monstro, eu o trarei até sua presença para que você mesmo o julgue. Prometo também que não retornarei ao lado de meu pai até ter libertado seu mestre.
Satisfeito com a determinação do príncipe, o Peregrino se despediu dele. Com um gesto de seus dedos, afastou as águas e saltou para a margem oriental do rio. Lá, foi recebido pelo deus do rio e pelo Monge Sha, que, surpreso, perguntou:
— Como é que partiu pelo ar e agora retornou pela água?
O Peregrino sorriu e explicou como havia matado o peixe mensageiro, como se apoderou da carta, como expôs o Rei Dragão e como conseguiu fazer com que ele enviasse uma expedição de punição. Radiante de felicidade, o Monge Sha começou a aguardar, ansioso, pelo retorno de seu mestre
Enquanto isso, o príncipe Moang enviou um soldado ao palácio do monstro com a seguinte mensagem:
— O príncipe Moang chegou, por ordem do respeitável Rei Dragão do Mar Ocidental.
O monstro estava sentado no interior, e ao ouvir tal anúncio inesperado, pensou consigo mesmo:
— Que estranho! Enviei um convite ao meu tio por meio de um dos meus peixes negros e ainda não recebi resposta. Por que ele enviaria um de meus primos em vez de vir pessoalmente?
Enquanto refletia sobre isso, um dos demônios que patrulhavam o rio apareceu e, alarmado, informou:
— Senhor! Há um exército acampado a oeste do palácio. Parece ser da sua família, pois em um dos estandartes está escrito: "Marechal Moang, príncipe herdeiro do Mar Ocidental".
— Esse meu primo é um tanto presunçoso! — exclamou o monstro. — Imagino que seu pai esteja muito ocupado, por isso enviou esse fantoche. No entanto, não entendo por que ele veio acompanhado de todos os seus soldados e guerreiros. Afinal, é apenas um banquete. Deve haver alguma outra razão. Acredito que, por precaução, não seria demais que me trouxessem a armadura e o chicote de aço. Quem comanda um exército sempre acaba lançando suas tropas ao ataque. Vou sair para recebê-lo e descobrir o que ele quer, afinal.
Sem necessidade de ordens adicionais, os demônios também começaram a se preparar para a batalha. Quando as portas do palácio se abriram, o Dragão Iguana viu, à direita, um exército de soldados marinhos acampado. Eram valentes guerreiros: as lanças formavam uma floresta de aço, as espadas brilhavam como raios cortantes sob a luz que atravessava as águas. Os arcos lembravam a curvatura da lua, enquanto as flechas se destacavam como dentes de lobos famintos. As enormes cimitarras refletiam um brilho mortal, e os porretes exibiam sua letal eficácia. O exército era formado por serpentes marinhas, ostras, baleias, caranguejos, tartarugas, camarões e peixes de todos os tipos e tamanhos. Marchavam com postura marcial, orgulhosos de suas armas bem cuidadas. A formação era impecável; nenhum soldado se movia um milímetro fora do lugar.
Inabalável, o Dragão Iguana dirigiu-se à entrada do acampamento e, levantando a voz, disse:
— Vosso primo dá-lhe as boas-vindas e implora respeitosamente que faça a honra de compartilhar sua humilde morada.
Um dos caracóis que patrulhavam correu até a tenda do jovem dragão para informá-lo:
— O Dragão Iguana está lá fora, chamando-vos em voz alta, majestade.
Após ajustar o capacete de ouro e o cinturão de jade, o príncipe pegou seu bastão de três pontas e, com grandes passos, saiu até a porta do acampamento. Lá, perguntou de forma arrogante:
— Posso saber por que me mandou sair?
— Esta manhã — respondeu o Dragão Iguana, inclinando a cabeça — enviei uma carta ao vosso pai. Presumo que, devido às muitas responsabilidades dele, tenha enviado vossa majestade em seu lugar. Contudo, por que trouxe suas tropas, se é apenas um banquete? Perdoe-me, mas não entendo por que, em vez de entrar em meu humilde palácio, acampou diante dele. Mais ainda, vem a meu encontro com a armadura ajustada e uma arma mortal em mãos. A que se deve essa exibição de força?
