28 de agosto de 2025

Kinoly

۞ ADM Sleipnir

Arte de Agung Wulandana

Kinoly é uma criatura sobrenatural pertencente ao folclore malgaxe, que consiste nos restos mortais reanimados de uma pessoa falecida, possuídos por seu espírito vingativo. À primeira vista, assemelha-se a um ser humano comum, mas características como olhos vermelhos e unhas extremamente longas e afiadas revelam sua verdadeira natureza maligna.

Os Kinoly são conhecidos por agir como ladrões noturnos, invadindo lares para roubar e consumir alimentos destinados aos vivos. Embora não possuam um sistema digestivo funcional, sua ação torna a comida impura e intragável para humanos, causando fome e desespero nas comunidades. Além disso, são criaturas violentas: se descobertos, atacam com ferocidade, usando suas garras afiadas para dilacerar suas vítimas.

Uma limitação crucial dos Kinoly é sua dependência do local de sepultamento: eles não podem se afastar além de uma certa distância de sua própria tumba. Essa restrição pode ser explorada como forma de defesa, permitindo que suas vítimas fujam ou se protejam ao se distanciarem do seu território.


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27 de agosto de 2025

Tepegoz

۞ ADM Sleipnir


Tepegoz (ou Tepegöz) é uma criatura lendária da mitologia turca, descrita como um ogro com apenas um olho na testa, semelhante a um ciclope. Ele é uma figura central no  Kitab-ı Dede Korkut ("Livro de Dede Korkut"), uma coleção de épicos heroicos dos Oguzes, um dos principais ramos dos povos turcos. A figura de Tepegoz é central em uma das histórias mais dramáticas da obra, sendo símbolo de força monstruosa e ameaça incontrolável, vencida apenas por astúcia e bravura.

Etimologia

Em línguas túrquicas, tepe significa "alto" ou "colina", enquanto göz significa "olho". O termo Tepegoz pode ser interpretado literalmente como "olho no alto" ou "olho da colina". Curiosamente, a abertura circular no topo de uma yurt (habitação tradicional dos povos nômades da Ásia Central) também recebe o nome de tepegoz.


Narrativa no Kitab-ı Dede Korkut

No primeiro capítulo do Kitab-ı Dede Korkut, as terras dos oguzes — localizadas em regiões que hoje correspondem ao Azerbaijão e partes da Turquia — são invadidas por inimigos. Durante a fuga da população, o filho de Aruz Koca, um dos líderes oguzes, é deixado para trás. Contra todas as expectativas, ele sobrevive de maneira extraordinária: criado por leões na floresta, torna-se uma figura selvagem e temida, conhecida por atacar cavalos e beber seu sangue. Eventualmente capturado e levado de volta ao pai, sua humanidade é reconhecida. Com a intervenção do sábio Dede Korkut, o jovem recebe o nome de Basat, que pode ser traduzido como “aquele que pisa com força” ou “devorador de cavalos”.

Paralelamente, origina-se um dos maiores infortúnios da história dos oguzes. Um pastor chamado Konur Koca Sarı, conhecido como “Pastor Amarelo”, comete um terrível ato ao violentar uma peri (fada) em Uzun Pınar, um local sagrado para os oguzes. Tomada por dor e fúria, a peri profetiza:
“Tenho um encargo. Aceite-o no ano que vem, mas saiba disso: você trouxe desastre para os oguzes.”
Após dizer essas palavras, ela desaparece. Um ano depois, retorna e deposita aos pés do pastor uma massa disforme de carne. Algum tempo depois, um pastor chamado Sarı Çoban avista a criatura informe no chão e, tomado pelo medo, foge. Mais tarde, os líderes oguzes descobrem a estranha massa e, ao chutá-la, ela se rompe, revelando um bebê com um único olho no centro da testa: Tepegoz. Apesar da aparência monstruosa, ele é acolhido por Bayındır Khan (o líder de todas as tribos oguzes), a pedido de Aruz Koca.

Contudo, desde cedo, Tepegoz demonstra ser uma ameaça. Ao sugar o leite das amas, também sugava seu sangue, matando várias mulheres. À medida que crescia, tornava-se cada vez mais violento, ferindo outras crianças durante as brincadeiras. Diante disso, Aruz decide expulsá-lo da vila. Exilado, Tepegoz refugia-se em uma montanha sagrada, onde reencontra sua mãe fada. Ela lhe entrega um cinto e um anel mágico que o tornan invulnerável a qualquer arma comum — nem espadas, nem flechas poderiam feri-lo. 

Arte de Bartu Bölükbaşı


A partir deste momento, Tepegoz se transforma em um verdadeiro pesadelo, passando a saquear estradas e a devorar qualquer ser vivo que encontra. Nem mesmo os maiores guerreiros oguzes conseguem detê-lo; metade deles acaba perecendo em tentativas frustradas de derrotá-lo. Diante da catástrofe, os oguzes recorrem novamente a Dede Korkut, que decide enfrentar o monstro em sua caverna. Lá, implora por piedade, e Tepegoz acaba impondo uma exigência cruel: deseja receber sessenta pessoas por dia como tributo. Dede Korkut consegue reduzir o número para dois homens e quinhentas ovelhas diárias, além de dois anciãos para cozinhar suas refeições. O acordo é mantido por um tempo, mas, quando os recursos se esgotam, Tepegoz volta a atacar com fúria ainda maior.


A esperança dos oguzes renasce com o retorno de Basat, que havia passado a juventude afastado da comunidade. Ao descobrir os horrores provocados por Tepegoz — incluindo a morte de seus irmãos e de muitos guerreiros —, jura vingança. Ignorando os alertas dos anciãos, parte sozinho para o covil do monstro. Na caverna, tenta matar Tepegoz com flechas, mas elas não surtam efeito. Fingindo ser uma das vítimas enviadas como tributo, Basat permite ser capturado e é trancado dentro de uma bota, onde seria assado mais tarde. À noite, consegue escapar com a ajuda de um punhal. Os cozinheiros idosos então acabam lhe revelando que o único ponto vulnerável do corpo de Tepegoz é o seu olho. Aproveitando-se do sono do monstro, Basat aquece um espeto de ferro em brasa e o crava no olho de Tepegoz, cegando-o por completo. 

Arte de Hazar Çatak

Mesmo cego, o monstro tenta matar Basat com armadilhas e ataques, mas falha repetidamente. A cada investida frustrada, pergunta:

“Você ainda não morreu?”

Ao que Basat responde:

“Foi Deus quem me salvou!”

Por fim, Basat encontra uma espada mágica escondida na caverna e com ela decapita Tepegoz, encerrando seu reinado de terror. Com sua morte, os oguzes finalmente se veem livres da ameaça que os assombrava há tanto tempo.

Interpretações e paralelos culturais

O conto de Tepegoz é interpretado por estudiosos como uma representação mítica dos conflitos históricos entre os Pechenegues e os Kipchaks, povos nômades das estepes euroasiáticas. A semelhança, por sua vez, da figura de Tepegoz com o ciclope Polifemo da Odisséia de Homero, levou à especulação de que o mito turco possa ter sido influenciado por narrativas helênicas ou partilhado uma origem comum com elas.


