۞ ADM Sleipnir
CAPÍTULO XXXIV:
O REI DEMÔNIO DO CHIFRE DE PRATA CRIA UM PLANO ASTUTO PARA CAPTURAR O MACACO DA MENTE. O GRANDE SÁBIO OBTÉM OS SEUS TESOUROS.
Os dois demônios discutiam sobre a posse da cabaça, cada um mais ansioso que o outro para examiná-la. Quando menos esperavam, levantaram a cabeça e perceberam que o Peregrino havia desaparecido.
— Temo que esse imortal tenha zombado de nós — disse o Verme Astuto. — Prometeu nos ensinar o caminho para a imortalidade assim que trocássemos os presentes, mas sumiu sem nem se despedir.
— Para que tanta preocupação? — retrucou o Demônio Sorrateiro. — No fim das contas, fomos nós que saímos ganhando. Que diferença faz se ele foi embora? Deixe-me com a cabaça para que eu possa praticar como prender o Céu dentro dela.
Assim que a segurou, arremessou-a para o alto, mas a cabaça logo caiu de volta, sem efeito algum.
— Por que não está funcionando agora? — exclamou Verme Astuto, intrigado. — Será possível que o Peregrino Sun tenha se disfarçado de imortal e trocado uma cabaça verdadeira por uma falsa?
— Não diga bobagens! — disse o Demônio Sorrateiro, repreendendo-o. — O Peregrino Sun está preso sob o peso de três montanhas enormes. Como ele poderia ter escapado sem ajuda? Deixe-me tentar. Vou recitar o encantamento que ele usou, e você verá que desta vez o Céu não nos resistirá.
Mais uma vez, ele a lançou para o alto, acrescentando:
— Se resistir aos meus planos, subirei ao Salão da Névoa Divina e darei início a outra guerra.
Contudo, antes mesmo de terminar a frase, a cabaça despencou no chão com um estrondo.
— Não funciona! — gritou o outro demônio, desesperado. — Isso só pode ser um truque!
O Grande Sábio ouvia as lamentações deles do alto. Temendo que, com tantas tentativas, eles acabassem descobrindo a verdade, sacudiu levemente o corpo e, num instante, recuperou o fio de cabelo que havia transformado em cabaça horas antes. Assim, os dois demônios se viram com as mãos completamente vazias.
— Devolva-me a cabaça imediatamente! — exigiu o Demônio Sorrateiro ao parceiro.
— Como assim devolver? — protestou Verme Astuto. — Era você quem estava com ela nas mãos. Não me diga que sumiu do nada!
Desesperados, começaram a procurar freneticamente por toda parte, até mesmo nas próprias roupas, mas não conseguiram encontrá-la.
— O que podemos fazer? — perguntavam-se, tremendo da cabeça aos pés. — Nossos senhores nos confiaram esses tesouros para capturar o Peregrino Sun, mas não só falhamos, como parece impossível que alguém consiga fazê-lo. O que vamos dizer aos nossos mestres? Quando souberem que perdemos o jarro e a cabaça, com certeza seremos espancados. O que poderíamos fazer?
— Melhor fugirmos — decidiu Verme Astuto, depois de algum tempo refletindo.
— Fugir? Para onde? — exclamou Demônio Sorrateiro.
— Isso não importa — respondeu Verme Astuto. — O importante é escaparmos, pois, se voltarmos e confessarmos que perdemos os tesouros, certamente perderemos nossas vidas.
— Não, não — protestou Demônio Sorrateiro. — Acho que devemos voltar. Você é protegido do nosso segundo senhor, o que pode nos ajudar a resolver tudo. Assumirei a culpa pelo ocorrido. Se ele estiver de bom humor, pode nos perdoar. Em qualquer caso, prefiro morrer em minha terra a passar o resto dos meus dias vagando de um lado para o outro. Fugir não ira resolver o nosso problema.
Depois de uma discussão séria, decidiram retornar juntos à caverna de onde partiram. O Peregrino, que escutava do alto as deliberações deles, sacudiu levemente o corpo e transformou-se em uma mosca. Assim, pôde segui-los sem ser visto. Você deve estar se perguntando onde ele guardou todos os tesouros. Se os deixasse pelo caminho ou escondidos na grama, alguém poderia pegá-los, e todo o esforço teria sido em vão. Por isso, decidiu levá-los escondidos em suas roupas. No entanto, como poderia carregar tudo isso, considerando que o corpo de uma mosca é quase do tamanho de uma ervilha? A resposta é simples: assim como o seu bastão com pontas de ouro, os tesouros dos monstros tinham uma característica especial, adaptando-se ao tamanho e às intenções de quem os possuísse. Assim, mesmo sendo uma mosca minúscula, o Peregrino conseguiu carregar os tesouros sem dificuldades.
O inseto seguiu os dois demônios até a caverna. Os monstros ainda estavam bebendo quando os viram entrar e se jogarem respeitosamente a seus pés. O Peregrino pousou no batente da porta, esperando para ver o que aconteceria.
— Grandes senhores... — disseram os dois demônios, tremendo da cabeça aos pés.
— Então, já voltaram? — comentou Chifre de Prata, colocando o copo sobre a mesa.
— Sim, grande senhor — responderam os demônios.
— Capturaram o Peregrino Sun? — perguntou novamente Chifre de Prata.
Os dois demônios começaram a bater a testa no chão, sem coragem de dizer uma palavra. O monstro repetiu a pergunta, mas obteve a mesma reação. Parecia que os demônios haviam esquecido tudo, exceto balançar a cabeça freneticamente. O monstro insistiu, ofendido, várias vezes, até que, finalmente, eles confessaram:
— Suplicamos vosso perdão, pois somos merecedores de dez mil mortes! Quando estávamos quase na metade da montanha, encontramos um imortal vindo da própria ilha de Penglai. Ele nos perguntou para onde íamos, e respondemos que íamos capturar o Peregrino Sun. Isso pareceu agradá-lo imensamente, já que, segundo ele, tinha antigas desavenças com o Peregrino e decidiu colaborar. Explicamos que não precisávamos de ajuda, pois tínhamos objetos que podiam aprisionar pessoas em seu interior. Ele não pareceu surpreso, pois disse que também possuía uma cabaça capaz de conter o próprio Céu. Movidos pela ganância e por falsas esperanças, decidimos trocar nossos tesouros. No início, pensamos em trocar apenas as cabaças, mas Verme Astuto sugeriu incluir também o jarro de jade. Nunca imaginamos que o tesouro do imortal não suportaria o contato de mãos impuras e desapareceria enquanto tentávamos repetir o feito que havíamos visto. Ele mesmo se desfez no ar logo após fecharmos o acordo. Por isso, humildemente suplicamos vosso perdão.
