16 de abril de 2025

Dobrynya Nikitich

۞ ADM Sleipnir

Dobrynya Nikitich (em russo: Добрыня Никитич) é um dos mais renomados bogatyrs (cavaleiros épicos) da tradição folclórica russa, destacando-se nas bylinas — canções épicas que narram as aventuras dos heróis do período medieval da Rússia de Kiev. Embora seja uma figura lendária, Dobrynya tem raízes históricas, sendo inspirado em um verdadeiro comandante militar que serviu sob o comando de Svyatoslav, o Grande, e atuou como tutor de seu filho, Vladimir, o "Sol Brilhante" .

A história de Dobrynya Nikitich começa ao lado de seu amigo e companheiro de viagem, o bogatyr Dunai Ivanovich, com quem partiu da corte do Príncipe Vladimir, em Kiev, em direção à Lituânia. A missão dos dois era trazer a princesa Evpraksiya para que ela se tornasse esposa de Vladimir. Na Lituânia, Dobrynya demonstrou sua habilidade diplomática ao convencer o rei a permitir o casamento, apesar da baixa estima que o monarca nutria por Vladimir. Após Dunai Ivanovich partir em perseguição a um misterioso saqueador que ameaçava o acampamento durante a noite, Dobrynya retornou sozinho com a princesa para Kiev.

O confronto com Gorynych

Além de suas habilidades diplomáticas, Dobrynya é famoso por seu confronto com dragões. Certa vez, ele matou os filhotes de uma dragonesa chamada Gorynych, o que levou sua mãe, Amelfia Timofeyevna, a adverti-lo para nunca mais retornar às Montanhas Sorochinsk, onde a criatura vivia, nem se aproximar do ri'o Puchai. No entanto, Dobrynya ignorou os conselhos da anciã, considerando-os meras divagações, e acabou retornando às terras dos dragões. Cansado e coberto de poeira após uma longa jornada, Dobrynya decidiu se refrescar no rio Puchai. Ele deixou suas roupas e armas na margem, junto ao seu cavalo, e mergulhou nas águas. Mal entrou na correnteza, chamas e faíscas irromperam no ar, acompanhadas por uma espessa fumaça negra. Da névoa surgiu a dragonesa de doze cabeças, Gorynych, a mesma cuja ninhada ele havia exterminado anteriormente.

Arte de Stepan Gilev

Ao avistar Dobrynya, a dragonesa perguntou o que deveria fazer com ele. Percebendo o perigo, ele mergulhou novamente e nadou até a margem oposta a que suas roupas e armas estavam. Seu cavalo, assustado com a presença da criatura, já havia fugido. Quando tudo parecia perdido, Dobrynya avistou um chapéu de sacerdote caído na grama. Como um bogatyr, ele sabia que poderia transformar o objeto em uma arma poderosa. No entanto, ao tentar erguê-lo, percebeu que era extremamente pesado. No momento em que a dragonesa voou em sua direção, Dobrynya brandiu o chapéu com todas as suas forças e decepou as cabeças de Goryshche. Ferida e caída no chão, a dragonesa implorou por misericórdia, prometendo nunca mais atacar as terras da Santa Rússia nem sequestrar seu povo. Dobrynya, por sua vez, jurou nunca mais retornar às Montanhas Sorochinsk e, em um ato de clemência, libertou a criatura.

Sem cavalo e sem armas, Dobrynya teve que retornar a pé para Kiev. Ao chegar, descobriu que, durante sua longa ausência, uma tragédia havia ocorrido na corte do Príncipe Vladimir: a dragonesa Gorynych, que ele havia poupado anteriormente, rompeu sua promessa. Sobrevoando a cidade, a criatura capturou a princesa Zabava, sobrinha favorita de Vladimir, segurando-a entre suas mandíbulas. Vladimir, desesperado, convocou seus cavaleiros e desafiou-os a resgatar a jovem. Alyosha Popovich, filho do bispo Leôncio, sugeriu que Dobrynya era o mais indicado para a missão, já que conhecia bem a dragonesa e afirmou que a criatura o considerava como um irmão. Ao ouvir isso, Vladimir ordenou que Dobrynya trouxesse de volta a princesa ou enfrentasse a decapitação.


Preocupado, Dobrynya retornou para casa e contou à mãe sobre o ocorrido, reclamando que teria que caminhar até as Montanhas Sorochinsk, pois não possuía mais um cavalo. Sua mãe, então, revelou que o velho garanhão castanho de seu pai ainda estava nos estábulos, atolado em esterco. Ela aconselhou o filho a limpar e alimentar o cavalo, além de descansar bem durante a noite. Na manhã seguinte, Dobrynya seguiu os conselhos da mãe. Antes de partir, ela lhe entregou um chicote de seda, dizendo que, caso o cavalo enfraquecesse, ele deveria usá-lo. Guardando o chicote no bolso, Dobrynya montou o castanho, que saltou sobre os muros da cidade e disparou velozmente, sendo impossível de acompanhar com os olhos. Rapidamente, chegaram às encostas das Montanhas Sorochinsk, onde o solo fervilhava com os filhotes da dragonesa. Dobrynya atacou-os, esmagando-os com seu cavalo. Contudo, após algum tempo, a montaria começou a desfalecer devido às mordidas dos filhotes. Lembrando-se das palavras de sua mãe, Dobrynya pegou o chicote de seda e bateu suavemente entre as orelhas e patas traseiras do animal. Imediatamente, a força do cavalo foi restaurada, permitindo que seguissem até a caverna da dragonesa.

Como era de se esperar, Gorynych não ficou nada feliz ao ver Dobrynya. Ela reclamou amargamente pela morte de seus filhotes e, ainda mais, pelo fato de que Dobrynya, um cavaleiro da Santa Rússia, havia quebrado sua palavra ao retornar às Montanhas Sorochinsk. Dobrynya, no entanto, revidou, lembrando que foi a própria dragonesa quem primeiro rompeu o pacto ao atacar Kiev e sequestrar a princesa Zabava. Em seguida, exigiu que a jovem fosse devolvida. Quando Gorynych recusou, Dobrynya atacou. 

Arte de Andy Aslamov

O combate entre os dois durou três dias, até que Dobrynya finalmente saiu vitorioso. No entanto, ao olhar ao redor, percebeu que estava cercado por um imenso lago formado pelo sangue da dragonesa, um lago que a terra não conseguia absorver. Clamando pela Mãe Terra (Mati-Syra-Zemlya), Dobrynya ordenou que ela se abrisse e engolisse o sangue do monstro. Imediatamente, surgiu uma fenda gigantesca, e o lago foi drenado. 

Descendo de seu cavalo, Dobrynya entrou no labirinto de cavernas onde a dragonesa vivia. Lá dentro, encontrou e libertou centenas de russos aprisionados, até que, na última câmara, finalmente descobriu a princesa Zabava. Guiando-a para fora, Dobrynya a colocou na frente dele, sobre o cavalo, e partiu de volta para Kiev com a mesma velocidade com que havia partido. Ao retornar, Dobrynya foi aclamado como um grande herói pelo Príncipe Vladimir e por todo o povo da cidade. Em casa, ele também foi recebido por seu leal cavalo, Voroneyushka, “Pequeno Corvo”, que havia retornado ao seu estábulo. A cidade celebrou a bravura e o sucesso de Dobrynya, marcando mais um triunfo nos feitos lendários do grande bogatyr.


A busca por uma esposa

No entanto, apesar de sua popularidade e glória, Dobrynya começou a mergulhar em pensamentos melancólicos, passando horas olhando pela janela. Quando sua mãe, Amelfia Timofeyevna, perguntou o que o afligia, ele confessou que sentia que já deveria ter se casado há muito tempo, mas todas as moças da cidade já estavam comprometidas. Sua mãe, sempre sábia, sugeriu que, se ele desejasse encontrar uma esposa, precisaria viajar para além dos limites de Kiev. A ideia imediatamente o encantou, pois, mesmo que não encontrasse uma noiva, ao menos teria novas aventuras para viver. Ao se dirigir aos estábulos para preparar sua jornada, sua mãe o chamou e aconselhou-o a deixar Voroneyushka para trás, levando, em vez disso, o cavalo que havia pertencido a seu pai — o mesmo que o servira tão bem em sua missão para resgatar a princesa Zabava. Dobrynya seguiu o conselho, armou-se e partiu rumo às vastas estepes russas.

Pouco depois de iniciar sua jornada, Dobrynya encontrou rastros de outro cavaleiro e, movido pela curiosidade, decidiu segui-los. Após cavalgar por um curto tempo, avistou uma polianitsa — uma mulher-guerreira — galopando em um cavalo negro como a noite. Sem hesitar, Dobrynya sacou seu arco e disparou uma flecha. A flecha atingiu o capacete da guerreira, mas caiu no chão sem causar qualquer dano. Ele disparou uma segunda flecha, com o mesmo resultado. Ao lançar uma terceira flecha, a guerreira finalmente parou e olhou ao redor. Ao avistar Dobrynya, ela se aproximou, agarrou-o pelos cabelos e o ergueu do cavalo, colocando-o dentro de um saco profundo que sempre carregava consigo.