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26 de agosto de 2025

Polifemo

۞ ADM Sleipnir

Arte de Andrea Piparo

Polifemo (do grego Πολύφημος, que significa “muitas palavras”) era um gigante cíclope devorador de homens na mitologia grega, filho do deus dos mares, Poseidon, com a ninfa marinha Teosa. Vivendo isolado em uma caverna próxima ao vulcão Etna, na região da Sicília, Polifemo levava uma vida simples cuidando de suas ovelhas — até que sua rotina foi interrompida pela chegada do herói Odisseu (conhecido como Ulisses na tradição romana).

Na Odisseia, épico de Homero, Odisseu desembarca na ilha dos Ciclopes durante sua longa viagem de retorno da Guerra de Troia. Junto a alguns de seus companheiros, ele entra em uma caverna repleta de provisões. No entanto, o que parecia um abrigo seguro se transforma em um pesadelo quando Polifemo retorna com seus rebanhos, bloqueando a saída com uma imensa pedra. Ignorando os costumes sagrados da hospitalidade, o ciclope devora dois dos homens ainda naquela noite. Na manhã seguinte, mata e come mais dois antes de sair para pastorear suas ovelhas.

Ao retornar à noite, o gigante repete o horror e consome mais dois tripulantes. Odisseu então oferece a ele um vinho forte e não diluído, que havia recebido anteriormente em sua jornada. Embriagado, Polifemo pergunta o nome do visitante, prometendo um “presente de hóspede” em troca da resposta. Astutamente, Odisseu responde que se chama “Οὖτις”, ou seja, “Ninguém”. Satisfeito, o ciclope promete comer esse "Ninguém" por último e adormece profundamente.


Com o monstro inconsciente, Odisseu e seus homens aquecem uma estaca de madeira no fogo e a cravam no único olho do gigante, cegando-o. Ao gritar por socorro, Polifemo diz que “Ninguém” o feriu, fazendo com que os outros ciclopes pensem que ele está sendo atormentado por alguma força divina, e o aconselham apenas a orar. Na manhã seguinte, o ciclope cego solta suas ovelhas para pastar, tateando suas costas para impedir que os homens escapem. Contudo, Odisseu e seus companheiros haviam se amarrado sob os animais e conseguem fugir despercebidos. Já a bordo do navio, prestes a partir, Odisseu comete um ato de hýbris (orgulho excessivo): revela sua verdadeira identidade em um grito de triunfo.

Polifemo, tomado de fúria, clama por vingança a seu pai, Poseidon, que atende ao pedido. O ciclope lança enormes pedras em direção ao navio, que por pouco não é atingido. A partir desse momento, Poseidon passa a perseguir Odisseu, tornando sua jornada de volta para casa ainda mais longa e cheia de sofrimentos.


Polifemo e Galateia

Embora mais lembrado por seu confronto violento com Odisseu, Polifemo também protagoniza uma narrativa marcada pelo amor não correspondido. Essa versão, mais tardia e de tom pastoral, aparece em fontes como as Metamorfoses de Ovídio e os Idílios de Teócrito, oferecendo um contraste com a imagem do ciclope cruel e selvagem.

Segundo esses relatos, Polifemo se apaixona por Galateia, uma nereida — ninfa do mar — de grande beleza. Rejeitado por ela, que preferia o jovem e belo pastor Ácis, o ciclope tenta conquistá-la com canções, poemas e promessas de presentes, como filhotes de ursos e cordeiros de lã branca. Em algumas versões, chega a construir um santuário em sua homenagem próximo ao Monte Etna, onde morava. O amor, porém, permanece não correspondido. Cego de ciúmes, Polifemo mata Ácis, esmagando-o com uma enorme pedra. Comovida, Galateia transforma o amante morto em um rio, eternizando sua presença na paisagem.

Curiosamente, versões posteriores afirmam que Galateia acabou aceitando o afeto do ciclope e que ambos tiveram um filho chamado Galatos (ou Gálato), figura que em algumas tradições seria ancestral dos gálatas.

Arte de Marta Gallegos


Polifemo na Eneida

Além da Odisseia e das obras helenísticas, Polifemo também aparece na Eneida, épico latino de Virgílio, onde é retratado em uma cena sombria e melancólica. Durante sua jornada, Enéias e seus companheiros desembarcam na ilha dos Ciclopes e encontram Aquemênides, um grego deixado para trás por Odisseu após a fuga da caverna de Polifemo.

Aquemênides narra aos troianos os horrores que viveu e como escapou da fúria do ciclope. Logo após, eles testemunham uma cena impressionante: Polifemo, agora cego, desce até o mar guiando seus rebanhos e apoiando-se em um imenso tronco de pinheiro, usado como bengala. Com passos pesados, o gigante lava sua órbita vazia e ensanguentada nas águas do mar, soltando gemidos de dor.

Ao perceber a presença do navio, Polifemo tenta persegui-los, mas Enéias e sua tripulação conseguem partir a tempo, levando consigo Aquemênides. Atrás deles, o ciclope lança um rugido de frustração tão poderoso que outros ciclopes aparecem na costa, atraídos pelo brado de seu irmão. Assustado, Enéias ordena que aumentem a velocidade da fuga, enquanto deixam para trás a ilha marcada pelo sofrimento e pelo terror.



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25 de agosto de 2025

Idianale

۞ ADM Sleipnir

Arte de Jun² Tacuyan

Idianale (também conhecida como Idiyanale ou Idianali em algumas fontes) é na mitologia filipina, em particular na mitologia do povo tagalo, uma importante divindade venerada como a deusa do trabalho digno e das boas ações. Embora algumas tradições a associem à colheita, esse aspecto é mais frequentemente atribuído ao seu marido, Dumangan, o deus das boas colheitas. Juntos, eles são pais de duas outras divindades: Dumakulem, deus associado às montanhas e à caça, e Anitun Tabu, deusa dos ventos e das chuvas.

Arte de Sam Sumulong

Idianale era invocada para trazer sucesso e orientação no trabalho, sendo considerada uma protetora dos esforços virtuosos. Diferentes fontes apresentam variações em seus domínios: enquanto o historiador Gregorio Zaide (1907–1986) a descreve como uma deusa da agricultura, outras narrativas a vinculam mais especificamente à pecuária, um ramo essencial da vida agrária nas sociedades pré-coloniais das Filipinas.

Como parte do panteão celestial liderado por Bathala, Idianale integrava o grupo de divindades menores que o auxiliavam na governança do mundo. Seu culto refletia os valores de uma sociedade que valorizava o trabalho árduo, a generosidade e a harmonia com a natureza. Sua figura permanece como um símbolo da ética laboral e da interconexão entre os domínios humano e divino na mitologia filipina.

Arte de caldatelier

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22 de agosto de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo LXII

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO LXII:

PARA LIBERTAR-SE DE TODA IMPUREZA E PURIFICAR A MENTE POR COMPLETO, BASTA VARRER UMA PAGODA. PARA ALCANÇAR A PERFEIÇÃO, É PRECISO SUBMETER OS DEMÔNIOS INTERNOS E RETORNAR À ORIGEM.

"Nem de dia, nem de noite (1), deve-se esquecer de cultivar o bem — é essencial mantê-lo presente durante as doze horas do dia (2). Que a água sagrada nunca seque, nem o fogo te persiga pelas cento e oitenta mil passagens (3) que que medem a passagem de cinco anos. Quando a água e o fogo encontram equilíbrio, nasce a abundância. Os Cinco Elementos então se unem, como elos de uma mesma corrente. O yin e o yang se harmonizam — e, com isso, é possível ascender à Torre das Nuvens, cavalgar pelos Céus nas costas de uma fênix ou alcançar Yingzhou montado em uma garça branca".

