25 de abril de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo LVI

 ۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang

CAPÍTULO LVI:

FORA DE SI, O ESPÍRITO ANIQUILA OS BANDIDOS. IMERSO EM CONFUSÃO, O TAO EXPULSA O MACACO DA MENTE.

"Quando a mente encontra-se totalmente serena e nenhum pensamento vem perturbar sua paz, ela atinge o ápice da perfeição. Para alcançar esse estado elevado, é preciso manter o controle rigoroso sobre o macaco e o cavalo — símbolos do espírito e da energia vital. O espírito e o sêmen devem estar em perfeito equilíbrio, e os Seis Ladrões (1) devem ser completamente eliminados. Somente assim surgem, com vigor, os Três Veículos (2), pois a Iluminação só se manifesta quando todos os nidanas são extintos. Uma vez destruídas as formas, pode-se alcançar o verdadeiro Reino do Oeste, onde a felicidade e a plenitude são absolutas".

Contava-mos que o monge Tang havia conseguido preservar as energias de seu corpo graças à firmeza de seu caráter. Sua determinação era tamanha que, mesmo diante das tentações da demônia, não cederia, ainda que fosse dilacerado por ganchos de ferro. Além disso, ele teve a sorte de contar com a ajuda do Peregrino e seus outros discípulos, que derrotaram o Espírito Escorpião e o libertaram da Caverna do Alaúde.

Ao retomarem a jornada, o clima estava claro e ameno. Uma brisa suave espalhava por toda parte o perfume quente das orquídeas silvestres. Os brotos de bambu ainda guardavam, como um tesouro precioso, o frescor das últimas chuvas. Não havia uma alma viva por aquelas trilhas, nem mesmo os coletores de ervas medicinais. Os riachos corriam repletos de flores coloridas, em contraste com o tom pardo dos pássaros que buscavam abrigo entre os salgueiros. Enxames de abelhas zumbiam em torno das romãzeiras, indiferentes à beleza que as cercava. E, embora as embarcações-dragão ainda navegassem em luto pelas águas do rio Miluo, os viajantes daquela longa jornada já não se preocupavam em embrulhar os tradicionais bolinhos de arroz nas folhas de bambu (3). 

Enquanto mestre e discípulos apreciavam essa paisagem típica do Festival do Duplo Cinco, com o sol alto no céu, avistaram mais uma vez uma montanha imponente bloqueando seu caminho. Segurando as rédeas de seu cavalo, o venerável monge Tang virou-se para trás e disse:

— Wukong, há uma montanha à nossa frente. Receio que ela possa estar repleta de demônios. É melhor redobrarmos a atenção.

— Não se preocupe, mestre — respondeu o Peregrino. — Quem segue o caminho da fé com o desprendimento com que seguimos, não deve temer demônio algum.

Tranquilizado por essas palavras, o mestre esporeou o cavalo e seguiram adiante. Pouco tempo depois, chegaram a uma plataforma elevada, de onde se podia contemplar uma paisagem capaz de deixar qualquer espírito em suspenso. Cumes cobertos de pinheiros e cedros desapareciam no azul profundo do céu. Dos penhascos pendia uma densa rede de trepadeiras e rosas silvestres, sombreados por picos escarpados que ultrapassavam os dez mil metros de altura, com cristas que se estendiam por mais de mil. As rochas escuras estavam revestidas pelo verde intenso de musgos e líquens, coloração que se repetia nas vastas florestas de zimbros e olmos, que se espalhavam até onde a vista conseguia alcançar. Ali, o canto melodioso das aves soava sem parar, como se competissem com o murmúrio dos riachos — um tilintar suave, como jade em movimento. Os caminhos eram bordados por flores que pareciam montes de pedras preciosas. Ainda assim, atravessá-los era uma tarefa árdua. A subida era exaustiva. Os pés, sem encontrar terreno firme, escorregavam a todo momento, ameaçando o viajante com quedas dolorosas. Mas todo o sacrifício era recompensado pelas aparições repentinas de veados e raposas, sempre em pares. Chamava atenção o contraste entre o pelo escuro dos macacos e o branco quase prateado dos filhotes de cervo. De tempos em tempos, ouvia-se o rugido distante de tigres ou o canto agudo das garças, que pareciam atravessar os céus com a própria voz. Havia tantas ameixeiras e damasqueiros que bastava estender a mão para colher alimento suficiente para anos. Por todos os lados, surgiam plantas desconhecidas e flores exóticas, exibindo com orgulho o milagre delicado de seus brotos. 

O terreno era tão acidentado que, por muito tempo, os peregrinos foram obrigados a caminhar em ritmo exasperantemente lento. Após cruzarem o topo, começaram a descida pela vertente ocidental e, logo, chegaram a um trecho plano. Querendo mostrar força, Bajie pediu ao Monge Sha que levasse a bagagem e correu em direção ao cavalo, erguendo o ancinho sobre a cabeça, como se fosse atacá-lo. Queria assustar o animal, mas este sequer lhe deu atenção. Mesmo com os gritos e gestos de Bajie, o cavalo continuou marchando com a mesma calma de sempre.

— Para que tentar assustá-lo? — repreendeu o Peregrino. — Deixe que ele siga no próprio ritmo.

— O dia já está terminando e nós caminhamos sem parar — disse Bajie, encerrando a brincadeira. — Subir e descer montanhas dá uma fome danada. Que tal procurar alguma casa por perto pra ver se conseguimos algo pra comer?

— Se não houver nenhuma objeção, posso cuidar disso — respondeu o Peregrino, girando seu bastão de extremos dourados, enquanto soltava um grito estrondoso.

Apavorado, o cavalo disparou como uma flecha. Alguém poderia se perguntar por que ele temia o Peregrino e não Bajie. A resposta é simples: há mais de quinhentos anos, o próprio Imperador de Jade nomeou o macaco cavalariço dos estábulos celestes. Desde então, todos os cavalos passaram a temer os macacos. O mestre puxou as rédeas, mas não conseguiu conter o animal. Sem outra escolha, agarrou-se firme à sela e deixou que o cavalo seguisse em disparada. Assim, percorreram cerca de vinte quilômetros.