Chifre de Ouro ficou furioso ao ouvir a confissão e exclamou com voz potente:
— Maldição! Isso é obra do Peregrino Sun, que se passou por imortal para enganá-los. Esse macaco tem muitos poderes e uma grande quantidade de amigos. Certamente contou com a ajuda de algum pequeno deus para se apoderar dos nossos preciosos tesouros.
— Não fique assim, por favor — aconselhou Chifre de Prata. — Jamais imaginei que esse macaco pudesse ser tão atrevido. Compreendo que quisesse escapar da prisão de rochas em que o aprisionei, mas por que desejaria nossos tesouros preciosos? Preciso capturá-lo novamente; do contrário, nossa reputação sofrerá um sério golpe.
— Pode me explicar como pretende capturá-lo desta vez? — questionou Chifre de Ouro.
— Muito simples — respondeu Chifre de Prata. — Embora o Peregrino Sun tenha se apoderado de dois de nossos tesouros, ainda restam três. Seria muita sorte se nenhum deles o derrotasse.
— E posso saber de quais três tesouros está falando? — perguntou novamente Chifre de Ouro.
— Dois deles estão aqui conosco — respondeu Chifre de Prata. — Você já os conhece: a Espada de Sete Estrelas e o Leque de Folhas de Palmeira. O terceiro, a Corda Prendedora de Ouro (1), está na Caverna do Dragão Esmagado, localizada na montanha de mesmo nome, que é a morada de nossa velha mãe. Acho que deveríamos enviar dois demônios para convidá-la a vir comer um pouco da carne do monge Tang. Podemos aproveitar para pedir que traga a Corda Prendedora de Ouro, com a qual amarraremos o Peregrino Sun.
— Quem devemos enviar desta vez? — perguntou novamente Chifre de Ouro.
— Com certeza, não esses dois inúteis — gritou Chifre de Prata, apontando para o Demônio Sorrateiro e o Verme Astuto. — Levantem-se, agora!
— Que sorte tivemos! — comentaram, aliviados, os demônios. — Não só não nos mandaram chicotear, como também escapamos de uma bela bronca. Vamos embora antes que nossos senhores mudem de ideia!
— Por que não chamamos o Tigre da Montanha e o Dragão do Oceano? Você sabe que eles sempre me acompanham nas minhas aventuras — sugeriu Chifre de Prata.
Os dois demônios não demoraram a aparecer. Eles se lançaram ao chão, e Chifre de Ouro logo os advertiu:
— Vocês precisam ter muito cuidado.
— Sempre temos, senhor — responderam eles, respeitosamente.
— Desta vez, tenham o dobro do cuidado — insistiu Chifre de Ouro.
— Faremos isso. Pode ficar tranquilo — repetiram eles.
— Vocês sabem onde fica a mansão de nossa mãe? — perguntou Chifre de Ouro.
— Sim, senhor — responderam novamente.
— Nesse caso — concluiu Chifre de Ouro —, vão até ela e digam que está convidada a provar um pouco da carne do monge Tang. Peçam também que traga a Corda Prendedora de Ouro para prender o Peregrino Sun.
Os demônios saíram apressados da caverna. Estavam tão ansiosos para obedecer que nem pensaram na possibilidade de o Peregrino ter ouvido toda a conversa com seus senhores. Assim que os viu deixar a caverna, o Grande Sábio levantou voo e pousou no ombro de um deles. A princípio, pensou em matá-los depois de percorrer uns três ou quatro quilômetros, mas então refletiu e considerou:
— Acabar com eles não será difícil, mas, na verdade, eu não sei onde vive essa Senhora Anciã, que parece ser a dona da corda de ouro. Acho que, antes de matá-los, será melhor fazer algumas perguntas.
Zumbindo como uma vespa, o Peregrino avançou cerca de cem metros à frente dos monstros. Ele balançou ligeiramente o corpo e se transformou em um pequeno demônio, com um gorro de pele de raposa na cabeça e uma túnica de pele de tigre. Deixou que os demônios passassem por ele e, em seguida, correu atrás deles, gritando:
— Ei, esperem por mim! Não vão tão rápido!
— Quem é você, afinal? — perguntou o Dragão do Oceano, virando-se.
— Como assim, quem sou eu? — respondeu o Peregrino. — Parece até brincadeira que não reconheçam alguém do próprio grupo.
— Você não faz parte do nosso grupo — declarou o demônio.
— Como assim, não faço? — protestou o Peregrino. — Olhe bem para mim.
— Você não me é familiar — insistiu o demônio. — Acho que é a primeira vez que te vejo por aqui.
— Isso é possível, porque faço parte da seção externa — explicou o Peregrino. — Para onde vocês estão indo com tanta pressa?
— Vamos convidar a Senhora Anciã, em nome de nosso senhor, para provar um pouco da carne do monge Tang e, ao mesmo tempo, pedir que nos empreste a Corda Prendedora de Ouro para capturar o Peregrino Sun — respondeu o diabrete.
— Já sei disso — disse o Peregrino. — Só perguntei para ver o que vocês responderiam.
— O que quer dizer com isso? — exclamou o diabrete, ofendido.
— Quero dizer que venho justamente da parte de nossos senhores para avisar que se apressem e não se atrasem por aí — respondeu o Peregrino. — Eles sabem como vocês gostam de brincar e não querem que percam tempo, pois a missão que lhes confiaram é muito importante.
Os demônios não desconfiaram de nada e ficaram convencidos de que o Peregrino realmente fazia parte do grupo. Aceleraram o passo, mantendo uma velocidade constante por uns oito ou nove quilômetros.
— Acho que estamos indo rápido demais — comentou o Peregrino, fingindo cansaço. — Quantos quilômetros já percorremos?
— Cerca de oito quilômetros — respondeu um dos demônios.
— Tudo isso? — exclamou o Peregrino. — Falta muito para chegarmos?