O título deste poema tsu, que ilustra o momento vivido por Sanzang e seus discípulos se chama "Imortal à Beira do Rio". Todos já haviam alcançado um estado de perfeição em que fogo e água coexistem em total equilíbrio. Por isso, seus espíritos estavam tomados por uma sensação de frescor e pureza, plenos e serenos. Depois de obterem o leque de puro yin e usarem-no para apagar as chamas daquela imensa montanha em chamas, foram capazes de atravessar, em apenas um dia, uma distância de mil e quinhentos quilômetros. Tranquilos e despreocupados, mestre e discípulos retomaram sua jornada rumo ao Oeste.

O outono estava prestes a terminar, e o inverno já dava sinais de sua chegada iminente. Os crisântemos haviam secado e caíam, como flocos de neve, aos pés das ameixeiras, que exibiam, orgulhosas, a doçura de seus frutos tardios. Nos vilarejos, o povo recolhia as últimas colheitas e armazenava os grãos para enfrentar a estação fria. Nos bosques, as árvores perdiam suas folhas, revelando as colinas que se erguiam atrás delas. Ao amanhecer, os riachos já estavam cobertos por uma fina camada de gelo, que se tornava mais espessa a cada dia. Os insetos haviam desaparecido há tempos, levados pelos ventos cortantes que anunciavam a chegada do rigor do inverno. O yin, pouco a pouco, dava lugar ao yang, e o espírito Yuanming, senhor do primeiro mês do inverno (4), já se preparava para tomar seu trono. Nesse período, o sopro vital da Terra se recolhe, enquanto o do Céu ressurge. Os arco-íris desaparecem, e o gelo começa a tomar conta das lagoas e lagos. É, sem dúvida, o tempo das águas, ainda que os dias sejam cinzentos e a cor desapareça das paisagens. Quando os bordos perdem o seu tom avermelhado, apenas os bambus e os pinheiros resistem ao frio, realçando o verde profundo de suas folhas.

Os viajantes observaram tudo isso ao longo de muitos dias de jornada. Depos de uma longa caminhada, avistaram uma cidade fortificada. O monge Tang puxou as rédeas do cavalo e, voltando-se para Wukong, perguntou:

— Está vendo aquelas construções logo à frente? Que tipo de lugar será aquele?

O Peregrino ergueu a cabeça e percebeu que se tratava de uma cidade cercada por um fosso profundo. Vista de longe, lembrava um dragão enrolado ou um tigre prestes a saltar sobre a presa. Havia toldos coloridos por toda parte, e as pontes que cruzavam o fosso estavam decoradas com figuras de animais esculpidas em jade. As bases das estátuas, que representavam os seus cidadãos mais ilustres, eram feitas de ouro, o que deixava claro que se tratava de uma cidade extremamente rica. Em muitos aspectos, lembrava a própria capital da China, ou até mesmo uma das cidades celestiais. Era evidente que aquele lugar era o centro de um império próspero, com domínios que se estendiam por mais de vinte mil quilômetros e com uma história milenar. Certamente os povos bárbaros pagavam tributo ao rei local, e a corte recebia diariamente emissários de ilhas e terras distantes, trazendo presentes exóticos. Seu soberano devia seguir com rigor o caminho da virtude. A prosperidade estava presente nas melodias que vinham das tavernas e na alegria que preenchia as ruas e praças. O palácio real, suntuoso como o de Weiyang (5), era cercado por árvores tão imponentes que se podia imaginar fênices pousando entre suas copas ao amanhecer.

— Essa cidade, com certeza, é a morada de algum rei — concluiu o Peregrino, depois de observá-la com atenção.

— E como pode ter tanta certeza disso? — retrucou Bajie, soltando uma gargalhada.  O mundo está cheio de cidades que são apenas sedes de prefeituras ou distritos.

— Sim, mas as cidades reais são bem diferentes dessas que você mencionou — rebateu o Peregrino. — Basta olhar os portões dessa cidade. São mais de uma dezena. O perímetro passa dos duzentos quilômetros, e os edifícios são tão altos que vivem cobertos de nuvens. Se não fosse a capital de um reino, por que teria uma aparência tão imponente?

— Todos sabemos que sua visão é realmente extraordinária — comentou o Monge Sha. — Então, se diz que é esta é uma capital real, nenhum de nós irá duvidar. Mas como ela se chama?

— Como eu vou saber? — respondeu o Peregrino. — Não há nenhuma bandeira ou placa à vista. Se quisermos descobrir, teremos que entrar na cidade e perguntar.

O mestre então esporeou o cavalo e logo chegou a um dos portões. Atravessou a ponte a pé e adentrou as ruas da cidade. Os três mercados e as seis avenidas fervilhavam de movimento, mas o que mais chamava a atenção, era que todos os moradores se vestiam como nobres. Enquanto admiravam tanta prosperidade, avistaram um grupo de monges maltrapilhos, mendigando de porta em porta, com cangas de madeira no pescoço, como se fossem criminosos. 

Ao vê-los, Sanzang suspirou com pesar, dizendo:

— Quando a lebre morre, a raposa chora, pois todo ser lamenta a desgraça dos seus semelhantes.

Em seguida, pediu a Wukong:

 Aproxime-se deles e pergunte por que levam uma vida tão miserável.


Obedecendo as ordens do mestre, o Peregrino se dirigiu aos monges e gritou:

— Ei, monges! A que monastério pertencem? E por que estão usando cangas e correntes?

— Somos monges do Monastério da Luz Dourada — responderam, ajoelhando-se — e fomos injustamente acusados.

— E onde fica esse monastério? — perguntou o Peregrino novamente.

— Logo ali na esquina — respondeu um dos monges.

O Peregrino os conduziu imediatamente até o monge Tang. Assim que ouviu o relato do discípulo, o mestre perguntou:

— O que querem dizer com “injustamente acusados”? Expliquem-me por favor.

— Não sabemos de onde vieram, senhores, mas parecem um tanto familiares — responderam os monges, com respeito. — Não ousamos falar sobre isso aqui. Pedimos que venham até nosso humilde monastério, onde poderemos revelar nossa desgraça.

— Parece o mais sensato — concordou o mestre. — Vamos com vocês, e lá ouviremos com mais tranquilidade.


Ao chegarem ao portão do monastério, avistaram uma placa sobre o lintel com a seguinte inscrição, em letras douradas:

"Monastério da Luz Dourada — Construído por Mandato Imperial".


Com tristeza, notaram que as lanternas penduradas nas paredes, tão descascadas quanto o barraco de um mendigo, estavam apagadas há muito tempo. Folhas secas rodopiavam pelos corredores vazios, arrastadas pelo vento. Uma pagoda de trezentos metros, testemunha de dias gloriosos, desaparecia nas nuvens. No espaço destinado à meditação, havia apenas alguns pinheiros raquíticos. E, embora o chão estivesse coberto por flores em alguns pontos, fazia anos que ninguém passava por ali. Teias de aranha se espalhavam pelos tetos e cantos. Os tambores e sinos ainda estavam nos lugares, mas já não tocavam havia muito tempo. Os afrescos nas paredes estavam apagados, as cores encobertas por uma espessa camada de poeira. Os púlpitos permaneciam vazios e silenciosos, sem nenhum monge à vista. Até o Salão Zen havia se calado, transformado num abrigo solitário para pássaros. O sentimento de abandono era sufocante, e os peregrinos observavam aquela decadência quase irreal com profunda tristeza. Apesar de os incensários ainda estarem diante das imagens de Buda, deles não subia uma única espiral de fumaça. Ao seu redor, haviam apenas cinzas frias e pétalas de flores completamente secas.

