31 de maio de 2024

A Jornada ao Oeste: Capítulo XXI

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO XXI:


OS ESPÍRITOS GUARDIÕES DOS MOSTEIROS (1) PREPARAM ALOJAMENTO PARA O GRANDE SÁBIO. O BODHISATTVA LINGJI SUBJULGA O DEMÔNIO DO VENTO


Os cinquenta demônios que acompanhavam o Tigre da Vanguarda correram para dentro da caverna com os estandartes despedaçados e os tambores destruídos, gritando:

— Grande Rei, o Tigre da Vanguarda não foi páreo para o monge de cara peluda! Aquele monge o perseguiu montanha abaixo até derrotá-lo.

Ao ouvir isso, o Senhor da Caverna ficou profundamente aborrecido. Então, inclinou a cabeça e começou a pensar em silêncio qual caminho deveria seguir. Mas logo foi interrompido por um dos guardiões, que lhe apresentou o seguinte relatório:

— O monge com cara de macaco matou o Tigre da Vanguarda e arrastou seu cadáver até aqui. Ele está lá fora nesse momento, nos desafiando e lançando provocações contra você.

— Esse sujeito não tem noção de limites! — exclamou o monstro, ainda mais furioso. — Já que ainda não devorei seu mestre, deveria ter poupado a vida de nosso aliado. Jamais conheci alguém tão desprezível como ele! Tragam a minha armadura imediatamente! Tenho ouvido falar muito desse Peregrino Sun e estou ansioso para ir lá fora e descobrir por mim mesmo que tipo de pessoa ele é. Juro que, mesmo que ele tenha nove cabeças e oito rabos, farei com que pague com juros a humilhação que trouxe sobre a cabeça do infeliz Tigre da Vanguarda.

Os demônios trouxeram a armadura às pressas e o ajudaram a vesti-la. Quando todas as fitas estavam amarradas e as fivelas abotoadas, o monstro pegou um tridente de aço e saiu da caverna à frente de todos os seus demônios. Embora o Grande Sábio não se movesse do lugar ao vê-lo, ficou profundamente impressionado com a marcialidade de sua aparência. O sol se refletia em seu elmo de ouro e reverberava na couraça do mesmo metal. No topo do capacete flamejava uma impressionante cauda de faisão, enquanto debaixo da couraça se apreciava a finura de uma túnica de seda amarela e um cinto em forma de dragão de tonalidades brilhantes. Sua armadura estava tão finamente polida que parecia emitir luz própria. Suas botas, feitas totalmente de couro, haviam sido tingidas com flores de algaroba e toda a sua figura estava adornada com folhas de salgueiro. Com o tridente nas mãos, ele não era nada menos impressionante que o Pequeno Sábio, Erlang Shen. Ao deixar a caverna, o monstro encheu os pulmões e gritou:

— Onde está o Peregrino Sun?

— Aqui! Não está me vendo? — respondeu Wukong com um pé sobre o corpo do tigre morto e com o bastão de ferro nas mãos. — Liberte imediatamente o meu mestre!

O monstro o olhou com mais atenção e, ao ver a baixa estatura do Peregrino — ele media, de fato, menos de quatro pés — e suas bochechas fundas, soltou uma gargalhada e disse:

— Que pena! Eu pensei que você fosse algum tipo de herói invencível. Mas você é apenas um espírito enfermo, a quem só resta o esqueleto.

— Como lhe falta percepção! — exclamou o Peregrino, sorrindo. — É verdade que eu sou meio baixinho, mas lhe asseguro que, se ousar desferir um único golpe do seu tridente sobre minha cabeça, me tornarei um ser com mais de dois metros de altura.

— Então endureça bastante sua cabeça! — respondeu o monstro, desferindo-lhe um tremendo golpe.

O Grande Sábio não se intimidou. Após se esquivar habilmente do golpe, sua cintura se esticou e ele adquiriu uma altura de três metros de altura, dois a mais do que possuía segundos antes. O monstro ficou tão desconcertado que tentou fazê-lo voltar ao seu estado normal com o tridente, gritando:

— Como você ousa vir até minha porta e me mostrar uma magia de proteção corporal tão imperfeita? Pare de usar truques e vamos medir nossas verdadeiras capacidades.

— Como você deve saber — replicou o Peregrino, soltando uma gargalhada — , existe um provérbio que diz: "Mostre misericórdia antes de levantar a mão". Receio que sua mão seja muito lenta e não possa suportar nem mesmo um golpe do meu bastão.

O monstro não quis continuar trocando insultos e, voltando o tridente contra o Peregrino, tentou cravá-lo em seu peito. O Grande Sábio não se abalou nem um pouco. Levantou oportunamente o bastão e, após desviar a trajetória do tridente com o movimento chamado "O Dragão Negro que Varre o Chão", desferiu um golpe terrível na cabeça do monstro. Assim, começou uma terrível batalha diante da própria Caverna do Vento Amarelo. O monstro, ansioso para vingar a morte do Tigre da Vanguarda, desferiu toda sua fúria contra o Grande Sábio. Este, por sua vez, era guiado apenas pelo desejo de libertar seu mestre e fez uma magnífica exibição de todos os seus poderes. O tridente buscava repetidamente o corpo de seu adversário, mas o bastão impedia que isso acontecesse. As duas armas eram dignas das mãos experientes que as brandiam. Um dos lutadores era rei de uma caverna, enquanto o outro, o Belo Rei dos Macacos, havia se tornado um paladino da Lei. Eles lutaram primeiramente na altura da terra, mas pouco a pouco os dois guerreiros foram se elevando aos céus. Era esplêndido ver o tridente de aço puro medir forças com o bastão de ferro de pontas douradas. Somente um de seus golpes era suficiente para mandar qualquer um ao Reino das Sombras para se encontrar com o Rei Yama. Para enfrentar tais armas mortíferas, era preciso ter braços ágeis, visão aguçada, um corpo resistente e muita força física. Os dois lutaram sem se importar com a vida ou a morte. 