— Não muito. É naquela floresta negra logo à frente— respondeu o Dragão do Oceano, apontando para o local.
O Peregrino ergueu a cabeça e avistou, não muito longe, uma floresta sombria e densa. A visão lhe deu a certeza de que estavam próximos da morada de algum antigo monstro. Decidido a agir, deixou que os demônios passassem e, num só golpe com seu bastão de ferro, os reduziu a uma massa disforme de carne.
Rapidamente, escondeu os corpos entre alguns arbustos à beira do caminho. Em seguida, arrancou um fio de cabelo, soprou nele uma baforada de ar mágico e exclamou:
— Transforme-se!
No mesmo instante, o fio de cabelo se dividiu, tomando a forma exata do Tigre da Montanha enquanto o próprio peregrino assumiu a forma do Dragão do Oceano.
Os dois monstros falsos então partiram para a Caverna do Dragão Esmagado para entregar o convite à mãe dos monstros que ali residia. O poder mágico do Grande Sábio era vasto, e as setenta e duas transformações estavam sob seu total domínio. Em poucos saltos, ele adentrou a parte mais densa da floresta. Logo avistou duas enormes portas de pedra entreabertas. Sem ousar entrar sem se anunciar, ajustou a voz e chamou:
— Por favor, abram a porta!
Pouco depois, uma diabrete apareceu e perguntou:
— De onde você vem?
— Da Caverna da Flor de Lótus, situada na Montanha do Topo Plano— respondeu o Peregrino. — Trazemos um convite para a Senhora Anciã.
— Nesse caso, entrem — ordenou a diabrete.
Ao atravessar uma segunda porta, o Peregrino focou sua visão e viu uma mulher já idosa, sentada no centro de um amplo salão. Seus cabelos, brancos como a neve, estavam completamente desgrenhados, e seus olhos brilhavam intensamente, como estrelas. Seu rosto, marcado por profundas rugas e quase sem dentes, ainda exibia uma energia jovem e vibrante. Ela tinha a elegância de um crisântemo coberto pela geada e a rusticidade de um tronco de pinheiro após a chuva. Usava na cabeça um turbante de seda branca, cuja beleza rivalizava com a dos brincos que adornavam suas frágeis orelhas.
O Grande Sábio não ousou entrar de imediato. Ficou junto à porta, de cabeça baixa, chorando em silêncio. "Por que ele estava chorando?", você pergunta. Será que ele estava com medo dela? Mesmo que estivesse, dificilmente choraria. Além disso, ele foi corajoso o bastante para enganar e matar dois demônios perigosos. Então, por que chorava? Ele era capaz de se submeter a um recipiente de óleo fervente sem derramar uma lágrima, mesmo que fritasse por sete ou oito dias. No entanto, era o pensamento sobre o sofrimento imposto a ele por causa da jornada do Monge Tang em busca das escrituras que o estava fazendo chorar.
— Se me transformei num demônio apenas para convidar essa anciã a ir até a mansão de meu suposto senhor — pensou o Rei dos Macacos —, não há razão para falar com ela de pé. Devo me ajoelhar diante dela e bater a testa no chão. A vida toda fui um herói e só me ajoelhei perante três pessoas: o Buda do Paraíso Ocidental, Guanyin dos Mares do Sul e meu Mestre. Diante dele, prostrei-me quatro vezes seguidas, depois de me livrar do terrível castigo na Montanha das Duas Fronteiras. Por ele, aceitei todo tipo de sacrifícios e renunciei à posição que meu nascimento me conferia. Vale tanto assim um simples rolo de escritura? Por que preciso abrir mão do meu orgulho e me prostrar diante de um monstro que não merece meu respeito? Se não fizer isso, ela perceberá meu disfarce e todo o plano desmoronará. Que dilema terrível! No fim das contas, a vida de meu mestre está em jogo e, para salvá-la, não devo poupar nenhuma humilhação, por mais dolorosa que seja.
Chegando a essa conclusão, entrou decidido no salão onde estava a criatura e, ajoelhando-se diante dela, disse:
— Senhora — disse ele — , por favor, aceite minha reverência.
— Levante-se, por favor — disse rapidamente a criatura.
— Isso é bom — pensou o Peregrino, mais aliviado. — Parece que ela é mais honrada do que eu imaginava.
— De onde você vem? — perguntou a criatura.
— Da Caverna da Flor de Lótus, que fica na Montanha do Topo Plano — respondeu o Peregrino. — Meus dois senhores me ordenaram vir para convidá-la a provar um pouco da carne do monge Tang. Eles também pedem, humildemente, que traga consigo a Corda Prendedora de Ouro para capturar o Peregrino Sun.
— Que filhos dedicados eu tenho! — exclamou a criatura, satisfeita, e imediatamente mandou trazer sua liteira.
— Quem diria! — murmurou o Peregrino para si mesmo. — Até os monstros viajam em liteiras!
Logo depois, apareceram duas diabretes carregando uma liteira de madeira aromática, adornada com cortinas de seda. A anciã saiu da caverna, seguida por um grupo de diabretes que carregavam perfumes, cosméticos, espelhos, toalhas e tudo o que ela precisava para se maquiar.
— Por que insistem em me acompanhar? — perguntou a anciã. — Afinal, não estou indo para uma casa estranha. Pensam que não haverá ninguém para me servir lá? Não preciso da ajuda de vocês. Voltem para dentro da caverna e fechem bem as portas.
As diabretes obedeceram sem protestar, ficando apenas duas para carregar a liteira. A anciã então se voltou para o Peregrino e sua sombra e perguntou:
— Como vocês se chamam?
— Este aqui — respondeu o Peregrino rapidamente — é o Tigre da Montanha, e eu sou o Dragão do Oceano.
— Vão na frente — ordenou a anciã. — Preciso que alguém vá abrindo o caminho.
— Que má sorte! — murmurou o Peregrino para si mesmo. — Para obter as escrituras, acabei me tornando escravo de um monstro.
Apesar disso, ele não se atreveu a contrariar a anciã.
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Embora as versões do texto usadas nesta tradução narrem apenas duas diabretes carregando a liteira e o peregrino à frente, a ilustração acima mostra mais demônios fazendo parte da comitiva, provavelmente devido a uma variação da história (a qual não tive acesso). |
Depois de percorrer quatro ou cinco quilômetros, sentou-se em uma pedra para esperar as diabretes que carregavam a liteira. Quando elas chegaram perto, perguntou:
— Não querem descansar um pouco? Imagino que seus ombros já estejam exaustos.