Por três dias inteiros, Dobrynya permaneceu em silêncio dentro do saco, remoendo sua humilhante situação enquanto era levado pelas estepes. No quarto dia, o cavalo da guerreira tropeçou e reclamou, dizendo que não conseguia mais carregar tanto peso — afinal, levava tanto uma polianitsa quanto um bogatyr' (cavaleiro lendário). A guerreira, então, desceu de seu cavalo, retirou Dobrynya do saco e exigiu saber quem ele era. Ela declarou que, se ele fosse mais velho que ela, o mataria; se fosse mais jovem, o tomaria como irmão; e se tivessem a mesma idade, deveriam se casar. Dobrynya recusou-se a responder, mas o cavalo da mulher o reconheceu e revelou que seu nome era Dobrynya Nikitich e que ele tinha exatamente a mesma idade da guerreira. Ao ouvir isso, a mulher revelou seu próprio nome: Nastasya Mikulishna. 

Nastasya Mikulishna

Concluindo que eram da mesma idade, ela declarou que deveriam se casar. Dobrynya, surpreso mas impressionado com a força e determinação da guerreira, aceitou a proposta. Juntos, eles retornaram a Kiev. Na cidade, a mãe de Dobrynya, Amelfia Timofeyevna, deu uma calorosa recepção a Nastasya, e logo uma grande festa de casamento foi organizada. O Príncipe Vladimir e sua esposa Evpraksiya compareceram às celebrações, que duraram três dias e três noites, marcando a união dos dois guerreiros. Após o casamento, Nastasya abandonou sua vida de guerreira e passou a viver com Dobrynya e sua mãe, assumindo o papel de uma esposa tradicional russa.

A partida de Dobrynya Nikitich para a Lituânia

Cerca de três anos após seu casamento, o Príncipe Vladimir organizou um grandioso banquete em Kiev, convidando todos os bogatyri (cavaleiros heróicos) para comparecer. À medida que a celebração chegava ao fim, Vladimir se dirigiu aos cavaleiros presentes, perguntando quem estaria disposto a liderar um exército contra um inimigo que havia atacado seu sogro, o Rei da Lituânia. Nenhum dos bogatyri respondeu ao chamado. O príncipe repetiu a pergunta, e desta vez Alyosha Popovich se levantou, sugerindo que ninguém seria mais qualificado para a missão do que Dobrynya Nikitich, já que ele havia servido no exército do Rei da Lituânia e conhecia bem a região. Apesar de sua relutância inicial, Dobrynya concordou em liderar a expedição e foi para casa se preparar para a batalha.

Dobrynya Nikitich e Alyosha Popovich

Lá, sua mãe, Amelfia Timofeyevna, percebeu sua inquietação e perguntou o que estava acontecendo. Com grande pesar, Dobrynya contou sobre a missão, tentando tranquilizá-la ao dizer que, se morresse, se juntaria ao pai, Nikita, no céu, e que um dia ela também se encontraria com ele lá. Tomada pela emoção, Amelfia o abençoou, mas logo correu para contar a Nastasya sobre a partida iminente de seu marido. Ao ouvir a notícia, Nastasya correu para Dobrynya, e ele explicou sua missão. Ele então pediu que ela o esperasse por doze anos. Se nesse tempo ele não retornasse, Nastasya deveria dividir sua riqueza entre a igreja e os pobres e, depois disso, buscar um novo marido. No entanto, Dobrynya aconselhou-a a não se casar com Alyosha Popovich, pois os dois haviam trocado cruzes e, aos olhos de Deus, eram considerados irmãos. Com isso, Dobrynya beijou sua esposa, montou em seu cavalo e partiu para a Lituânia.

A Espera de Nastasya 

Passaram-se três anos, e Dobrynya não retornou. Foi então que Alyosha Popovich chegou a Kiev trazendo a notícia de sua morte. Sua mãe, Amelfia Timofeyevna, chorou a perda do filho, mas Nastasya recusou-se a acreditar, mantendo sua vigilância e esperança. Mais três anos se passaram, e Alyosha Popovich mais uma vez chegou a Kiev trazendo a notícia da morte de Dobrynya Nikitich. Novamente, Nastasya recusou-se a acreditar nele. Seu coração insistia em dizer que ele ainda estava vivo, e ela continuou esperando, fiel à promessa que havia feito.

Mais seis anos se passaram antes que Alyosha Popovich retornasse à corte do príncipe Vladimir, mais uma vez trazendo a notícia da morte de Dobrynya Nikitich. Dessa vez, embora Nastasya ainda não acreditasse plenamente na morte do marido, ela sabia que já cumprira sua promessa de esperá-lo por doze anos. Assim, com o coração pesado, aceitou se casar com Alyosha Popovich. Toda a cidade de Kiev se preparou para o casamento, que seria um grande evento, repleto de celebrações. Enquanto isso, na fronteira da Lituânia, Dobrynya Nikitich dormia profundamente, mergulhado em um sono longo e misterioso, alheio ao que acontecia em sua terra natal.

O retorno de Dobrynya à Kiev

Ao despertar, Dobrynya viu duas pombas brancas entrarem em sua tenda. As aves sussurraram-lhe notícias sobre os preparativos para um casamento que acontecia naquele mesmo momento em Kiev: o casamento de Alyosha Popovich e Nastasya. Ao ouvir isso, Dobrynya se levantou de imediato, reuniu suas posses, montou seu fiel cavalo, Voroneyushka, e galopou como o vento em direção a Kiev. Sua mente estava tomada por uma mistura de urgência e determinação, pois sabia que não poderia permitir que o casamento acontecesse. Ao chegar em Kiev, Dobrynya reencontrou sua mãe, Amelfia Timofeyevna, que chorou de alegria ao ver o filho vivo e são. No entanto, ele não foi direto ao palácio para revelar seu retorno. Em vez disso, decidiu se disfarçar como um menestrel, vestindo roupas simples e pegando um instrumento musical.

Disfarçado, Dobrynya se dirigiu à festa de casamento. Ele se sentou sobre o fogão, o lugar tradicional reservado para menestréis e mendigos, e começou a cantar. Suas canções eram melodiosas, mas carregadas de emoção, entoando versos sobre amor, saudade e traição. Cada nota parecia ecoar a história de sua própria vida, e todos os presentes, incluindo Nastasya e Alyosha, ficaram hipnotizados pela voz do misterioso menestrel. A voz do menestrel tocou profundamente Nastasya, que, emocionada, pediu ao Príncipe Vladimir permissão para oferecer-lhe uma bebida. O príncipe concordou, e Dobrynya aceitou o cálice de sua esposa. Em seguida, ele pediu permissão para retribuir o gesto. O príncipe permitiu, e Dobrynya entregou a Nastasya uma taça de hidromel. Ela levou o cálice aos lábios, e algo brilhou no fundo da taça. Era o anel de casamento de Dobrynya. 

"Dobrynya Nikitich no banquete do príncipe Vladimir". Arte de Nikolay Karazin

Ao reconhecê-lo, Nastasya caiu ao chão, tomada pelo desespero, e implorou pelo perdão do marido. Um silêncio sepulcral se espalhou pelo banquete. Todos os presentes voltaram seus olhares para o menestrel e, finalmente, perceberam que ele não era um simples cantor, mas sim Dobrynya Nikitich, vivo e diante deles. O Príncipe Vladimir o recebeu com alegria, mas Dobrynya só tinha olhos para um homem naquele salão: Alyosha Popovich. 

Dobrynya perdoou sua esposa, pois sabia que ela não poderia ter adivinhado a verdade sobre seu retorno. No entanto, quando Alyosha se ajoelhou diante dele, implorando perdão, Dobrynya recusou-se a aceitá-lo. Em um surto de fúria, agarrou Alyosha pelo pescoço, lançou-o ao chão e sacou sua espada. Com os olhos ardendo de ira, ergueu a lâmina para matá-lo. Mas, antes que pudesse desferir o golpe, Ilya Muromets interveio. O lendário bogatyr segurou o braço de Dobrynya e impediu o derramamento de sangue. Respirando fundo, Dobrynda embainhou sua espada, virou-se sem dizer uma palavra e deixou o palácio, levando Nastasya consigo. A partir daquele dia, Dobrynya Nikitich nunca mais dirigiu uma única palavra a Alyosha Popovich. E assim, Dobrynya e Nastasya viveram o resto de seus dias em paz e felicidade.


fontes:
  • DIXON-KENNEDY, M. Encyclopedia of Russian and Slavic myth and legend. Oxford: Abc-Clio, 1999.
  • WIKIPEDIA CONTRIBUTORS. Dobrynya Nikitich. Disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/Dobrynya_Nikitich>
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14 de abril de 2025

Ote no Shiroketsu

۞ ADM Sleipnir

Arte de Orochido

Ote no Shiroketsu (japonês: 大手の白けつ, lit. "As nádegas brancas da grande ponte") é uma lenda folclórica originária da cidade de Tome, na província de Miyagi, no Japão. A história, que remonta ao período Edo, descreve um incidente envolvendo um suposto yokai que assustava as pessoas exibindo suas nádegas brancas debaixo de uma ponte. No entanto, o "yokai" acabou sendo revelado como um homem que se divertia ao causar medo nas pessoas.