Eles se enfrentaram por mais de trinta assaltos, mas o resultado da batalha permanecia tão incerto quanto quando começou. Buscando uma vitória rápida, o Peregrino decidiu usar o truque conhecido como "O Corpo Além do Corpo". Para isso, arrancou alguns pelos, triturou-os com os dentes e gritou, ao mesmo tempo em que os cuspia com força:

— Transformem-se!

Num instante, os pelos se transformaram em mais de cem Peregrinos com seus correspondentes bastões de ferro, que rapidamente cercaram o monstro. 

Surpreso, o monstro recorreu também a seus profundos conhecimentos de magia. Voltou-se para o sudoeste, abriu a boca três vezes e soprou no chão com todas as suas forças. Instantaneamente, levantou-se um vento tempestuoso com um estranho tom amarelado. Assobiando e frio, pareceu mudar de repente a face do Céu e da Terra. A areia que trazia atuava como uma neblina, desfocando os contornos. Como um punhal, penetrou nas florestas e montanhas, derrubando pinheiros e cerejeiras, aplainando cumes e penhascos, e levantando nuvens de terra e pó. As ondas do Rio Amarelo eram tão ferozes que levantavam o lodo acumulado em seu leito. O Rio Yangzi viu seu curso aumentar a níveis inimagináveis. A força do furacão foi tão grande que até o Palácio da Estrela Polar sentiu seus efeitos, o Salão da Escuridão quase desmoronou, os Quinhentos Arhats começaram a gritar aterrorizados e os Oito Guardiões de Aksobhya (2) tremeram de medo como donzelas comuns. O leão de juba verde de Manjusri (3) fugiu correndo e Samantabhadra (4) teve que abandonar seu elefante branco. O mesmo aconteceu com a serpente e a tartaruga de Zhenwu (5) e a mula assustada de Zitong (6). Os mercadores em viagem elevaram suas súplicas ao céu, enquanto os marinheiros faziam promessas custosas. As cristas das ondas e a força da maré brincavam com suas vidas, sua fortuna e tudo o que possuíam. Sob a ação do furacão, as cavernas dos monstros ficaram tão escuras quanto túneis e a ilha de Penglai perdeu sua luminosidade invejável. Lao-Tzu não conseguiu continuar refinando o elixir da imortalidade e a Estrela Anciã teve que recolher seu leque de folhas de videira. Xi Wangmu dirigia-se naquele momento ao Festival dos Pêssegos e o vento levantou sua saia, antes de arruinar seu penteado. Não foi, entretanto, a única a sofrer sua influência. Quando se dirigia a Guanzhou, Erlang se perdeu, Nezha não conseguia sacar sua espada da bainha, Li Jing perdeu a pequena pagoda que sempre carregava na mão, e Lu Ban (7) deixou seu cinzel de ouro cair. Ao mesmo tempo, três andares do Templo do Trovão desmoronaram e a Ponte de Pedra de Zhaozhou se partiu em duas. Até o globo avermelhado do sol emitia menos luz do que o habitual e as estrelas do céu pareciam ter perdido parte de seu brilho. Os pássaros que moravam nas zonas austrais voaram para as setentrionais, enquanto os lagos do oriente espalharam suas águas para os do ocidente. Os pares de aves foram brutalmente separados, pondo fim aos seus chamados de amor. A mesma sorte seguiram mães e filhos, que gritaram seu desespero até que suas gargantas se quebraram. Os Reis Dragão percorreram todos os oceanos em busca de yaksas e os reis do trovão foram obrigados a percorrer distâncias imensas, recolhendo os raios que haviam perdido. Os Dez Reis de Yama não sabiam onde encontrar seus juízes. No coração dos Infernos, o Demônio Cabeça de Touro corria como um louco atrás do Demônio Cara de Cavalo. O vento alcançou até a Montanha Potalaka, arrancando da Bodhisattva Guanyin um valiosíssimo rolo de versos. Os botões dos lotos brancos, brutalmente cortados de seus caules, foram parar lamentavelmente no mar. Mas os estragos não terminaram aí. Na verdade, doze dos mais esplêndidos salões da Bodhisattva desmoronaram. Jamais se conhecera um vento como aquele desde os tempos de Pan Gu. Seu poder destrutivo era tão grande que quase desintegrou o universo. Sob sua ação, o mundo não era mais que uma massa que se movia sem propósito ou direção alguma.

A violenta tempestade varreu todos os pequenos Peregrinos que haviam surgido dos pelos do Grande Sábio, lançando-os pelos ares como se fossem rodas de fiar. Como poderiam se lançar à batalha, se não conseguiam segurar os bastões de ferro? Ao Peregrino não restou outra opção senão sacudir o corpo e recuperar, assim, todos os seus pelos. Depois, levantou o bastão de ferro, tentando enfrentar sozinho o monstro, mas o único resultado foi receber uma lufada de vento amarelo diretamente no rosto. Seus olhos de fogo e suas pupilas de diamante ficaram tão irritados que não podia mantê-los abertos. Wukong foi forçado, então, a admitir a derrota e abandonar rapidamente o campo de batalha.