— Pode me dizer o que te levou a convidar o seu tio? — perguntou o príncipe.
— Claro que sim — respondeu o Dragão Iguana. — A ele devo tudo o que sou, e isso é algo que jamais esquecerei. Além disso, faz muito tempo que não o vejo e queria expressar-lhe todo o carinho que sinto, convidando-o a participar da única coisa valiosa que possuo. O fato é que ontem caiu em minhas mãos um monge vindo das Terras do Leste, que, segundo sei, dedicou-se à prática da virtude durante dez reencarnações consecutivas. Ele é tão especial que, se alguém provar sua carne, verá sua vida se prolongar consideravelmente. Por isso, queria oferecê-lo ao meu respeitável tio, por ocasião de seu aniversário.
— Como você é irresponsável! — repreendeu o príncipe. — Por acaso sabe quem é esse monge?
— Sim — admitiu a iguana. — Ele vem da corte dos Tang e está a caminho do Paraíso Ocidental em busca de escrituras sagradas.
— Vejo que sabe algo sobre ele — comentou o príncipe. — Mas o que me diz sobre seus discípulos?
— Um se chama Zhu Bajie e tem o focinho bem protuberante — respondeu o Dragão Iguana. — Ele também caiu em minhas mãos e eu pretendia servi-lo, assim como ao monge Tang. Outro se chama Monge Sha, um sujeito de pele amarelada e aparência um tanto sinistra, que possui um cajado muito especial. Ontem, ele veio exigir a libertação de seu mestre, e eu o expulsei do rio de forma bem rude. Alguns golpes com meu chicote foram suficientes para fazê-lo fugir como um covarde. Quer me explicar o que há de especial nesses dois?
— Está mal informado! — exclamou o príncipe, desdenhoso. — O monge Tang tem outro discípulo: o Grande Sábio, Sósia do Céu, um imortal da Grande Mónada, que, há cerca de quinhentos anos, causou grande confusão no Palácio Celeste. Agora, ele se tornou o guardião do monge Tang em sua jornada ao Paraíso Ocidental. Atualmente, é conhecido como Peregrino Sun Wukong, convertido pessoalmente pela misericordiosa bodhisattva Guanyin, da Montanha Potalaka. Como pode fazer uma coisa dessas? Saiba que o Peregrino Sun interceptou seu mensageiro, tomou a carta e a levou pessoalmente ao Palácio de Cristal de Água, acusando meu pai e a mim de conspiração e sequestro. Portanto, aconselho que deixe o monge Tang e seu discípulo Bajie partirem agora mesmo, para que o Grande Sábio Sun esqueça suas queixas e a paz possa retornar a estas águas. Se quiser continuar vivo, basta pedir desculpas. Eu lhe garanto que, se recusar a fazê-lo, será expulso do lugar onde agora habita e cairás nas garras da morte.
— Como você, que pertence à minha família, ousa me dizer algo assim? — bradou o monstro, enfurecido. — É inacreditável que tenha se colocado ao lado de alguém completamente alheio a nós! Está louco, se pensa que vou deixar o monge Tang ir embora assim, sem mais nem menos! Quando já se viu uma coisa dessas? Talvez esse tal Sun Wukong lhe cause um grande medo, mas quem te disse que sou tão covarde quanto você? Se ele tem tanto poder quanto diz, que venha aqui e prove! Prometo que, se resistir a três de meus ataques, libertarei imediatamente seu mestre. Mas, se falhar, que se despeça da vida, pois também o pegarei e o cozinharei no vapor. Lhe asseguro que, dessa vez, não enviarei carta alguma aos meus parentes. Quem me mandará convidar quem não sabe apreciar o valor de um banquete? Fecharei as portas do meu palácio e ordenarei a meus subordinados que cantem e dancem, enquanto eu ocupo o lugar de honra e como o que me der na telha. Ninguém jamais me impedirá de provar a carne desse monge!
— Monstro ignorante! — exclamou o príncipe. — Jamais vi alguém tão inconsciente quanto você. Deseja enfrentá-lo cara a cara?
