۞ ADM Sleipnir
CAPÍTULO XXXVII:
O REI FANTASMA VISITA O MONGE TANG DURANTE A NOITE. O PEREGRINO GUIA O JOVEM PRÍNCIPE POR MEIO DE EXTRAORDINÁRIAS METAMORFOSES.
Sob a luz de sua lamparina, Sanzang meditou por um longo tempo sobre a "Letania Aquática do Rei Liang (1)". Em seguida, dedicou-se à leitura do "Autêntico Sutra do Pavão-real". Quando a terceira vigília chegou, ele cuidadosamente enrolou as escrituras e as guardou em sua bolsa. Quando estava prestes a se deitar, ouviu um ruído repentino, acompanhado pelo assobio de um vento demoníaco.
Temendo que a chama da lamparina se apagasse, ele rapidamente protegeu-a com a manga de sua túnica. Para o seu espanto, a luz continuava oscilando, ora se apagando, ora acendendo novamente. Exausto, Sanzang apoiou a cabeça na mesa de leitura e tirou um breve cochilo. Ainda que seus olhos estivessem fechados, seu espírito permanecia em alerta, permitindo-lhe ouvir o contínuo suspiro do vento do lado de fora do salão.
Aquele vento era, de fato, peculiar. Ele assobiava de forma incomum e produzia um som estranho ao arrastar folhas caídas e dispersar, uma a uma, as nuvens que cobriam o céu. As estrelas e os planetas desapareceram de vista, pois toda a terra parecia envolta em torrentes de poeira e areia, que cobriam tudo à sua passagem. Em certos momentos, o vento parecia absurdamente feroz; em outros, curiosamente brando.Os bambus e os pinheiros balançavam com a mesma graça de sempre, enquanto os lagos eram agitados por ondas gigantescas e os rios eram arrancados impiedosamente de seus leitos. Ele soprava com tanta força que as aves da montanha não conseguiam resistir, gritando até suas gargantas se rasgarem. No mar, os peixes perdiam completamente o senso de tranquilidade, sendo lançados para todos os lados. Em todas as construções, tanto nos salões orientais quanto nos ocidentais, janelas e portas foram arrancadas. Os deuses e espíritos não sabiam como reagir. No grande salão de Buda, o vaso de flores foi arremessado ao chão, o recipiente de óleo balançava perigosamente, e a lâmpada da sabedoria quase se apagou. A urna de incenso teve um destino pior: tombou, espalhando suas cinzas em todas as direções. Os candelabros, milagrosamente, permaneciam de pé, mas já não serviam para muito, sustentando apenas pequenas colunas de fumaça. As bandeiras e estandartes sagrados foram dilacerados sem piedade, enquanto, nas torres altas, tambores e sinos balançavam, à beira de despencarem.
Quando o vendaval finalmente se dissipou, Sanzang, ainda em seu cochilo, pensou ter ouvido uma voz muito fraca chamando-o do lado de fora do salão:
— Mestre!
Sanzang levantou-se rapidamente e, assustado, perguntou:
— Quem está aí? Seria um espírito, um fantasma, um demônio ou um monstro, vindo aqui apenas para zombar de mim? Se for esse o caso, saibam que não sou uma pessoa avarenta ou sem consciência. Sou apenas um monge simples e de conduta reta. Estou aqui porque, tempos atrás, o Imperador dos Tang, Senhor das Terras do Leste, ordenou que eu fosse ao Paraíso Ocidental buscar as escrituras sagradas, e não por vontade própria. Estou acompanhado de três discípulos, homens valentes, capazes de domar tigres e subjugar dragões. Suas habilidades marciais são tão grandes que podem repelir qualquer demônio e derrotar qualquer monstro que ousar cruzar seus caminhos. Se ousarem enfrentá-los, tenham certeza de que não levará muito tempo para que sejam reduzidos a pó e lama. Portanto, considerem a generosidade da minha atitude ao adverti-los. Eu mesmo sou conhecedor de várias técnicas mentais para combater o mal. Peço que deixem este lugar enquanto ainda há tempo, e não cometam o erro de se aproximar novamente deste magnífico salão Zen onde estamos descansando.
Enquanto Sanzang falava, a figura do lado de fora começou a empurrar a porta e, ao mesmo tempo, respondeu:
— Está muito enganado, mestre. Não sou nenhum monstro ou demônio.
— Se é verdade o que diz — replicou Sanzang —, por que veio até aqui tão tarde da noite?
— Se não acredita em mim — respondeu a voz —, abra os olhos e veja você mesmo.
O mestre, intrigado, fez o que lhe foi sugerido e, ao abrir os olhos, viu que o visitante usava um chapéu que se erguia imponente, enquanto sua roupa estava ajustada com um cinto de jade verde. Ele vestia uma túnica vermelha com bordados de fênix dançantes e dragões alados. Seus pés estavam calçados com botas adornadas com desenhos de nuvens, e em suas mãos segurava um bastão de jade branco, ornado com gravuras de estrelas e planetas. Seu rosto lembrava o do rei imortal do Monte Tai, e toda a sua figura evocava a memória do culto rei Wen-Chang (2).
Ao perceber a nobreza de sua presença, Sanzang perdeu o fôlego e, pálido, ajoelhou-se apressadamente diante dele. Com a voz hesitante, perguntou:
— A qual dinastia pertence, majestade? Por favor, tome assento.
Estendendo as mãos em direção ao visitante, Sanzang tentou tocá-lo, mas tudo o que conseguiu agarrar foi o vento. Desconcertado, voltou ao salão e deixou-se cair em uma cadeira. O homem, de forma incompreensível, já estava ao seu lado.
Reunindo forças, o mestre voltou a perguntar:
— Majestade, em que região você é rei? Qual o nome do seu reino? Por acaso fugiu de seus domínios para salvar sua vida por causa da traição de seus ministros ou de alguma discórdia civil? Suplico que responda a essas perguntas.
O homem abaixou a cabeça, e lágrimas escorreram por seu rosto. Sua tristeza era evidente, acentuada pelas sobrancelhas que se arqueavam profundamente.
— Mestre — disse ele finalmente —, minha terra natal fica a cerca de quarenta quilômetros a oeste daqui. Lá se ergue a cidade que é o centro e o coração do meu reino.
— Como se chama esse reino? — indagou Sanzang.
— Quando foi fundado — respondeu o homem —, recebeu o nome de Reino do Galo Negro.
— Posso saber por que está tão aflito e o que o trouxe até aqui? — questionou Sanzang, cada vez mais intrigado.
— Há cerca de cinco anos — explicou o homem —, uma seca terrível e persistente atingiu nosso reino. A vegetação secou, e as pessoas começaram a morrer de fome. Foi uma tragédia indescritível!