Diante de um cenário tão desolador, Sanzang não conseguiu conter as lágrimas que escorreram de seus olhos. Com dificuldade, por causa das cangas que os prendiam, os monges abriram as portas do salão principal e convidaram o mestre a prestar reverência a Buda. Sem ter incenso para oferecer, apresentou apenas o incenso de seu coração, seguindo com devoção cada etapa do ritual, chegando até a tocar o chão com a testa por três vezes seguidas.

Em seguida, todos seguiram para os fundos do monastério, onde encontraram seis ou sete monges jovens acorrentados a uma coluna, bem em frente aos aposentos do guardião do templo. Aquela cena foi demais para Sanzang. Ainda assim, entrou com os outros nos aposentos daquele que liderava o destino daquele lugar sagrado. Todos os monges se prostraram e, depois de tocarem a testa no chão várias vezes, um deles perguntou:

— As feições de vocês, Veneráveis Monges, são diferentes das nossas. Por acaso vieram da Grande Nação dos Tang, nas Terras do Leste?

— Parece que vocês possuem algum conhecimento mágico — respondeu o Peregrino, rindo. — Vocês estão certos. Somos da Grande Nação dos Tang. Mas como adivinharam?

— Não possuímos nenhum conhecimento de magia — explicou o monge. — A única coisa que sabemos fazer é clamar, dia e noite, ao Céu e à Terra, pedindo justiça, pois fomos condenados injustamente. Na noite passada, todos tivemos o mesmo sonho. Nele, nos foi revelado que, vindos da corte dos Tang, chegariam monges para nos libertar do sofrimento e devolver nossa dignidade. Assim que vimos vocês, não restou dúvida alguma. Seus rostos são inconfundíveis.

— Qual é o nome desta cidade? E que tipo de injustiça recaiu sobre vocês? — perguntou Sanzang, animado pelo que tinha acabado de ouvir.

— Esta cidade — respondeu um dos monges, ajoelhando-se novamente — é conhecida como Reino do Sacrifício, e é o maior assentamento humano dentre todos os territórios ocidentais. Até pouco tempo, todas as tribos bárbaras ao nosso redor nos prestavam tributos: o Reino de Yuetuo, ao sul; o Reino de Gaochang, ao norte; o Estado de Liang Ocidental, a leste; e o Reino de Benbo, a oeste. Todos os anos, elas nos enviavam enormes quantidades de jade da mais alta qualidade, pérolas raríssimas, jovens de beleza incomparável e cavalos fortes e vigorosos. Nunca precisamos recorrer às armas ou enviar expedições contra eles, pois naturalmente nos reconheciam como seu soberano.

— Se assim fazem — disse Sanzang — deve ser porque possuem um rei íntegro, oficiais civis dignos e oficiais militares honrados.

— Infelizmente, nada disso corresponde à realidade — respondeu o monge, entristecido. — O rei está longe de ser íntegro, os oficiais civis estão longe de ser integros, e os militares não conhecem a verdadeira honra. A fama desta cidade vinha do Monastério da Luz Dourada, que se erguia, com sua imensa torre, envolto numa aura de santidade. À noite, os raios de luz que saíam de suas construções podiam ser vistos a mais de vinte e cinco mil quilômetros de distância. 


De dia, as nuvens que o envolviam espalhavam bênçãos sobre todos os reinos que mencionei. Foi por causa disso que este lugar passou a ser visto como a capital de um distrito celeste, respeitado por todas as tribos vizinhas. Mas há cerca de três anos atrás, logo na primeira noite do inverno, uma chuva de sangue caiu sobre nós, exatamente à meia-noite. Na manhã seguinte, a cidade inteira mergulhou em pânico. Gritos de desespero ecoavam por todas as casas. Os ministros do rei correram para relatar o ocorrido e passaram horas discutindo o significado de um fenômeno tão sinistro. Concluíram que se tratava de um castigo enviado pelo Senhor do Céu, e ordenaram que monges taoístas e budistas recitassem as escrituras sem parar, na tentativa de aplacar a ira celestial. 


Ao saberem que a chuva de sangue havia caído sobre o monastério, as tribos bárbaras deixaram de nos enviar os tributos. O rei chegou a considerar enviar tropas para puni-los, mas seus conselheiros o convenceram do contrário. Eles acusaram os monges deste montastério de terem roubado o tesouro da pagoda, que era o que tornava esse lugar sagrado. Sem o tesouro, a luz desapareceu, e os povos vizinhos deixaram de ver valor em manter qualquer aliança. O rei não hesitou em mandar nos prender e nos torturar de forma tão brutal que dois terços dos monges que aqui viviam morreram. 


Os poucos que restaram foram acorrentados e marcados pela vergonha, sendo obrigados a carregar essas cangas como símbolo de desonra. Venerável Mestre, como seríamos tolos a ponto de roubar nosso próprio tesouro? Em nome dos ideais que nos unem, imploramos que tenha piedade de nós. Use o poder do seu dharma para salvar nossas vidas!

Sanzang assentiu com a cabeça e, após um suspiro entristecido, disse:

— Certamente há algo de estranho nessa história toda. De um lado, o rei negligenciou suas responsabilidades; de outro, talvez todos vocês estejam enfrentando uma calamidade destinada. Mas, se foi a chuva de sangue que dissipou a aura do monastério, por que não informaram imediatamente à corte? Em vez disso, acabaram se expondo a este sofrimento.

Como poderíamos compreender a vontade dos Céus, sendo apenas mortais comuns? — retrucou o monge. — Os mais velhos ficaram confusos, sem saber que rumo tomar. E nós, os mais jovens, tínhamos ainda menos preparo para decidir algo tão grande. O que poderíamos ter feito a respeito.

— Que horas são? — perguntou Sanzang, voltando-se para Wukong.

— Por volta das quatro da tarde — respondeu ele.

— Gostaria de ver o rei para apresentar nosso salvo-conduto disse Sanzang —, mas não posso resolver o problema desses monges e relatá-lo a Sua Majestade sem antes compreender a situação. Quando deixei Chang’an, fiz uma promessa no Salão das Portas da Lei: de que, durante minha jornada para o Oeste, queimaria incenso em cada templo por onde passasse, prestaria homenagem ao Buda em todo monastério que encontrasse e varreria cada pagoda que visse. Hoje encontramos vocês, monges, que foram injustiçados por causa de sua pagoda. Poderiam providenciar uma vassoura nova enquanto tomo banho? Assim poderei subir e varrer o local, e quem sabe descobrir o que causou a sua profanação e a perda do seu brilho. Depois de encontrar a verdade, será muito mais fácil relatar pessoalmente ao rei e libertá-los de seu sofrimento.

Ao ouvirem isso, alguns dos monges ainda presos em cangas e correntes correram até a cozinha e pegaram todas as facas e cutelos que encontraram. Em seguida, voltaram correndo até Bajie e os entregaram a ele, implorando:

— Por favor, tente romper as correntes dos jovens monges presos àquela coluna. Assim, eles poderão preparar uma refeição e um banho perfumado para vocês. Enquanto isso, iremos às ruas e tentaremos conseguir uma vassoura nova, para que o Venerável Mestre possa varrer a pagoda.

