14 de fevereiro de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo XLVI

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang

CAPÍTULO XLVI:

A FALSA FÉ REPRIME O VERDADEIRO DHARMA. O SÁBIO MACACO DA MENTE ELIMINA O MAL.



Assim que o rei testemunhou a autoridade que o Peregrino exercia sobre os dragões e outros deuses, não hesitou em selar o documento imperial que concedia a permissão de viagem. No entanto, quando se preparava para entregá-lo ao monge Tang, permitindo que continuasse sua jornada em paz, os três taoístas avançaram e prostraram-se com o rosto no chão. 


O rei levantou-se apressadamente do trono e correu para erguê-los com as próprias mãos, perguntando:

— Posso saber a razão de tanta cerimônia hoje?

— Durante os últimos vinte anos — disse um dos taoístas —, dedicamos nossas vidas a garantir a paz de vosso reino e a segurança de todos os súditos. No entanto, todo esse esforço foi reduzido a nada diante da magia vulgar de um monge oportunista. Apenas por ter conseguido provocar uma tempestade, Vossa Majestade ignorou os crimes que ele cometeu em vosso próprio domínio. Como pode tratá-lo com tanta deferência, esquecendo os incontáveis sacrifícios que fizemos por vós? Suplicamos que retenha um pouco mais sua permissão de viagem e nos conceda a chance de medir, mais uma vez, nossas habilidades contra as dele. Assim, veremos quem realmente merece vossa confiança.


Aquele rei era, sem dúvida, o homem mais volúvel da terra. Se ouvia falar bem do Oriente, prontamente se aliava a ele; mas, se alguém lhe mencionava o Ocidente, não tardava a selar um pacto com este. Por isso, hesitou. Deixou o documento de lado e perguntou:

— E em que tipo de provas estão pensando?

— Para começar disse o Imortal da Força de Tigre, uma prova de meditação.

— Não me parece uma escolha muito sensata   ponderou o rei. — Este monge representa uma fé que valoriza profundamente a meditação. Além disso, seu poder de concentração deve ser extraordinário; do contrário, não teria sido escolhido para buscar as Escrituras. Tem certeza de que quer competir com ele nesse campo?

O Grande Imortal sorriu e disse:

— A prova que proponho não é nada comum. Na verdade, ela é conhecida como a “prova de santidade junto à coluna de nuvens”.

— Pode me explicar do que se trata? — perguntou o rei, curioso.

— Para realizá-la explicou o Grande Imortal , serão necessárias cem tábuas. Com metade delas, construiremos um altar,, que deverá ser alcançado com a ajuda de uma nuvem. Não será permitido o uso das mãos nem de qualquer tipo de escada. Vencerá a prova aquele que conseguir permanecer meditando no topo do altar por mais tempo.

O rei percebeu que se tratava de um desafio extremamente difícil e, voltando-se para os peregrinos, perguntou:

— Então, monges! Nosso respeitável preceptor propõe a realização de uma prova de meditação chamada "santidade junto à coluna de nuvens". Alguém está disposto a enfrentá-lo nesse desafio?

Contrariando seu comportamento habitual, o Peregrino permaneceu completamente em silêncio, o que surpreendeu profundamente Bajie. Sem esconder a estranheza, ele perguntou:

— Por que não diz nada?

— Para ser sincero — respondeu o Peregrino —, sou capaz de derrubar os céus, revirar os poços, agitar os oceanos, inverter o curso dos rios, carregar montanhas nas costas, perseguir a lua e alterar o movimento das estrelas e planetas. Também não tenho medo de que partam meu crânio, cortem minha cabeça, rasguem meu estômago, arranquem meu coração ou me mutilem cruelmente. Mas sou completamente incapaz de sentar-me em silêncio e começar a meditar. Isso está além das minhas forças. Não consigo ficar parado em lugar algum! Mesmo que me acorrentassem a uma coluna de aço, tentaria me libertar imediatamente, subindo e descendo por ela como um inseto. O que posso dizer? Essa é a minha natureza!

O monge Tang então interveio, dizendo:

— Talvez você não consiga, mas eu sim.

— Fantástico! exclamou o Peregrino, aliviado. — E por quanto tempo é capaz de fazer isso?

— Quando jovem — explicou Sanzang —, aprendi os princípios da aceitação e da meditação para alcançar a perfeição espiritual. Confinado na Meditação sobre o Sentido da Vida e da Morte, cheguei a ficar até dois ou três anos sem me mover.

— Fantástico! — repetiu o Peregrino. — O único problema é que, nesse ritmo, jamais conseguiremos chegar ao Paraíso Ocidental. Mas, enfim, acredito que não ficará lá em cima por mais de duas ou três horas.

— Tudo isso é muito bom  admitiu Sanzang. — Mas como farei para subir até lá?

— Não se preocupe com isso tranquilizou-o o Peregrino. — Dê um passo à frente e aceite o desafio. Eu cuidarei do resto.

Sem hesitar, o mestre juntou as mãos à altura do peito e declarou:

— Este humilde monge sabe como meditar da maneira que mencionaam.

O rei ordenou imediatamente que os altares fossem preparados. A rapidez com que suas ordens foram cumpridas demonstrou que a força de um país é capaz de derrubar montanhas. Em menos de meia hora, dois altares estavam prontos: um à esquerda do Salão dos Carrilhões de Ouro e outro à direita. Com passos solenes, o Grande Imortal da Força do Tigre dirigiu-se ao centro do imenso pátio. Então, deu um salto e, instantaneamente, formou-se sob seus pés uma plataforma de nuvens, que o elevou até o topo do altar construído no lado oeste, onde ele se sentou. Enquanto isso, o Peregrino arrancou um fio de cabelo e o transformou em uma cópia exata de si mesmo, que ocupou o lugar que até então mantinha ao lado de Bajie e do Monge Sha. Seu verdadeiro eu transformou-se em uma nuvem de cinco cores, que elevou o monge Tang pelos ares e o colocou suavemente no topo do altar do leste. Em seguida, metamorfoseou-se em um pequeno grilo, pousou no ombro de Bajie e sussurrou em seu ouvido:

— Observe o mestre com atenção e não tente conversar com o falso macaco ao seu lado.

— Não se preocupe respondeu Bajie, rindo. — Já tinha percebido a troca.

Enquanto isso, o Grande Imortal da Força de Cervo, ao notar que os dois competidores pareciam ter níveis de concentração semelhantes, decidiu ajudar seu companheiro. Discretamente, arrancou um fio de cabelo da nuca,enrolou-o entre os dedos e o lançou em direção à cabeça do monge Tang. O fio se transformou em um pequeno percevejo, que começou a picá-lo de forma selvagem.