— Majestade — disse Sanzang, esboçando um leve sorriso e balançando a cabeça —, os antigos sempre disseram: “O Céu favorece os reinos onde a justiça prevalece.” Pelas suas palavras, presumo que não foi suficientemente compassivo com seus súditos durante esse período de provação. Por que tratou suas terras com tanta severidade enquanto a seca devastava tudo e a fome assolava seu povo? Numa situação assim, deveria ter aberto os portões de seus celeiros para aliviar o sofrimento de sua gente. Também caberia arrepender-se de quaisquer erros cometidos, comprometendo-se a não repeti-los. Libertando os injustamente acusados e condenados, teria mostrado sua retidão, e o Céu teria se compadecido. A chuva teria retornado a seu tempo, e seus campos desolados floresceriam novamente.
— Logo no início da seca — respondeu o homem —, todos os celeiros do meu reino já estavam completamente vazios, sem qualquer reserva de comida. Meus colaboradores, tanto civis quanto militares, deixaram de receber seus salários, e em minha mesa nunca mais foi servida carne. Esforcei-me ao máximo para seguir os passos do rei Yü, que conseguiu conter a inundação que quase destruiu seu reino. Assumi os sofrimentos do meu povo como meus próprios. Para aliviá-los, recorri a rituais de purificação, adotei uma dieta vegetariana estrita e me entreguei à abstinência. Durante três anos, ofereci sacrifícios e oferendas ao céu, dia e noite, mas nada funcionou. Nossos rios permaneceram secos e nossos poços continuaram tão vazios como antes.
Quando estávamos no auge do desespero, surgiu de repente, vindo do Monte Zhongnan, um taoísta que dizia pertencer à Seita da Verdade Absoluta (3) e afirmava possuir poderes para levantar os ventos e trazer a chuva, e também para transformar pedras em ouro. Certo dia, ele se apresentou aos meus subordinados e pediu uma audiência comigo. Cheios de esperança diante de sua oferta, convidamos-no a subir na plataforma litúrgica e elevar suas orações ao céu.
Seus esforços mostraram-se tão eficazes que, ao término de suas preces, uma chuva torrencial desabou sobre nós. Pensávamos que um metro de água seria mais do que suficiente, mas ele insistiu que a seca tinha sido tão severa que, para reverter seus efeitos, precisaríamos de pelo menos mais meio metro de chuva.
Impressionado com sua generosidade, decidi selar um pacto de irmandade com ele, e logo realizamos juntos a Cerimônia das Oito Inclinações.
— Vossa Majestade deve ter se sentido extremamente afortunado nesse momento— comentou Sanzang.
— Por que diz isso? — perguntou o homem, intrigado.
— Porque, com poderes como os dele, sempre que precisasse de água, ele a traria; e, quando os cofres estivessem vazios, ele os encheria de ouro — respondeu Sanzang. — O que não consigo entender é por que foi obrigado a abandonar sua cidade e a vagar até aqui, se tinha um homem como esse ao seu lado.
— De fato, tornamo-nos tão íntimos dele que compartilhamos comida e descanso por dois anos — disse o homem. — A primavera voltou ao nosso reino, e os pessegueiros e damasqueiros encheram-se de flores de beleza extraordinária. Eram tão lindas que todos os habitantes saíram para admirar sua beleza. Nem mesmo nós escapamos ao seu encanto. Assim que meus oficiais retiraram-se para suas mansões e as minhas consortes e concubinas para seus aposentos, eu e o taoísta fomos ao jardim imperial de mãos dadas.
Ao nos aproximarmos no de um poço com borda octogonal recoberta de mármore que havia no local, ele jogou algo dentro dele que o fez emitir uma luz dourada e atraente.
Curioso, aproximei-me da borda do poço para ver do que se tratava. Mas, movido pela traição, ele me empurrou sem piedade para dentro do poço, cobrindo em seguida a abertura com uma pesada laje de pedra.
Não satisfeito, ele selou o poço com lama e barro e, ainda plantou uma bananeira sobre ele. Que desgraça a minha! Estou morto há três anos (4) e meu espírito ainda não encontrou o descanso desejado, pois minha morte não foi vingada.
Ao ouvir que aquele homem era, na verdade, um fantasma, o monge Tang empalideceu, sentindo todos os pelos do corpo se eriçarem. Porém, pouco podia fazer, além de dizer ao visitante tão peculiar:
— Há algo que não consigo entender sobre tudo o que contou. Se, como diz, está morto há três anos, não é estranho que seus ministros não tenham sentido sua falta nem organizado uma busca pelo seu corpo? Pensando bem, eles têm a obrigação de se reunir contigo a cada três dias.
— Você não faz idéia dos poderes desse taoísta — retrucou o fantasma. — São tão extraordinários que duvido que haja alguém no mundo capaz de igualá-los. Depois de me assassinar, ele sacudiu o corpo uma única vez e, instantaneamente, transformou-se em uma cópia exata de mim.
Não é surpreendente que não tenha sido difícil para ele tomar o controle do meu reino. Ninguém em todo o império percebeu que se trata de um impostor. Nem meus quatrocentos colaboradores diretos, tanto civis quanto militares, nem minhas esposas e concubinas, nem as incontáveis damas que servem com dedicação nos três palácios. Agora, tudo pertence a ele.
— Tenho a impressão, Majestade — arriscou-se a dizer Sanzang —, de que lhe falta coragem.
— O que quer dizer com isso? — indagou o fastasma.
— Não duvido que esse demônio — respondeu Sanzang —, utilizando seus poderes mágicos, tenha conseguido assumir sua aparência, usurpar seu reino e enganar suas consortes e colaboradores mais próximos. Está claro que nenhum deles percebeu a mudança. Mas, mesmo morto, você não ficou alheio a tudo isso. Como é que, então, não foi ao Submundo para apresentar uma queixa diretamente ao Rei Yama? Ao menos pode relatar a ele as injustiças que sofreu.
— Não é tão simples como imagina — respondeu o fantasma. — Ele é amigo íntimo íntimo de muitos oficiais divinos. O deus protetor da cidade costuma beber com ele frequentemente, os dragões dos oceanos são seus parentes, o Sósia do Céu do Monte Tai (5) é um de seus amigos mais próximos e os Dez Reis do Submundo firmaram pactos de irmandade com ele. Onde, então, eu poderia apresentar uma queixa contra ele?
— Majestade, se não pôde apresentar um caso contra ele no Submundo, por que busca ajuda no mundo dos vivos?