O cenário havia mudado por completo. À frente, estendia-se uma vasta região de campos cultivados. No entanto, o mestre não teve tempo para admirar aquela paisagem tranquila. De repente, ouviu-se o som metálico de armas se chocando. Logo surgiu um grupo com mais de trinta homens, armados com lanças, cimitarras, bastões e barras de ferro. Eles bloquearam a estrada e gritaram:

— Para onde pensa que vai, monge?


O monge Tang levou um susto tão grande que perdeu o controle do cavalo e caiu no chão. Arrastou-se como pôde até se esconder atrás de um arbusto e, tremendo dos pés à cabeça, respondeu:

— Por favor, nobres senhores, não me façam mal! Peço que poupem minha vida!

— Muito bem — responderam dois homens de aparência imponente, que pareciam liderar o grupo — mas terá que nos entregar todo o dinheiro que estiver carregando.


Só então o mestre percebeu que estava diante de bandidos. Levantou lentamente a cabeça e viu que um deles tinha o rosto esverdeado, com um queixo tão saliente quanto o de um espírito maligno. O outro tinha olhos grandes e saltados, como os da própria morte. De suas têmporas, brotavam tufos de cabelos avermelhados que lembravam chamas consumindo uma cabana. Suas barbas, de um amarelo estranho, eram tão rígidas que pareciam pregos fincados no rosto. Ambos usavam gorros feitos de pele de tigre e cintos feitos de couro de texugo. Um empunhava um porrete adornado com dentes de lobo incrustados, enquanto o outro carregava um bastão áspero, apoiado nas costas. O da esquerda lembrava um tigre das montanhas, e o da direita não ficava atrás, pois era a imagem viva de um dragão emergindo veloz das águas.

Ciente de que argumentos não adiantariam, Sanzang não teve escolha a não ser se levantar. Juntou as palmas das mãos em sinal de respeito e disse:

— Este humilde monge, nobres senhores, é apenas um enviado do Imperador da dinastia Tang, cujo reino está nas Terras do Leste. Estou viajando rumo ao Paraíso Ocidental, em busca das escrituras sagradas de Buda. Já se passaram muitos anos desde que deixei a cidade de Chang'an. Por isso, embora um dia tenha partido com bolsas cheias, hoje não me resta sequer uma única moeda. A verdade é que quem renuncia à família e à vida comum depende apenas das esmolas recebidas pelo caminho. Como poderia, então, entregar algum dinheiro? Peço apenas que tenham compaixão por este pobre monge e me permitam seguir viagem.

— E o que quer dizer com isso de "compaixão"? — retrucaram os dois chefes dos bandidos, aproximando-se dele. — Este território nos pertence. Estamos sempre à espreita, como tigres famintos, prontos para tomar de qualquer viajante tudo o que tiver de valor. Se não há dinheiro contigo, levaremos suas roupas e o cavalo. Só então poderá continuar sua viagem.

— Amitabha Buda! — exclamou Sanzang, escandalizado. — A túnica que visto foi feita com algodão que uma família me deu como esmola e com agulhas que recebi de outra. Está tão remendada que já não serve nem para mendigar. Se vocês a tomarem de mim, estarão me matando. Agindo como valentões nesta vida, talvez acabem renascendo como animais na próxima!

Enfurecido com as palavras que ouviu, um dos bandidos agarrou um porrete e avançou em direção ao mestre, com a intenção de espancá-lo. O monge permaneceu em silêncio, mas pensou consigo mesmo:

— Coitado... deve achar que seu porrete é temível. Espere até conhecer o bastão do meu discípulo!

O bandido, que não era do tipo que podia ser convencido por palavras, começou a golpeá-lo com uma vara. O monge Tang jamais havia mentido em toda sua vida, mas, diante de uma situação tão desesperadora, não lhe restou alternativa senão dizer:

— Por favor, nobres senhores, não me batam! Um dos meus discípulos está para chegar a qualquer momento, e carrega consigo algumas onças de prata. Quando ele chegar, teremos prazer em entregá-las a vocês.


— Esse monge não aguenta dor nenhuma.  zombou um dos bandidos. — Amarrem-no!

Sem demora, dois dos homens que o acompanhavam amarraram o mestre com uma corda e o penduraram em um galho de árvore. Enquanto isso, os outros três peregrinos  haviam saído em perseguição ao cavalo, mas as gargalhadas os impediam de correr na velocidade que desejavam. Sem conseguir conter o riso, Bajie disse:

— O mestre partiu rápido demais! Fico imaginando onde foi que parou para nos esperar.


Ele mal havia terminado de dizer isso, quando avistou o mestre ao longe, pendurado em uma árvore.

— Vejam só o mestre! — exclamou Bajie, ainda rindo. — Como a espera foi longa, ele resolveu subir na árvore e brincar de balanço. 

— Pare de dizer bobagens, seu idiota! — repreendeu-o o Peregrino. — Parece que ele está pendurado de verdade. Fiquem aqui, enquanto eu dou uma olhada de perto.

Com um salto, subiu em um pequeno monte próximo dali e, de lá, conseguiu ver claramente o grupo de bandidos.

— Que sorte! — murmurou Wukong, esfregando as mãos de empolgação. — Já estava com saudade de um pouco de diversão.

Desceu o monte às pressas e, com um leve movimento do corpo, transformou-se em um jovem monge de cerca de dezesseis anos, com uma bolsa azul pendurada no ombro. 


Então, correndo até onde o mestre estava, o Peregrino perguntou em voz alta:

— Quem são esses homens perversos?  Por que não me conta o que aconteceu?

— Para que tantas perguntas? — respondeu o mestre, visivelmente incomodado. — Vai me libertar ou não?


— Que tipo de "negócios" esses sujeitos praticam? insistiu o Peregrino.

— São bandidos de estrada — explicou Sanzang. — Eles param os viajantes e roubam tudo o que têm. Como estava de mãos vazias, me amarraram e me penduraram aqui, esperando que você chegasse para resolver a situação de vez. Se não conseguirmos convencê-los, irão levar tudo o que temos, inclusive o cavalo.

— Que falta de coragem! — disse o Peregrino, sorrindo. — Há muitos monges no mundo, mas nenhum tão medroso quanto o senhor. Taizong, O grande Imperador dos Tang, o enviou até o Paraíso Ocidental para encontrar-se com Buda. Além disso, este cavalo é, na verdade, um dragão. Quem teria forças para tomá-lo à força?