No início, o monge Tang sentiu apenas uma leve coceira, mas, conforme os segundos passavam, o incomodo transformou-se em uma dor insuportável. O problema era que uma das regras da prova de meditação determinava que quem movesse as mãos, mesmo que fosse apenas para se coçar, seria automaticamente desclassificado. O desconforto se tornou tão insuportável que o mestre não teve outra escolha senão esfregar suavemente a cabeça contra a gola de sua túnica.

— Santo céu! exclamou Bajie, preocupado. — Parece que o mestre está prestes a ter um ataque.

— Não, não corrigiu o Monge Sha. — Acho mais provável que ele esteja com dor de cabeça. Nem todo mundo tem preparo para a meditação.

— Nosso mestre é uma pessoa honrada — comentou o Peregrino. Se ele disse que sabe meditar, então é verdade. Tenho certeza disso. Nunca o ouvi contar uma única mentira. Melhor pararmos de especular e verificar o que está acontecendo.

O Peregrino alçou voo novamente e pousou sobre a cabeça do monge Tang, onde descobriu um percevejo do tamanho de uma ervilha, que se deleitava com o sangue do mestre. O Peregrino agarrou-o rapidamente com a mão e coçou suavemente a cabeça do mestre até que o incômodo desaparecesse por completo. Dessa forma, ele pôde continuar a meditação sem precisar mover um único dedo.

— Que estranho! murmurou o Peregrino. — A cabeça raspada de um monge é tão lisa que nem um piolho consegue se agarrar a ela. Como esse percevejo veio parar na cabeça do meu mestre? Já sei! Com certeza, algum daqueles taoístas encontrou uma forma de nos sabotar. Pois bem, agora mesmo vou ensinar a eles o que são truques de verdade.

Ele voou novamente e pousou no telhado do palácio. Em seguida, sacudiu o corpo levemente e se transformou em um centopeia com mais de sete centímetros de comprimento. Sem pensar duas vezes, lançou-se e aterrissou exatamente debaixo do nariz do taoísta, dando-lhe uma picada tão terrível que ele caiu do altar. A queda foi tão forte que ele quase morreu. Por sorte, os funcionários imperiais se apressaram para segurá-lo; do contrário, teria perdido a vida ali mesmo. 

Assustado, o rei pediu que seus conselheiros o acompanhassem ao Pavilhão do Florescimento Cultura para se recompor e lavar o rosto. Enquanto isso, o Peregrino voltou a assumir sua forma original, transformou-se em uma nuvem e ajudou o mestre a descer do altar, sendo declarado vencedor da prova. O rei quis entregar-lhe o salvo-conduto da viagem, mas foi impedido novamente pelo Grande Imortal da Força de Cervo, que disse:

— Meu irmão não conseguiu vencer a prova porque é muito sensível ao frio. Sempre que sobe a um lugar elevado, é afetado pela brisa gelada e perde a consciência. Se não fosse por isso, esse monge jamais teria conseguido derrotá-lo. Permitam-me enfrentá-lo com a prova de "adivinhar o que está guardado em um baú".

— Em que consiste essa prova? — perguntou o rei.

— Como o próprio nome sugere respondeu o Imortal da Força de Cervo —, trazemos um baú, e quem acertar o que está dentro dele vence a prova. Se eles forem os vencedores, deixem-os partir. Caso contrário, que eles sejam punidos conforme a vossa vontade, para que nossa aflição fraterna seja vingada e os serviços que prestamos ao reino ao longo desses vinte anos permaneçam imaculados.

Mais uma vez, o rei se viu mergulhado em uma profunda indecisão. Incapaz de perceber o engano por trás dessas palavras, ordenou que trouxessem do Palácio Interior um baú de laca vermelha. Antes que ele fosse levado até os degraus de jade branco, pediu à rainha que colocasse algo de valor dentro dele.

O rei então reuniu os budistas e os taoístas em sua presença e disse:

— Quero que adivinhem o que há dentro desse baú.

— Como vou descobrir o que há aí dentro? — murmurou Sanzang para o Peregrino.

Wukong então se transformou em um pequeno grilo e, pousando na cabeça do monge Tang, sussurrou em seu ouvido:

— Acalme-se, vou dar uma olhada agora mesmo.

Sem que ninguém percebesse, ele voou até o baú, encontrou uma pequena fenda na base e rapidamente se esgueirou para dentro dele. Lá dentro, descobriu que havia uma blusa e uma saia que a rainha costumava usar em grandes ocasiões. Sem perder tempo, ele esticou as peças de roupa o máximo que pôde, mordeu a própria língua para tirar um pouco de sangue e, cuspindo sobre elas, ordenou:

— Transformem-se!

Instantaneamente, as roupas viraram um velho jarro de barro cheio de rachaduras, sobre o qual Wukong derramou sua urina fétida. Em seguida, saiu pela fenda e pousou no ombro do monge Tang, sussurrando-lhe em um tom muito baixo:

— Dentro desse baú há apenas um jarro de barro cheio de rachaduras.

— Isso não pode ser verdade contestou o monge Tang. — O rei disse que era algo de valor. Quer dizer que esse jarro velho possui algum valor?

— Não sei, e também não me importa — respondeu o Peregrino. — O que importa é que você acerte a resposta.

O monge Tang deu um passo à frente, pronto para revelar o conteúdo do baú, mas foi impedido pelo Grande Imortal da Força de Cervo, que declarou:

— Eu sou o primeiro a responder. Dentro desse baú há uma blusa e uma saia da rainha.

— Não, não! gritou o monge Tang. — Dentro desse baú não há nada além de um jarro de barro cheio de rachaduras.

— Como ousa desprezar nosso reino dessa forma? — bradou o rei. — Você acha que não temos nada de valor? Como se atreve a falar de um jarro velho e quebrado? Prendam-no imediatamente!

Os guardas do palácio avançaram em direção ao monge Tang com uma expressão ameaçadora, mas, antes que pudessem tocá-lo, ele juntou as mãos à altura do peito e, inclinando-se respeitosamente diante do rei, disse:

— Perdoe minha indiscrição, mas não acha que deveriam abrir o baú para ver quem está errado? Talvez esteja prestes a punir um inocente.

Relutantemente, o rei concordou em atender ao pedido. Ordenou que o conteúdo do baú fosse revelado e quase desmaiou ao ver que, de fato, dentro dele não havia nada além de um jarro de barro cheio de rachaduras.

— Quem colocou isso aqui? rugiu o rei, furioso, voltando-se para o biombo que ficava atrás do trono.