As diabretes não desconfiaram de nada e rapidamente pousaram a liteira no chão. O Peregrino posicionou-se atrás delas, arrancou um pelo de seu peito e o transformou em um enorme pão, que começou a mastigar com falsa satisfação.
— Podemos saber o que você está comendo? — perguntou uma das diabretes.
— Fico até com vergonha de dizer — respondeu o Peregrino. — A verdade é que viajamos uma longa distância para transmitir o convite de nossos senhores à Velha Senhora, e ela nem se dignou a nos oferecer alguma recompensa. Estou com fome e, por isso, estou comendo um pouco de nossas provisões antes de seguirmos.
— Não se importaria de dividir esse pão com a gente? — perguntaram novamente as diabretes.
— Claro que não — respondeu o Peregrino. — No fim das contas, pertencemos à mesma família.
As diabretes se aproximaram do Peregrino, esperando pegar sua parte do pão prometido. Mas, em vez disso, receberam um golpe violento na cabeça. O Grande Sábio as atingiu com tanta força que uma delas ficou completamente desfigurada, enquanto a outra caiu, agonizando, gemendo de dor. A anciã, curiosa, enfiou a cabeça para fora da liteira para ver o que estava acontecendo. O Peregrino aproveitou a oportunidade e, com toda a força de seu bastão de ferro, desferiu um golpe em sua cabeça. Jorrou sangue para todo lado, e as cortinas da liteira ficaram cobertas com a massa cerebral da criatura.
O Peregrino puxou o corpo a anciã para fora da liteira e pode ver que ela era, na verdade, uma raposa de nove caudas (2).
— Maldita criatura! — exclamou o Peregrino, soltando uma risada sarcástica. — Quem é você para ser chamada de Velha Senhora? Se merece esse título, então eu devo ser considerado um dos seus ancestrais!
Após revistar rapidamente suas roupas, ele encontrou a Corda Prendedora de Ouro, que guardou apressadamente nas mangas.
— Esses demônios podem até ser poderosos — pensou, satisfeito consigo mesmo —, mas agora tenho três de seus tesouros mais preciosos em minhas mãos.
Ele arrancou mais dois pelos, que se transformaram imediatamente no Tigre da Montanha e no Dragão do Oceano, enquanto os pelos anteriores assumiram as formas das diabretes. Ele próprio então assumiu a forma da anciã e se acomodou na liteira. Assim, continuaram a viagem como se nada tivesse acontecido.
Logo chegaram à Caverna da Flor de Lótus, onde os demônios que estavam abrindo caminho — na verdade, os pelos do Peregrino — gritaram com toda força:
— Abram o portão!
— São vocês, o Tigre da Montanha e o Dragão do Oceano? — perguntaram os guardiões do lado de dentro da caverna.
— Sim, somos nós — responderam os pelos.
— E onde está a Velha Senhora que vocês foram buscar? — continuaram os demônios.
— Ela está aqui dentro, na liteira — disseram os pelos. — Não a vêem?
— Fiquem aqui — disse um dos guardiões — enquanto vou avisar os senhores sobre a chegada dela.
Quando os dois monstros ouviram que a Velha Senhora havia chegado, ordenaram que preparassem o incenso. Isso deixou o Peregrino muito satisfeito, e ele pensou:
— A sorte ainda está do meu lado. Agora sou eu quem vai receber todas as honras. Quando me disfarcei de demônio para convidar aquela anciã monstruosa, tive que me curvar respeitosamente diante dela. Mas agora, assumindo sua aparência e me passando por parente dessas criaturas, elas terão que se curvar quatro vezes diante de mim. Pode não significar muito, mas estou colhendo o lucro de duas cabeças se curvando diante de mim!
O Grande Sábio desceu da liteira, sacudiu a poeira e recuperou os quatro pelos que havia arrancado. Os demônios que guardavam a entrada pegaram a liteira e a levaram para o interior da caverna. O Peregrino os seguiu lentamente, imitando o caminhar pausado da anciã. Dentro da caverna, uma verdadeira multidão de monstros de todas as idades correu para saudá-lo, ao som de tambores e flautas, enquanto volutas de fumaça aromática emanavam do incensário de Boshan (3).
Respondendo aos cumprimentos, o Peregrino avançou até o salão principal, onde se sentou, olhando para o sul. Os dois monstros ajoelharam-se diante dele e, batendo repetidamente a testa contra o chão, disseram respeitosamente:
— Damos-lhe as boas-vindas, mãe.
— Levantem-se, meus filhos — pediu o Peregrino.
Nesse momento, Zhu Bajie, que estava pendurado em uma viga, soltou uma gargalhada. O Monge Sha, ao vê-lo, o repreendeu:
— Isso é mesmo engraçado! Estamos condenados à morte, e você só pensa em rir como um louco.
— Se estou rindo — defendeu-se Bajie —, é porque tenho motivos para isso, não acha?
— Que motivos para rir você pode ter numa situação dessas? — insistiu o Monge Sha.
— Até agora — explicou Bajie —, estávamos apreensivos, esperando a chegada da Velha Senhora, porque isso significaria nossa morte. Mas agora vejo, aliviado, que essa velha não é quem parece, e sim nosso querido selvagem.
— De que selvagem você está falando? — exclamou o Monge Sha, surpreso.
— Do nosso "pi-ma", é claro — respondeu Bajie, prestes a soltar outra risada. — Não percebeu que essa anciã é ele?
— Como você conseguiu reconhecê-lo? — perguntou o Monge Sha, ainda curioso.
— Ao se curvar para saudar os supostos filhos, ele deixou seu rabo aparecer um pouco — explicou Bajie. — Só eu pude notar, porque estou pendurado mais alto que todos os outros.
— É melhor pararmos de falar e prestarmos atenção no que ele diz — sugeriu o Monge Sha.
— Você tem razão — admitiu Bajie.
O Grande Sábio sentou-se no meio da sala e perguntou com voz suave:
— Por que me convidaram para vir, meus filhos?