— Pois veja como estou amarrado — retrucou Sanzang. — O que posso fazer se resolverem me espancar?

— Então — concluiu o Peregrino —, o que foi que contou a eles?

— Não tive escolha senão falar sobre você — respondeu Sanzang. — O que mais poderia fazer? Estavam ameaçando me espancar.

— Que pouca resistência! — exclamou o Peregrino. — O que exatamente contou a eles sobre mim?

— Disse que era você quem carregava o dinheiro — confessou Sanzang. — Tive que inventar isso para que parassem de me bater. Foi só para ganhar tempo.

— Muito bem — comentou o Peregrino, com ironia. — Agradeço por esse enorme favor. Era justamente esse tipo de confissão que eu esperava.  Se fizesse mais setenta ou oitenta dessas por mês, nunca faltaria trabalho, garanto.

Ao perceberem que o jovem conversava com o mestre, os bandidos os cercaram e disseram:

— Seu mestre acabou de nos confessar que você é quem está com o dinheiro. Se entregar tudo de boa vontade, pouparemos suas vidas. Caso contrário, morrerão antes de conseguirem dizer uma só palavra.

— Para que tanto alvoroço? — disse o Peregrino, tirando a bolsa de pano que carregava no ombro. Todo o dinheiro que temos está aqui, mas aviso que não é muito: cerca de vinte libras de ouro e trinta lingotes de prata. Não lembro ao certo da quantidade de moedas. Fiquem com tudo, se quiserem. Só peço que não machuquem meu mestre. Como diz um antigo provérbio: “A riqueza pode ter seu valor, mas só a virtude é realmente necessária”. O que vocês exigem de nós não tem grande importância. Para quem já renunciou à própria família, sempre há algum canto onde se possa mendigar. Vamos nos virar, assim que encontrarmos alguém mais velho, disposto a acumular méritos. Quanto será que alguém como nós precisa para viver? Só desejo que libertem meu mestre. Com isso, já me dou por satisfeito.


— O velho monge é muito mesquinho — comentaram os bandidos, satisfeitos. — Mas felizmente o jovem tem generosidade de sobra.

— Soltem-no imediatamente! — ordenou um dos líderes do bando.

Assim que se viu livre, o mestre montou no cavalo e, sem se importar com o Peregrino, açoitou o cavalo e retornou ao mesmo caminho de antes.

— Está indo na direção errada! — gritou o Peregrino. Em seguida, pegou a bolsa e tentou alcançá-lo, mas foi impedido por um dos bandidos.

— Para onde pensa que vai? — perguntou o chefe do bando. — Entregue o dinheiro, se não quiser morrer agora mesmo.

— Como eu ia dizendo — respondeu o Peregrino, sorrindo —, vamos dividir o dinheiro em três partes.


— Esse monge é mais esperto do que pensávamos! — exclamou um dos chefes dos bandidos, irritado. — Agora que o mestre dele está a salvo, quer ficar com uma parte para si. Está bem. Mostre tudo o que está carregando. Se for muito, deixaremos que leve um pouco para que possa comprar comida.

— Não era bem isso o que eu queria dizer — respondeu o Peregrino. — Acha mesmo que carrego dinheiro comigo? O que eu quis dizer é que vocês devem dividir comigo todo o ouro e prata que roubaram.


— Ouviram isso? — gritou um dos chefes, fora de si. — Esse monge não sabe o que é bom! Não só se recusa a nos entregar o que tem, como ainda exige que entreguemos a ele o que é nosso! Chega de conversa! O que você precisa é de uma boa surra!

Erguendo seu bastão nodoso, desferiu sete ou oito golpes sobre a cabeça do Peregrino, mas este permaneceu parado, como se nada tivesse acontecido.

— Se é assim que pretende bater — disse Wukong, rindo —, melhor esperar pela próxima primavera para que eu sinta algum efeito.

— Que cabeça dura tem esse monge! — exclamou o bandido, espantado.


— Só um pouco — respondeu o Peregrino, com um sorriso no rosto. — Mas, de qualquer forma, agradeço o elogio.

Cansados de tanta conversa fiada, mais dois bandidos se juntaram ao chefe e começaram a desferir uma chuva de golpes sobre o Peregrino, que disse, sem sequer se abalar:

— Tentem controlar a raiva, enquanto pego algo que quero mostrar.

Então, esfregou a orelha e revelou uma pequena agulha de bordado.

— Eu — continuou, ainda sorrindo —, um simples monge que renunciou à vida familiar, nunca carrego dinheiro comigo. A única coisa que possuo é esta pequena agulha, que ofereço de bom grado.

— Que sorte miserável a nossa! — resmungou um dos bandidos. — Deixamos escapar um monge rico e ficamos com um que não tem nem onde cair morto. Este aqui é um verdadeiro asno sem pelo! Pelo visto, sabe costurar bem. Me explique para que eu precisaria de uma agulha?

Ao ouvir que não tinha interesse, o Peregrino sacudiu levemente a agulha, que imediatamente se transformou em um bastão do tamanho de uma tigela de arroz. Surpreso, o bandido comentou:

— Esse monge, embora jovem, claramente é um feiticeiro.

O Peregrino soltou o bastão no chão e declarou:

— Entrego a quem for capaz de levantá-lo.

Os dois chefes dos bandidos deram um passo à frente e tentaram mover o bastão, mas seus esforços foram tão inúteis quanto os de uma libélula tentando deslocar uma coluna de pedra. O bastão permaneceu cravado no chão. E como poderia ser diferente, se era o famoso Bastão dos Extremos de Ouro, que nas balanças celestes pesava mais de três mil e quinhentos quilos? Mas os bandidos não faziam a menor ideia disso. Com calma, o Grande Sábio os afastou gentilmente e, sem qualquer esforço, ergueu o bastão com uma única mão. Em seguida, assumiu a postura de uma serpente enrolada e, apontando sua arma extraordinária para os bandidos, declarou:

— O melhor que podem fazer agora é correr, porque acabaram de encontrar o Rei Macaco.