Com passos hesitantes, a rainha se aproximou e confessou:

— Eu mesma coloquei dentro dele uma blusa e uma saia de valor incalculável. Não entendo como puderam se transformar em algo tão repugnante.

— Eu acredito em você — respondeu o rei, confuso. Sei bem que, neste palácio, tudo é feito de seda e dos materiais mais refinados. Também não consigo compreender como essa coisa horrível veio parar aqui. Pode retornar aos seus aposentos, minha senhora.

Então, com um olhar decidido, o rei ordenou:

— Tragam o baú novamente. Eu mesmo vou esconder algo de valor dentro dele para ver o que acontece.

Apressadamente, o rei dirigiu-se ao jardim imperial, colheu um pêssego do tamanho de uma tigela de arroz e o colocou dentro do baú. 

Ao vê-lo retornar, o monge Tang comentou com seus discípulos, muito preocupado:

— O que faremos agora? Sua Majestade quer que repitamos o jogo.

— Não se preocupe com isso tranquilizou-o o Peregrino. Vou dar outra olhada agora mesmo.

Novamente, o Peregrino entrou no baú pela fenda e, satisfeito, confirmou que lá dentro havia um pêssego esplêndido. O Peregrino era um devorador insaciável de frutas e, após retomar sua forma habitual, sentou-se em um canto e devorou o pêssego que estava à sua frente. Saboreou-o com tanto prazer que quase engoliu o caroço. No final, desistiu desse peculiar deleite e, transformando-se novamente em um grilo, voou de volta até seu mestre e disse:

— Desta vez, o que há lá dentro é apenas o caroço de um pêssego.

— Está zombando de mim? questionou-o o monge Tang. — Já viu o que aconteceu há pouco! Se não tivesse sido esperto o suficiente, o rei teria mandado me açoitar. Ele é um homem obcecado por riqueza e prosperidade. Como poderia ter colocado apenas um simples caroço dentro do baú?

— Não se preocupe com isso respondeu o Peregrino, sorrindo. — O importante é que vença. Confie em mim e diga exatamente o que lhe falei.

Sanzang respirou fundo para responder, mas o Grande Imortal da Força de Cervo se adiantou e declarou:

— Aos taoístas sempre coube o primeiro lugar. Portanto, afirmo que dentro do baú há um pêssego esplêndido.

— Um pêssego não, senhor — corrigiu Sanzang , mas apenas o caroço de um pêssego.

— Você perdeu — anunciou o rei. — Eu mesmo coloquei no baú uma fruta inteira. Como poderia haver apenas um caroço?

— Acredite no que quiser replicou Sanzang —, mas lhe asseguro que a fruta desapareceu. Se não confia em minhas palavras, abra o baú e veja com seus próprios olhos.

O principal servo do rei se aproximou do baú, abriu-o e constatou que, de fato, restava apenas um simples caroço. O rei ficou tão impressionado que, voltando-se para os taoístas, exclamou:

— Pelo que lhes for mais sagrado, desistam de competir com esses monges! Quero que partam daqui o mais rápido possível. Eu mesmo colhi o pêssego com minhas próprias mãos e o coloquei dentro desse maldito baú. Como é possível que agora reste apenas o caroço? Esses monges certamente contam com o favor dos deuses e espíritos; caso contrário, não consigo explicar.

Bajie sorriu com malícia e sussurrou para o Monge Sha:

— Ele não faz ideia do quanto nosso irmão gosta de pêssegos!

Nesse exato momento, entrou o Grande Imortal da Força de Tigre, após se lavar e pentear no Pavilhão do Florescimento Cultural. Com a solenidade que lhe era característica, aproximou-se do trono e declarou:

— O que acabou de acontecer tem uma explicação muito simples: esse monge domina a magia de transformar objetos. Se me emprestarem o baú por alguns momentos, acabarei com sua influência maligna, e poderemos realizar uma prova com todas as garantias.

— O que pretende fazer? questionou o rei.

— Está claro que a magia dele é capaz de alterar objetos inanimados explicou o Imortal da Força de Tigre — , mas duvido que possa fazer o mesmo com seres humanos. Proponho que permitam a este jovem taoísta entrar dentro do baú. Assim, ninguém poderá mudar o que estiver lá dentro. Mais ainda — acrescentou, baixando a voz —, sugiro que seja esse nosso irmão o objeto a ser desvendado desta vez. Verão como a previsão dele falhará miseravelmente diante da realidade.

O rei aceitou a sugestão e ordenou que o jovem entrasse no baú. Em seguida, mandou que o levassem até o salão do trono e, voltando-se para o monge Tang, desafiou-o:

— Ei, monge! Duvido que consiga adivinhar o que há aqui dentro deste baú!

— De novo essa história! exclamou Sanzang, desanimado.

— Não se preocupe — tranquilizou-o, mais uma vez, o Peregrino. — Vou dar mais uma espiada.

Novamente, o Peregrino voou em direção ao baú e entrou nele através da fenda, descobrindo, não sem certa surpresa, que lá dentro havia um jovem taoísta. Mas a mente do Grande Sábio possuía uma agilidade impressionante, e, sacudindo levemente o corpo, ele assumiu a aparência de um dos mestres do Tao que haviam ficado do lado de fora. Aproximou-se do jovem e perguntou em um sussurro:

— Como está se sentindo?

— Como conseguiu entrar aqui? — perguntou o jovem, visivelmente surpreso.

— Muito simples respondeu o Peregrino. — Usei a magia da invisibilidade.

— Tem alguma nova ordem para mim? — indagou o rapaz.

— Sim — respondeu o Peregrino. Um dos monges viu você entrar no baú. Isso facilita as coisas para ele, e nós, infelizmente, perderemos mais uma vez. Por isso, é essencial que você raspe a cabeça. Assim, poderemos alegar que é um monge, e eles cometerão um erro irreparável.

— Para vencer, estou disposto a fazer o que for necessário declarou o jovem. — Está claro que uma nova derrota resultaria em uma perda total de credibilidade entre os membros mais influentes desta corte. Se isso acontecer, nossa reputação será arruinada para sempre.

— Exato — concordou o Peregrino. Aproxime-se e não tema nada. Quando tudo isso terminar, recompensarei você generosamente. Pode ter certeza disso.

Em um instante, ele transformou o seu bastão com extremidades de ouro em uma navalha de barbear e, envolvendo o jovem em um abraço, acrescentou:

— Sei que será um pouco desconfortável, mas aconselho que fique imóvel e, acima de tudo, não faça barulho. Incline-se um pouco para que eu possa raspar sua cabeça.