— Mestre — replicou o fantasma. — você acha que esta pobre alma injustiçada ousaria se aproximar de seu portão por conta própria? Diante deste monastério, estão os diversos devas protetores, os Seis Deuses das Trevas e os Seis Deuses da Luz, os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais, os Quatro Sentinelas e os Dezoito Protetores da Fé, todos zelando por você e por seu cavalo. Agora há pouco, foi o Deus da Patrulha Noturna que me trouxe até aqui com uma rajada de vento divino. Ele disse que eu já havia cumprido os três anos de sofrimento aquático a que todos os mortos estão destinados, e por isso, eu tinha o direito de ter uma audiência contigo.
Ele também me contou que você tem sob seu comando um discípulo que responde pela alcunha de Grande Sábio, Sósia do Céu, que é capaz de matar monstros e subjugar demônios. Isso me motivou a vir implorar que por sua ajuda. Suplico que ele vá ao meu reino e faça tudo o que for possível para expor o impostor que se apoderou dos meus domínios. Serei profundamente grato por sua ajuda., Mestre, e prometo retribuí-lo por sua imensa bondade.
— Então, você veio até aqui para pedir que o meu discípulo o ajude a se livrar desse monstro? — concluiu Sanzang.
— Exatamente — respondeu o fantasma.
— Devo reconhecer que não há ninguém como o meu discípulo quando se trata de capturar monstros e dominar demônios — comentou Sanzang. — Certamente, ele fará o possível para ajudá-lo. No entanto, temo que essa tarefa será extremamente desafiadora.
— Por que diz isso? — indagou o fantasma, desanimado.
— Se esse monstro realmente possui poderes mágicos tão grandes a ponto de conseguir assumir uma imagem exata sua, é natural que suas esposas e oficiais o considerem legítimo e lhe sejam completamente leais — respondeu Sanzang. — Além disso, embora meu discípulo seja habilidoso e possua grandes poderes mágicos, ele não se envolveria em um conflito de forma imprudente. Se formos capturados por seus soldados, podemos ser acusados de alta traição e terminaríamos sendo lançados nas masmorras de sua cidade. Isso não arruinaria tudo?
— Não, pois eu ainda tenho alguém em quem posso confiar na corte — respondeu o fantasma.
— Isso é muito bom! — exclamou Sanzang, mais animado. — Imagino que seja algum príncipe, descontente com o atual governante do reino, por ter sido enviado a um posto distante e perigoso.
— Refiro-me ao meu filho, o príncipe herdeiro,— esclareceu o fantasma— , e ele ainda vive no meu palácio.
— Que estranho. Ele não foi banido por esse demônio? — perguntou Sanzang.
— Ele ainda não teve tempo para isso — respondeu o fantasma. — Por enquanto, ele o mantém trancado no Salão dos Carilhões de Ouro, ocupando-o com discussões sobre os clássicos e tarefas administrativas menores. Durante esses três anos, o demônio não permitiu que ele visse a mãe nem uma única vez, o que acabou gerando uma inimizade entre eles.
— Por qual motivo ele fez isso? — questionou Sanzang.
— Muito simples — respondeu o fantasma. — O demônio temia que, se mãe e filho tivessem a oportunidade de se encontrar a sós, toda a verdade viria à tona, e seu plano maligno desmoronaria.
— Embora eu não tenha dúvida de que a sua má sorte foi determinada pelo Céu, não posso deixar de notar certas semelhanças com minha própria história — revelou Sanzang. — Há muito tempo, meu pai foi assassinado por um bandido, que acabou se casando à força com minha mãe. Três meses após esse trágico evento, ela me deu à luz, salvando-me da morte ao confiar-me às águas. Tive a sorte de ser resgatado delas pelo virtuoso mestre do Monastério da Montanha de Ouro, que me cuidou como se fosse seu filho. Pensando bem, desde a mais tenra infância fui privado de meus pais, assim como o seu filho, o príncipe. Que pena que tanto sofrimento exista por toda parte! Mas não é minha intenção lamentar meu próprio passado. Pode me dizer como poderei me encontrar com seu filho?
— Por que pergunta isso? — perguntou o fantasma.
— Como você acabou de dizer, ele está sob constante vigilância do demônio, a ponto de nem poder ver sua própria mãe, e eu não passo de um simples monge. Como poderei conseguir uma audiência a sós com ele?
— Isso não será um problema — respondeu o fantasma. — Amanhã mesmo ele pretende deixar a corte por um instante.
— Posso perguntar o motivo? — replicou Sanzang.
— Para caçar nos arredores da cidade — explicou o fantasma. — Ele já escolheu três mil homens para acompanhá-lo, além dos melhores cavalos, cães e falcões. Não haverá oportunidade melhor. Transmitam-lhe o que acabei de dizer, e estou certo de que ele acreditará.
— Tudo isso é muito bem planejado — ponderou Sanzang —, mas seus olhos são mortais e sua natureza, humana. Como ele acreditará no que eu lhe disser, se foi enganado por esse demônio ao ponto de acreditar que ele é seu verdadeiro pai?
— Caso isso aconteça — garantiu o fantasma—, oferecerei um sinal que eliminará qualquer dúvida.
— Do que se trata? — perguntou Sanzang, curioso.
— Disto aqui — disse o fantasma, colocando em suas mãos um bastão de jade branco com incrustações em ouro.
— Pode me explicar o que é isso? — perguntou novamente Sanzang.
— Após assumir a minha aparência, o demônio percebeu que lhe faltava esse bastão de jade para ser totalmente igual a mim. Ao retornar ao palácio, ele alegou que ele havia sido roubado pelo taoísta que trouxe a chuva, e passados três anos, ele não foi capaz de recuperá-lo. Tenho certeza de que, assim que ele cair nas mãos do príncipe, ele se lembrará de seu verdadeiro dono e fará o que for possível para me vingar.
— Está bem — concluiu Sanzang. — Deixe-o comigo e, se me permitir, tentarei resolver tudo isso com meu discípulo. Gostaria de ficar aqui enquanto falo com ele?
— Receio que não me reste muito tempo — respondeu o fantasma. — Meu desejo é pedir ao Deus da Patrulha Noturna que me leve até o palácio, cavalgando seu vento furioso, para que eu possa aparecer em sonho para minha esposa e informá-la de tudo. Dessa forma, mãe e filho estarão completamente ao seu lado e não duvidarão de suas palavras.
— É uma excelente ideia — comentou Sanzang, balançando a cabeça em sinal de concordância. — Pode partir quando desejar.
O fantasma se despediu de Sanzang com uma leve reverência. O mestre tentou acompanhá-lo até a porta, mas, inesperadamente, caiu no chão. Em seguida, olhou para cima e percebeu que tudo não havia passado de um sonho.
Inquieto com o ocorrido, Sanzang ficou olhando para a escuridão, enquanto gritava, com a voz trêmula:
— Discípulos! Discípulos!