— Querida mãe! Por muitos dias seus filhos não tiveram a oportunidade de cumprir com suas responsabilidades filiais. — respondeu um dos monstros. — Mas hoje de manhã a sorte nos sorriu e conseguimos capturar o monge Tang, um homem de virtude comprovada, vindo das Terras do Leste. Sua santidade é tanta que decidimos compartilhá-lo com a senhora, oferecendo-lhe a chance de cozinhá-lo no vapor e, assim, prolongar sua vida.
— Para ser sincera com vocês, meus filhos — disse o Peregrino —, a ideia de devorar o monge Tang não me atrai muito. No entanto, ouvi dizer que as orelhas de seu discípulo, Zhu Bajie, são francamente extraordinárias. Por que não as cortam e as trazem para mim como aperitivo, acompanhadas de um pouco de vinho?
— Maldito macaco! — exclamou Bajie, surpreso com o que acabara de ouvir. — Então você veio aqui só para me fazer cortar as orelhas? Agradeça por eu não gritar quem você realmente é, senão sua sorte não seria melhor que a minha.
Infelizmente, esse comentário imprudente de Bajie revelou todos os planos do Rei dos Macacos. Nesse exato momento, alguns demônios que haviam saído para patrulhar a montanha retornaram e informaram aos seus senhores sobre o ocorrido:
— Grande Rei! Aconteceu uma tragédia! O Peregrino Sun matou a Velha Senhora e assumiu sua forma para zombar de nós.
Ao ouvir isso, Chifre de Prata não quis saber de mais nada. Sacou a Espada de Sete Estrelas e lançou um golpe mortal contra o rosto do Peregrino. mas o Grande Sábio sacudiu o corpo uma única vez, e instantaneamente a caverna foi invadida por uma luz avermelhada e de brilho extraordinário, permitindo-lhe escapar rapidamente.
Seus poderes eram tantos que esse episódio não passou de uma oportunidade de puro entretenimento para ele. Ninguém, de fato, dominava como Wukong a difícil arte das transformações. Se entrou na caverna assumindo a forma de uma anciã, dela escapou se diluindo no éter. Os habitantes da caverna ficaram tão abalados, que o espírito do primeiro monstro o abandonou, enquanto os demônios ao redor mordiam os dedos e balançavam a cabeça, incrédulos.
Chifre de Ouro então se virou para seu irmão e disse:
— Pegue o monge Tang, o Monge Sha, Zhu Bajie, o cavalo e a bagagem e devolva-os ao Peregrino Sun. Não quero ver meu lar destruído para sempre.
— O que está acontecendo com você? — respondeu Chifre de Prata, em tom de reprovação. — Você não tem ideia do quanto me esforcei para elaborar esse plano e trazer todos esses monges até aqui. É ridículo querer devolvê-los para aquela besta sem nenhuma resistência! Que fraqueza é essa? Está agindo como alguém que teme a faca e foge da espada. Não me diga que perdeu a coragem! Sente-se e acalme-se, enquanto eu resolvo isso. Ouvi dizer que o Peregrino Sun possui incontáveis poderes mágicos, e embora eu o tenha conhecido, não tive a chance de medir forças com ele. Traga a minha armadura, e me permita cruzar minhas armas com as dele três vezes. Garanto que, se em três rodadas ele não conseguir me derrotar, o monge Tang se tornará nosso jantar. Se, por outro lado, eu não for capaz de vencê-lo, teremos tempo de sobra para devolvermos o Monge Tang.
— Você tem razão — admitiu Chifre de Ouro, e imediatamente ordenou que alguns demônios trouxessem a armadura para o irmão. Assim que terminou de vestí-la, Chifre de Prata saiu da caverna com a espada em mãos e, levantando a voz, perguntou:
— Onde você está, Peregrino Sun?
O Grande Sábio já havia cruzado o limite das nuvens, mas, ao ouvir seu nome sendo chamado, se virou e olhou com atenção para o monstro. Na cabeça, ele usava um elmo de fênix tão branco quanto a neve e tinha seu corpo protegido por uma esplêndida armadura de aço persa. Em sua cintura, um largo cinto feito de tendões de dragão, e calçava botas de pele de cabra, cujas canelas lembravam a forma das flores de cerejeira. Sua postura era tão marcial quanto a do Senhor de Guankou (4) e tão impressionante quanto a do Espírito Poderoso. Sereno e imponente, segurava em suas mãos a Espada de Sete Estrelas.
— Peregrino Sun! — gritou novamente. — Se você me devolver agora mesmo nossa mãe e todos os tesouros que você nos roubou, permitirei que você e o monge Tang sigam seu caminho em busca das escrituras.
— Que monstro mais insolente você é! — exclamou o Grande Sábio, incapaz de conter a risada. — Você está muito enganado se pensa que eu vou deixá-lo escapar assim tão facilmente. Se quiser sair bem dessa, terá que me entregar não só meu mestre, meus irmãos, nossa bagagem e o nosso cavalo, mas também um pouco de dinheiro para cobrirmos as despesas que possamos ter em nossa jornada para o Oeste. Se você se atrever a me dizer não, já pode se preparar para ficar pendurado em uma corda, porque é exatamente isso que pretendo fazer com você.
Chifre de Prata deu um salto e, elevando-se inesperadamente entre as nuvens, desferiu um golpe com sua espada contra o Peregrino, que foi prontamente defendido. A batalha que se iniciou foi digna de verdadeiros mestres. Era como se dois artistas do xadrez se enfrentassem em uma partida de desfecho imprevisível ou como se um general decidisse medir suas armas com o melhor de seus guerreiros. Ambos se sentiam orgulhosos de poder mostrar seu poder diante de um rival de tamanha categoria. O ardor que demonstravam fazia-os parecer dois tigres da Montanha do Sul lutando entre si ou dois dragões briguentos do Mar do Norte. Suas escamas brilhavam como brasas e suas garras e dentes buscavam insistentemente a carne do adversário, como se fossem ganchos de prata. Um utilizava mil formas de ataque, enquanto o outro não dava trégua à sua habilidade bélica. O bastão com extremos de ouro passava a poucos centímetros do crânio do monstro, enquanto a Espada de Sete Estrelas buscava um golpe direto no coração do Peregrino. Um deles fazia as estrelas tremerem de medo. A fúria do outro era mais terrível que um relâmpago.