Em poucos segundos, o jovem ficou tão calvo quanto um ancião. O Peregrino recolheu os fios de cabelo, formou uma pequena bola e os distribuiu cuidadosamente pelas paredes do baú. Guardou a navalha e, enquanto acariciava a cabeça recém-rapada do jovem, comentou:

— Sua cabeça agora, certamente, é como a de um monge, mas o mesmo não se pode dizer de suas roupas. Tire-as e vista estas.

O jovem usava uma túnica de seda branca, adornada com bordados em formato de nuvens e outros símbolos tipicamente taoístas. Assim que ele se despiu, o Peregrino soprou sobre a vestimenta um pouco de seu hálito imortal e ordenou:

— Transforme-se!

Instantaneamente, a túnica se converteu na vestimenta de um monge, que o próprio Peregrino ajudou o jovem a vestir. Em seguida, arrancou dois fios de cabelo e, com a mesma facilidade, os metamorfoseou em uma matraca e um peixe de madeira.

— Agora, escute com atenção aconselhou o Peregrino, entregando a matraca e o peixe ao jovem. — Se ouvir alguém chamar por um jovem taoísta, não saia do baú. Só deve sair quando ouvir a palavra "monge". Nesse momento, levante a tampa do baú e saia, agitando o peixe de madeira e cantando um sutra budista. Isso será suficiente para garantir nossa vitória de uma vez por todas.

— Está bem — comentou o jovem, timidamente —, mas há um pequeno problema: eu só sei recitar O Livro dos Três Funcionários, O Livro do Melro do Norte e O Livro para Acabar com a Dor. Receio não conhecer nenhum sutra budista.

— Mas você sabe recitar o nome de Buda, não é? questionou o Peregrino.

— Quer dizer Amitabha? perguntou o jovem. — Isso todo mundo sabe.

— Ótimo. Então não há mais o que discutir — concluiu o Peregrino. — Apenas repita o nome de Buda. Gostaria de ensinar algo mais elaborado, mas, para ser sincero, não temos tempo. Apenas siga minhas instruções e tudo sairá conforme o esperado. Agora preciso ir.

Mais uma vez, ele se transformou em um pequeno grilo e voou até o ombro do monge Tang, onde sussurou em seu ouvido:

— Diga que há um monge dentro do baú.

— Sei que desta vez venceremos!exclamou Sanzang, entusiasmado.

— E como pode ter tanta certeza? perguntou o Peregrino, intrigado.

— Os sutras — respondeu Sanzang — afirmam que "o Buda, o Dharma e a Sangha são três joias (1)", o que significa que um monge é, de fato, algo de imenso valor.

Enquanto conversavam, o Grande Imortal da Força de Tigre aproximou-se do rei e anunciou em voz alta:

— Majestade, há um jovem taoísta dentro do baú.

Desconcertado, ele repetiu o anúncio várias vezes, mas nada aconteceu. Ninguém levantou a tampa do baú. Sanzang, por sua vez, juntou as mãos à altura do peito e proclamou com humildade:

— Na verdade, há um monge dentro do baú.

Temendo que não tivessem ouvido bem, Bajie gritou com todas as suas forças:

Há um monge dentro do baú!

Imediatamente, o jovem saltou do baú com um peixe de madeira na mão, repetindo com profundo respeito o nome de Buda. Os funcionários, tanto civis quanto militares, que lotavam a sala, começaram a aplaudir e a gritar entusiasmados. Os três taoístas, por sua vez, ficaram tão desconcertados que mal conseguiam falar.

— Esses monges certamente contam com o favor dos deuses — concluiu o rei. — O que acabei de presenciar é, francamente, incrível. Como é possível que um taoísta tenha entrado no baú e agora saia de lá um budista? Ele não poderia ter raspado a própria cabeça em um espaço tão pequeno. Além disso, quem o ensinou a recitar o nome de Buda com tanta devoção em tão pouco tempo? Acho prudente deixá-los partir o quanto antes.

— Repense a vossa decisão — aconselhou o Grande Imortal da Força de Tigre. — Como diz um provérbio, "o guerreiro encontrou um oponente à sua altura, e o jogador de xadrez encontrou alguém digno de enfrentá-lo". Acho que chegou o momento de recorrer às artes marciais que aprendemos na juventude, nas montanhas de Zhongnan, e desafiá-los para uma competição ainda mais grandiosa.

— Que tipo de artes marciais aprenderam? perguntou o rei.

O Imortal da Força de Tigre respondeu:

— Nós três, irmãos, adquirimos habilidades mágicas. Se nossas cabeças forem cortadas, podemos recolocá-las no pescoço. Se nossos peitos forem abertos e nossos corações arrancados, eles crescerão novamente. E, mesmo mergulhados em um caldeirão de óleo fervente, podemos nos banhar sem sofrer dano algum.

— Essas são provas que levam à morte certa! — exclamou o rei, visivelmente surpreso.

— Para uma pessoa comum, sim — reconheceu o Imortal da Força de Tigre —, mas não para nós, que somos mestres na arte da magia. Não iremos ceder, até que tenhamos medido nossas habilidades contra as deles.

Empolgado, o rei ergueu a voz e declarou:

— Monges das Terras do Leste! Nossos irmãos taoístas se opõem a que os deixemos partir, a menos que tenham competido com eles nas artes da decapitação, do destripamento e do banho em óleo fervente.

Ao ouvir isso, o Peregrino, que ainda mantinha sua forma de grilo para cumprir melhor sua missão, retomou a sua aparência habitual e exclamou, satisfeito:

— Que sorte a nossa! Não há nada de que eu goste mais do que esse tipo de competição.

— Como pode dizer isso, quando o mais provável é que acabe com o corpo totalmente destruído? — retrucou Bajie.

— Parece que não sabe do que sou capaz — replicou o Peregrino.

— Admito que você possui uma inteligência fora do comum e uma capacidade incrível de se metamorfosear no que bem entender — reconheceu Bajie. — Mas isso está além das forças que um homem pode dominar. Quer explicar que outras habilidades você tem que nós não conhecemos?

— Com muito prazer — respondeu o Peregrino. — Se minha cabeça for cortada, posso continuar falando; se meus braços forem arrancados, posso continuar batendo; se minhas pernas forem amputadas, sou capaz de continuar andando; se minhas entranhas forem abertas, elas se regenerarão sozinhas... Enfim, o que mais posso dizer? Para mim, tomar banhos de óleo fervente é ainda mais fácil, pois são os únicos que conseguem remover um pouco da minha sujeira.

O Monge Sha e Bajie não conseguiram conter o riso e soltaram uma sonora gargalhada . Naquele momento, o Peregrino deu um passo à frente e disse:

— Este humilde servo está disposto a se submeter à prova da decapitação.