Enquanto isso, Zhu Bajie, ao ver que a tempestade de vento amarelo mergulhava o céu e a terra em uma densa escuridão, levou o cavalo e a bagagem para um abrigo na montanha e deitou-se rapidamente no chão. Sem ousar levantar a cabeça ou abrir os olhos, começou a recitar os nomes de Buda e a fazer promessas ao céu. Perguntou-se depois como estaria indo o Peregrino na batalha e se já teria libertado seu Mestre, mas naquele momento o vento cessou e o firmamento voltou a se encher de luz. Timidamente, levantou a cabeça e olhou em direção à entrada da caverna. No entanto, não percebeu o menor movimento guerreiro nem ouviu qualquer som de tambores ou gongos. Pensou em ir até a caverna, mas desistiu porque não havia ninguém mais para cuidar da bagagem e do cavalo. Quando estava mais inquieto por não saber que decisão tomar, viu aparecer do oeste o Grande Sábio, que vinha fazendo toda sorte de ruídos. Bajie curvou-se para saudar seu companheiro, e disse: 

— Mas que vento poderoso! De onde ele veio?

— Realmente poderoso — reconheceu o Peregrino. — Jamais vi algo parecido em toda a minha vida. O monstro me atacou com um tridente de aço e eu me defendi com meu bastão de ferro. Por mais de trinta assaltos medimos nossas forças, sem que nenhum de nós conseguisse uma vantagem clara. Foi então que resolvi usar a magia do Corpo Além do Corpo. Ao se ver cercado, ele entrou em pânico e produziu essa formidável ventaria que você mesmo testemunhou. Sua força era tão esmagadora que tive que suspender meu ataque e fugir. Que vento! Eu também tenho o poder de produzi-lo, mas posso te assegurar que seu poder destrutivo é muito menor que o desse monstro.

— Como são as técnicas marciais dele? — perguntou Bajie.

— São realmente boas — respondeu o Peregrino. — Ele é um mestre autêntico com o tridente e não exagero nada ao dizer que ele é quase tão bom lutador quanto eu. Se não tivesse recorrido a esse vento destrutivo, eu o teria derrotado sem dificuldade.

— Nesse caso, como iremos resgatar nosso mestre? — perguntou Bajie, preocupado.

— Teremos que esperar um pouco mais do que o previsto — respondeu o Peregrino. — Me pergunto se há por aqui algum médico que possa dar uma olhada nos meus olhos.

— O que houve com eles? — voltou a perguntar Bajie.

— Esse monstro soprou uma rajada de ar no meu rosto e meus olhos estão tão irritados que não param de lacrimejar — explicou o Peregrino.

— Irmão mais velho — disse Bajie — estamos no meio de uma montanha e está ficando tarde. Vamos esquecer essa história de médico; nem sequer temos um lugar para passar a noite.

— Não será difícil encontrar hospedagem — disse o Peregrino. — Também duvido que esse monstro se atreva a fazer algum mal ao nosso mestre. Vamos voltar para a estrada principal e procurar uma casa onde possamos nos hospedar. Assim que amanhecer, podemos enfrentar o monstro novamente.

— Você tem razão! — reconheceu Bajie

Pegando a bagagem e o cavalo, eles deixaram o sopé da montanha e subiram a estrada. O crepúsculo estava chegando e, enquanto caminhavam, começaram a ouvir latidos de cães, que pareciam vir do lado sul da montanha. Ao pararem para olhar, viram uma pequena aldeia, onde se notava o tímido cintilar de algumas tochas. Sem se preocuparem em encontrar um caminho, dirigiram-se diretamente para lá, não demorando a chegar a porta de uma das casas. Toda construída em pedra, suas paredes acinzentadas e cobertas de líquenes e musgo mostravam a passagem implacável do tempo. Perto dali, via-se a tênue luminosidade dos vagalumes, um contraponto de luz em um cenário totalmente coberto de sombras. A floresta próxima parecia impenetrável, embora o aroma das orquídeas e do bambu recém-plantado fosse um convite a entrar. Um riacho de águas cristalinas fluía do outro lado da aldeia, ao redor da qual se erguiam, orgulhosos, incontáveis cedros centenários. Era um lugar afastado, raramente visitado por viajantes. Bem em frente à porta, havia um canteiro de flores silvestres. 

Não se atrevendo a entrar sem bater, o Peregrino e Bajie levantaram a voz, dizendo:

—  Abram a porta! Abram a porta!

Logo apareceu um ancião cercado por um grupo de jovens agricultores armados com ancinhos, forquilhas e peneiras, que perguntaram de maneira rude:

— Quem são vocês, e o que querem?

— Nós — respondeu o Peregrino, inclinando-se — somos discípulos de um monge santo vindo da Grande Nação dos Tang, a leste daqui. Estamos a caminho do Paraíso Ocidental em busca dos escritos de Buda e, ao passar por esta região, nosso mestre teve a infelicidade de cair nas mãos do Rei do Vento Amarelo. Ainda não conseguimos resgatá-lo, mas, como está ficando noite, decidimos adiar a busca até amanhã e procurar um lugar para passar a noite. Esperamos que nos permitam ficar sob seu teto.

— Desculpem-nos por recebê-los dessa forma — disse o ancião, retribuindo a saudação— Este é um lugar onde as nuvens são mais abundantes que as pessoas e, ao ouvir chamarem na porta, tememos que pudesse ser uma raposa, um tigre ou algum bandido da montanha. Esse é o motivo de termos aparecido armados até os dentes. Entrem, por favor, entrem.

Os monges não esperaram para serem convidados duas vezes para trazer o cavalo e a bagagem. Depois de amarrar o animal, saudaram novamente o ancião e se sentaram. Um servo idoso lhes serviu chá e depois ofereceu alguns tigelas de arroz com sementes de gergelim. Assim que terminaram a refeição tão singular, o ancião ordenou aos criados que preparassem as camas, mas o Peregrino disse:

— Ainda é um pouco cedo para irmos dormir. Há alguém por aqui que venda remédio para os olhos?