— Que gritos são esses? — perguntou Bajie, agitando-se em sua cama. — Eu costumava ser um homem poderoso, que passava os dias devorando seres humanos. Que prazer era saborear a carne e o sangue! No entanto, tudo desmoronou quando você apareceu e me pediu para acompanhá-lo em sua jornada. Achei que, ao aceitar, me tornaria um monge, mas, na realidade, terminei me transformando em um escravo. Durante o dia, carrego uma vara e conduzo o cavalo pelas rédeas, enquanto à noite sou obrigado a cuidar do seu penico e a cheirar o fedor de seus pés, sempre que temos a oportunidade de compartilhar o mesmo leito. Por que não vai dormir de uma vez e deixa de incomodar aqueles que com tanto zelo o seguem?
— Eu adormeci sobre a mesa e acabei tendo um pesadelo terrível — informou Sanzang, ainda não totalmente recuperado.
— Você sempre têm o péssimo hábito de se deixar levar pelos seus sonhos — comentou o Peregrino, levantando-se imediatamente. — Antes mesmo de escalar uma montanha, você têm medo dos monstros que possam habitar nela. A distância até o Templo do Trovão o atormenta, e não para de pensar em Chang-An, perguntando-se se algum dia conseguirá voltar para lá. Sua mente é tão inquieta que está sempre sendo assaltada por sonhos e pesadelos. Deveria aprender comigo, cujo todos os esforços estão voltados para alcançar o Oeste, e isso me permite descansar tranquilamente, sem que a menor preocupação me atormente.
— O pesadelo que tive foi de uma natureza bem diferente — disse Sanzang. — Não tinha nada a ver com a saudade da minha terra. Ao fechar os olhos, um vento furioso trouxe o fantasma de um rei até a minha presença. Ele não se atreveu a entrar em nossos aposentos, preferindo ficar à porta. Ele me contou que era o Senhor do Reino do Galo Negro, mas seu corpo estava completamente molhado, e ele chorava desesperadamente.
O mestre então relatou toda a conversa que teve com o fantasma.
— Não precisa dizer mais nada — concluiu o Peregrino, depois de ouvir tudo. — Se ele apareceu tão repentinamente em seus sonhos, foi porque queria que eu cuidasse do seu caso. Com toda certeza, um demônio usurpou seu trono e tomou seu antigo reino. Deixe comigo! Irei desmascará-lo diante de todos, o que, por sinal, não será nada difícil.
— Não seja tão impulsivo, por favor — aconselhou Sanzang. — Lembre-se de que os poderes desse demônio são extraordinários.
— Não se preocupe com isso — respondeu o Peregrino. — Por mais poderoso que ele seja, não terá onde se esconder depois que eu colocar meus pés no palácio que agora ele ocupa.
— Acabo de me lembrar de uma coisa! — exclamou Sanzang de repente. — Antes de partir, o fantasma me deixou algo como prova de que o que dizia era verdade.
— Pare de perder tempo com isso — sugeriu Bajie. — Foi só um sonho. Por que continuar com essa conversa?
— Não concordo com você — retrucou o Monge Sha. — Como diz o provérbio: "quem não acredita na honestidade de um honesto, deve se prevenir contra a crueldade dos bondosos". Vamos pegar algumas tochas e abrir a porta, assim poderemos ver o que aconteceu.
O Peregrino abriu a porta e todos saíram para olhar. Não demoraram a encontrar, à luz das estrelas e da lua, um bastão de jade branco com incrustações em ouro. Ele estava jogado em um dos degraus e, estranhamente, todos o viram ao mesmo tempo.
— O que é isso? — perguntou Bajie, pegando-o com cuidado.
— Isto é um tesouro normalmente guardado por um rei — respondeu o Peregrino. — Trata-se de um bastão de jade. Isso prova que o sonho que o nosso mestre teve era real. Você pode contar totalmente com o velho Macaco para capturar o demônio amanhã. No entanto, há três coisas que eu preciso que você faça.
— Excelente! — exclamou Bajie, em tom de zombaria. — Não bastando ter um sonho, você tinha que contar para ele? Esse macaco está sempre pregando peças nas pessoas, e agora quer lhe pedir três favores.
— Que favores são esses? — perguntou Sanzang a Wukong, enquanto retornavam ao interior do recinto.
— Amanhã — respondeu o Peregrino —, preciso que esteja preparado para assumir culpa, se submeter a um castigo injusto e aceitar insultos de bom grado.
— Só um desses favores já seria ruim o bastante! — exclamou Bajie, soltando uma gargalhada. — Como alguém conseguiria suportar todos os três?
O monge Tang era uma pessoa extremamente inteligente e perguntou a Wukong:
— Você pode me explicar melhor o que essas três coisas envolvem?
— Não há necessidade de explicações por enquanto — respondeu o Peregrino. — Apenas guarde estes dois objetos que vou lhe entregar agora.
Ele arrancou alguns fios de cabelo, soprou sobre eles uma baforada de ar divino e gritou com todas as suas forças:
— Transformem-se! — e, instantaneamente, os fios se transformaram em uma caixa de laca vermelha e revestida de ouro. Em seguida, colocou dentro dela o bastão de jade branco e acrescentou:
— Quando amanhecer, vista sua túnica, sente-se na sala principal com isso nas mãos e recite todos os sutras que souber. Enquanto isso, irei à cidade ver o que está acontecendo. Se realmente houver algum demônio lá, eu o derrotarei para que possamos ganhar algum mérito neste lugar. Mas, se não houver nenhum demônio, não devemos atrair problemas para nós.
— Você tem razão — reconheceu Sanzang.
— Se o príncipe não sair da cidade, então pode ser que eu não consiga fazer muita coisa. Mas se ele o fizer, conforme seu sonho, eu com certeza o trarei aqui para vê-lo.
— Tudo bem — protestou Sanzang. — Mas o que eu devo dizer a ele quando vê-lo?
— Quando ele chegar, deixe-me primeiro entrar e anunciá-lo — respondeu o Peregrino. — Então, você abrirá um pouco a tampa da caixa, e eu me transformarei em um monge minúsculo, com cerca de dois centímetros de altura, e entrarei dentro dela. Tente não agitar a caixa e segure-a com firmeza. Quando o príncipe entrar no monastério, ele com certeza vai querer prestar suas homenagens a Buda. Não o interrompa. Deixe-no se inclinar quantas vezes desejar. Ele irá perceber sua presença, e quando isso acontecer, não o cumprimente e nem lhe dirija a palavra. Isso o deixará furioso, e ele certamente ordenará que lhe batam, que o prendam e até mesmo o executem. Aconteça o que acontecer, você não deve reagir.
— Espere um momento! — protestou Sanzang, agitando as mãos. — Esse príncipe é uma alta autoridade militar. O que eu faço se ele mandar me executarem?