— Pode nos dizer onde adquiriu o conhecimento de uma técnica tão difícil? — interrogou o rei.

— Alguns anos atrás — respondeu o Peregrino —, quando me dedicava intensamente às práticas ascéticas em um mosteiro, conheci um mestre mendicante do Zen que teve a bondade de me ensinar essa arte. Não sei se a técnica funciona ou não, porque nunca a usei; por isso quero testá-la agora mesmo.

— Esse monge não sabe o que está dizendo! — exclamou o rei, soltando uma gargalhada. — Não entendo como pode se submeter, assim, a uma prova da qual não tem certeza se sairá ileso ou não. Será que não sabe que a cabeça é a fonte das seis classes de energia yang que existem no corpo? Quem é privado dessas energias morre instantaneamente.

— É exatamente isso que queremos — comentou o Imortal da Força de Tigre com ódio. — Assim poderemos nos vingar de todas as humilhações que nos impuseram.

Deixando-se levar pelas palavras do taoísta, o rei ordenou que preparassem tudo o que fosse necessário para realizar a decapitação. Pouco depois, três mil guardas imperiais chegaram à corte. O rei virou-se para o Peregrino e disse:

— Desta vez, você será o primeiro. Vá e deixe que cortem sua cabeça, para vermos o que acontece.

— Está bem — respondeu o Peregrino, sorrindo. — Vou eu. Fez uma reverência aos taoístas e acrescentou:

— Está bem — respondeu o Peregrino, sorrindo. — Eu vou. 

Inclinando-se diante dos taoístas, acrescentou:

— Perdoem-me, respeitáveis imortais, por desta vez ter tomado a dianteira — e retirou-se rapidamente. Ao se virar, o monge Tang agarrou sua manga e aconselhou, muito nervoso:

— Tenha muito cuidado. Lembre-se de que isso não é brincadeira.

— Acalme-se, mestre — respondeu o Peregrino. — Solte-me e deixe-me enfrentar o que eu mesmo escolhi.

Com passos firmes, o Grande Sábio dirigiu-se ao local onde as execuções costumavam ser realizadas. Sem perder tempo, o carrasco amarrou-o com cordas e obrigou-o a colocar o pescoço sobre um tronco de madeira. Antes que o Peregrino pudesse abrir a boca, o carrasco deu um grito estrondoso e, com um golpe certeiro, separou sua cabeça do corpo. Não contente com isso, deu um chute na cabeça, que rolou como um melão por mais de dez metros. 

Apesar de tanta brutalidade, nem uma única gota de sangue jorrou do pescoço do Peregrino. Pelo contrário, de seu estômago surgiu uma voz estranha que gritou com toda a clareza:

— Volte aqui imediatamente, cabeça!

Ao ver o que estava acontecendo, o Grande Imortal da Força de Cervo recitou um feitiço e deu uma ordem ao espírito e ao deus local :

— Impeçam essa cabeça de se mover! Se o fizerem, assim que eu derrotar esse monge, convencerei o rei a transformar seus pequenos santuários em grandes templos e suas estátuas de barro em verdadeiros corpos de ouro.

O espírito local e a divindade não tiveram escolha senão obedecê-lo, pois ele dominava a magia dos Cinco Trovões. Em segredo, eles impediram que a cabeça do Peregrino se movesse.

— Volte aqui imediatamente! — gritou o Peregrino mais uma vez. Mas a cabeça permaneceu imóvel, como se tivesse criado raízes no chão. O Peregrino tentou repetidas vezes, mas seus esforços foram totalmente inúteis. 

Visivelmente preocupado, o Grande Sábio conseguiu se libertar das cordas e exclamou, sacudindo o corpo com violência:

— Cresça! 

No instante seguinte, uma nova cabeça brotou em seu pescoço, fazendo o carrasco e os guardas imperiais tremeram de medo. 

Somente o oficial responsável pela execução reuniu coragem suficiente para voltar ao lado do rei e informar, com a voz trêmula:

— Cortamos a cabeça desse monge, como ordenastes, mas uma nova cabeça cresceu em seu lugar.

— Eu não fazia ideia de que nosso irmão possuía esses poderes — comentou Bajie com o Monge Sha.

— Não sei por que está surpreso — retrucou o Monge Sha. — Já que ele domina a arte das setenta e duas transformações, é natural que tenha, pelo menos, outras tantas cabeças.

Ainda não havia terminado de falar, quando o Peregrino apareceu e, aproximando-se do mestre, informou:

— Aqui estou novamente, à disposição para o que precisarem.

— Doeu muito? — perguntou Sanzang, visivelmente satisfeito.

— Quase nada — respondeu o Peregrino. — Na verdade, não passou de uma diversão.

— Precisa de unguento para a ferida? — indagou, por sua vez, Bajie.

— Toque-me e verá que não tenho nenhuma ferida — respondeu o Peregrino.

— É extraordinário! — exclamou Bajie, incrédulo. — Está completamente curado. Não há nem mesmo uma cicatriz!

Enquanto conversavam, o rei levantou a voz e disse:

— Peguem a autorização de viagem e partam quando desejarem. Não tenho nada a acusá-los.

— Agradeço pelo documento — antecipou-se o Peregrino. — Mas não está se esquecendo de algo? O Grande Imortal ainda não passou pela prova da decapitação. Em toda competição, existem pelo menos dois lados, não concorda?

— Receio que o monge tenha razão — comentou o rei, dirigindo-se ao Imortal da Força de Tigre. — A ideia foi sua, e não pode recusá-la agora. Mas, por favor, peço que não nos assuste tanto quanto ele.

O Imortal da Força de Tigre não teve, portanto, outra escolha a não ser dirigir-se ao local das execuções, onde foi amarrado e forçado a se ajoelhar por vários carrascos. Um deles pegou a espada e cortou sua cabeça com um único golpe. Depois, como havia feito com a do Peregrino, deu um chute na cabeça, que rolou por mais de dez metros. Desta vez também não houve sangue, e o imortal apenas gritou:

— Volte aqui imediatamente, cabeça!

O Peregrino rapidamente arrancou um fio de cabelo e, após soprar sobre ele um pouco de ar mágico, ordenou:

— Transforme-se! — e, no instante seguinte, o fio se transformou em um mastim de pelagem clara. O animal se aproximou do local das execuções, pegou a cabeça do taoísta com a boca e correu em direção ao fosso do palácio, onde a jogou sem nenhuma consideração. 