— Abrir fechaduras é fácil demais! — exclamou Bajie, rindo. — Não será preciso nenhuma faca ou machado. Perguntem ao nosso irmão de cara peluda ali. Ele é mestre em abrir cadeados.

O Peregrino deu um passo à frente e, usando sua magia de abrir cadeados, passou a mão sobre as algemas. No mesmo instante, todas as correntes e cangas caíram no chão. 

Os jovens monges correram  para a cozinha, onde começaram a limpar as panelas, o fogão e a preparar a refeição. 

Quando Sanzang e seus discípulos terminaram de comer e a noite já caía, chegaram alguns dos monges ainda acorrentados e com cangas nos pescoços, e traziam consigo duas vassouras. Ao vê-las, Sanzang se encheu de alegria. Enquanto conversavam, um jovem monge entrou para acender as lamparinas e convidar Sanzang para o banho. Nesse momento, a noite já tomava conta do céu. A lua, cheia e límpida, reinava solene, rodeada por estrelas que cintilavam com intensidade. Ao longe, ouvia-se o som dos tambores dos guardas postados nas muralhas e o toque seco dos bastões usados para marcar as horas da vigília. Um vento frio cruzava as ruas da cidade, enquanto a luz fraca das lamparinas tremulava nas janelas das casas. Os portões da cidade já estavam trancados com grandes travas, e os três mercados haviam fechado suas portas havia bastante tempo. À beira dos lagos, os pescadores amarravam suas embarcações; nos campos, os arados descansavam na terra fria; nos bosques, as machadinhas repousavam ao lado dos lenhadores adormecidos; e, no coração da cidade, estudantes ainda recitavam suas lições à luz bruxuleante das velas.

Após o banho, Sanzang vestiu uma camisa de mangas curtas, amarrou uma faixa de pano à cintura, calçou sapatos de sola de palha e, pegando uma das vassouras, disse aos monges:

— Podem descansar agora. Eu mesmo irei varrer a pagoda.

— Se, como disseram, ela perdeu o brilho após aquela tempestade de sangue e nunca mais voltou a resplandecer — interrompeu o Peregrino —, o mais provável é que alguma força maligna tenha se instalado no topo. Subir sozinho com esse vento frio pode ser perigoso. Que tal se eu acompanhá-lo?

— Ótima ideia — concordou Sanzang, e cada um pegou uma vassoura.

Antes de iniciarem a subida, passaram pelo salão principal, onde acenderam velas novas e queimaram um pouco de incenso. A fumaça se elevou em espirais tímidas, como se procurasse abrir passagem entre os planos do mundo visível e o invisível. Sanzang ajoelhou-se diante da imagem de Buda, tocou o chão com a testa por três vezes e orou, dizendo:

— Este discípulo, Chen Xuanzang, foi enviado pelo Grande Imperador da dinastia Tang, nas Terras do Leste, para prestar reverência a Tathagata e implorar que me sejam entregues as escrituras sagradas. Ao chegar a este Monastério da Luz Dourada, na cidade do Reino do Sacrifício, ouvi dos monges que a aura que envolvia este lugar desapareceu durante uma chuva de sangue, ocorrida na primeira noite do inverno. O rei os acusou de serem culpados por tal fenômeno e os mergulhou na vergonha. Por isso, decidi varrer a pagoda, não como um ato simbólico, mas como uma busca sincera pela verdade. Suplico, com toda humildade, que, com vossa sabedoria infinita, a origem de tão triste acontecimento seja revelada. Que os culpados sejam punidos, e os inocentes recuperem sua honra perdida.

Assim que terminou a oração, Sanzang abriu a porta da pagoda e começou a varrê-la desde o primeiro degrau, ao lado do Peregrino. A pagoda era tão alta que parecia tocar o céu. Mesmo sem emitir luz própria, suas cores eram tão vivas que lembravam uma montanha dourada coberta por seda. As escadas se enroscavam em espiral até o topo, como se quisessem perfurar os segredos do universo. Não era à toa que a lua gostava de refletir sua imagem ali, e o som dos sinos douradas ecoava como as ondas do mar. Os beirais, curvados, pareciam saudar as estrelas — que, por sua vez, viviam a se admirar nela, pois sua altura cortava o caminho das nuvens. Era impossível vê-la por completo: dava a impressão de ter milhares de quilômetros e alcançar o coração do Nono Céu. Apesar de sua imponência, o interior da pagoda estava tomado pelo descuido. As lamparinas nas paredes de cada andar estavam cobertas por uma espessa camada de poeira — a mesma que escondia o antigo brilho do corrimão de jade branco, agora enterrado sob sujeira e restos de insetos. As mesas de oferendas estavam abandonadas, sem nenhuma espiral de incenso. As imagens e vitrais, cobertos de teias de aranha, pareciam papel de arroz sob o sol. Os incensários e potes de óleo haviam virado esconderijo de ratos. Quanta frustração, sofrimento e morte aquela negligência havia trazido aos monges! Mas tudo isso estava prestes a acabar, pois assim que Sanzang terminasse de varrê-la, a pagoda voltaria a brilhar como antes e recuperaria sua antiga glória.

Com dedicação, o monge Tang limpava cuidadosamente cada trecho da escada antes de passar ao próximo. Quando chegaram ao sétimo andar, já era hora da segunda vigília, e o mestre começou a sentir os braços pesados de cansaço.

— Está cansado — disse o Peregrino. — Por que não se senta um pouco e deixa que eu varra por você?

— Quantos lances de escada você acha que essa pagoda possui? — perguntou Sanzang.

— No mínimo uns treze — respondeu o Peregrino.

— Preciso terminar de varrer todos, para cumprir a promessa que fiz — disse o mestre, esforçando-se para resistir ao cansaço. Mas, depois de limpar mais três lances, as pernas e as costas começaram a doer tanto que ele precisou se sentar para descansar, bem no final do décimo lance.

Wukong — disse Sanzang, com a voz fraca , se não for incômodo, termine de varrer os três andares que faltam.

O Peregrino, satisfeito, limpou o décimo primeiro lance e começou o décimo segundo. Foi então que ouviu vozes vindas do alto da torre. Intrigado, pensou:

— Que estranho! Já está quase na hora da terceira vigília... Quem estaria conversando lá em cima? Só pode ser alguém fora de si. Melhor eu dar uma olhada.

Silenciosamente, o Peregrino pegou a vassoura, colocou-a debaixo do braço e, após ajustar as roupas, saiu por uma das janelas com certa dificuldade. Em seguida, ele subiu em uma nuvem e flutuou até o topo da pagoda para observar. Lá de cima, avistou dois demônios sentados no décimo terceiro andar da pagoda. Estavam à vontade diante de uma panela de arroz e uma jarra cheia de vinho. Enquanto bebiam, jogavam um jogo de adivinhações (6)

Usando sua magia, o Peregrino fez a vassoura desaparecer, e trouxe o seu bastão de ferro com as extremidades douradas. Com ele, bloqueou a entrada da pagoda e gritou:

— Então foram vocês que roubaram o tesouro desta pagoda!

Assustados, os dois se levantaram rapidamente e, no desespero, atiraram contra ele a panela e a jarra, mas o Peregrino bloqueou os ataques com o bastão de ferro e disse:

— Se eu matar vocês, não vai ter ninguém para confessar.

Com o bastão, encurralou-os contra a parede até que não pudessem se mover. Só conseguiam repetir:

— Por favor, não nos mate! Não temos nada a ver com isso. Quem roubou o tesouro foi outro!