— Não tema — tentou tranquilizá-lo o Peregrino. — Esqueceu que eu estarei ao seu lado? Se isso acontecer, protegerei sua vida com todos os meios ao meu alcance. Se ele perguntar quem é você, responda que é um monge enviado pelo Senhor das Terras do Leste ao Paraíso Ocidental para presentear tesouros à Buda e dele obter as escrituras sagradas. Se ele perguntar que tesouros são esses que possui, fale sobre a sua túnica de brocado. No entanto, diga a ele que ela é apenas um tesouro de terceira classe e que você possui outros tesouros ainda mais valiosos, classificados como de primeira e segunda classes. Quando ele perguntar mais sobre eles, mostre-lhe a caixa e informe-o de que ela é tão especial que sabe tudo o que aconteceu nos últimos quinhentos anos, nos quinhentos atuais e nos quinhentos que virão. Em resumo, este tesouro contém o saber completo dos eventos do passado e do futuro num período de mil e quinhentos anos. Nesse momento, eu aparecerei e contarei ao príncipe tudo o que você ouviu em seu sonho. Se ele acreditar em mim, partirei imediatamente para capturar o monstro. Assim seu pai, o rei será vingado, e a nossa reputação será fortalecida. Caso ele se recuse a acreditar, podemos mostrá-lo a tábua de jade branco, embora temo que ele seja jovem demais para reconhecê-lo.
— É um plano maravilhoso! — exclamou Sanzang, satisfeito. — Mas falando sobre esses tesouros, eu só sei o nome de dois: a túnica de brocado e o bastão de jade branco. Que nome terá o tesouro no qual você se transformará?
— Criador de Reis — respondeu o Peregrino.
Sanzang não tinha mais o que dizer e memorizou o título tão desconcertante. Com tantos acontecimentos inesperados naquela noite, nem o mestre nem os discípulos conseguiram dormir. A impaciência pela chegada do dia era tamanha que lamentaram não poder varrer todas as estrelas do céu com seu sopro nem arrancar o sol de seu leito de sombras com um simples movimento de cabeça. Pouco depois, no entanto, começou a clarear pelo leste. O Peregrino então se voltou para Bajie e o Monge Sha e os aconselhou:
— Procurem não incomodar os monges, para que não dê a impressão de que o monastério perdeu a paz que normalmente reina nele. Assim que eu fizer o que preciso fazer, seguiremos nossa viagem.
O Peregrino mal havia terminado de falar, quando deu um salto impressionante e se elevou pelos ares. Abriu ao máximo seus olhos de fogo e, ao olhar para o oeste, constatou que, de fato, ali se erguia uma cidade. Não demorou muito para localizá-la, pois estava a aproximadamente cinquenta quilômetros de distância. Ao se aproximar, viu que estava envolta em uma névoa encantada e era assolada por rajadas constantes de ventos demoníacos. O Peregrino então suspirou e disse:
— Quando um rei virtuoso ocupa o trono, seus domínios se iluminam com bons presságios. Aqui, no entanto, tudo indica que um demônio tomou o trono de um dragão. O céu está tomado por nuvens negras, e o ambiente carrega sinais de infortúnio.
Pouco tempo depois, ele ouviu estrondos altos de canhões ecoando ao longe. O portão oriental do reino então se abriu, revelando uma tropa de homens e cavalos avançando com imponência. Era evidente que haviam saído cedo da capital com o objetivo de caçar nas planícies. Os estandartes, totalmente abertos, pareciam competir em brilho com o sol nascente, enquanto os corcéis brancos lutavam para deixar o vento para trás. Os tambores de pele de lagarto não paravam de soar, enquanto os lanceiros se posicionavam nas portas da cidade. Os falcoeiros exalavam um ar feroz, assim como os caçadores, que eram ao mesmo tempo musculosos e ágeis. O estrondo dos canhões fazia o céu tremer. Cada homem carregava uma aljava de flechas e seu arco correspondente. Os assistentes estendiam redes pelos barrancos e cobriam os caminhos com redes esticadas. Com um estalo, que lembrava o rugido de uma tempestade, mil cavalos se lançaram em perseguição a ursos e leopardos. Sua destreza era tamanha que nem as lebres conseguiam escapar. Os cervos se exaustavam de tanto correr, os lobos sabiam que pouco podiam fazer para escapar da morte, e os antílopes caíam ao chão, desfalecidos. Como poderiam as aves selvagens saírem ilesas dessa perseguição, se até os faisões eram incapazes de alçar voo? Os caçadores vasculharam toda a montanha em busca de animais selvagens, derrubando árvores centenárias em sua tentativa de destruir todos os seres que voavam.
Após deixarem a cidade, os caçadores seguiram para o leste, chegando rapidamente aos arrozais que se estendiam em terraços a cerca de trinta quilômetros de distância. Entre o grupo de cavaleiros destemidos, havia um muito jovem. Ele usava um esplêndido elmo, uma couraça que refletia os raios do sol e um cinto de cores vibrantes. Empunhava nas mãos uma valiosíssima espada de aço azul e montava um cavalo castanho-escuro, especialmente treinado para a batalha. A nobreza de seus traços indicava que ele era um príncipe, e seus movimentos, tão harmoniosos e distintos, lembravam os de um dragão.
— Com certeza é ele, o príncipe — pensou o Peregrino, satisfeito, enquanto observava do alto. — Vou me divertir um pouco com ele.
Mudou a direção da nuvem e se lançou como uma flecha contra o grupo de caçadores. Quando estava a poucos passos deles, sacudiu levemente o corpo e se transformou em um pequeno coelho branco, quase tropeçando no cavalo do príncipe. Um sorriso de satisfação apareceu em seu rosto ao vê-lo. Rapidamente, puxou uma flecha, esticou o arco e disparou contra ele.
O Grande Sábio fez de conta que havia sido atingido e caiu no chão. Na realidade, conseguiu agarrar a flecha a tempo e simulou estar ferido. De fato, levantou-se imediatamente e iniciou uma corrida desenfreada. Ansioso pela presa, o príncipe esporeou o cavalo e partiu em sua perseguição, sem perceber que se afastava cada vez mais do grupo. Quando o cavalo galopava, o Peregrino corria como o próprio vento, e, quando diminuía o passo, se adaptava astutamente ao ritmo do cavalo, mantendo sempre a mesma distância.
Quilômetro após quilômetro, o príncipe foi se distanciando dos demais, até que finalmente se viu diante das portas do Monastério da Gruta Sagrada. Após cravar a flecha em um dos batentes da porta, o Peregrino recuperou sua forma habitual e correu até onde estava seu mestre, gritando:
— É ele! Está aqui!