Um dos chefes ainda tentou enfrentá-lo, desferindo mais cinquenta ou sessenta golpes.

— Suas mãos devem estar cansadas — zombou o Peregrino. — Acho que agora é minha vez de retribuir com um golpe do meu bastão. Mas fique tranquilo, pois não usarei nem metade da força que tenho.

Então, ele girou o bastão devagar, estendendo-o até atingir cerca de cento e cinquenta metros de comprimento e uma espessura maior que a boca de um poço. Com ele, desferiu um leve golpe no bandido, que caiu de bruços, completamente nocauteado. 


O outro chefe gritou, fora de si:

— Esse careca possui uma audácia sem limites! Não só se recusa a nos dar seu dinheiro como ainda mata um dos nossos!

— Não se preocupem — respondeu o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Tem pra todo mundo. Só não acabei com todos ainda porque quero garantir que nenhum de vocês escape — e, com um só golpe, reduziu o outro chefe a pó, como se ele nunca tivesse existido.

Ao verem a cena, os bandidos restantes largaram suas armas e fugiram em pânico, espalhando-se em todas as direções. Enquanto isso, o monge Tang galopava a todo vapor para o leste, até que encontrou Bajie e o Monge Sha, que perguntaram surpresos:

— Para onde está indo, mestre? Não percebe que está seguindo na direção oposta?

— Rápido, avisem seu irmão mais velho para não abusar do poder de seu bastão — implorou o mestre, puxando as rédeas do cavalo. — Seria lamentável se ele exterminasse todos aqueles bandidos.

— Fiquem aqui! Deixem que eu falo com ele — disse Bajie, partindo em disparada. 

— Não mate todos eles! — gritava a plenos pulmões — O mestre quer que mostre clemência!

— Desde quando eu saio por aí matando pessoas? — defendeu-se o Peregrino.

— Para onde foram os bandidos? — perguntou Bajie.

— Foram embora — respondeu o Peregrino. — Só ficaram esses dois aí, dormindo.

— Como são preguiçosos! — exclamou Bajie, dando risada. — Devem ter passado a noite em claro. Por que não foram dormir em outro lugar? Que ridículo escolherem um local desses!

Bajie então se aproximou e os observou com atenção.

— São parecidos comigo — continuou. — Dormem de boca aberta e ainda roncam um pouco.

— Duvido — rebateu o Peregrino. — Eu arranquei até o tofu deles com o meu bastão.

— Tofu? Não me diga que esses caras tinham tofu na cabeça! — exclamou Bajie.

— Não seja tolo! — zombou o Peregrino. — Não entendeu que eu estava falando dos miolos?

Ao ouvir isso, Bajie correu de volta até onde estava o monge Tang e informou:

— Os bandidos deixaram o caminho livre.

— Não me diga! — exclamou Sanzang, ainda preocupado. — Para que lado foram?

Que história é essa de “foram”, se estão com as pernas tão duras que nem conseguem se mexer? — respondeu Bajie.

— Como assim? — insistiu Sanzang. — Não disse que tinham deixado o caminho livre?

— Estão mortos — esclareceu Bajie. Que caminho mais livre que esse o mestre quer?

— E como estão? — perguntou Sanzang, mais uma vez.

— Com dois buracos na cabeça — respondeu Bajie.

— Abra a bolsa e peguem algumas moedas — ordenou Sanzang. — Precisamos comprar remédio para tratar esses ferimentos.

— Está brincando? — reagiu Bajie. — Remédios só servem para os vivos. O que os mortos fariam com eles?

— Estão realmente mortos? — insistiu Sanzang, desanimado. Sentindo-se profundamente abatido, começou a lançar insultos ao Peregrino, chamando-o de "macaco maldito" e de "símio sem princípios". Retomaram a marcha e logo chegaram ao local onde jaziam os dois corpos, completamente ensanguentados. Incapaz de suportar aquela cena macabra, o mestre ordenou a Bajie:

— Cave um buraco com seu ancinho e enterre-os. Enquanto isso, farei uma oração por suas almas.

— Está dando a missão à pessoa errada, mestre — respondeu Bajie. — Não fui eu quem os matou, foi o Peregrino. Ele é quem deveria enterrá-los. Eu não sou coveiro!

Cansado das constantes repreensões do mestre, o Peregrino virou-se para Bajie e confrontou-o:

— Enterre logo esses corpos, seu preguiçoso! Se continuar enrolando, vai descobrir do que o meu bastão de ferro é capaz!


Assustado, Bajie começou a cavar às pressas um buraco na encosta. Quando atingiu cerca de dois metros e meio de profundidade, encontrou um solo extremamente rochoso que resistia às investidas do seu ancinho. Então, Bajie jogou a ferramenta de lado e começou a remover as pedras com o focinho. Logo, ele encontrou terra macia novamente. Com sua habilidade peculiar, a cada tentativa aprofundava o buraco em mais quinze centímetros. Em pouco tempo, a cova atingiu quatro metros de profundidade, e ele decidiu colocar os corpos dos dois bandidos dentro dela. Um pequeno monte de pedras passou a marcar o local onde estavam enterrados.

Sanzang então ergueu a voz e ordenou:

— Wukong, traga velas e um pouco de incenso. Quero recitar as escrituras e fazer uma oração por eles.

— Que ideia absurda! — resmungou o Peregrino. — De onde vou tirar incenso e velas no meio desta montanha desolada? Não há nenhuma vila por perto! Mesmo que tivéssemos dinheiro, seria impossível conseguir o que está pedindo.

— Saia do meu caminho, cabeça-dura! — ordenou o monge Tang com desprezo. — No lugar do incenso, usarei algumas ervas secas. Assim, poderei fazer minhas orações.