Usando sua magia de captura, o Peregrino agarrou os dois com uma só mão e os levou até o décimo lance da escada.

— Mestre! Capturei os ladrões do tesouro! — anunciou em voz alta o Peregrino, acordando Sanzang, que havia cochilado em um dos degraus.

— Onde os encontrou? — perguntou o mestre, animado.

— Estavam se divertindo no topo da pagoda, jogando e bebendo  explicou o Peregrino, forçando os dois demônios a se ajoelharem no chão. Quando ouvi toda aquela algazarra, subi na nuvem, saltei até lá e bloqueei a fuga deles sem esforço nenhum. Só não acabei com eles com o meu bastão porque, dessa forma, não haveria ninguém para confessar. Por isso, trouxe os dois até aqui. Mestre, pode interrogá-los e descobrir de onde vieram e onde esconderam o tesouro.

— Por favor, não nos matem! — suplicaram os dois, com vozes cada vez mais lastimosas, até que um deles criou coragem e começou a falar:

— Fomos enviados pra vigiar a pagoda por ordem do Rei Dragão de Todos os Espíritos, cujo palácio fica no fundo do Lago da Onda Esverdeada, bem no coração da Montanha das Rochas Espalhadas. O nome dele é Benborba, e o meu é Baborben. Ele é um espírito de peixe-cascudo, e eu sou um espírito de peixe preto. 

Uma das filhas do nosso senhor, conhecida como Princesa de Todos os Espíritos, uma moça encantadora, com habilidades realmente extraordinárias, se casou com um sujeito chamado Nove Cabeças, cujos poderes mágicos não devem nada a nenhum imortal de alto nível. Dois anos atrás, ele trouxe o Rei Dragão até aqui e, com seus feitiços, fez cair uma chuva de sangue sobre o mosteiro, que apagou completamente a aura sagrada do lugar. 

Com isso, ele conseguiu roubar as cinzas de um Buda (7) que eram guardadas nesta torre. Ao mesmo tempo, a princesa invadiu o Céu e roubou o agárico de nove folhas, que Wang-Mu Niang-Niang havia plantado diante do Salão da Névoa Divina. 

Agora, tanto as cinzas quanto a planta estão guardadas no fundo do lago, iluminando o palácio dia e noite com seus raios dourados e seus reflexos multicoloridos. Recentemente, ouvimos dizer que um tal de Sun Wukong estava indo em direção ao Paraíso Ocidental em busca das Escrituras Sagradas. Como ele é conhecido por seus poderes mágicos inigualáveis e por adorar se meter nos assuntos dos outros, recebemos ordens para patrulhar a região e soar o alarme assim que ele aparecesse.

— Que audácia! — exclamou o Peregrino com desdém. — Não me surpreende que o Rei Touro tenha aparecido em um dos banquetes de vocês. Só podia estar aliado a uma gangue de espíritos malfeitores!

Mal havia terminado de falar, quando Bajie apareceu com alguns monges jovens, trazendo duas lamparinas.

— Por que ainda estão aqui em cima, conversando? Não iam descansar depois de varrer a pagoda? — perguntou Bajie, dirigindo-se ao mestre.

— Chegou na hora certa, irmão — disse o Peregrino. — O tesouro do mosteiro foi roubado pelo Rei Dragão de Todos os Espíritos. Ele enviou esses dois demônios, que acabei de capturar, para espionar a pagoda e ficar de ouvidos atentos sobre nossos movimentos.

— E como se chamam? Que tipo de demônios são? — perguntou Bajie.

— Eles já confessaram tudo — respondeu o Peregrino. — Um se chama Benborba, e é o espírito de um peixe-cascudo; o outro se chama Baborben, e é o espírito de um peixe preto.

— Se já confessaram tudo — concluiu Bajie, erguendo o ancinho com a intenção de matá-los —, por que continuar perdendo tempo? Vamos acabar logo com isso!

— Parece que  não entendeu direito a situação — retrucou o Peregrino. — Se os mantivermos vivos, será mais fácil explicar tudo ao rei. Sem contar que podem nos dar informações valiosas sobre como recuperar o tesouro e punir os culpados.

Bajie baixou o ancinho sem discutir. O Peregrino, então, agarrou os dois demônios e começou a descer com eles pela torre. Enquanto desciam os degraus, os prisioneiros imploravam sem parar:

— Tenham piedade de nós, por favor!

— Que coincidência! — disse Bajie, com um sorriso malicioso. — Estávamos mesmo atrás de um peixe-cascudo e de um peixe-preto para fazer uma sopa para esses monges que sofreram tanto por causa de vocês.

Cheios de alegria, alguns dos jovens monges acompanharam o venerável mestre descendo as escadas da pagoda, iluminando o caminho com suas lanternas. Um deles correu adiante para avisar os outros monges, exclamando:

— Nosso sofrimento terminou! Os demônios que roubaram nosso tesouro foram capturados pelos mestres!

Então o Peregrino deu-lhes a seguinte ordem:

— Tragam correntes de ferro, atravessem os ossos dos ombros deles e os prendam aqui. Fiquem de guarda enquanto descansamos um pouco. Amanhã decidiremos o que fazer com eles.

Os monges se apressaram em cumprir a ordem com dedicação. Assim que amanheceu, o mestre saltou da cama e falou:

— Irei com Wukong até o palácio do rei, para solicitar que ele carimbe nosso salvo-conduto.

Sanzang vestiu então sua túnica bordada e o chapéu de Vairocana. Assim trajado, foi até a porta, seguido pelo Peregrino, que ajeitou da melhor forma possível sua pele de tigre e a camisa de seda.

— Por que não levam junto esses dois demônios? — perguntou Bajie, ao vê-los pegando o documento de viagem.

— Melhor contar primeiro ao rei o que aconteceu — respondeu o Peregrino. — Depois ele pode mandar alguém buscá-los.

Assim que passaram pelos portões do palácio, viram uma verdadeira revoada de pássaros avermelhados, misturada a inúmeros dragões de cor amarelada. Quando chegaram à Porta das Flores, voltada para o oriente, Sanzang fez uma reverência respeitosa ao oficial de guarda e disse:

— Anuncie ao vosso senhor que este humilde monge está em peregrinação rumo ao Paraíso Ocidental, por ordem direta do Grande Imperador da dinastia Tang, das Terras do Leste, com a missão de obter as escrituras sagradas. Venho humildemente pedir que o virtuoso soberano conceda o seu selo no nosso salvo-conduto, para que possamos atravessar seus vastos domínios com segurança.

O rei ordenou que os viajantes fossem levados imediatamente à sua presença. Ao ver o Peregrino, que caminhava logo atrás do mestre, todos os funcionários — civis e militares — começaram a tremer. Uns diziam que ele era um macaco convertido à religião; outros achavam que se tratava apenas de um monge com o rosto de um deus do trovão. Mas ninguém tinha coragem de encará-lo diretamente.

Enquanto o mestre prestava  reverência ao soberano, o Peregrino permanecia imóvel, com as mãos unidas em sinal de respeito.

— Este humilde servo — explicou Sanzang — dirige-se ao Monastério do Trovão no Paraíso Ocidental, com o propósito de prestar reverência a Buda e obter as escrituras sagradas. Cumpro ordem direta do Grande Imperador dos Tang, das Terras do Leste, no Continente Austral de Jambudvipa. Ao chegar a suas nobres terras, não ousamos atravessá-las sem a devida autorização. Por isso, viemos apresentar nosso salvo-conduto e pedir humildemente que o carimbe com o vosso selo e nos permita prosseguir com segurança.