Antes que Sanzang tivesse tempo de reagir, o Peregrino se transformou em um monge diminuto, de apenas alguns centímetros de altura, e se escondeu na caixa de laca.
Enquanto isso, o príncipe, sem entender o repentino desaparecimento do coelho, olhou em volta e, a única coisa que conseguiu ver foi a flecha com a pena de águia cravada no batente da porta. Desconcertado, sentiu a cor de sua pele desaparecer e pensou:
— Que coisa mais estranha! Tenho certeza de que atingi aquele coelho em cheio. Como foi que ele desapareceu, deixando apenas a flecha para trás? O mais provável é que tenha se transformado em um espírito. Não pode haver outra explicação.
Ao retirar a flecha, levantou a cabeça e notou uma lápide sobre a porta do monastério, onde estava escrito:
"Monastério da Gruta Sagrada. Construído por ordem imperial."
— Agora entendi — disse o príncipe para si mesmo. — Há algum tempo, meu pai ordenou a alguns funcionários do Salão do Carilhão de Ouro que trouxessem uma certa quantidade de ouro para este lugar, para que os monges restaurassem as salas e as imagens. Nunca imaginei que um dia chegaria até suas portas. Com razão o poeta dizia: "À sombra dos bambus, encontrei um monge, e, ao conversar com ele o dia todo, encontrei uma paz que nunca havia sentido em um mundo tão cheio de tédio como este (6)". Melhor entrar e dar uma olhada.
O príncipe saltou do cavalo e se dirigiu à porta. Não havia chegado a ela quando os três mil cavaleiros que o acompanhavam apareceram.
Todos seguiram seu senhor para o interior do monastério. Com grande respeito, os monges os conduziram até o salão principal, para que pudessem prestar suas homenagens a Buda. Porém, ao entrarem, perceberam que, bem no centro do salão, estava um monge que nem se deu ao trabalho de levantar os olhos para olhar para eles.
Tal falta de educação fez o príncipe perder a paciência e, mal-humorado, exclamou:
— Jamais encontrei um monge tão mal-educado! Este monastério se mantém graças às contribuições que recebe diretamente do trono. Por que ele não se moveu um centímetro ao nos ver? Reconheço que cheguei sem avisar, mas isso não justifica o fato de ele não ter saído para dar boas-vindas a quem se aproxima desta porta montado a cavalo. Prendam-no!
Ao ouvir a ordem, um grupo de soldados avançou com cordas nas mãos para capturar o monge Tang. Ciente do perigo que seu mestre corria, o Peregrino, ainda escondido na caixa de laca, sussurrou um feitiço, dizendo:
— Ouçam-me Protetores da Fé, Seis Deuses das Trevas e Seis Deuses da Luz! Eu elaborei um plano para dominar um demônio, mas este príncipe, totalmente ignorante do que está acontecendo, deseja amarrar o meu mestre como se ele fosse um criminoso. Vocês devem protegê-lo imediatamente. Se permitirem que ele seja amarrado, todos vocês estarão em apuros!
Nenhum deles ousou desobedecer às instruções secretas do Grande Sábio. Sua proteção foi tão eficaz que nenhum dos soldados conseguiu tocar a cabeça raspada de Sanzang. Parecia que entre eles e o monge havia se erguido uma parede invisível de tijolos, que os impedia de se aproximar. Desconcertado, o príncipe lhe perguntou:
— De onde você veio monge, para ousar usar essas artes mágicas para se defender contra mim?
Sanzang se aproximou dele, cumprimentando-o e respondendo:
— Minhas artes mágicas não são mais eficazes do que as de qualquer monge humilde que se possa encontrar neste monastério. Eu, senhor, venho das Terras do Leste e não sou mais do que um humilde monge que viaja em direção ao Paraíso Ocidental, com o único objetivo de obter as escrituras sagradas e oferecer a Buda alguns tesouros que carrego comigo.
— De que tesouros você está falando? Pelo que entendi, as Terras do Leste não passam de uma vasta planície, cujas riquezas não podem ser comparadas às deste reino — indagou o príncipe. — Responda!
— Um dos tesouros é a túnica que estou usando — respondeu Sanzang — embora eu deva admitir que ela é de terceira classe. Os outros dois são ainda mais valiosos, dignos de serem classificados como de segunda e primeira classe.
— Essa túnica cobre apenas uma parte do seu corpo — comentou o príncipe, com desdém. — A outra parte fica totalmente exposta. Quanto ela pode valer para você considerá-la um tesouro?
— Reconheço que não cobre todo o meu corpo — admitiu Sanzang. — Mas há um poema que fala de suas qualidades muito melhor do que eu mesmo poderia fazer: "A túnica de Buda cobre apenas metade do corpo, mas esconde o Verdadeiro e está completamente livre das imperfeições deste mundo de poeira. Incontáveis são suas fibras e infinitas suas costuras. Não é à toa que deve sua existência à fusão de oito tesouros e nove pérolas com o espírito primordial. Um grupo de donzelas celestes a confeccionou com indescritível respeito, para que um simples monge pudesse purificar com ela todas as suas imperfeições." Espero que compreenda as razões que me levaram a não saudá-los com a deferência que talvez esperassem. Mas devo dizer algo mais: enquanto você deixar a injustiça de seu pai sofreu sem reparação, terá vivido em vão!
— Quantas tolices esse monge diz! — bradou o príncipe, ainda mais furioso. — Parece ter uma mente ágil e uma língua rápida, caso contrário, não teria sido capaz de exaltar essa túnica da forma como fez. De qualquer forma, explique-me o que quer dizer com "deixar a injustiça de seu pai sofreu sem reparação"?
Sanzang juntou as mãos à altura do peito, se aproximou ainda mais do jovem príncipe e perguntou:
— Quantos favores um homem recebe ao longo de sua vida neste mundo?
— Quatro — respondeu o príncipe.
— Pode me dizer quais são? — perguntou novamente Sanzang.
— Com muito prazer — respondeu o príncipe. — Há o favor do céu e da terra, que cobrem e sustentam o homem, o favor do sol e da lua, que lhe dão luz, o favor do soberano, que lhe concede terra e água e o favor dos pais, que o criam.
— Vejo que você é um homem sensato — comentou Sanzang, esboçando um leve sorriso. — As pessoas realmente são cobertas e sustentadas pelo céu e pela terra, iluminadas pelo sol e pela lua, e recebem terra e água de seus soberanos. Porém, elas não são criadas por pais e mães.
— Que monge ingrato! — exclamou o príncipe, visivelmente irritado. — Embora raspe a cabeça, não passa de um rebelde . Diga-me de onde as pessoas viriam se não fossem criadas por seus pais?