— Quem de vocês tem um problema ocular? — perguntou o ancião.

— Na verdade — respondeu o Peregrino — , aqueles que renunciaram à família raramente adoecem. Esta é a primeira vez que tenho problemas nos olhos.

— O que aconteceu com eles? — voltou a perguntar o ancião.

— Muito simples — explicou o Peregrino. — Enquanto tentava resgatar meu mestre em frente à Caverna do Vento Amarelo, um monstro soprou uma rajada de ar no meu rosto, que irritou meus olhos. Desde então, eles não pararam de lacrimejar e é por isso que preciso encontrar um remédio para eles.

— Santo céu! — exclamou o ancião. — Como é possível que um monge tão jovem como você minta de forma tão descarada? Os ventos produzidos pelo Rei do Vento Amarelo são terríveis e não têm comparação com os ventos da primavera ou do outono, os que batem nos pinheiros ou no bambu, e os que sopram dos quatro pontos cardeais.

— Deve ser um "vento estoura-cabeças", ou um "vento de orelha de bode", ou um "vento leproso", ou um "vento que causa enxaqueca". Não é? — perguntou Bajie.

— Não, não — negou o ancião. — Esse vento é chamado de "Vento Sagrado de Samadhi".

— Poderia falar mais sobre ele? — sugeriu o Peregrino.

— Esse vento — explicou o ancião — pode obscurecer o Céu e a Terra e fazer tremer tanto os deuses quanto os espíritos. É tão destrutivo que reduz as rochas a pó. Nenhum homem é capaz de enfrentá-lo. Se você realmente tivesse se deparado com ele, a essa altura não estaria vivo. Somente poderia sair com vida se fosse um imortal.

—  De fato! — admitiu o Peregrino. — Posso não ser um imortal, mas seria preciso muito mais que isso para me matar! De qualquer forma, tenho que admitir que esse vento fez meus olhos arderem e lacrimejarem.

— Se você fala assim, deve ser uma pessoa experiente — disse o ancião.  Nossa humilde região não tem ninguém que venda remédio para os olhos. Mas eu mesmo sofro de lacrimejamento quando o vento sopra no meu rosto. Certa vez, encontrei uma pessoa extraordinária que me deu uma receita. É chamada de "Pomada de Três Flores e Nove Sementes", capaz de curar todas as doenças oculares causadas pelo vento.

Ao ouvir isso, o Peregrino inclinou a cabeça e disse com inesperada humildade:

— Gostaria de poder experimentá-lo. Vocês se importariam de me emprestar um pouco dessa pomada?

O ancião atendeu ao pedido e se retirou para um dos quartos da casa. Logo voltou com um frasco de cornalina. Destampou-o e, usando uma pequena vareta de jade, aplicou um pouco da pomada nos olhos do Peregrino. Ele também recomendou que este mantivesse os olhos fechados e descansasse, pois estaria bem pela manhã. 

Feito isso, o ancião pegou o frasco e se retirou com seus criados. Bajie desamarrou a bagagem, preparou a cama e pediu para o Peregrino se deitar. Seguindo à risca aos conselhos do ancião, Wukong não se atreveu a abrir os olhos e se moveu pela sala tateando o caminho com as mãos estendidas. Ao vê-lo, Bajie soltou uma gargalhada e perguntou:

— Gostaria de um bengala, senhor?

— Maldito estúpido! — protestou o Peregrino. — Você quer me tratar como um cego?

Bajie continuou rindo baixo o quanto quis e, finalmente, adormeceu. O Peregrino, por sua vez, sentou-se no colchão e começou a fazer os exercícios que o ajudavam a manter seus poderes mágicos, pegando no sono somente após a terceira vigília. Logo chegou a quinta vigília e o oriente começou a se tingir de luz. Após esfregar o rosto com as duas mãos, o Peregrino abriu os olhos e exclamou, aliviado:

— Essa pomada é realmente fantástica! Agora vejo cem vezes melhor do que antes!

Ele então virou a cabeça para olhar em volta, e ficou surpreso ao perceber que não havia nem aldeia nem quarto algum, mas apenas algumas acácias e alguns salgueiros. Tanto ele quanto Bajie estavam deitados em um prado de gramas verdes

Nesse exato momento, Bajie começou a se mexer, dizendo: 

— Irmão mais velho, por que você está fazendo todo esse barulho?

— Abra os olhos e veja você mesmo — aconselhou o Peregrino.

Bajie levantou a cabeça e, atônito, constatou que a casa havia desaparecido. Ele ficou tão assustado que deu um salto e gritou, preocupado:

— Onde está o cavalo?

— Você não o vê ali, amarrado a uma árvore? — respondeu o Peregrino.

— E a bagagem? — insistiu Bajie no mesmo tom.

— Está ao seu lado — respondeu novamente o Peregrino. — Parece que o cego aqui é você.

— Que família estranha! — exclamou Bajie. — Se eles planejavam se mudar, por que não nos avisaram? Se o tivessem feito, talvez tivessem recebido um pouco de chá e frutas de como presente de despedida. Suponho que devam estar tentando se esconder de algo, e fugiram às pressas com medo de serem denunciados por nós. Céus! Devemos ter dormido profundamente! Como é possível que não tenhamos ouvimos nada quando desmontavam a casa toda? 

— Pare de dizer tolices! — instou o Peregrino. — Vá até aquela árvore e veja o que diz o papel colado no tronco.

Bajie assim o fez, e viu que se tratava de um poema de quatro linhas, que dizia:

"Esta humilde morada não é lar mortal:

Um chalé criado pelos Guardiões da Lei,

Que te deram a pomada milagrosa para curar a ferida.

Não tema, e faça o seu melhor para subjugar o demônio."