Três vezes o taoísta chamou por sua cabeça, mas não obteve resposta alguma. Ele não possuía os poderes do Peregrino e não conseguiu fazer crescer uma nova cabeça. Não demorou muito para que um líquido avermelhado começasse a jorrar de seu pescoço decepado. Ficou evidente que ele era capaz de produzir chuva, mas entre ele e um imortal verdadeiro não havia comparação. Em poucos segundos, ele caiu, sem vida, sobre o pó, revelando a todos ao redor, horrorizados, que ele não passava de um tigre decapitado com a pele amarelada.

O oficial responsável pela execução retornou ao rei e informou, com voz trêmula:

— O Grande Imortal foi incapaz de recuperar sua cabeça e morreu caído no chão. O mais desconcertante é que ele se transformou em um tigre sem cabeça.

O rei perdeu a cor do rosto de tanto medo e ficou olhando fixamente para os dois taoístas que restaram. Felizmente, o Imortal da Força de Cervo se levantou rapidamente de onde estava sentado e, com voz serena, comentou:

— É provável que o dia de hoje estivesse predestinado desde o início dos tempos para que o nosso irmão perdesse a vida. Mas me recuso a aceitar que ele fosse um tigre. Tudo isso deve ser obra daquele monge sem escrúpulos. Com certeza ele usou algum tipo de magia para transformar vosso ilustre servo em uma besta. A mim, ele não conseguirá derrotar, eu garanto. Insisto, portanto, que continuemos com a prova do destripamento e da extração do coração.

Essas palavras fizeram com que o rei recobrasse sua compostura e dissesse, em tom desafiador, dirigindo-se ao Peregrino:

— Ei, você, monge! Nosso segundo imortal deseja travar uma nova disputa contra você.

— Tudo bem — respondeu o Peregrino, aceitando o desafio. — Mas devo avisar que faz tempo que não como de forma adequada. A última vez que tive uma refeição decente foi há alguns dias, quando um homem piedoso nos ofereceu pães. Devo admitir, com vergonha, que comi mais do que cabia em minha barriga. Não é de surpreender que, desde então, tenha tido terríveis cólicas. Às vezes, tenho a impressão de que vermes estão me roendo por dentro. O desafio que me propõem não poderia ser mais oportuno, pois quero saber se estou ou não livre deles. Agradeceria, portanto, que me emprestassem uma faca, para que eu possa abrir meu estômago, retirar minhas entranhas e limpá-las com cuidado. Isso me trará grande tranquilidade para seguir nossa viagem rumo para o Oeste e, finalmente, encontrar-me com Buda.

— Levem-no até o local das execuções! — ordenou o rei, após ouvir tantas bobagens.

Imediatamente, uma multidão de oficiais e soldados cercou o Peregrino, tentando carregá-lo, mas ele os impediu, dizendo:

— Não preciso que ninguém me segure. Posso caminhar sozinho. Apenas gostaria de pedir uma coisa: não me amarrem, para que eu possa limpar minhas entranhas como se deve.

— Está bem — concluiu o rei. — Não o amarrem.

O Peregrino dirigiu-se com passos decididos ao local das execuções, apoiou-se na enorme coluna usada para os enforcamentos e desamarrou a túnica, expondo o seu estômago. O carrasco o prendeu à coluna, imobilizando seu pescoço e pernas com uma corda, e cravou-lhe um punhal no peito, abrindo-o como se fosse um animal degolado. O próprio Peregrino ajudou na tarefa, abrindo a barriga com as mãos, retirando as entranhas e examinando-as uma por uma com extremo cuidado. Depois de um bom tempo, colocou-as de volta no lugar, juntou as bordas da ferida, soprou sobre ela uma baforada de ar mágico e gritou:

— Junte-se! — e, instantaneamente, sua barriga cicatrizou.

O rei ficou tão espantado que ele mesmo se encarregou de entregar ao Peregrino a autorização de viagem, dizendo:

— Partam o quanto antes para o Oeste. Não é necessário atrasarem mais a sua jornada. Aqui está a autorização que me solicitaram.

— Para ser sincero — respondeu o Peregrino —, a autorização de viagem é o que menos importa agora. O que realmente desejo é que o segundo Grande Imortal se submeta à mesma prova que eu. Acho justo exigir isso, já que a ideia partiu dele, não concorda?

— Não coloque toda a culpa em nós — retrucou o Imortal da Força de Cervo. — Parte da responsabilidade também é sua.

Virou-se então para o rei e disse, baixando a voz: 

— Não se preocupe. Tenho certeza de que sairei vitorioso desta prova.

Assim como o Peregrino havia feito momentos antes, o Imortal da Força de Cervo dirigiu-se ao local das execuções por conta própria. Lá, foi amarrado da mesma forma, e o carrasco abriu suas entranhas na mesma altura do peito, como havia feito com o Grande Sábio. Como se não bastasse tanta coincidência, ele retirou as tripas com a mão e as examinou cuidadosamente, uma por uma. Enquanto ele estava distraído com essa tarefa, o Peregrino arrancou um fio de cabelo, soprou uma baforada de ar mágico e gritou:

— Transforme-se!

Imediatamente, o fio transformou-se em um falcão faminto que, estendendo as asas e as garras, voou até onde o taoísta estava e arrancou-lhe as entranhas. Com elas no bico, voou para algum lugar desconhecido e isolado, onde pudesse devorá-las em paz. Dessa forma, o taoísta foi reduzido a um fantasma com o corpo vazio e a barriga aberta e cheia de sangue. Aquele que antes ostentava tanto poder se tornou um espírito sem entranhas. O carrasco deu um chute no cadáver para ver o que restava dele e, horrorizado, constatou que ele havia se transformado em um cervo com chifres esbranquiçados.

O oficial responsável pela execução correu novamente até o rei e disse:

— Majestade! O segundo Grande Imortal não teve uma sorte melhor que o primeiro. Ele conseguiu abrir suas entranhas, mas um falcão faminto as arrancou, e ele morreu pouco depois. O mais desconcertante, porém, foi que seu cadáver se transformou em um cervo com chifres esbranquiçados.

— Como isso é possível? — exclamou o rei, cada vez mais assustado. — Como ele pôde se transformar em um cervo com chifres?

— É o que eu me pergunto — replicou imediatamente o Grande Imortal da Força de Cabra. — Como é possível que meu irmão tenha se transformado em uma besta logo após morrer? Certamente, tudo isso é obra daquele maldito monge. Por isso, suplico que me permitam vingar a morte de meus irmãos.

— Que tipo de magia irá usar para derrotá-lo? — perguntou o rei.

— A magia que me permitirá mergulhar, como se nada fosse, em um caldeirão de óleo fervente  respondeu o Imortal da Força de Cabra.