— Receio que desconheça a resposta a essa pergunta — respondeu Sanzang. — Mas dentro desta caixa há um tesouro que pode responder por mim. Chama-se Criador de Reis e, para ele, não há segredo algum sobre o que aconteceu nos últimos quinhentos anos, nos quinhentos atuais e nos quinhentos que virão. Ele abrange um total de mil e quinhentos anos de conhecimento prodigioso, e poderá nos esclarecer se somos ou não criados por nossos pais e mães. Foi graças aos conselhos dele que esperei aqui por tanto tempo.
— Tragam-no imediatamente à minha presença, para que eu possa vê-lo — ordenou o príncipe.
Sanzang então levantou a tampa da caixa lacada e dela saiu o Peregrino.
— Como é que esse anão poderia saber algo assim? — zombou o príncipe.
O Peregrino se sentiu profundamente ofendido e decidiu recorrer à magia. Estufou o peito, e seu corpo começou a crescer até atingir um metro de altura.
— Se continuar a crescer nessa velocidade — murmuraram os soldados, perplexos —, em poucos dias ele alcançará o céu.
O Peregrino, no entanto, se contentou com a altura que normalmente tinha. Quando o príncipe percebeu que ele não continuaria a crescer, disse, com tom zombeteiro:
— Este monge afirma que para você o presente e o futuro não guardam mistério e que possui um conhecimento absoluto do bem e do mal. Mas me diga: você utiliza carapaças de tartaruga e caules de plantas para adivinhar, ou se apoia em livros para determinar o destino dos outros?
— Não me valho absolutamente de nada — respondeu o Peregrino, sereno. — Apenas minhas palavras bastam. Como você mesmo disse, meu conhecimento é absoluto.
— Percebe-se que você também é um charlatão de primeira — replicou o príncipe. — Desde tempos antigos, o I Ching, grande obra da dinastia Zhou, tem sido considerado o método mais eficaz para prever o bem e evitar o mal. Para isso, utilizam-se carapaças de tartaruga e caules de plantas. E você quer que eu acredite que somente a sua palavra é suficiente? Pode oferecer alguma prova disso? Receio que sua língua sirva apenas para enganar os ingênuos.
— Não julgue com tanta pressa — respondeu o Peregrino. — Já que deseja uma prova, darei uma. Você é filho do Senhor do Reino do Galo Negro. Há aproximadamente cinco anos, houve uma seca terrível em seu reino. Embora o rei e o povo tenham orado incessantemente, a chuva se recusava a cair. Foi então que um taoísta apareceu, dizendo ser do Monte Zhongnan. Ele possuía poderes extraordinários, e logo e fez a chuva cair, levantando os ventos e trazendo as nuvens. O rei ficou tão agradecido que até mesmo firmou um pacto de irmandade com ele. Estou certo até aqui?
— Sim, sim — respondeu o príncipe, empolgado. — Continue, por favor.
— Três anos depois — prosseguiu o Peregrino —, o taoísta desapareceu. Agora eu pergunto, quem tem ocupado o trono desde então?
— Devo admitir que meu pai, de fato, estimava tanto esse taoísta de que fala, que até chegou a firmar com ele um pacto de irmandade — admitiu o príncipe. — Juntos comiam e juntos descansavam. Infelizmente, há três anos, enquanto apreciavam a beleza do jardim imperial e aproveitando que ninguém os via, o taoísta se apoderou de repente do bastão de jade branco com incrustações em ouro que meu pai segurava nas mãos e voou para o Monte Zhongnan, montado sobre um vento impetuoso. Apesar de tamanha falta de consideração, meu pai não deixou um único momento de sentir sua falta, ordenando o fechamento dos jardins imperiais e proibindo qualquer um de entrar ali. No entanto, estranho a pergunta que me fez. Quem mais estaria ocupando o trono, se não o homem que me gerou?
O Peregrino fez como se não tivesse ouvido e começou a sorrir. O príncipe repetiu a pergunta, mas Wukong permaneceu em silêncio.
— Posso saber por que não me responde? — exclamou o príncipe, irritado. — É inacreditável que me trate com tanto desdém!
— Tenho muito a dizer sobre isso — afirmou, finalmente, o Peregrino. — Mas temo que há muitas pessoas presentes, e não me parece prudente falar com franqueza em tais condições.
O príncipe considerou adequado o ponto de vista do Peregrino e, movendo ligeiramente as mangas, ordenou aos soldados que se retirassem. O capitão os fez sair imediatamente para o pátio do monastério. Em pouco tempo, o salão ficou vazio, restando apenas o príncipe, o mestre e o Peregrino. Assim que todos saíram, Wukong se aproximou e revelou:
— Quem foi levado pelo vento na verdade foi o seu pai. O taoísta que trouxe a chuva é o homem que agora se senta em seu trono.
— Isso é um absurdo! — protestou com firmeza o príncipe. — Após a partida do taoísta, meu pai governou com tamanha virtude e prudência que a chuva continuou a cair e os ventos a soprar, a prosperidade reina por todo o país e o povo se sente seguro. Como poderia duvidar que o homem que ocupa o trono seja meu pai? Agradeça ao céu por eu ser jovem e possuir paciência à prova de tudo; caso contrário, já teria mandado prendê-lo e o despedaçaria por tamanha insolência!
— Viu só? — exclamou Wukong, voltando-se para o monge Tang. — Eu avisei que ele não acreditaria em nós, e assim foi. Pegue o tesouro agora e entregue a ele. Assim poderemos continuar nossa jornada para o Paraíso Ocidental.
Sem hesitar, Sanzang entregou ao Peregrino a caixa lacada. Assim que a pegou, Wukong balançou levemente o corpo e desapareceu no ar. Usando de sua mágica, Dirigiu-se então para o príncipe e, com inesperado respeito, entregou-lhe o bastão de jade branco. Ao ver o objeto, o príncipe exclamou:
— Então você era o taoísta de cinco anos atrás que enganou nossa família e roubou esse tesouro! Por que está disfarçado como monge para devolvê-lo? Prendam-no!
Sanzang entrou em pânico e gritou, apontando em direção a Wukong:
— Maldito pi-ma-wen! Por que você sempre tem que me causar problemas?
— Não grite, por favor — disse o Peregrino ao mestre, enquanto caminhava em direção ao príncipe. Tentando acalmá-lo, disse:
— É preciso que ninguém saiba o que acabei de lhe contar. Pode ser muito perigoso para você. Para provar que o que acabei de dizer é verdade, digo que meu nome verdadeiro não é o de Criador de Reis.
— E qual seria? — perguntou o príncipe, cada vez mais irritado. — O departamento de justiça precisará saber para aplicar sua sentença de morte.