O rei ficou visivelmente satisfeito com a postura respeitosa do mestre e ordenou que ele fosse conduzido ao Salão dos Carrilhões de Ouro. Enquanto o rei examinava pessoalmente o documento, pediu que o mestre se acomodasse sobre uma almofada de seda ricamente bordada.

— Foi uma grande sorte para o Imperador dos Tang — declarou o rei, após concluir a leitura — contar com um monge tão virtuoso como o senhor. Mesmo diante de tantos perigos, aceitou de bom grado essa longa jornada para buscar os ensinamentos de Buda. Que diferença em relação aos monges deste reino, que só pensam em roubar e trazer desgraça  para estas terras e para o soberano que as governa!

— Sua Majestade  poderia explicar melhor o que aconteceu? — perguntou Sanzang, unindo as palmas das mãos com respeito.

— Não é necessário dizer — respondeu o rei —, que este é o reino mais importante de todos os Territórios Ocidentais. Até pouco tempo, todas as tribos vizinhas vinham nos prestar tributo, não por medo do nosso exército, mas por respeito ao Monastério da Luz Dourada. Lá havia um tesouro sagrado que emitia raios tão intensos que iluminavam o próprio Céu. Mas, cegos pela ganância, os monges roubaram esse tesouro e o brilho se apagou já faz quase três anos. Desde então, os reinos ao redor deixaram de nos reverenciar, o que causou enorme ressentimento em nosso povo.

— Costuma-se dizer, Majestade — respondeu Sanzang com um leve sorriso, que quem se desvia por um fio de cabelo no início do caminho jamais alcança o alvo no final. Ontem, ao entrar na capital deste próspero reino, vi cerca de dez monges com cangas no pescoço e correntes. Quando perguntei o motivo, disseram que eram do Monastério da Luz Dourada e que eram vítimas de uma injustiça. Após visitar o monastério e investigar com atenção, constatei que não tinham qualquer envolvimento com o roubo. Então, ao varrer a pagoda no meio da noite, capturei dois demônios - os verdadeiros culpados pelo roubo do tesouro.

— E onde eles estão? —perguntou o rei, claramente satisfeito.

— Estão no Monastério da Luz Dourada — respondeu Sanzang. — Ordenei que fossem mantidos sob custódia até que Vossa Majestade decida seu destino.

Maravilhado com tanta prudência, o rei emitiu imediatamente uma ordem:

— Que a guarda real traga imediatamente à minha presença os demônios detidos no Monastério da Luz Dourada. Desejo interrogá-los pessoalmente.

— Embora vossa guarda seja extremamente corajosa — disse Sanzang, em um tom humilde —, seria prudente que meu humilde discípulo os acompanhe.

— E onde está esse discípulo? — quis saber o rei.

— É aquele   respondeu Sanzang, apontando com o dedo —, junto aos degraus de jade.

— Que monge mais feio! — exclamou o rei, surpreso ao vê-lo. — Como é possível ter um rosto assim?

— Majestade — respondeu o Grande Sábio com firmeza —, não se deve julgar um homem pela aparência. Isso seria tão absurdo quanto tentar medir toda a água do mar com uma pequena vasilha. Se só se prestar atenção nos rostos bonitos, como será possível reconhecer os ladrões e os malfeitores?

— O que acaba de dizer é verdade— reconheceu o rei, impressionado com a profundidade daquelas palavras. — É insensato escolher conselheiros com base apenas na aparência. O que mais importa agora é capturar os ladrões e garantir que as cinzas sagradas retornem o quanto antes ao monastério.

Em seguida, ordenou que seus servos reais preparassem uma carruagem  e mandou que a guarda real protegesse o monge sagrado no caminho até onde estavam os demônios.

Imediatamente, os servos reais trouxeram uma esplêndida liteira com um dossel amarelo, e o Peregrino subiu nela. Era tão pesada que precisava ser carregada por oito homens, quatro na frente e quatro atrás, enquanto outros quatro iam à frente abrindo caminho aos gritos até o Monastério da Luz Dourada. O cortejo logo chamou a atenção de toda a cidade. Ninguém deixou de ir até as ruas para tentar ver o monge sagrado e os demônios ladrões. Quando Bajie e o Monge Sha ouviram os gritos e viram o movimento, acharam que algum oficial enviado pelo rei havia chegado, e saíram às pressas do monastério para recebê-lo. Ao ver o Peregrino sentado na liteira, Bajie soltou uma gargalhada e exclamou:

— Agora você voltou ao normal, irmão! 

— O que quer dizer com isso? — perguntou o Peregrino, incomodado, descendo da liteira e aproximando-se dele.

—Olha só você, sendo carregado por oito homens numa liteira real com um dossel amarelo! — disse Bajie. — Não é exatamente o jeito digno de viajar para o Belo Rei Macaco? Por isso eu disse que você voltou ao normal!

— Não zombe de mim — disse o Peregrino. Em seguida, desamarrou os dois demônios e se preparou para levá-los ao rei.

— Irmão mais velho — disse o Monge Sha —, por favor, levem-nos junto.

— Não, não — respondeu o Peregrino. É melhor ficarem aqui, cuidando do cavalo e dos nossos pertences.

— Veneráveis senhores — disse um dos monges com a cabeça ainda presa em uma canga —, por que não vão todos ver Sua Majestade? Deixe que nós cuidemos de suas coisas aqui.

— Está bem — concordou o Peregrino. — Assim que falarmos com o rei, voltaremos para libertá-los.

Bajie segurou um dos demônios, enquanto o Monge Sha fez o mesmo com o outro. O Grande Sábio subiu novamente na liteira, e o cortejo seguiu seu caminho. Ao chegar aos degraus de jade branco, o chefe da guarda imperial levantou a voz e anunciou:

— Os desejos de Vossa Majestade foram cumpridos. Aqui estão os demônios que ordenou que trouxéssemos.

O rei levantou-se imediatamente do trono do dragão e desceu para ver os demônios, acompanhado pelo monge Tang e por todos os oficiais, civis e militares. Um deles tinha o queixo arredondado, coberto de escamas negras, uma boca pontiaguda e dentes tão afiados quanto facas. O outro, por sua vez, possuía pele muito fina, boca alongada e bigodes tão rígidos quanto cerdas. Embora tivessem pernas e conseguissem andar, a aparência deles era tudo, menos humana.

Mesmo assim, o rei lhes perguntou em tom solene:

— De onde vieram, e em que ano invadiram nossos domínios para roubar o nosso tesouro? Quantos ladrões participaram do crime, e quais são os nomes deles? Falem a verdade, se quiserem poupar suas vidas.