O rei ordenou que preparassem tudo o que fosse necessário para a prova e pediu aos dois contendentes que não demorassem para começar.

— Devo agradecer por toda a atenção que estão tendo comigo — disse o Peregrino. — Faz, de fato, muito tempo que não tomo um banho, e minha pele está um pouco seca; tanto que coça mais do que estou disposto a aguentar. Esse óleo, aliás, vai me ajudar a acabar com essa irritação incomoda.

Os servos imperiais já haviam acendido uma grande fogueira e colocado o caldeirão de óleo fervente sobre uma pilha gigante de madeira. O Peregrino dirigiu-se à panela com passos decididos, mas, antes de entrar nela, juntou as mãos à altura do peito e perguntou:

— Trata-se de um banho civil ou militar?

— Existe alguma diferença entre eles? — indagou o rei.

— Claro que existe — respondeu o Peregrino. — Se for civil, não precisarei tirar minhas roupas. Colocarei as mãos nos quadris e saltarei para dentro e fora do caldeirão com tanta rapidez que as roupas não se mancharão nem um pouco. Se aparecer uma única gota de óleo nelas, significará que não realizei a prova corretamente e, portanto, perdi. No banho militar, por outro lado, terei que me despir e poderei ficar no óleo o quanto quiser, podendo me movimentar livremente.

— Que tipo de banho você deseja tomar? — perguntou o rei ao Imortal da Força de Cabra. — O militar ou o civil?

— Se escolhermos o civil — respondeu o Imortal da Força de Cabra —, há a possibilidade de que suas roupas tenham sido tratadas previamente com alguma substância que repele o óleo, de modo que nunca saberemos se ele seguiu as regras ou não. Acho que o mais conveniente será optar pelo banho militar.

— Perdoem-me, mais uma vez, por tentar primeiro — desculpou-se o Peregrino —, mas tenho um caráter muito impulsivo para esperar minha vez.

Mal havia terminado de falar quando o Peregrino tirou a camisa e a túnica de pele de tigre, deu um salto e caiu bem no centro do caldeirão, onde começou a se esbaldar, como se estivesse nadando.

Ao vê-lo, Bajie levou o polegar à boca e comentou com o Monge Sha:

— Receio que tenhamos subestimado esse macaco. Quando propuseram essas provas e ele aceitou sem pensar duas vezes, achei que estava se gabando, mas agora vejo que ele realmente possui os poderes que alegava ter.

Sua admiração era tão sincera que não podiam deixar de comentar novamente. No entanto, o Peregrino interpretou mal os cochichos e, pensando que estavam zombando dele, disse para si mesmo:

— Nem mesmo nessas circunstâncias esse idiota para de rir de mim. Isso é exatamente o que o provérbio quer dizer: "A inteligência nunca para, enquanto a idiotice sempre descansa". É injusto que eu tenha que me submeter a essa prova enquanto ele está ali, tranquilo, sem fazer nada. Vou pregar uma peça nele, para ver se da próxima vez ele tem mais cuidado.

Quando parecia estar mais satisfeito com o banho, ele mergulhou até o fundo do caldeirão, desaparecendo da vista de todos que o observavam admirados. Ele havia se transformado, de repente, em um prego, e ninguém conseguia encontrá-lo. Achando que ele estava morto, o oficial responsável pelo caldeirão foi até o rei e informou:

— O monge que se submeteu à prova do óleo morreu, frito como um simples torresmo.

O rei ordenou que os ossos fossem retirados do caldeirão e levados à sua presença, o que o carrasco tentou fazer com uma espécie de escumadeira de ferro. Como os furos eram muito grandes e o prego em que o Peregrino havia se transformado era muito pequeno, ele não conseguiu, e todas as tentativas do carrasco foram um fracasso absoluto. O oficial não teve outra escolha a não ser retornar até a presença do rei e anunciar:

— Os ossos daquele monge parecem ser tão frágeis que todo o corpo dele se desfez na panela, como se fosse manteiga.

— Muito bem — concluiu o rei. — Nesse caso, prendam aqueles três.

Os guardiões do palácio consideraram Bajie o mais perigoso e se lançaram sobre ele, fazendo-o morder a terra e amarrando-lhe as mãos selvagemente às costas.

Sanzang estava tão aterrorizado que não pôde deixar de levantar a voz, gritando:

— Majestade, eu suplico que conceda a este humilde monge algumas horas de clemência! Meu discípulo mais devotado acabou de perder a vida no caldeirão de óleo fervente, e eu não espero um destino diferente para mim e meus outros discípulos. Como poderia eu recusar a morte, se vós, que detêm o poder absoluto, decretastes que devemos morrer? O favor que lhe pedirei agora não é em meu nome, mas pelo espírito do meu fiel discípulo, que acaba de se tornar um errante no outro mundo, perdido e sem auxílio. Quero estender-lhe uma mão amiga. Peço, portanto, que me conceda uma tigela de arroz e três cavalos de papel, para que eu os coloque diante do caldeirão e realize uma oferenda fúnebre. Assim que tiver prestado minhas reverências ao espírito do meu discípulo falecido, aceitarei, sem hesitação, qualquer punição que vossa majestade decidir impor a mim.

— Está bem — respondeu o rei. — Vejo que os chineses  são, de fato, um povo de grande lealdade! Prossiga com sua cerimônia — e ordenou que entregassem ao monge Tang uma tigela de arroz e um pouco de papel de incenso.

O monge Tang e o Monge Sha dirigiram-se ao caldeirão por conta própria. Bajie teve menos sorte, pois os soldados o agarraram pelas orelhas e o levaram à força até lá. O monge Tang ergueu a voz e disse em tom solene:

— Respeitado discípulo Sun Wukong! Jamais esquecerei o carinho que me mostrou ao longo desta interminável jornada rumo ao Oeste. Desde que aceitou seguir o caminho, seu exemplo e sua piedade foram uma guia para todos nós. Juntos, esperávamos chegar à Montanha do Espírito, mas o destino quis que encontrasse a morte hoje. Em vida, tudo o que fez foi em busca das escrituras sagradas. É nosso justo desejo que, na morte, sua mente esteja ocupada apenas pela realidade de Buda. Não duvidamos, portanto, que seu espírito logo passará das trevas para o Templo do Trovão.

— Receio, mestre — disse Bajie —, que não tenha feito a prece adequada. Peça ao Monge Sha que levante um pouco a tigela de arroz, e deixe que eu mesmo faço a prece.

Embora estivesse firmemente preso ao chão, Bajie conseguiu pronunciar as seguintes barbaridades:

— Maldito macaco criador de problemas! Pi-ma-wen ignorante! Você merecia a morte e seus acabou frito numa panela. Você teve o que mereceu!