— Que bando de deuses caprichosos! — exclamou o Peregrino, irritado. — Não pedi mais sua ajuda desde que transformaram o dragão em um cavalo. Parece que não gostaram da minha atitude e começaram a pregar peças em mim.

— Pare de se achar tão importante, por favor — pediu Bajie. — Como os deuses vão vir em seu auxílio quando você pedir? Você se acha tão importante assim?

— Você não está a par disso — explicou o Peregrino. — Mas a verdade é que a Bodhisattva ordenou aos Dezoito Protetores dos Mosteiros, aos Seis Deuses da Luz e aos Seis das Trevas, aos Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais e aos Quatro Sentinelas que protegessem nosso mestre o tempo todo. Eles mesmos me revelaram suas identidades, mas, como acabo de lhe dizer, desde que você está conosco, não voltei a me servir deles.

— Se a missão deles é proteger nosso mestre secretamente, é natural que não tenham se revelado — concluiu Bajie. — Daí terem criado a aldeia que vimos ontem à noite. Não fique bravo com eles. Afinal, curaram seus olhos e nos deram um bom jantar. Podemos dizer, portanto, que cumpriram sua missão à risca. Por que criticar o modo como agiram? Em vez de falar, o que devemos fazer é ir salvar nosso mestre o mais rápido possível.

— Você tem razão — reconheceu o Peregrino. — Este lugar não está longe da Caverna do Vento Amarelo. Fique aqui cuidando do cavalo e da bagagem, enquanto eu me aproximo para ver como está nosso mestre. Depois podemos enfrentar a besta juntos.

— Excelente ideia — disse Bajie. — A primeira coisa que devemos descobrir é se o mestre está vivo ou morto. Se ele deixou este mundo, o melhor que podemos fazer é cuidar de nossos próprios assuntos. Se, por outro lado, ele ainda está vivo, devemos fazer tudo o que pudermos para libertá-lo. Que ninguém possa nos acusar depois de não termos cumprido nossas responsabilidades.

— Você pode parar de dizer tolices? — reclamou o Peregrino. — Estou indo.

De um salto, ele chegou até a entrada da caverna, encontrando a porta fechada e todos os seus habitantes profundamente adormecidos. Sem fazer o menor ruído, para não acordá-los, fez um sinal mágico, recitou seu respectivo encantamento e, com um leve tremor no corpo, se transformou em um mosquito diminuto e delicado. 

Temos um poema sobre isso, que afirma:

"Embora seu corpo seja notavelmente pequeno, possui um ferrão muito afiado e um zumbido que lembra o terrível estrondo do trovão. Especialista em se infiltrar pela densa rede das telas dos mosquiteiros, precisa de um ambiente quente e úmido. Seus únicos temores são o fumo do incenso e o rápido movimento dos leques. Luzes e lâmpadas o atraem como o ouro atrai um avarento e, apesar de sua aparência frágil, possui uma inteligência extraordinária e uma rapidez de movimentos surpreendente. Assim, não encontra obstáculo algum para entrar na caverna de uma besta."

O demônio que supostamente deveria vigiar a porta estava dormindo no chão, roncando ruidosamente. O Peregrino o picou no rosto, obrigando-o a se virar e a exclamar, meio acordado:

—  Que mosquito! Com uma picada, inchou todo o meu rosto.

Ele então abriu completamente os olhos e acrescentou, alarmado: 

— Caramba, já é dia!

Naquele exato momento, ouviu-se um estalido e uma segunda porta se abriu. O Peregrino aproveitou a oportunidade e se esgueirou rapidamente por ela. O monstro estava recomendando a todos os seus subordinados que tivessem especial cuidado em manter bem vigiadas todas as entradas, enquanto preparavam as armas.

— Se o furacão de ontem não acabou com esse Peregrino Sun — concluiu dizendo — , com certeza ele volta hoje outra vez. Mas não se preocupem, porque, assim que ele chegar, acabaremos com ele.

O Peregrino continuou voando e chegou à parte de trás da caverna, onde encontrou uma porta fechada a cadeado. Entrando com dificuldade por uma fresta que havia nela, descobriu que conduzia a um esplêndido jardim, no centro do qual estava o monge Tang amarrado a um poste. O mestre não parava de chorar, perguntando-se onde poderiam estar Wukong e Bajie. O Peregrino parou imediatamente seu voo e, pousando em sua cabeça, disse:

— Mestre!


— Onde você está escondido, Wukong? — perguntou Sanzang, reconhecendo sua voz. — Estou pensando em você há muito tempo. Pode me dizer de onde você está falando?

— De sua cabeça — respondeu o Peregrino. — Acalme-se e pare de se preocupar. Antes de libertá-lo, é preciso capturar o monstro.

— E quando você fará isso? — perguntou novamente o monge Tang.

— Bajie já matou o Tigre que o raptou — explicou o Peregrino. — Mas esse monstro não é fácil de dominar, porque possui um poderoso vento como arma. De qualquer forma, espero poder caçá-lo hoje mesmo. Tranquilize-se e pare de chorar. Agora tenho que ir!

Tendo dito isso, Wukong voou imediatamente para a frente da caverna, onde o velho monstro estava sentado em um lugar alto, revistando os comandantes de seus exércitos. Nesse momento, entrou correndo um demônio, que informou, muito agitado:

— Eu estava patrulhando a montanha, quando de repente me deparei com um monge que tinha um focinho muito comprido e umas orelhas enormes. Ele estava sentado na floresta, próxima à entrada de nossa caverna. Se eu não tivesse me apressado, ele com certeza teria me pegado. De qualquer forma, não vi em lugar algum o macaco peludo que veio aqui ontem.