— Pensava que eu iria me abalar? — retrucou o monstro.
Virando-se para seus subordinados, ordenou:
— Tragam a minha armadura!
Os demônios, tanto à direita quanto à esquerda, ajustaram a armadura do monstro e entregaram-lhe o chicote de aço. Vendo que tudo era inútil, os dois primos se voltaram e ordenaram aos homens que fizessem soar os tambores. A batalha que se seguiu foi completamente diferente daquela protagonizada pelo Monge Sha horas antes. Bandeiras e estandartes tremulavam orgulhosamente, competindo em imponência com as lanças e machados de guerra. As portas do palácio foram escancaradas enquanto o acampamento se erguia às pressas. O Dragão Iguana e o príncipe Moang não demoraram a medir forças.
Enfurecidas pelo rugir dos canhões e o ritmo incessante dos tambores, as forças fluviais enfrentaram-se ferozmente contra as marítimas. Camarões lutaram contra camarões, caranguejos enfrentaram caranguejos; a baleia devorou a carpa vermelha, a brema derrotou o atum (4), o tubarão engoliu o mujol, e a cavala, apavorada, fugiu. A ostra tomou posse da ameijoa, e o mexilhão, ao presenciar a cena, tremeu. Os bigodes da raia provaram-se tão eficazes quanto barras de aço, enquanto o peixe-espada não ficava atrás, manejando sua lâmina afiada. O esturjão perseguiu a enguia, e o salmonete tentou caçar a sardinha. O rio fervilhava com os contínuos embates entre criaturas que deveriam ser irmãs.
Com um grito feroz, o príncipe Moang, cuja força rivalizava com a do próprio bodhisattva Vajrapani (5), desferiu um golpe terrível no Dragão Iguana, que ousara desafiar os desígnios do Céu. Em um movimento estratégico, Moang fingiu recuar. O monstro mordeu a isca e iniciou a perseguição, mas o príncipe, ágil, virou-se repentinamente e golpeou o braço direito do monstro, derrubando-o no chão. Sem hesitar, aplicou outro golpe que o fez rolar como uma fruta madura.
Os guerreiros marinhos rapidamente amarraram suas mãos atrás das costas, perfuraram-lhe o esterno e prenderam-na com correntes. Então, conduziram-no até a margem para que o Peregrino Sun pudesse vê-lo.
— Grande Sábio — exclamou o príncipe Moang, satisfeito. — Conforme prometido, capturei o Dragão Iguana. Decida agora o que deve ser feito com ele.
O Peregrino refletiu por alguns instantes antes de se dirigir ao monstro com voz solene:
— Você desobedeceu as ordens que lhe foram dadas. Quando seu respeitável tio lhe concedeu permissão para viver aqui, ele esperava que você se dedicasse à prática da virtude. Em vez disso, você expulsou o deus do rio de seu palácio e maltratou todos os que se opuseram a você. Como ousou enganar meu mestre com tua magia? Deveria ser espancado com este bastão de ferro. Um único golpe bastaria para acabar com a sua vida. Mas antes, quero saber: onde está meu mestre?
— Não conhecia a sua fama, Grande Sábio — respondeu o Dragão Iguana, batendo respeitosamente a testa no chão. — Perdi o juízo ao enfrentar meu primo e agir de maneira imoral. Não esquecerei vossa misericórdia em poupar minha vida. Vosso mestre está preso em meu palácio. Se me libertar dessas correntes, prometo libertá-lo e devolvê-lo são e salvo.
— Não aceite esse pedido, Grande Sábio — aconselhou o príncipe Moang. — Este monstro desconhece o significado de honra. Se o soltar, ele certamente tramará algo terrível.
— Eu conheço bem o palácio — disse o Monge Sha. — Se permitirem, irei buscar o mestre.
O Peregrino não teve nada a objetar. O Monge Sha saltou para as águas, seguido pelo deus do rio, e ambos adentraram juntos o antigo palácio do monstro.