A lenda

Datado do primeiro ano da era Manji (1658), o incidente teria ocorrido quando um homem, filho de um samurai chamado Yokoyama Gaiki, retornava para casa após o trabalho no castelo local. Ao atravessar uma grande ponte, ele se deparou com uma figura estranha debaixo da mesma. Caminhando em sua direção, ela exibia suas nádegas brancas e emitia gritos assustadores. Apesar de assustado, o homem, sendo filho de um samurai, rapidamente sacou sua espada e cortou o que acreditava ser um yokai. No entanto, ao olhar mais de perto, percebeu que não se tratava de um yokai, mas sim de um ser humano. 

Desesperado, o homem correu imediatamente para casa e contou o que havia acontecido ao pai, que foi ao castelo para relatar o incidente e pedir uma investigação. Após a autópsia do cadáver, descobriu-se que ele era servo de um homem chamado Kishinami Tarōzaemon, e já era conhecido por ser um homem excêntrico e que gostava de assustar as pessoas. O caso gerou grande controvérsia entre os conselheiros do clã, que não chegaram a um consenso sobre como resolver a situação. A confusão foi tanta que um mensageiro foi enviado a Sendai para consultar o senhor feudal. No fim, foi decidido que o homem havia morrido após cometer seppuku (suicídio ritual) por ordem de seu mestre Tarōzaemon


fontes:
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11 de abril de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo LIV

۞ ADM Sleipnir


CAPÍTULO LIV:

RUMO AO OESTE, A NATUREZA DO DHARMA CHEGA AO REINO DAS MULHERES. O MACACO DA MENTE TRAÇA UM PLANO PARA ESCAPAR DO BELO SEXO.

Contavamos que, após deixarem a aldeia, o monge Tang e seus discípulos retomaram sua jornada rumo ao Oeste. Mal haviam percorrido quatro quilômetros quando alcançaram a fronteira do Reino de Liang Ocidental. O monge Tang apontou para frente com o dedo e comentou:

— Wukong, creio que estamos nos aproximando de uma cidade. A julgar pelas vozes e pelos sons que vêm de lá, ou estou muito enganado, ou acabamos de chegar ao Reino das Mulheres. Precisamos ficar atentos e, mais do que nunca, agir com total retidão. É fundamental não nos deixarmos levar pelos desejos e seguir fielmente os ensinamentos da Lei.

Os três discípulos comprometeram-se a não ignorar tão sábio conselho. De fato, não demoraram a chegar ao fim da rua que dava para o leste. Os transeuntes eram todas mulheres das mais variadas classes socias. Todas vestiam, sem exceção, blusas curtas e saias longas. Seus cabelos estavam untados de óleos perfumados e seus rostos totalmente cobertos de pó facial. Muitas delas estavam ocupadas com diferentes tipos de negócios. Ao avistarem os quatro monges, começaram a aplaudir e gritar, tomadas pela euforia:

— Vejam! Sementes humanas! Um grupo de sementes humanas acabou de chegar!

Confuso, Sanzang deteve seu cavalo. Num piscar de olhos, a rua ficou tomada por mulheres, que riam e conversavam todas ao mesmo tempo, sem parar. Bajie ficou tão empolgado que não se conteve, berrando a plenos pulmões:

— Sou um porco à venda! Sou um porco à venda!

— Seu tolo! — repreendeu-o o Peregrino. — Pare com esta bobagem e mostre logo a elas toda a sua "beleza".

Bajie não pensou duas vezes. Sacudiu a cabeça algumas vezes, e de repente, surgiram suas enormes orelhas, grandes como leques feitos de folhas de palma entrelaçadas. Depois, soltou os lábios grossos e alongados, semelhantes a raízes de lótus, e começou a gritar de tal forma que as mulheres fugiram apavoradas, tropeçando umas nas outras. Desse momento curioso nos resta um poema, que diz:

"Buscando sem cessar pelo Buda,
o monge sábio chegou ao Liang Ocidental,
uma terra onde todos os habitantes são mulheres
e não há um só homem.
Lá, lavradoras, estudiosas, operárias,
comerciantes, pescadoras e camponesas
compõem toda a população.
Não é de se estranhar que, ao verem os recém-chegados,
as moças tenham corrido às ruas, exclamando “Sementes humanas!”,
e que as jovens se aglomerassem, radiantes,
para dar boas-vindas aos raros visitantes masculinos.
Se Wuneng não tivesse mostrado o horror de seu rosto,
nenhum deles teria conseguido resistir
ao intenso assédio do belo sexo".

Todas estavam tão assustadas que não ousavam se aproximar. A maioria se agachava, como se quisesse se proteger de um possível ataque, enquanto esfregavam as mãos sem parar. Enfileiradas ao longo da rua, balançavam a cabeça repetidamente e mordiam as unhas, visivelmente nervosas. Ainda assim, o medo não era suficiente para fazê-las desviar os olhos do monge Tang. Para abrir caminho entre elas, o Grande Sábio fazia caretas assustadoras, enquanto o Monge Sha exibia suas feições monstruosas, tentando impor um pouco de ordem. Sem soltar as rédeas do cavalo, Bajie esticava o focinho o máximo que podia e agitava as orelhas como se fossem dois grandes leques. Enquanto avançavam, os peregrinos notaram que todas as casas da cidade estavam cuidadosamente alinhadas, e as lojas mantinham uma organização rara de se ver em outras regiões. Havia vendedores de arroz e óleo, tabernas, casas de chá, torres com sinos e tambores, armazéns cheios de mercadorias, mansões adornadas com estandartes coloridos e persianas elegantemente abaixadas.

Após atravessarem diversas ruas, encontraram uma oficial pública que, com voz firme, declarou:

— Nenhum estrangeiro pode entrar na cidade sem a devida autorização. É necessário, portanto, que registrem seus nomes no livro de visitantes. Assim, poderei comunicar à nossa soberana sobre sua chegada. Somente depois disso terão sua passagem liberada.

Ao ouvir isso, Sanzang desceu prontamente do cavalo. Logo adiante, avistou um edifício de aparência oficial, onde se lia em uma placa: “Pousada dos Homens”. Visivelmente nervoso, o mestre voltou-se para Wukong e comentou:

— Isso confirma o que aquela anciã da aldeia que acabamos de deixar nos contou. Naquele momento, não acreditei que uma pousada tão peculiar pudesse existir.

— Irmão mais velho — disse o Monge Sha, dirigindo-se a Bajie —, talvez seja hora de conferir seu reflexo no Arroio das Gestações. Quem sabe ele não aparece duplicado por lá.

— Pare de me zombar, por favor! — respondeu Bajie, contrariado. — Já não estou grávido. Será que esqueceu que bebi uma taça da água do Arroio dos Abortos? Que sentido haveria agora em olhar meu reflexo naquele lugar?

— Cuidado com o que diz, Wuneng — advertiu-o Sanzang, e, após saudar respeitosamente a oficial, seguiu-a para dentro da pousada.

Assim que se acomodaram no salão principal, a oficial ordenou que lhes servissem chá. Todas as criadas usavam tranças e vestiam túnicas abertas ao meio. Mesmo enquanto serviam, não paravam de rir. Depois que todos terminaram o chá, a oficial se levantou e perguntou:

— Haveria algum problema em nos dizer de onde vieram?

— Nós — respondeu o Peregrino — viemos das Terras do Leste e seguimos em direção ao Paraíso Ocidental, por ordem direta do Grande Imperador da dinastia Tang. Nossa missão é prestar nossos respeitos a Buda e obter algumas escrituras sagradas. Nosso mestre, irmão do próprio imperador, é conhecido como Tang Sanzang. Eu sou Sun Wukong, seu primeiro discípulo, e estes dois são meus irmãos de jornada: Zhu Wuneng e Sha Wujing. Com o cavalo, somos cinco viajantes. Trazemos conosco uma autorização oficial de viagem, por isso, ficaríamos profundamente agradecidos se pudessem nos conceder a permissão para atravessar suas terras.

A funcionária ouviu atentamente e anotou tudo com cuidado. Em seguida, prostrou-se no chão, batendo a testa contra o solo repetidas vezes, enquanto dizia:

— Perdoem-me por não ter saído para recebê-los pessoalmente. Esta humilde servidora é apenas a responsável pela Pousada dos Homens. Se soubesse que eram representantes de uma nação tão nobre, certamente teria demonstrado toda a reverência e hospitalidade que merecem.

Em seguida, levantou-se e deu ordens para que lhes servissem comida e bebida imediatamente, acrescentando:

— Certifiquem-se de que nada falte aos nossos ilustres hóspedes. 

Depois, dirigindo-se a eles novamente, completou: 

— Descansem nesta modesta pousada, enquanto vou informar nossa soberana sobre sua chegada. Fiquem tranquilos. Assim que possível, o salvo-conduto que solicitaram será emitido, e então poderão seguir sua jornada rumo ao Oeste.

Satisfeito, Sanzang sentou-se e se preparou para apreciar as refeições que lhe foram oferecidas. Por ora, não falaremos mais dele. 