— Meu nome é Sun Wukong e sou discípulo deste monge a quem tenho a honra de servir — respondeu o Peregrino. — Estamos indo para o Paraíso Ocidental em busca das escrituras sagradas de Buda. Ontem à noite, ao passarmos por esta região, decidimos pedir abrigo neste respeitável monastério. Por ser uma pessoa muito virtuosa, meu mestre passou a maior parte da noite recitando sutras. Por volta da terceira vigília, ele cedeu ao cansaço e adormeceu, e então teve um sonho com seu pai. Foi durante este sonho que ele revelou ao meu mestre que havia sido vítima do taoísta, que o matou jogando-o no poço octagonal de mármore que fica bem no centro dos jardins. Após cometer esse crime, o taoísta usurpou a personalidade de seu pai, sem que seus oficiais ou você, dada a sua tenra idade, percebessem a mudança. Apesar de todas as precauções que tomou, esse impostor não tem todas as cartas a seu favor. Isso explica por que ele proibiu que você se encontrasse com sua mãe e não permite que ninguém entre nos jardins imperiais. Como a verdade poderia ser descoberta se todos obedecem cegamente as suas ordens? Por isso ontem à noite, no sonho de meu mestre, seu pai me implorou que fizesse tudo o que estivesse ao meu alcance para derrotá-lo e revelar a verdade. Devo admitir que, a princípio, não estava muito certo de que se tratava de um demônio, mas ao observar a cidade do alto, pude ver claramente que estava sendo governada por um espírito maligno. Decidi enfrentá-lo, mas, antes que pudesse agir, você chegou aos portões da cidade, e precisei mudar meus planos. Na verdade, o coelho branco que você abateu com uma de suas flechas era eu. Tive que recorrer a esse meio para trazê-lo até aqui e fazer com que se encontrasse com meu mestre. Juro que o que acabei de lhe dizer é verdade. Reflita sobre isso. Se conseguiu reconhecer esta tábua de jade branco, não será difícil lembrar do carinho de seu pai e encontrar a melhor maneira de vingar sua morte.
O príncipe sentiu-se profundamente abatido pela tristeza, lutando para conter as lágrimas enquanto pensava:
— Mesmo que me recuse a acreditar, devo admitir que ao menos parte das coisas que ele diz tem um certo fundo de verdade. Mas como vou enfrentar o rei se acreditar em suas palavras?
Ele estava, de fato, preso em um grande dilema, perguntando-se o que, afinal, deveria fazer. Ao notar a hesitação do príncipe, o Peregrino insistiu:
— Não há motivo para tanta hesitação. O melhor que você pode fazer agora é retornar ao seu reino e falar com a sua mãe. Pergunte se os sentimentos que ela nutre pelo marido são os mesmos de antes, e se ela não notou nenhum tipo de mudança nele nesses três anos. Essas simples perguntas irão revelar a verdade. Eu lhe garanto.
— Pois irei agora mesmo falar com ela — decidiu o príncipe, já persuadido.
Ele montou rapidamente em seu cavalo, segurando o bastão de jade branco, pronto para esporear o animal. Mas o Peregrino segurou as rédeas a tempo e o alertou:
— Se levar seus homens com você, é provável que algum deles acabe falando demais. Se isso acontecer, será muito difícil para mim sair dessa situação sem complicações. Por isso, aconselho que vá sozinho e procure não ser visto. Não entre pela porta principal do palácio, a Porta do Sol. Use a porta dos fundos, a dos criados. Quando encontrar sua mãe, não fale alto ou de forma exaltada. Pelo contrário, fale em voz baixa e com total calma. É possível que esse monstro possa ouvir até os sussurros, e, se descobrir o que está sendo dito, a vida de vocês estará em grande perigo.
O príncipe aceitou as sugestões sem protestar. Então, saiu para o pátio e ordenou aos oficiais:
— Acampem aqui e não se movam. Tenho algo urgente a resolver. Assim que voltar, retornaremos juntos à cidade.
Assim que terminou de dar essas ordens às suas tropas, o príncipe se dirigiu à capital de seu reino, com tal velocidade que parecia cavalgar no vento. Por ora, desconhecemos o desenrolar da conversa que ele teve com sua mãe. Quem desejar saber, terá que prestar atenção nas explicações que serão dadas no próximo capítulo.
CAPITULO XXXVIII EM BREVE ...
CLIQUE NO BANNER ABAIXO PARA RETORNAR AO
Notas do Capítulo XXXVII
- Refere-se à esposa do imperador Liang Wu-Di (502-549), que, tendo sido uma mulher malvada e extremamente invejosa em vida, apareceu após a morte para seu marido na forma de uma serpente de enorme tamanho. Alarmado, o imperador ofereceu por ela uma letania de mais de dez rolos e, dessa forma, conseguiu fazê-la entrar no céu;
- O rei Wen-Chang, também conhecido como Tse-Chung, é a divindade protetora do departamento responsável pela redação dos documentos imperiais. Dada sua indiscutível importância, sua morada foi estabelecida na constelação da Ursa Maior;
- A Seita da Verdade Absoluta, fundada no início da dinastia Jin por Wang Zhe (1112-1170), promovia a igualdade das três religiões, dando especial ênfase, em razão de seu sincretismo, à piedade filial do confucionismo, aos mandamentos e normas do budismo e à filosofia hermética do taoísmo;
- Trata-se claramente de um erro de cálculo, já que, desde o início da seca, na realidade haviam se passado oito anos;
- O caráter sagrado do Monte Tai atingiu seu ápice durante a dinastia Tang, quando o espírito do monte recebeu o título de "Sósia do Céu" no décimo terceiro ano do período Kaiyuan (726);
- Nas manifestações de gratidão, sempre eram lembrados dois exemplos clássicos. O primeiro envolveu um certo Wei-Ke, na época da Primavera e Outono, a quem seu pai pediu que, após a sua morte, concedesse liberdade à sua concubina favorita. No entanto, quando chegou o momento, o ancião insistiu para que ela fosse enterrada com ele, o que foi negado pelo filho, que considerava isso um sinal de debilidade mental. Em agradecimento, o espírito do pai da concubina o salvou de uma morte certa enquanto ele guerreava, enredando as patas de seu cavalo em uma corda musgosa. O segundo exemplo foi protagonizado por um tal Yang Bao, que salvou um pássaro amarelo das garras de um falcão. Quando, após três meses, o devolveu à liberdade, viu em um sonho um jovem vestido da mesma cor, que lhe presenteou com quatro braceletes de jade branco. Referência a um pequeno poema escrito por Li She, da dinastia Tang.
- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
PARTICIPE! Deixe seu comentário, elogio ou crítica nas publicações. Faça também sugestões. Sua interação é importante ajuda a manter o blog ativo! Siga o Portal dos Mitos no Youtube, TikTok e Instagram!