Sanzang desceu do cavalo e começou a rezar junto ao túmulo de pedras. Entristecido como se ali jazessem parentes próximos, o mestre recitou, com devoção:

— Inclino-me diante de vossos nobres espíritos e imploro que não ignorem minhas súplicas. Sou apenas um humilde monge das Terras do Leste, que segue para o Oeste em busca das escrituras sagradas por ordem do Imperador dos Tang. Foi assim que cheguei a este lugar e me encontrei com vocês, fiéis súditos desta digna região montanhosa cujo nome não tive a honra de conhecer. Com palavras gentis, supliquei que me permitissem seguir meu caminho, mas recusaram-se a ouvir e, pouco a pouco, afundaram-se na raiva. Por isso, perderam a vida nas mãos do Peregrino. Agora, choro suas mortes diante destes restos que agora jazem sob um monte de terra. Na falta de velas, ofereço bambus. Sei que não iluminam, mas seus espíritos sabem a pureza que há em meu gesto. Por não ter oferendas adequadas, ofereço-lhes pedras lisas. Sei que elas não têm sabor, mas seus olhos espirituais podem ver a sinceridade com que as coloco aqui. Quando chegarem ao Salão das Trevas e perguntarem quem lhes tirou a vida, lembrem-se de dizer que foi Sun, e não Chen. Quem pratica o mal merece castigo, e quem deve precisa pagar. Não culpem, portanto, este humilde buscador de escrituras por esse crime.


— Já que lavou suas mãos — disse Bajie —, poderia também interceder por nós. Afinal, não estávamos presentes quando ele os matou.

Sem hesitar, Sanzang espalhou outro punhado de ervas secas no chão e acrescentou:

— Ao apresentarem sua queixa, nobres espíritos, acusem apenas o Peregrino. Nem Bajie, nem o Monge Sha tiveram participação no ocorrido

— Não se pode dizer que o senhor seja muito grato, não é mesmo, mestre? — disse enfim o Grande Sábio, sem conseguir se conter. — Nem eu mesmo sei quanta energia já gastei nessa jornada em busca das escrituras. Se eliminei aqueles dois bandidos sem escrúpulos, não foi por vontade própria, mas para proteger o senhor e seus princípios. E, em vez de agradecer, o senhor ainda sugere aos espíritos deles que façam uma queixa contra mim. Se eu não tivesse aceitado ir ao Paraíso Ocidental, jamais teria me tornado seu discípulo, nem estaria neste lugar. Que razão eu teria para tirar a vida daqueles dois, se estivesse tranquilamente em casa? Mas, já que assim decidiu, também farei uma pequena oração por eles.

Wukong então golpeou três vezes seguidas o túmulo de pedras com o bastão de ferro e disse:

— Ouçam bem, seus bandidos imundos!  Levei sete golpes de seus porretes deste lado, e mais oito do outro.Tudo que conseguiram foi me deixar furioso, pois nem cócegas vocês conseguiram fazer em mim. Reconheço que exagerei e acabei matando vocês. Podem reclamar de mim à vontade. Saibam que não perderei o sono, pois o Imperador de Jade me conhece bem, os devarajas obedecem minhas ordens, as Vinte e Oito Constelações tremem diante de mim e os Nove Planetas se escondem quando me veem. Até os deuses protetores de cidades e distritos se curvam perante mim. Não é à toa que me chamam de Sósia do Céu. O guardião do Monte Tai me teme, os Dez Reis do Inferno já foram meus servos, e os Cinco Grandes Deuses (4) já me serviram. Até os Cinco Ministros dos Três Reinos (5) e os Deuses dos Dez Pontos Cardeais (6) me consideram um amigo. Então fiquem à vontade para reclamar com quem quiserem.

Ao ouvir o Peregrino falar dessa maneira tão desagradável, Sanzang exclamou, surpreso:

— Quanta falta de respeito! A oração que recitei foi para ajudá-lo a compreender o valor da vida e, assim, ajudá-lo a se tornar uma pessoa virtuosa. Por que você tem que levar tudo isso tão a sério?

— Agradeço as boas intenções — respondeu o Peregrino. — De qualquer forma, está anoitecendo. Seria bom encontrarmos um lugar para passar a noite.

Embora não tenha dito mais nada, estava claro que o mestre ainda estava magoado. O Grande Sábio  também não havia conseguido apagar o fogo da própria ira — tão intenso que até Bajie e o Monge Sha foram atingidos. Nenhum deles, porém, ousou demonstrar mau humor. Pelo contrário, enquanto continuavam a jornada rumo ao Oeste, todos pareciam mais sorridentes e compreensivos do que o habitual.

Logo avistaram, ao norte da trilha por onde andavam, uma pequena aldeia. Sanzang apontou para lá com o cabo do chicote e disse:

— Vamos pedir abrigo ali.

— Está bem — respondeu o Peregrino.


Ao chegarem à aldeia, Sanzang desmontou do cavalo. Logo perceberam que se tratava de um lugar verdadeiramente encantador. O caminho que a atravessava estava ornado de flores, e todas as casas se abrigavam sob uma incrível variedade de árvores. Ao longe, ouvia-se o suave murmúrio das águas, provavelmente nascidas nas montanhas. Os prados se misturavam em perfeita harmonia com os campos de trigo. Em um salgueiro, balançado suavemente pela brisa, dormia um pássaro cansado, enquanto uma pequena gaivota repousava entre juncos cobertos de orvalho. Os cedros pareciam disputar beleza com os pinheiros; o mesmo faziam os tufos de espadanas com os tons avermelhados e brilhantes das folhas de bordo. Ao cair da tarde, os cães latiam como se quisessem desafiar os galos, que anunciavam o fim do dia com cantos estridentes. Os rebanhos de vacas retornavam vagarosamente aos currais, onde os camponeses alimentavam os demais animais. Das chaminés, subiam densas colunas de fumaça, sinal de que o milho estava sendo cozido no fogo de cada lar. O sol acabara de se pôr, e os moradores da montanha já começavam a se recolher em suas casas.

De uma delas saiu um ancião, que, após retribuir o cumprimento de Sanzang, perguntou:

— De onde vem o senhor?

— Venho da corte dos Tang — respondeu Sanzang. — Por ordem expressa de seu imperador, sigo rumo ao Paraíso Ocidental em busca das escrituras sagradas. Ao passar por estas terras tão belas, a noite se aproximou, e decidimos procurar abrigo nesta respeitável aldeia.

— Há uma enorme distância entre aquele lugar e aqui — comentou o ancião, sorrindo. — Como conseguiram escalar tantas montanhas e atravessar tantos rios?

— Não viajo sozinho — explicou Sanzang. — Tenho três discípulos me acompanhando.

E onde eles estão? — indagou o ancião.