A funcionária da pousada, por sua vez, após trocar de roupa, dirigiu-se à Torre da Fênix, construída bem no centro da capital, e se apresentou à Guardiã da Porta Amarela, dizendo:

— Sou a responsável pela Pousada dos Homens, e desejo solicitar uma audiência com a soberana.

A Guardiã da Porta Amarela correu imediatamente para anunciar a chegada da visitante, e a funcionária foi conduzida sem demora ao interior do palácio, onde a rainha lhe perguntou:

— O que traz até aqui a responsável pela Pousada dos Homens?

— Esta humilde servidora — respondeu a funcionária, curvando-se perante a rainha — acaba de receber Tang Sanzang, irmão do Grande Imperador da dinastia Tang das Terras do Leste, acompanhado de seus três discípulos: Sun Wukong, Zhu Wuneng e Sha Wujing. Com o cavalo, formam um grupo de cinco viajantes. Eles estão a caminho do Paraíso Ocidental em busca das escrituras sagradas de Buda. Julguei apropriado informar sobre a chegada deles e, ao mesmo tempo, consultar se deve ser concedido o salvo-conduto que solicitaram para seguir viagem.

Ao ouvir isso, a rainha encheu-se de alegria e disse às funcionárias civis e militares que a rodeavam:

— Na noite passada, sonhei que dos biombos dourados emanavam luzes vibrantes e os espelhos de jade emitiam raios brilhantes. Sem dúvida, era um presságio favorável para o dia de hoje.

— O que leva Vossa Majestade a ter tanta certeza? — perguntaram todas as funcionárias ao mesmo tempo, ajoelhando-se diante dos degraus do trono.

— Como acabamos de ouvir — respondeu a rainha —, esse homem vindo das Terras do Leste é irmão do Imperador da dinastia Tang. Desde os primórdios da criação, quando o caos foi separado, jamais um homem havia pisado nesta corte. Que outra coisa poderia ser esse viajante de sangue real, senão um presente enviado pelos Céus? Darei a ele todas as riquezas do reino, caso ele aceite se tornar nosso rei. Quanto a mim, estou decidida a ser sua rainha. Dessa união nascerá uma linhagem abundante, garantindo a sucessão do nosso trono para toda a eternidade. Como isso não seria um bom presságio, se os benefícios são tão grandiosos?

Todas as funcionárias prostraram-se com o rosto colado ao chão e começaram a bater a testa em sinal de júbilo. Apenas a responsável pela pousada teve coragem de fazer uma observação, ainda que de forma tímida:

— Reconheço que o plano de estender a descendência até além da décima milésima geração é, sem dúvida, extraordinário. No entanto, é importante considerar que os três discípulos desse homem de sangue real são extremamente rudes e possuem uma aparência aterradora.

— Em sua opinião — indagou a rainha —, como é aparência desse cavalheiro? E que traços apresentam seus discípulos?

— O irmão do Imperador Tang — respondeu a funcionária — possui feições refinadas, uma dignidade natural e um rosto tão belo que honraria até mesmo a mais nobre das nações, como a China do sul de Jambudvipa. Já seus discípulos têm uma aparência tão assustadora que mais parecem demônios do que homens.

— Neste caso — concluiu a soberana —, providenciaremos todas as provisões necessárias para os seus discípulos e concederemos a eles o salvo-conduto que foi solicitado. Dessa forma, eles poderão continuar sua jornada rumo ao Paraíso Ocidental, enquanto o irmão do Imperador Tang permanecerá aqui. Há alguma razão para não fazermos isso?

— As palavras de nossa rainha — exclamaram em coro as funcionárias — são, de fato, repletas de sabedoria, e faremos todo o possível para colocá-las em prática com dedicação. No entanto, o assunto do casamento exige a presença de uma casamenteira, pois, como bem diziam os antigos: “O contrato matrimonial está ligado às folhas vermelhas (1), e os casais são unidos pelo homem da lua, com fios de seda escarlate (2).”

— Não se preocupem com isso — respondeu a rainha. — Seguiremos o conselho de todas. A casamenteira será nossa estimada Conselheira-Mor, e a responsável pela Pousada dos Homens atuará como oficiante da cerimônia. Antes de qualquer coisa, no entanto, é necessário apresentar nossa proposta ao viajante de sangue real. Caso aceite, irei recebê-lo pessoalmente em meu carro, às portas do palácio.

Enquanto isso, Sanzang e seus discípulos estavam completamente satisfeitos, desfrutando com tranquilidade das refeições vegetarianas que lhes haviam sido oferecidas. De repente, uma criada entrou correndo e anunciou:

— A Conselheira-Mor de nossa rainha acaba de chegar.

— Por que será que essa respeitável senhora veio até aqui? — perguntou Sanzang, surpreso.

— Talvez a rainha queira nos convidar para ir ao palácio — respondeu Bajie.

— Desconfio que ela deseja lhe fazer uma proposta de casamento — retrucou o Peregrino.

— E o que será de nós, se insistirem em não nos deixar partir e acabarem nos forçando a casar com elas? — perguntou Sanzang, apavorado.

— Não há com o que se preocupar. Aceite a proposta — aconselhou o Peregrino. — Eu me encarrego do resto.

Ele mal havia terminado de falar, quando duas funcionárias entraram e inclinaram-se respeitosamente diante do mestre.


— Eu, senhoras — disse Sanzang, retribuindo o gesto —, sou apenas um humilde monge que renunciou aos laços familiares. Que virtudes poderia possuir alguém tão insignificante quanto eu, para receber tamanha reverência?

A Conselheira-Mor ficou encantada com a postura e a cortesia do mestre, e pensou consigo mesma:

— De fato, não há nação mais afortunada que a nossa. Este homem certamente é digno de ser consorte não apenas de nossa rainha, mas de outras dez mil mulheres como ela.

Após cumprimentá-lo com a deferência que a ocasião exigia, as demais funcionárias permaneceram em pé ao redor do monge Tang e, por fim, disseram:

— Desejamos ao senhor dez mil felicidades!

— Sou apenas um humilde monge que renunciou aos laços familiares — repetiu Sanzang.  De onde viria tanta felicidade quanto a que agora me desejam?

— Este, senhor — explicou a Conselheira-Mor, voltando a inclinar-se com respeito —, é o Reino das Mulheres de Liang Ocidental, onde, desde tempos imemoriais, jamais pisou um único homem. Desta vez, contudo, tivemos a sorte de receber alguém tão ilustre e nobre quanto o senhor, e recai sobre mim a honra de transmitir o desejo de nossa rainha: ela deseja unir-se em matrimônio com o senhor.

— Céus! — exclamou Sanzang, tremendo. — Este humilde monge chegou a este grandioso reino apenas na companhia de seus três discípulos, e ao que tudo indica, não poderá deixá-lo sem estar rodeado por filhos e filhas. Como terá surgido uma ideia tão inusitada à vossa rainha?

— Quando levei a notícia de sua chegada ao palácio — explicou a responsável pela pousada —, nossa soberana contou que, na noite anterior, teve um sonho em que viu luzes vivas e cintilantes emergirem dos biombos dourados, enquanto os espelhos de jade refletiam feixes brilhantes. Ela interpretou isso como um bom presságio e, ao saber que um homem de sangue real havia chegado da grande nação chinesa, decidiu oferecer-lhe todas as riquezas do reino, desde que aceite desposá-la (3). O senhor se tornará o escolhido, sentará no trono voltado ao sul, e ela será sua rainha para sempre. A presença da Conselheira-Mor aqui tem como única missão obter seu consentimento, e a mim foi concedida a honra de oficiar a cerimônia de casamento. Agora, cabe ao senhor dar a resposta.

Sem saber o que responder, Sanzang abaixou a cabeça e mergulhou em profundo silêncio.

— Quando se depara com uma oportunidade tão vantajosa, não se deve desperdiçá-la — aconselhou a Conselheira-Mor. — É compreensível que pareça um tanto incomum que o esposo passe a fazer parte da família da mulher, mas lembre-se que todas as riquezas deste país estão sendo oferecidas como dote. De toda forma, eu agradeceria se pudesse me dar uma resposta em breve, para que possa levá-la imediatamente à nossa rainha.

O mestre permaneceu em silêncio, como se não tivesse escutado uma única palavra. Quem tomou a dianteira foi Bajie, que esticou seu focinho malcheiroso e declarou:

— Retornem ao palácio e informem à vossa rainha que meu mestre é um arhat, alguém que alcançou a iluminação do Tao após inúmeros sacrifícios, e que não pretende se casar com ninguém, ainda que lhe sejam oferecidas todas as riquezas do mundo ou que a pretendente seja tão bela a ponto de ter causado a queda de impérios. Portanto, concedam-lhe o salvo-conduto e permitam que siga seu caminho rumo ao Oeste, o quanto antes. Eu, por outro lado, aceito com prazer ocupar seu lugar no leito nupcial. Enfim, o que acham da ideia?

Ao ouvir tamanho absurdo, o coração da Conselheira-Mor quase saltou no peito. Ela ficou boquiaberta, sem conseguir dizer uma única palavra.

— Por mais viril que você seja — respondeu a responsável pela pousada —, é extremamente feio, e receio que nossa rainha não o achará atraente o suficiente.