A luta se desenrolou durante mais de trinta rodadas, sem que houvesse um vencedor claro. Isso alegrava imensamente o Peregrino, que pensou, satisfeito:
— É realmente surpreendente que esse monstro tenha resistido a todos os ataques do meu bastão de ferro. No entanto, tenho em meu poder três de seus tesouros mais preciosos. Se continuar lutando com tanta ferocidade, é possível que minhas forças falhem e minha vida corra perigo. Para que adiar ainda mais o que pretendo fazer? Talvez eu deva usar a cabaça ou o jarro para aprisioná-lo.
Entretanto, ele refletiu melhor e acrescentou, um pouco depois:
— Não, não. Isso não seria correto. O provérbio diz, com razão, que "cada coisa tem seu mestre". Se eu chamá-lo e ele não responder, é muito provável que eu leve a pior. É melhor eu usar a corda dourada para laçar a cabeça dele, assim que ele se distrair.
E assim ele o fez. Porém, Chifre de Prata conhecia dois feitiços — um para se livrar da ação da corda e outro para torná-la mais eficaz — e usou o que melhor se adequava à sua situação.
Se tivesse sido o atacante, teria recitado o segundo feitiço, mas, naquele momento, optou pelo primeiro, para arrancar a corda das mãos do Peregrino e revertê-la contra ele. O Grande Sábio tentou usar magia para tornar seu corpo o mais delgado possível, mas o monstro recitou o segundo feitiço no exato momento, fazendo todos os esforços do Peregrino serem em vão. O laço que apertava seu pescoço se fechou com tanta firmeza que parecia uma argola de ouro sólido.
Chifre de Prata precisou apenas puxar levemente a corda para que o Peregrino perdesse o equilíbrio e caísse, rolando pelas nuvens. Aproveitando-se desse momento, ele desferiu sobre a cabeça desprotegida do Peregrino sete ou oito golpes com a espada. Contudo, nenhum deles causou sequer um arranhão.
— Que cabeça dura tem esse macaco! — exclamou Chifre de Prata, admirado. — É inútil continuar batendo. Vou levá-lo para a caverna e lá torturá-lo à vontade. Mas antes, ele deve me entregar os dois tesouros que me roubou.
— Quando foi que eu roubei algo seu? — perguntou o Peregrino, lendo os pensamentos do monstro. — Não é justo exigir a devolução do que não se tem.
No entanto, essas palavras pouco ajudaram. Chifre de Prata revistou o Peregrino com cuidado e logo encontrou a cabaça e o jarro. Usando a corda, arrastou-o como se fosse um animal até a caverna. Erguendo a voz, anunciou, orgulhoso de sua façanha:
— Eu o capturei, irmão! Não te disse?
— Quem você capturou? — perguntou Chifre de Ouro.
— O Peregrino Sun — respondeu Chifre de Prata. — Se você se espiar, verá que estou dizendo a verdade.
O monstro se aproximou e, ao ver que, de fato, era o Peregrino, sua satisfação foi tamanha que gritou, sem conseguir se conter:
— É ele, é ele! Vamos amarrá-lo a um dos postes e nos divertir um pouco às custas dele.
Assim o fizeram, mas, em vez de zombar dele, os dois monstros se retiraram para o interior da caverna, a fim de brindar pela boa sorte. O Grande Sábio ficou deitado ao lado do poste, sem espaço para se mover. Bajie o viu imediatamente e, soltando uma gargalhada, exclamou da viga à qual estava atado:
— Então você pensava em comer minhas orelhas, hein? Gostou do prato que te serviram?
— Está confortável aí em cima, idiota? — respondeu o Peregrino. — Se não estiver, vou subir agora mesmo para libertar todos vocês.
— Você não tem vergonha de dizer isso? — repreendeu-o Bajie. — Como se atreve a falar sobre libertar os outros, quando você mesmo é incapaz de se mover? Pare de sonhar e aceite o nosso destino. Vamos morrer todos juntos, então o melhor é tentarmos encontrar o caminho mais direto para a Região das Sombras.
— Pare de falar tantas bobagens, por favor! — insistiu o Peregrino. — Me observe, e veja como vou escapar daqui.
— Se você diz... — respondeu Bajie, com tom de deboche.
Enquanto conversava com Bajie, o Grande Sábio não tirava os olhos dos dois monstros. Ele os viu bebendo na sala maior da caverna, rodeados por demônios que não paravam de lhes servir licor e deliciosas iguarias. Em um momento de distração dos guardas, o Grande Sábio pegou seu bastão de ferro, soprou sobre ele e gritou:
— Transforme-se!
Imediatamente, ele se transformou em uma lima de aço puro, com a qual conseguiu se livrar da argola que apertava seu pescoço. Assim que se viu livre, arrancou um cabelo e ordenou que tomasse sua própria forma. Em seguida, sacudiu o corpo e se transformou em um demônio, que se posicionou ao lado do falso prisioneiro.
— Que má sorte! — exclamou Bajie, do alto da viga. — O que está amarrado é falso! O verdadeiro está pendurado aqui em cima!
— O que é que esse Zhu Bajie está gritando? — perguntou Chifre de Ouro, deixando a taça de lado.
O Peregrino, que havia se transformado em um demônio, correu até ele e respondeu:
— Ele está tentando convencer o Peregrino Sun a se transformar em algo inesperado e escapar o mais rápido possível, mas parece que o mesmo não está muito interessado em fazer isso. Por isso, Zhu Bajie perdeu a paciência e está gritando dessa forma.
— E nós que pensávamos que esse Zhu Bajie não era esperto! — exclamou Chifre de Prata. — Que língua afiada ele tem! Ele bem que merecia uns vinte golpes com uma vara.
Sem hesitar, o Peregrino agarrou um pedaço de bambu e se preparou para cumprir a ordem.
— É melhor não me bater muito forte — sussurrou Bajie. — Caso contrário, vou gritar e revelar quem você é.
— Faço isso por todos vocês — respondeu o Peregrino, no mesmo tom. — Mas me explique uma coisa: como foi que você me reconheceu antes? Nenhum monstro nesta caverna consegue me identificar. Como conseguiu?
— Muito simples — respondeu Bajie, com tom zombeteiro. — Apesar de todas as suas transformações, seu traseiro não mudou. Não percebe que ainda tem as mesmas calosidades? Como esperava que eu não o reconhecesse com esses dois pedaços de carne vermelha expostos?