— São aqueles ali, em pé à beira do caminho — disse Sanzang, apontando com o dedo.

O ancião virou-se para olhar na direção indicada, mas, ao ver a aparência estranha dos três, deu meia-volta e correu para dentro de casa. Felizmente, Sanzang o segurou pela roupa e suplicou:

— Por favor, conceda-nos abrigo apenas por esta noite. Assim que o dia amanhecer, retomaremos nossa jornada. Eu prometo!

O ancião tremia tanto de medo que mal conseguia falar. Seu corpo sacudia como a copa de um bordo em meio a uma tempestade. Reunindo uma força de vontade admirável, conseguiu enfim balançar a cabeça e as mãos, dizendo:

— Não, não! Impossível! Aqueles alí não são humanos... são monstros!

— Não precisa ter medo — tentou acalmá-lo Sanzang, sorrindo. — Não são monstros como imagina. Sempre foram feios assim, desde que nasceram.

— Não adianta tentar me enganar! — gritou o ancião. — Um deles é claramente um yaksha, o outro é um espírito com cara de cavalo, e o último parece um senhor do trovão!

Ao ouvir isso, o Peregrino gritou:

— O senhor do trovão é meu neto, o yaksha é meu bisneto, e o espírito com cara de cavalo é meu tataraneto!

O rosto do ancião perdeu toda a cor, como se sua alma tivesse saído do corpo. Tudo o que queria era correr para dentro de casa e se trancar. Sanzang, ainda segurando-o pelo braço, o acompanhou até a varanda e insistiu, sorridente:

— Não precisa se assustar. Eles são um pouco rudes e não sabem se expressar com educação. Apesar de todos os meus esforços, recusam-se a aprender boas maneiras.

Enquanto Sanzang tentava acalmar o ancião, surgiu uma mulher de idade semelhante, trazendo consigo um menino de cerca de seis anos. Ela se afastou um pouco para deixá-los passar e perguntou:

— O que é todo esse alvoroço?

— Traga um pouco de chá, por favor — respondeu o ancião, já mais calmo.

Sem fazer mais perguntas, a mulher soltou o menino e logo voltou com duas xícaras de chá. Após alguns goles, Sanzang se voltou para ela e explicou:

— Senhora, sou apenas um monge humilde, enviado pelo grande imperador dos Tang em missão ao Paraíso Ocidental, em busca das escrituras sagradas. Ao passar por aqui, a noite caiu e decidimos procurar abrigo nesta aldeia. O respeitável chefe de sua casa se assustou muito com a aparência dos meus discípulos, que de fato não são muito bem-apessoados... e tampouco possuem os modos mais refinados.

— Ora, se assusta com rostos feios — disse a mulher, dirigindo-se ao ancião —,o que fará quando encontrar um lobo ou um tigre?

— O pior não é a aparência deles — defendeu-se o ancião —, mas sim suas vozes capazes de assustar até o mais corajoso dos homens. Quando comentei que um parecia um yaksha, outro um espírito com cara de cavalo e o último um senhor do trovão, um deles berrou que o senhor do trovão era seu neto, o yaksha seu bisneto e o espírito seu tataraneto. Quem não se assustaria ao ouvir algo assim?

— O que parece um senhor do trovão — explicou Sanzang, balançando a cabeça com paciência — é Sun Wukong, meu discípulo mais velho. O que dizem ter a cara de um espírito com rosto de cavalo chama-se Zhu Wuneng, meu segundo discípulo. E o último, o que se assemelha a um yaksha, é meu terceiro discípulo, Sha Wujing. Apesar de sua inegável feiura, eles abraçaram a fé com total dedicação. Vivem em extrema pobreza e buscam incansavelmente a virtude. Como poderiam ser monstros ou demônios? Garanto que não há motivo algum para temê-los.

— Nesse caso — concluíram os dois anciãos, mais tranquilos —, façam-nos entrar. Não é certo deixá-los passarem a noite ao relento.

Sanzang então saiu para chamá-los e os advertiu:

— Procurem se comportar com respeito diante dessa família. Já viram como o ancião se assustou ao vê-los. Devemos ser corteses com aqueles que nos oferecem abrigo.

— Quem disse que sou feio e mal-educado? — retrucou Bajie, ofendido. — Além disso, não tenho nem um quarto da cara de pau do nosso irmão mais velho!

— Você tem razão — admitiu o Peregrino, rindo. — Se não fosse por essa cara, esse focinho e essas orelhas, você seria um homem belíssimo.

— Chega! — interrompeu o Monge Sha. — Aqui não é lugar para fazerem um concurso de beleza. Entrem logo!


Sem mais delongas, deixaram o cavalo e os pertences na porta, cumprimentaram os moradores com respeito e se sentaram ao lado do mestre. Ao perceberem a educação e os modos dos três, a mulher levou o menino a um dos quartos e foi preparar uma refeição vegetariana para os ilustres hóspedes. 


Quando terminaram de comer, já era noite. Para que os peregrinos pudessem continuar conversando, a mulher trouxe velas e se posicionou atrás do ancião.

— Qual é o sobrenome do senhor? — perguntou Sanzang.

— Yang — respondeu o ancião, acrescentando logo em seguida: — Acabei de completar setenta e quatro anos.

— E quantos filhos o senhor tem? — tornou a perguntar Sanzang.

— Apenas um — respondeu o ancião. — O menino que acompanha minha esposa é nosso neto.

— Se não for incômodo — disse o mestre com gentileza —, gostaria de cumprimentar seu filho.

— Homens como ele não são dignos de sua saudação — respondeu o ancião, com amargura no olhar. — A vida tem sido dura comigo, e às vezes penso que falhei ao criá-lo. Ele não mora mais conosco.

— E onde ele vive agora? O que faz? — perguntou novamente Sanzang.

— Ah, que tristeza me dá falar sobre isso! — suspirou o ancião, balançando a cabeça. — Gostaria tanto que ele tivesse seguido um bom caminho! Infelizmente, ele respeita nada, e todos os seus planos estão impregnados de maldade. A única coisa com que se importa é roubar, matar e incendiar tudo o que encontra. Há cinco anos, juntou-se a uma gangue de criminosos e vagabundos, e desde então, nunca mais o vimos.