O Peregrino Sun, que permanecia agachado no fundo do caldeirão com a intenção de dar uma lição a Bajie, não conseguiu suportar as ofensas proferidas pelo mesmo e retomou sua forma habitual. Despido como estava, levantou-se no caldeirão e gritou, furioso:

— Pode-se saber a quem está insultando, seu escravo inútil?

— Que susto você nos deu! — exclamou, aliviado, o monge Tang, ao vê-lo.

— Nosso irmão gosta de brincar com a morte — comentou, por sua vez, o Monge Sha.

Ao ver o ocorrido, os funcionários, tanto civis quanto militares, correram para informar o rei, dizendo:

— Aquele monge ainda não morreu, majestade. Ele acabou de levantar a cabeça do óleo.

Não, não. Isso não é verdade — gritou o oficial responsável pelo caldeirão, temendo ser acusado de negligência ou algo semelhante. — Ele está morto. O que acontece é que hoje é um dia muito pouco propício, e o espírito daquele monge se recusa a fazer a viagem para o outro mundo.

Furioso com tantas bobagens, o Peregrino saltou do caldeirão, secou-se do óleo e vestiu-se. Dirigiu-se então ao oficial, sacou seu bastão de ferro e desferiu um golpe tão forte em sua cabeça que ele foi reduzido instantaneamente a uma massa disforme.

— Um fantasma pode fazer isso? — gritou, triunfante.

Ao ver o que aconteceu, os soldados que seguravam Bajie soltaram-no imediatamente e, jogando-se ao chão, suplicaram, aterrorizados:

— Perdoem-nos! Não sabíamos o que estávamos fazendo!

Até o rei parecia disposto a abandonar o trono do dragão e fugir vergonhosamente. Felizmente, o Peregrino o impediu, dizendo:

— Não saia assim tão rápido, majestade. Ordene ao terceiro imortal que entre no caldeirão.

— Salve minha vida, Grande Imortal, e entre no caldeirão — pediu o rei ao taoísta, tremendo da cabeça aos pés. — Se não fizer isso, esse monge acabará com todos nós.

O Imortal da Força de Cabra desceu os degraus e tirou as roupas, como o Peregrino havia feito. Depois, saltou no óleo e começou a se banhar tranquilamente. O Peregrino aproximou-se do caldeirão e ordenou aos que alimentavam o fogo que adicionassem mais lenha. Em seguida, mergulhou a mão no óleo e, para sua surpresa, percebeu que estava frio como gelo. Desconcertado, disse para si mesmo:

— Que coisa estranha! Quando entrei aqui estava realmente quente, mas agora está quase gelado. Deve haver um dragão por perto.

Sem hesitar, ele se elevou para o alto e recitou um feitiço que começava com a letra "Om". Imediatamente, apareceu o Rei Dragão do Mar do Norte, Ao-Shun, e o Peregrino, furioso, o repreendeu:

— Maldito verme com chifres! Seu lagarto coberto de escamas! Como ousa ajudar esse taoísta, escondendo um dragão frio no fundo do caldeirão e ajudando-o a me derrotar nessa disputa?

O Rei Dragão estava tão assustado que não ousava abrir a boca. Por fim, respirou fundo e respondeu com voz trêmula:

— Jamais me atreveria a fazer tal coisa. No entanto, é possível que não saiba que essa besta se dedicou por muito tempo à ascese, conseguindo se libertar da forma que originalmente possuía. Isso a capacitou a dominar a magia dos cinco trovões. Seus outros poderes mágicos foram obtidos por caminhos equivocados, que, de forma alguma, levam à verdadeira imortalidade. Por isso, o senhor conseguiu destruir seus companheiros, desmascarando sua natureza e obrigando-os a se revelarem como realmente eram. Com este, terão muitos mais problemas, pois aprendeu a Arte da Grande Ilusão na Montanha do Pequeno Mao (2) e conseguiu dominar um dragão frio. Ele é extremamente inteligente e muito difícil de enganar, tanto que o senhor não pode absolutamente nada contra ele. Há, no entanto, uma maneira de transformar esse taoísta em um simples torresmo: prender aquele dragão e levá-lo comigo.

— Faça isso e estará livre da minha ira — replicou o Peregrino. — Caso contrário, já sabem o que o espera.

O Rei Dragão transformou-se instantaneamente em um vento furioso, que entrou nas profundezas do caldeirão e arrastou consigo o dragão frio. O Peregrino desceu da nuvem e ficou a poucos passos de Sanzang, Bajie e do Monge Sha, observando o taoísta debater-se desesperadamente no óleo, sem conseguir escapar do tormento. Cada vez que ele tentava escalar a parede da panela, escorregava de volta para o fundo.


Em pouco tempo, sua carne desintegrou-se, sua pele tostou-se e seus ossos flutuaram livremente na superfície do óleo. O novo oficial responsável pela execução dirigiu-se ao rei e informou:

— O terceiro Grande Imortal acabou de morrer.

O rei não conseguiu evitar que as lágrimas lhe saltassem dos olhos. Em seguida, agarrou-se com força à mesa imperial à sua frente e, chorando amargamente, exclamou:

— Quão difícil é alcançar a vida humana! Quando falta a verdadeira essência de um mestre, o elixir não tem valor algum. O homem tem à sua disposição infinitos encantamentos e inúmeras oferendas para apresentar aos deuses, mas não possui nenhum remédio que possa prolongar sua vida. Como alcançar o estado do nirvana sem aperfeiçoar o espírito? Frágil é a vida, e vãos são todos os esforços que a preenchem. Por que não renunciamos a eles, se sabemos de antemão qual é o nosso verdadeiro destino? De nada adianta refinar o mercúrio e buscar a falsa perfeição do ouro. Que valor tem, nessas circunstâncias, levantar o vento e produzir chuva?

Não sabemos por enquanto o que aconteceu ao mestre e aos seus discípulos. Quem desejar sabê-lo, deverá prestar atenção ao que será dito no próximo capítulo.


CAPITULO XLVII EM BREVE ...

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Notas do Capítulo XLVI

  1. Para os budistas, não há nada mais valioso do que o estado búdico, a lei ou "dharma", e a comunidade de monges, conhecida como "sangha". Por isso, esses elementos são considerados como joias;
  2. Em Jiangsu, há três montanhas com esse nome. Segundo a lenda, durante a dinastia Han, um tal Mao-Ying se retirou para uma dessas montanhas e alcançou a imortalidade. Ao saber do ocorrido, seus dois irmãos seguiram seu exemplo, tornando-se também imortais em pouco tempo.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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