— Isso quer dizer — concluiu o monstro — que ou o vento matou o Peregrino Sun, ou que ele foi buscar ajuda.

— Seria desejável que ele estivesse morto — comentou um dos demônios. — No entanto, suponhamos que não está. O que faremos se ele conseguir trazer um grupo de guerreiros celestes?

— Eu não tenho medo desses esfarrapados — zombou o monstro. — Somente o Bodhisattva Lingji pode enfrentar meu vento. Os demais são incapazes de me causar o menor dano.

O Peregrino estava justamente acima dele, pendurado em uma viga, e ficou muito feliz ao ouvir tal confissão. Imediatamente saiu voando da caverna e, após adquirir sua forma habitual, dirigiu-se ao lugar onde havia deixado Bajie.

— Onde você estava? — perguntou este, muito agitado. — Acabei de encontrar um monstro, que persegui sem conseguir pegar.

— Agradeço sua ajuda — disse o Peregrino sorrindo. —  Para entrar na caverna e ver como estava nosso mestre, me transformei em um mosquito. Assim, pude vê-lo amarrado a um poste no jardim, chorando amargamente sua sorte. Depois de aconselhá-lo a não se desesperar, voltei ao salão onde estavam reunidos o monstro e seus comandantes, para espionar. Logo após minha chegada, apareceu, ofegante, um pequeno demônio, que informou que você havia tentado pegá-lo, mas não havia sinal de mim. O monstro concluiu que minha ausência se devia a duas possíveis causas: ou o furacão havia me matado ou eu havia ido buscar ajuda. Depois, sem que ninguém perguntasse, ele disse algo realmente fantástico.

— A que você se refere? — perguntou novamente Bajie.

— Aquele arrogante — respondeu o Peregrino — afirmou que não temia nenhum guerreiro celeste, porque o único capaz de enfrentar o seu vento é o Bodhisattva Lingji. O problema é que não sei onde esse Lingji vive.

Enquanto falavam, viram aproximar-se um ancião com passo leve. Apesar de sua idade avançada, possuía uma constituição robusta e não precisava de uma bengala para caminhar. Seu cabelo e sua barba eram tão brancos que pareciam feitos de flocos de neve. Embora não houvesse dúvida sobre a fortaleza de seu espírito, seus olhos davam a impressão de estar um tanto apagados. Sua figura, de qualquer forma, denotava uma grande determinação, qualidade que combinava perfeitamente com o aspecto magro e musculoso de seu corpo. Seus passos eram, no entanto, muito lentos e ele caminhava com a cabeça abaixada, mostrando mais claramente o quão densas eram suas sobrancelhas e o colorido rosado, completamente juvenil, de seu rosto. Quem o visse não poderia duvidar de que se tratava de um homem, embora na realidade não fosse outro senão a própria Estrela da Longevidade (8). 

Ao vê-lo, Bajie deu um empurrão no Peregrino e disse:

— Como diz o provérbio, "quem não conhece o caminho deve perguntar a um transeunte". Por que você não aborda esse ancião e pergunta o que deseja saber?

O Grande Sábio deixou de lado o bastão de ferro, ajeitou suas roupas o melhor que pôde e, aproximando-se do ancião, disse:

— Aceite meus mais humildes respeitos.

O ancião fez um gesto de desagrado e devolveu a saudação de má vontade, perguntando:

— De onde você é e o que está fazendo em um lugar tão selvagem e remoto como este?

— Nós - explicou o Peregrino respeitosamente — somos monges que se dirigem ao Oeste em busca de escrituras sagradas. Precisamente neste local, perdemos ontem nosso mestre e precisamos saber onde vive o Bodhisattva Lingji para poder libertá-lo. Você conhece sua localização?

— Lingji reside a seis mil quilômetros ao sul daqui — respondeu o ancião — , em uma elevação conhecida como o Monte Sumeru. Nela está situado o Monastério da Verdade, um lugar onde o Bodhisattva ensina os sutras incessantemente. Suponho que você esteja tentando obter escrituras dele.

— Não dele — disse o Peregrino — , mas tenho algo que requer sua atenção. Você poderia me indicar como chegar a esse lugar?

— Siga por aquele caminho — respondeu o ancião, apontando para o sul com a mão.

O Grande Sábio moveu ligeiramente a cabeça e o ancião aproveitou sua distração para se transformar em uma leve brisa e desaparecer sem deixar rastro. Ao lado do caminho, no entanto, apareceu um pedaço de papel no qual estavam escritos os seguintes versos:

— Permita-nos esclarecer ao Grande Sábio, Sósia do Céu, que o ancião com quem acaba de encontrar-se não é outro senão o Imortal Li. É preciso saber, além disso, que no Monte Sumeru encontra-se o Cajado do Dragão Voador, uma arma invencível que Lingji recebeu há muitos anos das mãos do próprio Buda.

Após ler atentamente, o Peregrino retornou ao lado de Bajie, que comentou, um tanto desanimado:

— Ultimamente nossa sorte não tem sido muito boa. Estamos encontrando espíritos em plena luz do dia. Pode me dizer quem era aquele ancião que acabou de se transformar em brisa?

O Peregrino entregou-lhe o pedaço de papel e Bajie voltou a perguntar:

— Quem é esse Imortal Li?

— É um dos nomes pelos quais é conhecido Taibai Jinxing, a Estrela Dourada do Planeta Vênus — respondeu Wukong.

Bajie então se curvou apressadamente para o céu, gritando: — Benfeitor! Benfeitor! Se não fosse pela Estrela Dourada, que pessoalmente implorou ao Imperador de Jade que fosse misericordioso, não sei o que teria acontecido com o velho Porco!