— Será que era um dos bandidos que Wukong matou? — pensou Sanzang, sem coragem de responder. Sentia uma inquietação profunda que o fez levantar-se do assento. — Que dramas a vida traz! — exclamou, por fim. — Como é possível que filhos tão malignos venham de pais tão virtuosos?

— Filhos assim — disse o Peregrino, aproximando-se dos anciãos — só trazem dor e vergonha. Para que se preocupar com ele? Se quiserem, posso encontrá-lo e matá-lo. Pessoas assim desonram toda uma família. Não vale a pena carregar um fardo tão vergonhoso.


— Também penso assim — respondeu o ancião —, mas ele é meu único filho. Todos precisamos de alguém que cuide de nossas tumbas quando não estivermos mais aqui.

— É melhor não se meter nos problemas dessa família — aconselharam Bajie e o Monge Sha ao Peregrino. — Não somos juízes nem oficiais da lei. Se nem os próprios pais querem entregá-lo à justiça, por que faríamos nós isso? O melhor que podemos fazer é pedir um pouco de palha e descansar onde der. Retomaremos a nossa jornada ao amanhecer.

O ancião levantou-se e levou o Monge Sha aos fundos da casa, para que pegasse a palha que quisesse. Depois, mostrou-lhes um celeiro próximo ao curral onde poderiam passar a noite. Agradecidos, Bajie pegou as rédeas do cavalo, o Monge Sha carregou a bagagem, e todos seguiram para descansar. Por hora, não falaremos mais deles. Falemos, porém, do filho do senhor Yang, que realmente fazia parte do bando que tentou roubar o mestre. Depois que o Peregrino matou os líderes, cada um dos criminosos fugiu para onde pôde. Porém, por volta da quarta vigília, reuniram-se novamente e buscaram abrigo na casa do velho Yang.

Ao ouvir batidas na porta, o ancião se vestiu rapidamente e disse à esposa:

— É ele! Ele voltou!

— Se for ele mesmo — respondeu a mulher —, então vá logo abrir a porta!

Os bandidos invadiram a casa em alvoroço, gritando:

— Estamos morrendo de fome! Dê-nos algo pra comer!


O filho do senhor Yang correu para acordar a esposa e pediu que preparasse um pouco de arroz. Como não havia lenha na cozinha, foi até o curral nos fundos e viu o cavalo. Ao voltar para junto da esposa, perguntou:

— De quem é aquele cavalo branco no curral?

— É de uns monges vindos das Terras do Leste, que estão em busca de escrituras — respondeu a mulher. — Chegaram ontem à noite pedindo abrigo, e os anciãos os deixaram dormir no celeiro dos fundos.

Ao ouvir isso, o filho do senhor Yang correu para contar aos outros bandidos, rindo e batendo palmas de alegria.

— Vocês não sabem a sorte que temos! — disse, sem conseguir conter o riso. — Os monges que mataram nossos chefes estão aqui! Estão no celeiro dos fundos, dormindo tranquilamente.

— Isso é verdade? — exclamaram os outros bandidos, em coro. — Vamos atrás desses carecas e fazer picadinho deles! Além de vingar nossos chefes, ficaremos com o cavalo e tudo que eles tiverem!

— Por que tanta pressa? — retrucou o filho do senhor Yang. — Enquanto o arroz está cozinhando, vamos afiar nossos facões. Depois, quando tivermos a barriga cheia, vamos atrás desses desgraçados.


Após ouvir toda a conversa, o ancião Yang correu até o celeiro onde dormiam o monge Tang e seus discípulos e disse em voz baixa:

— Meu filho acabou de chegar com um grupo de bandidos. Quando souberam que vocês estavam aqui, decidiram matá-los. Sei o quanto sua jornada tem sido difícil, e não me parece justo que sofram esse destino. Recolham suas coisas depressa e fujam pela porta dos fundos.


Ao ouvir isso, Sanzang ajoelhou-se e começou a bater a testa contra o chão em sinal de gratidão. Bajie pegou as rédeas do cavalo, o Monge Sha carregou a bagagem, e o Peregrino tomou o bastão de nove nós de seu mestre. O ancião os guiou até a saída nos fundos e depois voltou para sua cama, sem fazer barulho algum. Nenhum dos bandidos percebeu sua ação. Quando terminaram de comer e afiar suas facas e lanças, já era quase a quinta vigília da noite. Invadiram o celeiro em massa, mas o encontraram vazio. Acenderam tochas e lanternas, mas não encontraram vestígios dos monges. Finalmente, notaram a porta dos fundos aberta e gritaram ao mesmo tempo:

— Eles escaparam por aqui!

Como feras em fúria, os bandidos partiram numa perseguição alucinada. Cada um parecia uma flecha disparada de um arco diferente. Por isso, não foi surpresa que, por volta do nascer do sol, avistassem finalmente o monge Tang à distância. Ao ouvir atrás de si um ruído de vozes e gritos, o mestre se virou e viu uma matilha de mais de trinta homens, armados com facas e lanças, se aproximando rapidamente.

— Eles estão nos alcançando! — exclamou Sanzang, desanimado. — O que podemos fazer?

— Fiquem tranquilos - disse o Peregrino. — Vou acabar com eles agora mesmo.

— Não os machuque, Wukong - ordenou Sanzang, interrompendo a marcha do cavalo. — Apenas os assuste.


O Peregrino, claro, não estava disposto a ouvi-lo. Virou-se rapidamente e encarou seus perseguidores, dizendo:

— Para onde vocês pensam que vão com tanta pressa?

— Maldito careca! — gritaram os bandidos. — Devolva a vida dos nossos chefes, ou vamos acabar com você!

Cercando-o de todos os lados, começaram a golpeá-lo com espadas e lanças, com precisão tão certeira quanto a picada de um escorpião. 


O Grande Sábio balançou suavemente seu bastão de ferro, que instantaneamente adquiriu a espessura de uma tigela de arroz. Com ele, enfrentou os que bloqueavam seu caminho. Seus golpes eram tão devastadores que alguns caíam como estrelas cadentes, enquanto outros se espalhavam como a neblina ao sol.Os que foram atingidos em cheio morreram na hora. Os que receberam golpes de raspão ainda tentavam resistir, mas não tardaram a morrer também. Os que sobreviviam com ossos quebrados e carne esmagada podiam se considerar sortudos, como se sofressem de uma doença incurável. Apenas alguns poucos conseguiram fugir. Os demais tiveram que se encontrar, quer quisessem ou não, com o Rei Yama.