As portas estavam escancaradas. Todos os demônios pareciam ter desaparecido. Penetraram na sala principal e viram o monge Tang e Bajie com as mãos atadas atrás das costas, totalmente nus. O Monge Sha apressou-se em soltar o mestre, enquanto o deus do rio fazia o mesmo com Bajie. Depois, carregaram-nos e se lançaram em direção à superfície.
Quando Bajie avistou o monstro, carregado de correntes, na margem, levantou o ancinho e gritou furioso, pronto para acabar com ele:
— Monstro maldito! Ainda quer me devorar?
O Peregrino no entanto o conteve, dizendo:
— Não o mate. Façamos isso por Ao-Jun e seu filho.
— Receio que não possa ficar mais tempo ao lado de vocês — disse o príncipe Moang, após agradecer — Vosso mestre foi finalmente libertado, e preciso retornar junto ao meu pai com o prisioneiro. Embora tenham mostrado misericórdia, não duvido que meu pai lhe aplicará uma punição exemplar. Informaremos a vocês sobre o veredito final, Grande Sábio.
— Está bem — concluiu o Peregrino. —Pode partir quando quiser. Cumprimente seu pai por mim e agradeça-lhe pela inestimável cooperação.
Num piscar de olhos, o príncipe lançou-se às águas, seguido pelo prisioneiro e suas tropas.
Enquanto retornavam rapidamente ao Mar Ocidental, o Deus do Rio Negro se voltou para o Peregrino e lhe agradeceu, dizendo:
— Estou em dívida contigo, Grande Sábio, por ter me devolvido o meu reino.
— Vejo que ainda estamos na margem oriental — comentou o monge Tang com seus discípulos — Podem me dizer como vamos atravessar para a outra margem?
— Não se preocupem com isso — aconselhou o deus do rio. — Monte em seu cavalo e sigam-me. Abrirei um caminho nas águas para que possam atravessar com segurança.
O Mestre subiu em seu cavalo branco, enquanto Bajie segurava as rédeas, o Monge Sha carregava a bagagem, e o Peregrino fechava a marcha. Com um gesto mágico, o deus do rio abriu as águas, formando uma muralha que permitiu a travessia a pé. Assim, eles chegaram em segurança à margem ocidental.
Após agradecerem à divindade, os peregrinos seguiram viagem. Foi uma sorte que o leito do Rio Negro se tornasse tão sólido quanto um caminho pavimentado, pois isso permitiu ao mestre Zen retomar sua jornada em direção ao Oeste.
Não sabemos como conseguiram contemplar o rosto de Buda e adquirir as escrituras. Quem quiser saber, deverá ouvir o que será relatado no próximo capítulo.
CAPITULO XLIV EM BREVE ...
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Notas do Capítulo XLIII
- Esse grande número de votos está relacionado aos mestres que, conforme o Avatamsaka, visitaram Sudhana com o propósito de alcançar a Iluminação, depois que ele se converteu ao budismo com base nos ensinamentos de Manjusri;
- Os Seis Bandidos, na verdade, representam os seis sentidos humanos que escravizam o ser e o impedem de alcançar o vazio absoluto necessário para a Iluminação;
- Os três samadhis no budismo são estágios de meditação profunda. O samadhi da concentração (Dhyana) é um estado de foco total, em que a mente se absorve completamente no objeto da meditação. O samadhi da visão (Vipassana) ocorre quando o meditador compreende profundamente a verdadeira natureza da realidade, reconhecendo a impermanência e a ausência de um eu fixo. O samadhi da união (Samprajnata) é o estágio final, onde o praticante alcança uma união transcendental com a realidade, superando as dualidades e atingindo uma paz e clareza absolutas. Esses estágios são fundamentais para a iluminação, conduzindo a mente a um nível mais elevado de sabedoria;
- Em algumas tradições, aos atuns de grande porte eram atribuídos poderes extraordinários, chegando a ser considerados seres com chifres e a capacidade de voar;
- Vajrapani é um bodhisattva do budismo, conhecido como o "Portador do Vajra" (símbolo de poder e indestrutibilidade), e é visto como um protetor tanto do Buddha quanto do Dharma. Ele simboliza a força espiritual que destrói obstáculos e protege contra forças negativas.
- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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