— Vamos, vamos — disse-lhe imediatamente o Peregrino. — É bom que você se mostre grato, mas não deveria se expor tão facilmente aos possíveis ataques de nossos inimigos. Esconda-se entre as árvores e vigie a bagagem e o cavalo. Eu vou até o Monte Sumeru para solicitar a ajuda do Bodhisattva.

— Se é esse o seu desejo... — replicou Bajie. — Vá logo e não se preocupe comigo. Domínio perfeitamente a tática da tartaruga: quando não há necessidade de sair, o melhor é guardar a cabeça dentro do casco.

Com um salto, o Grande Sábio montou em uma nuvem e dirigiu-se para o sul. Sua velocidade era tanta que, com um aceno de cabeça, ele percorreu seis mil quilômetros, distância que se multiplicou por três assim que ele sacudiu imperceptivelmente o torso. Não demorou, portanto, a ver uma montanha muito alta envolta em um manto de neblina e nuvens sagradas. Na dobra da montanha erguia-se um templo, de onde emanava o harmonioso som de sinos e gongos, acompanhado pelas caprichosas volutas de incenso. 

Ao se aproximar da porta, o Grande Sábio viu um taoísta com um cordão de contas ao redor do pescoço, que recitava o nome de Buda sem parar. Aproximando-se dele, o Peregrino disse:

— Receba minha humilde saudação.

— De onde você vem, irmão? — perguntou o Taoísta, devolvendo-lhe respeitosamente a saudação.

— É aqui que o Bodhisattva Lingji expõe suas doutrinas? — perguntou, por sua vez, o Peregrino.

— É sim — reconheceu o Taoísta. — Deseja falar com alguém?

— Ficaria muito grato se tivesse a gentileza de anunciar-me — respondeu o Peregrino. — Sou discípulo de Sanzang, Mestre da Lei e irmão do Grande Imperador dos Tang, das Terras do Leste. Embora em um tempo fui conhecido como Sun Wukong, o Grande Sábio, Sósia do Céu, agora me chamo simplesmente o Peregrino. Tenha certeza de que, se não tivesse um assunto muito importante a tratar com o Bodhisattva, jamais ousaria vir solicitar uma audiência.

— Receio — disse o Taoísta, sorrindo timidamente — que  você me tenha me oferecido uma explicação muito longa para a minha frágil memória. Lamento, mas não conseguirei me lembrar de tudo o que você me falou.

— Nesse caso — tranquilizou-o o Peregrino — , diga simplesmente que acaba de chegar Sun Wukong, o discípulo do monge Tang.

O Taoísta não teve dificuldades em memorizar esse nome e correu ao salão das palestras para anunciar sua chegada ao Bodhisattva, que imediatamente trocou de túnica e ordenou que queimassem um pouco mais de incenso em deferência a tão digno visitante. Impaciente, o Grande Sábio aproximou-se da porta e espiou com cuidado por uma fresta. O salão era realmente magnífico. Para onde quer que se olhasse, viam-se bordados e sedas, que conferiam ao ambiente uma aparência de solenidade e grandeza. Enquanto os discípulos recitavam o Sutra do Lótus, o mestre que os guiava batia suavemente o gongo dourado. Diante da imagem de Buda haviam oferendas de frutas e flores imortais, junto com iguarias e caprichos vegetarianos. As chamas dos candelabros eram tão brilhantes como arco-íris, competindo em beleza com a fumaça de cor jade do aromático incenso. Em um ambiente tão sereno, era fácil assimilar os ensinamentos e depois meditar sobre eles, caminhando entre os pinheiros que rodeavam o mosteiro. Uma vez que Māra morreu, a espada da sabedoria retornou lentamente à sua bainha. Sua perfeição invejável reinava de forma admirável naquela seleta assembleia.

O Bodhisattva ajustou suas vestes antes de dar as boas-vindas ao Peregrino, que tomou o assento dos convidados. Quase imediatamente, ofereceram-lhe uma xícara de chá, mas ele a recusou, dizendo:

— Não temos muito tempo. A vida de meu mestre corre grave perigo na Montanha do Vento Amarelo. Esse é o motivo pelo qual me atrevi a vir pedir que faça uso do extraordinário poder do vosso dharma, a fim de derrotar a besta que o mantém encarcerado.

— Um pedido muito justo — reconheceu o Bodhisattva. — O próprio Tathagata me ordenou que subjulgasse o Monstro do Vento Amarelo e o trouxesse até aqui. Para isso, ele me entregou uma pérola capaz de deter todos os tipos de ventos e um cajado conhecido como Cajado do Dragão Voador. Há muitos anos, usei esses artefatos para pôr fim aos seus atos destrutivos. Se não acabei com sua vida na época, foi porque ele mesmo prometeu retirar-se para a montanha onde agora habita e não voltar a matar ninguém. Jamais esperei que ele sequestrasse seu mestre e voltasse a transgredir a lei. Devo reconhecer que fui ingênuo ao confiar na palavra de um monstro.

O Bodhisattva insistiu em oferecer ao Peregrino algo para comer, mas este recusou novamente, considerando o perigo que seu mestre corria. Não restou ao Bodhisattva outra alternativa senão pegar o Cajado do Dragão Voador e elevar-se pelas nuvens na companhia do Grande Sábio. Em um piscar de olhos, chegaram à Montanha do Vento Amarelo e o Bodhisattva disse ao Peregrino:

— Acho que o melhor é eu ficar aqui em cima, enquanto você vai desafiá-lo. Ele tem tanto medo de mim que, se me vir, não se atreverá a sair. É essencial tirá-lo de sua guarida para que eu possa exercer meu poder.