— Quanta falta de perspicácia! — exclamou Bajie, soltando uma gargalhada. — Como bem diz o provérbio: “Com salgueiros esguios se fazem tonéis; com os mais grossos, cestos. Quem no mundo pode chamar um homem de feio?” 

— Pare de falar bobagens, seu idiota — repreendeu-o o Peregrino. — A decisão cabe ao mestre, não a você. Se quiser ficar, que fique; se quiser partir, que parta. Não faça uma casamenteira tão ilustre perder seu tempo.

— Wukong, o que acha que devo fazer? — perguntou Sanzang, aflito.

— Em minha opinião, seria melhor que permanecesse aqui — respondeu o Peregrino. — Como já diziam os antigos: “Por mais distantes que estejam duas pessoas, se for vontade do Céu, elas acabarão se encontrando.” Não haverá em lugar algum uma oportunidade melhor que esta, disso não há dúvida.

— Mas, se ficarmos aqui desfrutando de riquezas e honrarias, ninguém irá até o Paraíso do Oeste buscar as escrituras sagrados — ponderou Sanzang. — O Grande Imperador da dinastia Tang será consumido pela espera!

—  Esta humilde oficial não ousa esconder a verdade — disse, então, a Conselheira-Mor. A rainha tem interesse unicamente no senhor. Após o banquete nupcial, serão fornecidas provisões e um salvo-conduto aos seus discípulos, para que prossigam até o Paraíso Ocidental em busca das escrituras sagradas.

— O que a Conselheira-Mor disse é muito sensato — declarou o Peregrino. — Da nossa parte, não haverá qualquer objeção. Todos concordam que o mestre permaneça aqui e se case com a soberana de vocês. Assinem, então, o salvo-conduto e deixem-nos seguir o quanto antes rumo ao Oeste. Assim que conseguirmos as escrituras, voltaremos a este lugar e pediremos que financiem nossa viagem de retorno. Assim, conseguiremos retornar ao Reino dos Tang sem dificuldades.

— Agradecemos profundamente ao mestre por resolver o problema de forma tão brilhante — disseram a Conselheira-Mor e a responsável pela pousada, curvando-se respeitosamente.

— Não tão rápido, Conselheira-Mor — interrompeu Bajie. — Já que ninguém apresentou nenhuma objeção, seria justo que a rainha oferecesse um banquete de despedida ou pelo menos um jantar de compromisso. No fim das contas, somos os parentes mais próximos do noivo, não concordam ?

— Mas é claro! — exclamou a Conselheira-Mor. — As iguarias serão servidas imediatamente! — E saiu da pousada, radiante de felicidade, seguida pela funcionária responsável pelo local.

Assim que ficaram a sós, o monge Tang voltou-se ao Peregrino, furioso, e começou a repreendê-lo:

— Que cabeça de macaco! Esses truques ainda vão acabar com a minha vida! Como pode sugerir que eu permaneça aqui com aquela mulher, enquanto todos vocês seguem para o Paraíso Ocidental para encontrar-se com Buda? Nem morto eu aceitaria uma coisa dessas!

— Tente manter a calma, mestre — aconselhou o Peregrino. — Entendo bem como se sente, mas, já que conseguimos chegar até aqui, e considerando como são essas pessoas, a melhor estratégia é combater um plano com outro plano.

— O que exatamente está querendo dizer? — questionou Sanzang.

— Se continuar a recusar — respondeu o Peregrino —, pode ter certeza de que elas nunca vão nos entregar o salvo-conduto. E, sem isso, não poderemos continuar a jornada. Acha mesmo que vamos ficar de braços cruzados, caso decidam transformá-lo em carne moída para fabricar sachês perfumados? Claro que não! Vamos usar nossos poderes para derrotar os inimigos e eliminar qualquer ameaça. Como já ficou claro, nossas mãos e pés são duros como aço, e não existe ser que consiga resistir às nossas armas. Com um simples sopro, somos capazes de arrasar esse reino e todos os seus habitantes. Mas tem algo importante a considerar: por mais que estejam determinadas a nos impedir, essas mulheres não são demônios nem monstros. São seres humanos, vivendo segundo os costumes do próprio país. O mestre sempre foi alguém gentil e compassivo, que nunca desejou causar mal a ninguém. Seria mesmo capaz de assistir a tudo em silêncio, enquanto elas são destruídas pelas nossas mãos? Certamente que não! Isso seria uma atrocidade; algo brutal, desumano e completamente imoral!

— Suas palavras são dignas de honra — exclamou Sanzang, visivelmente comovido. — No entanto, ainda tenho receio de que, uma vez dentro do palácio, a rainha insista para que eu consuma o casamento com ela. Não estou disposto a corromper meu yang original, nem a trair meus princípios budistas, desperdiçando minha essência vital e me afastando da comunidade dos fiéis.

— Sem dúvida — respondeu o Peregrino —, de acordo com o protocolo imperial, ela enviará sua carruagem para buscá-lo. Não cometa o erro de recusá-la. Vá com ela até o salão do trono, montado na carruagem do fênix e do dragão, e ocupe o assento voltado para o sul. Em seguida, peça a ela o selo imperial e ordene que nos chamem imediatamente. Assim que o salvo-conduto estiver selado, convide a rainha a assiná-lo e entregue-o a nós antes que ela mude de ideia. Enquanto isso, ordene que seja preparado um grande banquete - que servirá tanto de festa nupcial quanto de despedida para nossa partida.  Assim que o banquete terminar, suba novamente na carruagem e siga para os arredores da cidade, com a desculpa de que deseja se despedir de nós antes de retornar ao palácio para consumar o matrimônio. Dessa forma, os desejos da rainha e de todas as suas súditas serão atendidos. Não haverá resistência à nossa partida, e não será necessário recorrer à violência. Assim que estivermos fora da cidade, desça da carruagem do dragão, e o Monge Sha o ajudará a montar no cavalo branco. Nesse exato momento, farei uso da magia para paralisar todas as habitantes deste reino. Com isso, será possível prosseguirmos com a nossa jornada rumo ao Oeste. Após um dia e uma noite, recitarei um novo encantamento e todas elas voltarão a se mover livremente, indo para onde bem entenderem. Dessa forma, suas vidas não correrão perigo algum e os princípios do mestre permanecerão intactos. Dei a este plano o nome de “Como Escapar das Armadilhas de um Falso Casamento”. Não parece a solução mais adequada para todos?

Ao ouvir essas palavras, Sanzang pareceu despertar subitamente de um torpor profundo, como se tudo não passasse de um pesadelo. Imediatamente, esqueceu suas preocupações e agradeceu ao Peregrino, dizendo:

— Estarei eternamente em dívida com você. Poucos seres possuem tamanha sabedoria e lucidez como a que demonstrou agora.

Animados com o plano, os quatro companheiros começaram a rir como se fossem habitantes comuns daquele reino governado por mulheres. Por ora, não falaremos mais sobre eles. Voltaremos nossa atenção, no entanto, para a Conselheira-Mor e a funcionária responsável pela Pousada dos Homens, que retornaram às pressas ao palácio. Sem esperar para serem anunciadas, dirigiram-se diretamente aos degraus de jade branco e disseram, entusiasmadas:

— O sonho de Vossa Majestade não poderia ter sido mais preciso. Em breve, a felicidade conjugal estará ao seu alcance.

Ao ouvir isso, a rainha ordenou que abrissem a cortina de pérolas. Levantando-se do trono do dragão, seus lábios, vermelhos como cerejas maduras, se moveram com suavidade. Com os olhos brilhantes como prata e um sorriso encantador, perguntou com voz sedutora:

— O que disse o meu amado, ao receber meus propósitos de casamento?

— Assim que chegamos à pousada e o saudamos com a devida reverência — explicou a Conselheira-Mor —, comunicamos os desejos de Vossa Majestade com as mesmas palavras que nos foram confiadas. A princípio, ele ficou surpreso e um pouco hesitante, mas, felizmente, o mais velho de seus discípulos é alguém de decisões rápidas e dissipou todas as suas dúvidas. Tanto ele quanto os outros dois discípulos concordam que ele se torne vosso esposo e ocupe o trono voltado para o sul. A única condição é que recebam o salvo-conduto o quanto antes, para que possam continuar a jornada rumo ao Oeste. Assim que alcançarem seu objetivo de obter as escrituras sagrados, prometem retornar para prestar homenagem a Vossa Majestade, com a esperança de que financie sua viagem de volta ao Grande Reino dos Tang.

— Meu prometido disse algo mais? — insistiu a rainha, com um sorriso nos lábios.

— Ele não pronunciou palavra alguma — respondeu a Conselheira-Mor. — Ainda assim, posso assegurar que, em nenhum momento, demonstrou relutância em desposá-la. Seu segundo discípulo, no entanto, expressou o desejo de participar de um banquete antes que o consentimento definitivo seja concedido.

Ao ouvir essas palavras, a rainha ordenou às encarregadas da diversão imperial que preparassem um banquete esplêndido. Também pediu que todo o seu séquito se organizasse para acompanhá-la até os arredores da cidade, onde receberia o futuro esposo com todas as honras.