O Peregrino se esgueirou rapidamente para a cozinha e, com um pouco de fuligem que conseguiu das panelas, escureceu o traseiro o melhor que pôde. Quando voltou, Bajie exclamou, quase rindo:
— Onde esse macaco se meteu para aparecer do nada com o traseiro totalmente preto?
O Peregrino não deu muita atenção à piada, pois seu verdadeiro objetivo era roubar os valiosos tesouros dos monstros. Usando sua astúcia, ele se aproximou dos monstros, ajoelhou-se e disse:
— Perdoem-me a interrupção, mas os senhores notaram como o Peregrino Sun não para de dar voltas ao redor da coluna à qual está amarrado? Se continuar assim, vai acabar quebrando a Corda Prendedora de Ouro. Não acham que deveríamos amarrá-lo com algo mais forte?
— Você tem razão — respondeu Chifre de Ouro, tirando um cinto com uma fivela em forma de cabeça de leão e entregando-o ao Peregrino.
Após pegar o cinto, o Peregrino foi até a coluna e amarrou sua imagem falsa com o mesmo, enquanto escondia a corda em uma de suas mangas. Em seguida, ele arrancou outro fio de cabelo, que, com um único sopro, transformou-se em uma corda dourada falsa. Dirigindo-se novamente ao salão onde os monstros se divertiam, ele estendeu as mãos com a nova corda para Chifre de Ouro, mas este estava mais preocupado com o vinho do que com qualquer outra coisa, e guardou a corda sem sequer olhar para ela.
Essa ocasião é referida em dois versos que chegaram até nós:
"O Grande Sábio, astuto como o pensamento, não se cansa de demonstrar seus poderes. Qualquer um de seus cabelos pode se transformar em uma corda de ouro."
Assim que conseguiu o tesouro, o Peregrino saiu da caverna de um salto. Então, recuperando sua forma habitual, gritou com todas as forças:
— Monstros!
— Posso saber quem você é e por que se atreve a gritar desse jeito? — repreendeu um dos demônios que fazia a guarda na porta.
— Entre e informe aos seus senhores imediatamente que o Peregrino Sun está aqui — respondeu o Peregrino.
O demônio obedeceu na hora, e Chifre de Ouro exclamou, desconcertado:
— Como é possível? O Peregrino Sun já está em nosso poder. Como pode haver outro lá fora?
— Não devemos ter medo dele — sugeriu Chifre de Prata. — Afinal, ainda não perdemos nenhum dos tesouros. Deixe-me pegar a cabaça e o prenderei nela em um instante.
— Tenha cuidado — aconselhou Chifre de Ouro, ainda preocupado.
Chifre de Prata se dirigiu até a porta, onde encontrou alguém que tinha a imagem exata do Peregrino Sun. A única diferença era que, à primeira vista, ele parecia um pouco mais baixo.
— De onde você saiu? — perguntou ele com arrogância.
— Apesar de ter me anunciado como sendo o Peregrino Sun — respondeu o Grande Sábio, — na verdade sou seu irmão, Zhexing Sun (5). Assim que soube que você o havia capturado, corri para vir acertar as contas com você.
— Eu mesmo me encarreguei de prendê-lo — confessou com orgulho Chifre de Prata. — Para sua informação, ele está trancado dentro da nossa caverna e sua viagem foi totalmente em vão, pois não pretendo medir forças com você. Mas gostaria de pronunciar seu nome uma única vez. Você teria coragem de responder?
— Eu não tenho medo de você — respondeu o Peregrino. — Se você pronunciar o meu nome mil vezes, eu responderei a cada uma delas.
Chifre de Prata então se elevou no ar, virou a cabaça de cabeça para baixo e gritou com todas as suas forças:
— Zhexing Sun!
Wukong não se atreveu a responder, pois logo percebeu as intenções do monstro e pensou:
— Se eu fizer o que ele pede, a cabaça me absorverá e eu serei reduzido a mera polpa. É melhor, então, que eu fique em silêncio.
— Posso saber por que você não me responde? — perguntou ansiosamente Chifre de Prata.
— Meus ouvidos estão um pouco tapados — respondeu o Peregrino. — Fale mais alto, por favor.
— Zhexing Sun! — gritou novamente Chifre de Prata.
O Peregrino começou a apertar os próprios dedos, enquanto pensava:
— Essa não é minha verdadeira identidade. Está claro que essa cabaça tem o poder de absorver as pessoas se lhe for dita a verdade, mas será que o mesmo acontecerá se eu recorrer à mentira?
Logo, ele pôde constatar, para seu azar, que seus cálculos estavam errados. Assim que abriu a boca, a cabaça o engoliu e ele não conseguiu sair dela. Para aquele tesouro, não importava se a resposta era verdadeira ou falsa. Assim que alguém respondia à pergunta que lhe era feita, ele os engolia e o assunto estava encerrado.
O Grande Sábio se encontrava em meio a uma escuridão absoluta. Várias vezes tentou tirar a cabeça, mas todos os seus esforços foram em vão. Sua boca era, de fato, extremamente estreita; ele não conseguia fazer nem um único cabelo sair por ela. Isso fez com que o nervosismo tomasse conta dele, e ele se dizia, cada vez mais inquieto:
— Os demônios com quem encontrei na montanha me confessaram que, se alguém caísse dentro dessa cabaça, poderia ser reduzido a mera gosma em uma hora e quinze minutos. Eu também seguirei essa sorte?
Ele mesmo se acalmou pouco depois, acrescentando:
— É impossível! Simplesmente não posso ser destruído com tanta facilidade. Quando, há cerca de quinhentos anos, mergulhei o Palácio Celestial no caos, fui refinado durante mais de quarenta e nove dias seguidos no braseiro de Lao-Tzu. Isso me concedeu um coração tão forte quanto o ouro, entranhas tão duras quanto a prata, uma cabeça tão resistente quanto o bronze, uma coluna tão indomável quanto o aço, olhos tão penetrantes quanto o fogo e pupilas tão inquebrantáveis quanto o diamante. Como posso ser reduzido a pus em menos de uma hora e quinze minutos? É melhor que eu não faça nada até estar dentro da caverna e ver o que acontece.
Chifre de Prata retornou à caverna e disse a seu irmão:
— Acabei de capturá-lo!
— Capturá-lo? — exclamou Chifre de Ouro, surpreso. — Quem você acabou de capturar?