O Peregrino aceitou a sugestão e desceu da nuvem. Sem esperar ser anunciado, pegou o bastão de ferro e destruiu com ele a porta da caverna, enquanto gritava exaltado:

— Devolva imediatamente meu mestre, monstro maldito!

Os demônios encarregados de proteger a caverna estavam tão aterrorizados que correram para informar seu senhor, dizendo:

— O macaco destruiu nossas defesas!

— Parece que essa besta não tem a menor ideia de etiqueta — comentou o monstro, mal-humorado. — Em vez de vir me desafiar, decidiu destruir as portas da minha caverna. Ele sairá perdendo, porque, por ser mal-educado, vou destroçá-lo com meu vento sagrado.

Novamente, ele colocou a armadura e pegou o tridente. Ao ver o Peregrino, lançou contra seu peito, sem aviso, um golpe tremendo. Felizmente, o Grande Sábio desviou-se e esquivou-se, contra-atacando imediatamente com o bastão de ferro. 

Mal haviam lutado alguns assaltos, quando o monstro virou a cabeça para o sudoeste e encheu os pulmões de ar. Nesse mesmo momento, o Bodhisattva lançou do alto o Cajado do Dragão Voador e recitou o correspondente encantamento. 


Imediatamente, o cajado se transformou em um dragão dourado de oito garras, que agarrou o monstro pela cabeça e o lançou duas ou três vezes contra as rochas do penhasco. A besta então adquiriu sua forma habitual e se transformou em um vison de pelagem avermelhada. 

O Peregrino levantou o bastão de ferro com a intenção de acabar com ele, mas o Bodhisattva o impediu, gritando:

— Grande Sábio, não o machuque. Eu tenho que levá-lo até Tathagata. Como você mesmo pode ver, este monstro não passava de um vulgar roedor da Montanha do Espírito que conheceu a luz do Tao. Mas não conseguiu dominar completamente sua natureza selvagem e roubou um pouco de óleo de uma lamparina de cristal. Quando a lamparina se apagou, ele teve tanto medo de ser pego por um Vajrapani que fugiu para essa região e e se tornou um monstro espiritualTathagata decidiu, no entanto, que ele não merecia a pena de morte, e me encarregou de vigiá-lo; mas se ele tirasse a vida de alguém ou cometesse qualquer outro ato maligno, ele deveria ser levado ao Pico dos Abutres. Como ele agora o ofendeu, Grande Sábio, e capturou o Sacerdote Tang com a intenção de assassiná-lo, devo levá-lo até  Tathagata para que seja condenado por seu crime.

O Peregrino mal teve tempo de mostrar sua gratidão ao Bodhisattva. Assim que terminou de falar, elevou-se pelos ares e dirigiu-se para o oeste. 

Alheio a tudo isso, Zhu Bajie estava se perguntando como teria se saído o Peregrino, quando ouviu alguém chamá-lo, dizendo:

— Traga o cavalo e a bagagem, irmão Wuneng.

Reconhecendo imediatamente a voz do Peregrino, Bajie correu para o arvoredo e lhe perguntou:

— Como foi tudo?

— Convidei o Bodhisattva Lingji para vir e ele mesmo se encarregou de capturar o monstro com o Cajado do Dragão Voador — respondeu o Peregrino. — A besta não era mais que um pequeno vison avermelhado que alcançou a perfeição. Por isso, o Bodhisattva quis levá-lo à Montanha do Espírito, para que Tathagata decida sobre seu destino. Vamos à caverna libertar nosso mestre.

Bajie ficou encantado. Em companhia do Peregrino, lançou-se à conquista da caverna, matando todas as lebres, raposas e cervos que encontraram pelo caminho. 

Sem perder tempo, chegaram até o jardim dos fundos e finalmente libertaram seu mestre, que lhes perguntou enquanto saíam:

— Como conseguiram capturar o monstro?

O Peregrino então relatou como havia buscado ajuda do Bodhisattva e o mestre agradeceu de todo coração. Na caverna, encontraram alguma comida vegetariana e a consumiram junto com arroz e chá. 

Depois de comer, retomaram o caminho em direção ao Oeste. Não sabemos o que aconteceu a seguir. Quem quiser descobrir deverá ouvir as explicações que serão oferecidas no próximo capítulo.


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Notas do Capítulo XXI

      1. Esses espíritos responsáveis pela proteção dos diferentes mosteiros recebiam o nome de Viharapalas;
      2. Akshobhya é um dos muitos Budas encontrados no Budismo Mahayana e Vajrayana. Ele representa o Dharma que transforma o ódio e a aversão em sabedoria;
      3. Mañjuśrī é um bodhisattva associado à prajñā (sabedoria) no Budismo Mahāyāna. Mañjuśrī é frequentemente retratado montado em um leão azul ou sentado na pele de um leão;
      4. Samantabhadra (também chamado Viśvabhadra) é o Senhor da Verdade no Budismo, que representa a prática e meditação de todos os Budas. Ele raramente é retratado sozinho e geralmente é encontrado em uma trindade no lado direito de Shakyamuni, montado em um elefante branco;
      5. Zhenwu, também conhecido como o Guerreiro do Norte, foi um personagem mítico que derrotou uma tartaruga e uma serpente de enorme tamanho, animais esses dotados de uma forte carga simbólica, dadas suas conexões com o yin e o yang;
      6. Zitong é uma divindade taoísta que sempre ia montada em uma mula;
      7. Lu Ban foi um histórico artesão da época da primavera e do outono, que chegou a ser patrono dos pedreiros e carpinteiros devido às suas extraordinárias habilidades artesanais;
      8. Outro nome pelo qual atende Taibai Jinxing, a Estrela Dourada do Planeta Vênus.


                                                      • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
                                                      • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
                                                      fontes consultadas para a pesquisa:

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                                                      Ruby