Sem perder tempo, as funcionárias do palácio  começaram a trabalhar com afinco, varrendo os pisos, limpando cada canto do palácio e organizando um banquete como jamais se vira naquelas terras. Embora o Reino de Liang Ocidental fosse inteiramente habitado por mulheres, o luxo de suas carruagens não ficava atrás das da própria China. Seis dragões de cores vibrantes sustentavam o carro principal, enquanto a carruagem repousava sobre duas fênices, símbolos de boa sorte. Aromas exóticos pairavam no ar, envolvendo tudo em uma atmosfera que lembrava as nuvens dos imortais. As funcionárias que acompanhavam o cortejo usavam medalhões de jade e ouro em forma de peixe, em harmonia com as diademas e coroas que adornavam seus cabelos. Dez mil leques criavam sombra sobre o carro imperial, contrastando com o delicado tom nacarado que cercava a carruagem, da qual sobressaía o brilho das presilhas em forma de fênix, cintilando como luzes na neblina. O avanço do cortejo era marcado pelo som de flautas e uma infinidade de instrumentos de corda. A alegria que dominava aquela comitiva parecia alcançar os céus; jamais se vira tamanha felicidade subir tão rapidamente pela torre das observações celestes, aquela que o Filho do Céu usava para identificar presságios favoráveis. No alto da residência imperial, tremulavam ao vento dosséis de três níveis, acompanhados por estandartes de cinco cores que davam vida às escadarias de jade. Nunca antes havia sido celebrado um brinde nupcial naquele reino, mas naquele dia de bênçãos, a rainha finalmente uniria seu destino ao de um homem de virtudes elevadas.

O deslumbrante cortejo, repleto de esplendor e música, logo alcançou a Pousada dos Homens. Alguém correu para avisar Sanzang e seus discípulos, anunciando:

— O cortejo imperial acaba de chegar!

Ao ouvir a notícia, Sanzang ajeitou suas vestes o melhor que pôde e, acompanhado de seus discípulos, saiu para receber sua prometida. A rainha ergueu a cortina de pérolas e, descendo da carruagem, perguntou:

— Quem é o irmão do Imperador da dinastia Tang?

— É aquele que está vestido como monge — respondeu a Conselheira-Mor, apontando com o dedo. — Aquele que está atrás da mesa de incenso, junto à entrada.

Erguendo as sobrancelhas, finas como asas de uma mariposa noturna, e abrindo por completo seus olhos de fênix, a rainha lançou em Sanzang um olhar atento e penetrante. Logo percebeu que estava diante de uma pessoa extraordinária. Todos os seus traços eram de uma beleza refinada, e cada movimento exalava dignidade. Seus dentes reluziam como prata, em contraste com o vermelho vivo de seus lábios. A cabeça era bem proporcionada, a testa ampla e limpa, os olhos vivos e envolventes. Os cílios arqueados, o queixo alongado e bem delineado, junto das orelhas moldadas com perfeição, revelavam uma personalidade ousada e corajosa. Sua postura não poderia ser mais elegante. Era evidente que se tratava de um homem excepcional — não existia um pretendente mais gentil e encantador para se casar com a bela rainha do Reino do Liang Ocidental.

A rainha se sentiu imediatamente fascinada por ele. A paixão tomou conta de seu coração e, abrindo suavemente seus lábios cor-de-cereja, perguntou:

— Nobre irmão do Imperador da dinastia Tang, aceitaria dar uma volta comigo na carruagem do fênix?

Ao ouvir isso, Sanzang foi tomado por uma profunda confusão. Corou até as orelhas e manteve o olhar fixo ao chão, sem ousar levantar o rosto.

Zhu Bajie, por outro lado, esticou ao máximo o focinho e cravou os olhos lascivos na rainha, cuja beleza era estonteante. Suas sobrancelhas lembravam as penas de um martim-pescador, e a maciez de sua pele fazia pensar em lã pura. Seu rosto era como os delicados pétalos da flor do pessegueiro, e seu penteado refinado evocava a silhueta dourada de uma fênix. Apesar de seus olhos transmitirem certa frieza, havia neles uma aura envolvente de sedução. Suas mãos, longas e delicadas, pareciam brotos de bambu tenro. Um brilho multicolorido irradiava da faixa vermelha que lhe cingia a cintura, competindo com o esplendor do jade e das pérolas de seus adornos. Sua beleza superava a de Zhao Jun (4) e deixava para trás até mesmo a de Xi Shi (5)Ao mover-se, sua cintura, leve como um ramo de salgueiro, fazia soar os braceletes dourados que adornavam seus pés delicados, leves como flores de lótus. Nem a deusa da lua, nem as donzelas celestiais poderiam se comparar a ela. Sua elegância ultrapassava a de todas as mulheres. Somente a Rainha Mãe do Ocidente, ao emergir do Lago de Jade, poderia rivalizar com tanto esplendor.

Bajie não conseguia desviar os olhos dela. Enquanto o olhar a percorria centímetro por centímetro, o coração batia com força no peito e a saliva escorria-lhe pelos cantos da boca, como se estivesse diante de um prato raro e irresistível. Chegou a um ponto em que as forças o abandonaram e a visão se turvou. Sentia-se derreter, como um leão de neve exposto ao fogo. A rainha, no entanto, não lhe deu a menor atenção. Ela aproximou-se de Sanzang, tomou-lhe a mão e disse, com a voz mais sedutora que já se ouviu:

— Suba, meu bem-amado, à carruagem do dragão. Vamos sem demora à Sala do Tesouro dos Sinos Sagrados, onde poderemos enfim nos tornar marido e mulher

O mestre tremia tanto que mal conseguia manter-se de pé, como se estivesse embriagado ou sob a influência de espíritos malígnos. O Peregrino precisou se aproximar e sussurrar-lhe ao ouvido:

— Não é hora para tanto medo. Quanto mais cedo subir à carruagem com ela, mais rápido conseguiremos o salvo-conduto e poderemos retomar nossa jornada rumo ao Oeste.

Sanzang era incapaz de pronunciar qualquer palavra. Agarrou-se às vestes do Peregrino e puxou-as algumas vezes, enquanto lágrimas escorriam em abundância por seus olhos.

— Não se entregue ao desespero — aconselhou o Peregrino. — Observe todas as riquezas ao redor. Se não as desfrutar agora, quando o fará?

Sanzang não teve alternativa senão seguir adiante com a encenação. Enxugou as lágrimas com firmeza e, esforçando-se ao máximo para parecer alegre e contente, dirigiu-se até a rainha. De mãos dadas, subiram na carruagem do dragão, e a comitiva logo seguiu em marcha.

Quão diferentes eram os sentimentos que moviam os dois! Enquanto a rainha aguardava, ansiosa, o momento de consumar o casamento, o mestre, tremendo da cabeça aos pés, só pensava em lançar-se aos pés de Buda. Ela, consumida pela paixão, desejava entrar na câmara nupcial; ele apenas ansiava por alcançar a Montanha do Espírito e prestar reverência ao Mais-Honrado-do-Mundo. A rainha deixava transparecer seus verdadeiros sentimentos, desejando envelhecer ao lado do esposo com a mesma harmonia que agora os unia. Que contraste havia entre sua sinceridade e a alegria forçada do monge, que desde antes de nascer já havia decidido renunciar aos sentimentos para fortalecer o espírito! As atitudes eram tão opostas que, enquanto ela, orgulhosa por ter um homem ao lado, estava disposta a deitar-se com ele sob a luz do dia, ele, apavorado com a proximidade da mulher, pensava em fugir e correr até o Templo do Trovão. Ao vê-los juntos no carruagem do dragão, quem poderia ousar afirmar que o monge Tang possuía sentimentos diferentes dos que demonstrava?

Assim que os funcionários, tanto civis quanto militares, perceberam que a rainha e o monge Tang haviam subido na carruagem e se sentado lado a lado, iniciaram o retorno ao palácio. O Grande Sábio e o Monge Sha vinham por último na procissão: um carregava a bagagem, enquanto o outro conduzia as rédeas do cavalo. Zhu Bajie, por sua vez, correu à frente da comitiva feito um alucinado e foi o primeiro a alcançar a Torre das Cinco Fênices.

— Alto, alto! — gritou Bajie com toda a força que tinha. — A cerimônia não pode continuar enquanto nós, os parentes, não tivermos comido e bebido no banquete nupcial!

Os soldados que acompanhavam a comitiva ficaram tão apavorados ao vê-lo correr daquela maneira que correram imediatamente para informar a rainha:

— Perdoe-nos a interrupção, majestade — disseram, curvando-se. — Mas o monge de focinho avantajado e orelhas enormes está exigindo, aos gritos, diante da Torre das Cinco Fênices, que o banquete nupcial seja servido imediatamente.

Ao ouvir isso, a rainha recostou seu ombro, perfumado como flor de cerejeira ao anoitecer, sobre o mestre, aproximando do rosto dele suas bochechas coradas como pêssegos. Então, ela abriu lentamente os lábios e perguntou com uma doçura extraordinária:

— Qual de seus discípulos, meu querido, tem o focinho saliente e orelhas tão grandes quanto leques?