— O irmão do Peregrino Sun — respondeu Chifre de Prata. — Ele está aqui dentro da cabaça.
— Sente-se, por favor, e não mova a cabaça por enquanto — disse Chifre de Ouro, visivelmente satisfeito. — Vamos agitá-la depois e levantar a tampa assim que não ouvirmos mais nenhum barulho dentro dela.
Ao ouvir isso, o Peregrino pensou:
— Preciso me tornar líquido o mais rápido possível. Já sei o que vou fazer. Vou urinar um pouco e, assim, vai parecer que me dissolvi nesta escuridão impenetrável. Quando eles sacudirem a cabaça, ouvirão o som e certamente levantarão a tampa. Assim poderei escapar!
No entanto, ele reconsiderou e acrescentou:
— Não, não. Pensando bem, essa não é uma boa ideia. A urina pode fazer barulho, mas minha roupa ficará suja. É melhor esperar até que sacudam a cabaça. Quando o fizerem, vou cuspir toda a saliva que puder. Isso fará com que acreditem que sua magia teve efeito sobre meu corpo e, assim que levantarem a tampa, eu escaparei.
O Grande Sábio se preparou cuidadosamente para esse momento, mas os monstros estavam tão absortos na bebida que se esqueceram completamente da cabaça. Isso levou Wukong a bolar um novo plano e a gritar de repente com todas as suas forças:
— Céus, minhas pernas desapareceram!
Os monstros não deram atenção a esses gritos, e o Grande Sábio se viu obrigado a gritar novamente:
— Ó Mãe, minha cintura está se dissolvendo!
Desta vez, sua tática surtiu efeito, pois quase imediatamente ouviu Chifre de Ouro dizer:
— Assim que a cintura se dissolver por completo, tudo estará terminado e poderemos levantar a tampa para ver o que aconteceu.
O Grande Sábio rapidamente arrancou um fio de cabelo e gritou:
— Transforme-se!
Instantaneamente, o fio de cabelo se transformou na metade de um corpo preso ao fundo da cabaça, enquanto o verdadeiro Peregrino se metamorfoseou em um pequeno inseto e se posicionou estrategicamente perto da boca da cabaça. Assim que Chifre de Prata levantou a tampa, o Grande Sábio saiu voando, assumindo rapidamente a forma do Dragão do Oceano, um dos demônios que havia sido enviado anteriormente em busca da mãe dos monstros.
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Obs: Nesta imagem e na próxima, era para o Peregrino ter a forma de um dos demônios que foram buscar a mãe dos monstros. Mais uma divergência entre a versão narrada nessas imagens e a das fontes que consultei. |
Enquanto Chifre de Ouro olhava para dentro da cabaça, Wukong permaneceu prudentemente ao seu lado. O monstro pôde ver claramente um corpo se dissolvendo lentamente em seu interior e, sem parar para pensar se o que via era verdadeiro ou não, ordenou nervosamente ao seu irmão:
— Volte a tampá-la imediatamente! Esse infeliz ainda não se dissolveu por completo.
Chifre de Prata obedeceu instantaneamente, sem perceber que o Grande Sábio estava ao seu lado, zombando abertamente dele.
— Como você é cego! — pensou o Rei dos Macacos. — Você nem consegue me ver ao seu lado.
Chifre de Ouro pegou uma jarra de vinho, encheu um copo e o ofereceu ao seu irmão com as duas mãos, dizendo:
— Brindemos à sua saúde.
— Não acha que já bebemos o bastante? — replicou Chifre de Prata. — Por que brindar de novo à minha saúde?
— Talvez não seja grande coisa capturar o monge Tang, Bajie e o Monge Sha — respondeu Chifre de Ouro. — Mas o que realmente possui um mérito indiscutível é capturar o Peregrino Sun e prender seu infeliz irmão em nossa cabaça. Isso é uma façanha de tal magnitude que exige não apenas um, mas mil brindes seguidos.
Chifre de Prata se sentiu lisonjeado pela honra que lhe foi concedida e não ousou recusar a taça. No entanto, como estava segurando a cabaça, não conseguiu pegá-la como a etiqueta exigia e teve que entregar o tesouro ao Dragão do Oceano. O que ele não sabia é que este era, na verdade, o Peregrino Sun, que não parava de observar cuidadosamente todas as suas reações.
— Não, não! Não precisa brindar por mim! — exclamou Chifre de Ouro. — Não fiz nada para merecer isso. Agora, se você deseja continuar bebendo, posso acompanhá-lo para tomar outra taça.
Os dois monstros continuaram trocando cumprimentos por um bom tempo sob o olhar atento do Peregrino, que em nenhum momento se afastou da cabaça. Quando se certificou de que estavam mais interessados no vinho do que no que ele poderia estar fazendo, ele rapidamente enfiou a cabaça dentro de uma manga, arrancou um fio de cabelo e o transformou em uma cópia exata do tesouro tão precioso. Meio bêbado, Chifre de Prata a arrancou de suas mãos pouco depois, sem se preocupar em examiná-la com atenção. Além disso, levantou novamente a taça e continuou brindando à saúde de seu irmão. O Grande Sábio, por sua parte, virou-se e pensou, visivelmente satisfeito com sua astúcia:
— Embora esse monstro tenha seus truques, a cabaça ainda está sob meu domínio.
Não sabemos, por enquanto, o que ele teve que fazer para derrotar os Reis Demônios do Chifre de Ouro e Prata e resgatar seu mestre. Aquele que quiser descobrir terá que ouvir atentamente as explicações que serão apresentadas no próximo capítulo.
CAPITULO XXXV EM BREVE ...
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Notas do Capítulo XXXIV
- Em chinês 幌金绳, huangjin sheng,"Corda Prendedora de Ouro";
- A raposa de nove caudas é uma criatura que, segundo a crença popular, se disfarçava de mulher para seduzir os incautos com sua extraordinária beleza;
- O incensário de Boshan tem a forma de uma ilha montanhosa que repousa sobre um prato cheio de água. Quando o incenso é aceso, a água entra em ebulição, intensificando os efeitos da fragrância;
- Este é outro dos nomes do pequeno sábio Erlang Shen.
- Esse pseudônimo faz referência ao nome Xingzhe Sun (行者孫, "Peregrino Sun"). O autor apenas inverteu as sílabas do primeiro nome.
- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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