Quando Sanzang viu a quantidade de corpos que havia no chão, sentiu um profundo enjoo. Sem dizer palavra, virou-se e continuou cavalgando rumo ao Oeste. Bajie e o Monge Sha o seguiram de perto. O Peregrino, por outro lado, não demonstrou pressa em acompanhá-los. Ele avançou sobre os bandidos feridos que haviam sobrevivido e perguntou:

— Qual de vocês é o filho do ancião Yang?

— Aquele de amarelo, senhor — gemeu um dos feridos.

Sem hesitar, o Peregrino pegou uma faca e decapitou o homem indicado. Só então decidiu alcançar seus companheiros. Em apenas dois saltos, levou a cabeça sangrenta até o monge Tang.

— Este é o filho do ancião Yang, mestre — disse, orgulhoso. — Decapitei-o com minhas próprias mãos.

Sanzang ficou tão chocado que caiu do cavalo, como se fosse uma fruta madura.

— Maldito macaco! — gritou, revoltado. — Tire isso da minha vista! Leve embora! Isso me dá nojo!

Com um empurrão, Bajie arrancou a cabeça das mãos do Peregrino, chtou-a para longe e a enterrou com o seu ancinho no local onde ela caiu. O Monge Sha, por sua vez, deixou o equipamento de lado e correu para ajudar o mestre, dizendo:

— Levante-se, mestre!

O monge Tang ajeitou suas vestes, refletiu por alguns segundos e, em silêncio, começou a recitar o feitiço que Wukong mais temia. O Peregrino foi tomado por uma dor insuportável na cabeça. Seu rosto ficou roxo, seus olhos saltaram das órbitas e ele mal conseguia manter a consciência. Caído no chão, retorcia-se como um animal ferido, gritando:

— Pare de recitar esse feitiço, por tudo que há de mais sagrado!

Mas o mestre continuou a recitar o feitiço, repetindo-o mais de dez vezes seguidas,sem demonstrar a menor intenção de parar. Incapaz de suportar tanta dor, o Peregrino saltava de um lado para o outro como um louco, sem saber o que fazer.

— Perdoe-me, se fiz algo para ofender! — gritava, cada vez mais desesperado. — Repreenda-me, castigue-me como quiser, mas pare com esse feitiço! Eu imploro!


Finalmente, Sanzang atendeu aos seus pedidos e disse:

— Não quero repreendê-lo, pois, a partir deste momento, você não é mais meu discípulo. Volte para o lugar de onde veio.

— Por que está me expulsando, mestre? — perguntou o Peregrino, ajoelhando-se e batendo a cabeça contra o chão, apesar da dor que sentia.


— Porque em seu coração não há compaixão, maldito macaco — respondeu Sanzang, severo. — Você não é um Peregrino, é um assassino. Ontem, quando destruiu os líderes dos bandidos, já senti repulsa por sua total falta de respeito pela vida. Mas hoje, ao matar o filho do homem que nos acolheu, foi o fim da minha paciência! Aquele ancião nos recebeu de braços abertos, nos deu comida, bebida e abrigo. Depois, arriscou-se para nos avisar do perigo e ainda nos ajudou a fugir. Que importância tem o fato de seu filho ser um bandido? Ele não fez nada que justificasse morrer daquela forma. E isso nem é o pior. Você tirou tantas vidas que parece já não restar no mundo espaço para a paz. Tentei inúmeras vezes fazê-lo entender o erro dos seus atos, mas você nunca me ouviu. Por que eu deveria continuar ao seu lado? Afaste-se agora mesmo da minha vista, ou serei obrigado a recitar o feitiço outra vez!

— Não o faça, por favor! — exclamou imediatamente o Peregrino. — Vou embora agora mesmo!

Antes mesmo de terminar a frase, Wukong deu um salto extraordinário e desapareceu entre as nuvens. 


Assim acontece quando a mente fica à mercê de instintos agressivos: o elixir perde suas propriedades, e a perfeição do Tao se torna inatingível quando o espírito vagueia desorientado e sem rumo. 

Desconhecemos, por enquanto, para onde o Grande Sábio foi. Quem desejar descobrir, precisará prestar atenção nas explicações que serão oferecidas no próximo capítulo.

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Notas do Capítulo LVI
  1. Para compreender as implicações morais do presente capítulo, é necessário levar em conta, como já foi mencionado na nota 1 do capítulo XIV, que, para o budismo, os sentidos são verdadeiros ladrões da virtude;
  2. Os Três Veículos, "san-chang", transportam os seres vivos através dos ciclos de reencarnação até alcançar o estado nirvânico. A identificação desses veículos varia conforme as diferentes escolas budistas;
  3. Durante a festividade do Duplo Cinco, "duan-wu jie", são consumidas uma espécie de pirâmides de arroz envoltas em folhas de bambu ou de lótus, chamadas "chung-tse", em memória do poeta Chü-Yüan, que se suicidou por volta do século III a.C. nas águas do rio Miluo, como protesto contra as medidas adotadas pelo novo imperador. A data também é marcada pelas famosas corridas de barcos-dragão;
  4. Os Cinco Grandes Deuses são divindades muito veneradas pelo povo comum por serem reconhecidos como grandes dispensadores de riquezas, como se pode deduzir claramente de seus nomes:  Zhao Xuantan (Deus da Riqueza), Zhao Gongming (Deus da Prosperidade), Bi Gan (Deus do Comércio), Fan Li (Deus dos Negócios) e Guan Yu (Deus da Lealdade);
  5. Os Cinco Ministros dos Três Reinos são personificações dos elementos fundamentais, e por isso seu domínio se estende por todo o universo;
  6. Devido ao seu caráter de vetores espaciais, os chineses consideram "cima" e "baixo" como pontos cardeais. A partir das combinações desses pontos, obtém-se um total de dez direções, embora o taoísmo popular geralmente personifique apenas os cinco mais importantes: norte, sul, leste, oeste e centro.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:



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Ruby