— O segundo — respondeu Sanzang. — Possui um apetite tão descomunal que jamais se satisfaz com o que come. Para ele, nada é mais importante na vida do que a comida. Acredito que, antes de prosseguirmos, seria bom oferecer algo para que ele coma.

— As cozinheiras já prepararam tudo o que é necessário para o banquete? — indagou a rainha, voltando-se para uma de suas oficiais.

— Sim, está tudo pronto — respondeu a oficial. — Tanto os pratos com carne quanto os vegetarianos já estão servidos no Salão Oriental (6).

— Por que foram preparadas duas categorias de refeições? — voltou a perguntar a rainha.

— Como o irmão do Imperador dos Tang e seus discípulos estão habituados a uma dieta vegetariana — explicou a oficial —, achamos que não seria apropriado forçá-los a mudar seus costumes. Por isso, foram preparados dois tipos distintos de pratos.

A rainha então se aninhou novamente ao lado do mestre e disse, sorrindo:

— Deseja experimentar carne ou prefere manter sua dieta vegetariana?

— Nunca comi outro tipo de alimento em toda a vida — respondeu Sanzang. — De qualquer forma, meus discípulos não abriram mão do vinho. Especialmente o segundo, que certamente adoraria tomar algumas taças de um bom vinho, desde que esteja de acordo com nossas tradições.

Ele mal havia terminado de falar, quando a Conselheira-Mor se aproximou e anunciou:

— Por favor, dirijam-se ao Salão Oriental para participar do banquete. Hoje é um dia auspicioso, e sua Majestade poderá se casar com o nobre irmão real. Amanhã, o Céu revelará o Caminho Amarelo, e convidaremos o venerável irmão real a subir ao salão do tesouro e posicionar-se no trono voltado para o sul. Ele será então o responsável por escolher o nome da nova era que se inicia.

Visivelmente satisfeita, a rainha segurou a mão do mestre e, descendo da carruagem-dragão, ambos adentraram o palácio pela entrada principal. Assim que pisaram nas lajes de jade, a alegre melodia dos instrumentos musicais chegou até eles, vindo do alto das torres, como uma brisa suave. As portas de fênix se abriram por completo, revelando uma luminosidade que superava a do próprio sol, além de uma fila interminável de estandartes ricamente bordados. O Salão do Unicórnio estava envolto em uma espessa neblina de incenso e ervas aromáticas. Os corredores haviam sido adornados de tal forma que lembravam as caudas abertas de pavões. As torres pareciam ainda mais imponentes do que de costume, e os salões de jade, com seus incomparáveis cavalos dourados, exibiam um luxo deslumbrante. Assim que chegaram ao Salão Oriental, os primeiros acordes de uma música extremamente suave começaram a soar. Duas longas fileiras de donzelas belíssimas surgiram, alinhadas. No centro do salão, estavam dispostos, com esmero, os dois tipos de refeição preparados especialmente para a ocasião: à esquerda, os pratos vegetarianos; à direita, os que continham carne. No topo do salão, duas fileiras de mesas haviam sido elegantemente dispostas.

Com um gesto encantador, a rainha ergueu discretamente as mangas, revelando dedos longos e incrivelmente delicados. Com elegância, ela pegou uma taça de jade e fez um brinde à felicidade de todos os presentes.

O Peregrino então adiantou-se e declarou:

— Todos nós seguimos rigorosamente uma dieta vegetariana. Portanto, nosso mestre deve ocupar o lugar de honra no lado esquerdo do salão. Nós três sentaremos nas mesas individuais ao lado dele.

— Perfeitamente — respondeu a Conselheira-Mor, satisfeita. — É justo que o mestre e seus discípulos se sentem juntos, pois, no fundo, compartilham um vínculo semelhante ao de pai e filhos.

As funcionárias imperiais foram se acomodando, uma a uma, seguindo rigorosamente a ordem de suas posições. Antes de se sentar, a rainha ergueu um brinde a todos os presentes. O Peregrino lançou um olhar discreto a Sanzang, que entendeu de imediato que deveria retribuir a gentileza da monarca. O monge Tang então levantou-se da mesa e, segurando uma taça de jade nas mãos, a ergueu em homenagem à rainha. As funcionárias, tanto do setor militar quanto do civil, inclinaram-se até o chão, com o rosto voltado ao solo, em sinal de gratidão pela honra recebida. 

Concluído esse gesto cerimonial, todas voltaram aos seus lugares. Nesse exato instante, a música cessou e os convidados começaram a comer e beber. Bajie, por sua vez, só se preocupava em encher o estômago, sem o menor interesse pela qualidade ou pelo tempero dos pratos. Mal percebia o que havia diante de si — se era milho, pãezinhos no vapor, bolinhos, cogumelos, brotos de bambu, orelhas-de-pau, acelga chinesa, algas, cenouras, nabos coloridos, batatas-doces ou qualquer outra coisa. Tudo era devorado com uma velocidade inacreditável. Em questão de segundos, esvaziou completamente sua mesa e ainda engoliu sete ou oito taças de vinho.

— Mais comida, depressa! — disse ele, berrando com sua voz rouca de porco. — Tragam algo para comer imediatamente! Como vamos cuidar dos nossos próprios assuntos se estão nos matando de fome aqui?

— Por que não tenta apreciar um pouco esses pratos tão refinados? — repreendeu-o o Monge Sha. — E, afinal, que assuntos são esses que exigem tanta pressa?

— Como já diziam os antigos — respondeu Bajie, soltando uma gargalhada —, "que o fabricante de arcos cuide dos arcos, e o que vive das flechas, que cuide das flechas". O que quero dizer é que quem deseja casar, que trate logo disso; e quem está decidido a buscar as escrituras, que não perca mais tempo e parta de imediato. Não é certo atrasarmos nossa missão por causa de um maldito banquete. Precisamos obter nosso salvo-conduto o quanto antes. Como bem diz o provérbio: “se o general não dá ordens, cada um vai para o lado que quiser”.

Ao ouvir isso, a rainha ordenou que trouxessem taças maiores. Sem demora, as criadas encheram as mesas com copos em forma de papagaio, tigelas com aspecto de corvo-marinho, chifres de ouro, cálices de prata, copos de vidro, recipientes de cristal, tigelas de Penglai e garrafas de âmbar. Todos foram preenchidos com os vinhos mais aromáticos, e os discípulos beberam à vontade.

Sanzang, então, levantou-se da mesa, inclinou-se diante da rainha com as mãos unidas e declarou:

— Nunca seremos capazes de agradecer por um banquete tão esplêndido quanto o que nos foi oferecido hoje. Já bebemos o suficiente. Seria adequado, portanto, que o salvo-conduto fosse assinado e entregue aos meus discípulos. Assim, poderão aproveitar as horas que restam do dia e retomar a jornada o quanto antes.

A rainha aprovou a proposta de imediato. Após declarar encerrado o banquete, tomou o mestre pela mão e o conduziu ao Salão dos Carrilhões de Ouro. 

Ela queria que ele ocupasse o trono naquele exato momento, mas Sanzang recusou, dizendo:

— Não, por favor! A Conselheira-Mor afirmou que o dia mais auspicioso para isso será amanhã. Até o nascer do sol, não me atrevo a sentar no trono nem a considerar-me um homem escolhido. Devemos aproveitar o dia de hoje para selar os salvo-condutos e permitir que meus discípulos partam o quanto antes.

A rainha, mais uma vez, concordou e acomodou-se no divã do dragão. À sua esquerda, posicionaram uma esplêndida cadeira com encosto dourado, para que o monge Tang pudesse sentar-se, caso desejasse. Foi então solicitado que os discípulos entregassem seus documentos de viagem. O Monge Sha abriu a bolsa, retirou os papéis e os passou ao Grande Sábio, que, por sua vez, os entregou à rainha com as duas mãos.

Ao desdobrá-los, ela percebeu que havia neles mais de nove selos do Grande Imperador da Dinastia Tang, além dos selos do Reino do Elefante Sagrado (7), do Reino do Galo Negro e do Reino da Carreta Lenta. Após examiná-los cuidadosamente, a rainha perguntou, com um sorriso sedutor:

— Então o nome de família do meu amado é Chen?

— Esse era o nome da família à qual pertenci antes de abraçar a vida religiosa — respondeu Sanzang. — Na ordem monástica, chamo-me Sanzang, e desde que o Imperador da Dinastia Tang, em sua imensa misericórdia, aceitou-me como irmão, passei a ostentar também o seu sobrenome.

— E por que os nomes dos seus discípulos não aparecem nos documentos de viagem? — questionou novamente a rainha.

— Porque não pertencem à corte imperial dos Tang — explicou Sanzang.

— Nesse caso, o que os levou a acompanhá-lo nessa jornada? — indagou, surpresa, a rainha.

— O mais antigo entre meus discípulos — esclareceu Sanzang — vem do Reino de Ao-Lai, situado no Continente Oriental de Purvavideha; o segundo é natural de uma pequena aldeia no Tibete, no Continente Ocidental de Aparagodaniya; enquanto o terceiro tinha sua morada no Rio da Areia Corrente. Os três cometeram graves ofensas contra os Céus, mas a compassiva Bodhisattva Guanyin teve piedade de seus sofrimentos e lhes concedeu a liberdade. Em sinal de gratidão, eles escolheram trilhar o caminho da virtude, comprometendo-se a praticar o jejum e a realizar boas ações. Para que o peso de suas faltas fosse superado pelo de seus méritos, decidiram acompanhar-me em minha longa jornada rumo ao Paraíso Ocidental, em busca das escrituras sagradas. Desde então, têm-me servido com absoluta dedicação, protegendo-me de incontáveis perigos e cumprindo todas as minhas orientações. O fasto de terem se unido a mim já em meio à jornada é o motivo pelo qual seus nomes não constam nos documentos de viagem.

— Importa se eu os incluir? — perguntou a rainha, mais uma vez.

— Faça como achar melhor — respondeu Sanzang.

A rainha pediu que lhe trouxessem tinta e pincel. Ela mesma dissolveu a tinta e escreveu, de próprio punho, os nomes de Sun Wukong, Zhu Wuneng e Sha Wujing ao final do documento. Em seguida, retirou o selo imperial e o estampou em uma das extremidades, antes de assinar com o nome que lhe foi dado ao nascer. O salvo-conduto foi então devolvido ao Grande Sábio, que o entregou ao Monge Sha para que o guardasse na bolsa.

Não satisfeita, a rainha se levantou do divã do dragão, pegou uma bandeja repleta de moedas de ouro e prata e a ofereceu ao Peregrino, dizendo:

— Aceitem este pequeno presente. Será útil para que cheguem mais rápido ao Paraíso Ocidental. Quando retornarem com as escrituras, uma recompensa ainda maior os aguardará.

— Aqueles que renunciaram à vida familiar não podem aceitar presentes em ouro ou prata — respondeu o Peregrino. — Não é necessário preocupar-se conosco. Encontraremos auxílio ao longo do caminho.

Percebendo que insistir seria inútil, a rainha separou dez peças de seda bordada e as entregou ao Peregrino, dizendo:

— A pressa os chama, e não temos tempo para tirar medidas e mandar confeccionar túnicas para cada um. Levem estas peças de tecido e façam com elas as vestes que julgarem mais adequadas para se protegerem do frio.

— Aqueles que deixaram para trás a vida familiar — repetiu o Peregrino — não devem vestir seda bordada. Basta-nos um manto simples feito do tecido mais rústico.

Entendendo que não havia mais o que oferecer, a rainha ordenou:

— Levem ao menos três medidas de arroz imperial. Podem usá-lo como refeição durante a viagem.

Ao ouvir a palavra "refeição", Bajie imediatamente aceitou a oferta e guardou o arroz na bolsa com pressa.

— Parece que nossa bagagem está ficando cada vez mais pesada — comentou o Peregrino. — Está disposto a carregá-la?

— Você me conhece — respondeu Bajie. — O bom do arroz é que se come todo dia. Além disso, uma única refeição bastará para acabar com essas três medidas. 

Então, juntando as mãos, eles agradeceram à rainha pela generosidade.

— Se não for incômodo — disse Sanzang —, gostaria de acompanhá-los até os arredores da cidade. Preciso dar algumas instruções antes que continuem a viagem. Assim que tiver feito isso, voltarei ao vosso lado e desfrutarei, para sempre, das riquezas e da glória que foram colocadas a meus pés. Somente aquele que se libertou de todas as preocupações é capaz de saborear por completo as alegrias do leito nupcial.

A rainha, naturalmente, não fazia ideia de que tudo se tratava de um truque e ordenou imediatamente que trouxessem a carruagem. Apoiando-se no ombro de Sanzang, subiu com ele na carruagem-fênix e seguiram juntos rumo ao oeste da capital. Todas as moradoras haviam tomado as ruas, trazendo recipientes com água limpa e incensários artísticos. Antes de ocuparem as calçadas, ansiosas para ver a passagem da rainha e de seu consorte, todas se arrumaram com esmero, empolvaram os rostos e exibiram penteados leves como nuvens.

Apesar da multidão, o cortejo imperial logo chegou aos limites da cidade, parando diante do portão que se abria para o poente. Depois de verificar que tudo estava em ordem, o Peregrino, Bajie e o Monge Sha voltaram-se para a carruagem real e disseram em uníssono:

— Não há necessidade de seguir além.  Nos despediremos aqui.

O mestre desceu lentamente da carruagem do dragão e, elevando as mãos na direção onde estava a rainha, suplicou:

— Retorne, majestade, ao palácio. Permita que este humilde monge prossiga sua jornada em busca das escrituras sagradas.

Ao ouvir tais palavras, a rainha empalideceu. Agarrou-se desesperadamente ao monge Tang e gritou, aflita:

— Estou disposta, meu amado, a colocar aos seus pés todas as riquezas do reino, se aceitar ser meu esposo. Estava decidido que amanhã se sentaria no trono, e eu me tornaria sua rainha. O que fez mudar de ideia tão repentinamente, depois de até termos celebrado o banquete nupcial?

Diante de tantas lamentações, Bajie perdeu momentaneamente o juízo. Começou a esticar e encolher o focinho, sacudindo as orelhas como se tivesse perdido o controle sobre o próprio corpo. Nesse estado, avançou em direção à carruagem e gritou:

— Como pode alguém imaginar que monges como nós seriam capazes de se casar com um esqueleto empolvorado como esse? O mestre precisa seguir com a viagem! Não conseguem compreender isso?

Ao se deparar com um rosto tão grotesco e um comportamento tão estranho, a rainha foi tomada pelo pânico e correu de volta para dentro da carruagem. O Monge Sha arrancou Sanzang das mãos de um grupo de oficiais e o ajudou, sem perder tempo, a montar no cavalo branco.

Nesse instante, uma jovem destacou-se da multidão e começou a gritar:

— Para onde vai, irmão do Imperador dos Tang? Fique aqui e façamos amor, você e eu!

— Maldita serpente! — exclamou o Monge Sha, puxando seu precioso cajado e desferindo um golpe brutal sobre a cabeça da infeliz. Mas, no mesmo instante, a jovem se transformou em um tornado, que envolveu o monge Tang e o fez desaparecer diante dos olhos de todos, sem deixar nenhum rastro. Assim, após ter escapado das redes do belo sexo, o mestre acabou caindo diretamente nas garras do demônio do amor.

Não sabemos, por enquanto, se a jovem era um ser humano ou um espírito demoníaco, ou se o mestre ainda permanece com vida. Quem desejar descobrir, terá de prestar atenção às revelações feitas no próximo capítulo.


CAPITULO LV EM BREVE ...

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Notas do Capítulo LIV
  1. "Folhas vermelhas" faz referência a uma antiga história romântica ocorrida durante o reinado do imperador Xizong (874–889), da dinastia Tang. Diz-se que uma de suas concubinas, de sobrenome Han, escreveu um poema em uma folha vermelha e a lançou no fosso do palácio. Um literato chamado Yu Yu encontrou a folha e, tocado pelos versos, escreveu outro poema em uma folha idêntica e a devolveu ao mesmo lugar. Por um capricho do destino, a jovem encontrou a resposta. Anos depois, quando o imperador concedeu liberdade a três mil de suas concubinas, ela se casou com o literato Yu;
  2. Segundo a crença popular chinesa, os casamentos são determinados pelos Céus. O responsável por unir os casais seria Yue Lao, o "Ancião da Lua", que ata os pés dos futuros cônjuges com fitas vermelhas invisíveis. Essa visão fatalista do amor gerou inúmeras histórias em que o Destino sempre triunfa — mesmo diante de obstáculos;
  3. O termo usado no original chinês refere-se aos homens que, ao se casarem, passavam a viver com a família da esposa, adotando seu sobrenome e considerando os filhos como parte do clã materno. Por isso, eram vistos como pouco confiáveis e desprovidos de lealdade filial — uma acusação muitas vezes feita também aos monges. Isso ajuda a entender por que, neste capítulo, não causa estranhamento que Sanzang se torne esposo da rainha;
  4. Zhao Jun era outro nome de Wang Qiang, uma célebre beldade da dinastia Han. Após recusar-se a subornar o pintor da corte — que a retratou com extrema fidelidade — foi forçada a se casar com um rei bárbaro;
  5. Xi Shi, por sua vez, foi uma famosa beleza do Período da Primavera e Outono. Depois que seu povo foi derrotado pelo Senhor de Wu, o rei de Yue a ofereceu como tributo. Seus encantos eram tamanhos que o soberano inimigo se entregou completamente a ela — e, por consequência, levou seu próprio reino à ruína;
  6. O Salão Oriental foi erguido durante a dinastia Han pelo primeiro-ministro Gongsun Hong para servir de residência aos conselheiros imperiais. Mais tarde, na dinastia Ming, passou a abrigar uma das seis secretarias subordinadas à Academia Hanlin;
  7. “She Xiang Guo” pode ser traduzido como “Reino da Imagem Sagrada” ou “Reino do Elefante Sagrado”. No primeiro caso, a expressão faria alusão ao “Reino de Buda” — um reino divino na Terra. Contudo, considerando as imperfeições e limitações atribuídas a esse local, optou-se aqui por traduzir como “Reino do Elefante Sagrado”.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:

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Ruby