Um fio de sangue escorria lentamente pelos pescoços dos dois demônios, embora parecessem não se importar com a dor. Assim que ouviram as perguntas do rei, lançaram o rosto ao chão e responderam:

— Há aproximadamente três anos, no primeiro dia do sétimo mês, o Rei Dragão de Todos os Espíritos se estabeleceu com toda a sua família em um lugar a trezentos quilômetros daqui, chamado Lago da Onda Esverdeada, bem no coração da Montanha das Pedras Espalhadas. Sua filha, uma princesa extremamente bela e sedutora, casou-se com um sujeito conhecido como Nove Cabeças, para quem a magia não tem segredo. Ao saber que o maior dos vossos monastérios possuía um tesouro de valor incalculável, uniu forças com o dragão para roubá-lo. Para isso, fez cair uma chuva de sangue que dissipou a aura que envolvia o monastério. Assim, não foi difícil roubar as relíquias sagradas, que agora repousam no fundo do lago, iluminando dia e noite o palácio do dragão. Ao mesmo tempo, a princesa conseguiu arrancar de Wang-Mu-Niang-Niang o seu agárico, com a qual potencializa ainda mais o poder das cinzas. Nós, senhor, não somos bandidos, mas soldados a serviço do Rei Dragão, e tivemos a má sorte de sermos capturados justamente na noite passada. Declaramos que tudo o que dissemos é a mais pura verdade.

— Se isso é verdade — disse o rei —, por que não revelam os seus nomes?

— Eu, senhor — respondeu um deles — me chamo Benborba, e meu companheiro se chama Baborben. Sou o espírito de um peixe-cascudo, e ele, o de um peixe preto.

O rei ordenou ao chefe da guarda imperial que os levassem para as masmorras. 

Em seguida, chamou um dos escrivães e ditou a seguinte ordem:

— Que todos os monges do Monastério da Luz Dourada sejam imediatamente libertados das cangas e das correntes. Ordeno que seja preparado no Salão do Unicórnio um banquete esplêndido, em agradecimento aos monges que vieram de longe e ajudaram na captura dos ladrões. Após o banquete, discutiremos a questão de solicitar que esses sábios monges capturem o líder dos ladrões.

Sem demora, os cozinheiros imperiais organizaram um banquete com fartura de pratos vegetarianos e carnes. Após convidar o mestre Tang e seus discípulos para o Salão do Unicórnio, o rei perguntou:

— A que família pertence?

— A família na qual nasci se chama Chen, embora na religião eu seja conhecido como Xuanzang. O imperador me concedeu a honra de usar o sobrenome Tang. No entanto, sou mais conhecido como Sanzang.

— E os seus nobres discípulos? — continuou o rei.

— Eles não pertencem a nenhuma família — explicou Sanzang. — O primeiro se chama Wukong, o segundo Wuneng e o terceiro Wujing. Esses nomes foram dados pela própria Bodhisattva Guanyin, dos Mares do Sul. Todos juraram obediência a mim e me consideram seu mestre. Por isso, às vezes me refiro a Wukong como Peregrino, a Wuneng como Bajie e a Wujing como Monge Sha.

Assim que terminou de falar, o rei convidou Sanzang a ocupar o lugar de honra na mesa. O Peregrino ficou à sua esquerda, enquanto Bajie e o Monge Sha sentaram-se à direita. Sobre essas mesas havia uma grande variedade de pratos vegetarianos, frutas, chá e arroz. O rei se acomodou à frente deles, diante de uma mesa repleta de iguarias com carne, como as outras cem mesas ocupadas pelos funcionários civis e militares, conforme seus postos. Todos começaram a comer após a permissão de Sua Majestade, que ergueu a taça num brinde à saúde dos ilustres visitantes. Sanzang não se atreveu a levar a taça aos lábios, mas seus três discípulos aceitaram o brinde com alegria. A orquestra do palácio animava o ambiente, embora a música não fosse páreo para o apetite imenso de Bajie. Sem se importar com o tipo de verdura que lhe serviam, ele devorava tudo num piscar de olhos. Os criados lhe trouxeram mais sopa e arroz do que para todos os outros juntos, e mesmo assim ele engolia tudo antes que os demais dessem a primeira garfada. Também não recusou nenhuma taça de vinho oferecida, mesmo com o banquete se estendendo até o fim da tarde.

Sanzang então agradeceu ao rei por todas as honras, mas o soberano, segurando sua túnica, disse:

— Isto foi apenas uma forma de agradecer aos santos monges por terem capturado os demônios. A celebração continuará no Palácio Jianzhang (8), onde gostaria de discutir com o Venerável Mestre o plano para capturar o líder desses bandidos e devolver o tesouro à pagoda.

— Se esse é o desejo de Vossa Majestade — respondeu Sanzang —, não há necessidade de outro banquete. Nós, humildes monges, nos despediremos agora e partiremos para enfrentar os demônios.

O rei, no entanto, não aceitou a recusa e insistiu para que todos seguissem até o Palácio Jianzhang, onde foram novamente recepcionados com festa. Erguendo uma taça de vinho, o soberano perguntou:

— Qual de vocês, monges sábios, irá liderar as tropas encarregadas de capturar esses demônios?

— Essa tarefa caberá a Sun Wukong, o mais velho dos meus discípulos — respondeu Sanzang. O Grande Sábio juntou as mãos e fez uma reverência, aceitando a missão.

— Nesse caso — continuou o rei — de quantos cavalos e homens o respeitável Sun irá precisar? E quando pretende partir?

— Quem precisa de cavalos e homens? — exclamou Bajie, impaciente. — Estamos sempre prontos. Agora que estou cheio de arroz e vinho, posso acompanhar meu irmão mais velho nessa missão sem pensar duas vezes. Apenas nós somos o suficiente para capturarmos esse demônio.

— Ultimamente você tem se oferecido para tudo, Bajie — comentou Sanzang, sorrindo.

— Então — concluiu o Peregrino — que o Monge Sha fique para proteger o mestre, enquanto nós dois partimos atrás do monstro.

— Já que não precisam de cavalos nem de homens — insistiu o rei —, que armas desejam levar?

— Perdoe minha sinceridade — disse Bajie, sorrindo —, mas suas armas não nos servem para nada. Temos nossas próprias armas, das quais não nos separamos nem de dia nem de noite.

O rei ordenou então que lhe trouxessem uma taça maior que o normal, para brindar a despedida, mas o Grande Sábio recusou, dizendo:

— Agradecemos a honra, mas não beberemos mais. O que realmente seria útil agora é que os dois onde perguntaremos ao monge sábio o plano para prender o chefe da quadrilha e devolver o tesouro à pagoda. — presos nas masmorras fossem enviados até nós. Gostaríamos de lhes fazer algumas perguntas que podem ser muito úteis.

O rei atendeu ao pedido, e eles, montados no vento, partiram rumo ao sudeste, levando consigo os dois demônios bem amarrados. Ao vê-los voar daquela forma, o rei e seus súditos perceberam que aqueles monges eram, de fato, verdadeiros sábios.

Por ora, ainda não sabemos como eles conseguiram capturar os outros demônios. Quem quiser saber terá que ouvir com atenção as explicações que serão dadas no próximo capítulo.


CAPÍTULO LXIII EM BREVE


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Notas do Capítulo LXII

  1. Literalmente, fala-se em “cem marcas”, uma expressão que se refere a todas as divisões feitas nas clepsidras para marcar as partes em que se dividia um dia natural;
  2. Os chineses dividiam o dia em doze partes, com duas horas cada. Por isso, considerava-se que um dia tinha doze “horas”;
  3. De acordo com a nota 1 deste mesmo capítulo, um ano correspondia a trinta e seis mil marcas na clepsidra. Em cinco anos, esse número chegava a cento e oitenta mil;
  4. Embora receba o título de Senhor do Primeiro Mês do Inverno, segundo o Lij (禮記, "Registro dos Ritos", um dos Cinco Clássicos do Confucianismo), Yuanming não passava de seu espírito protetor;
  5. O Palácio Weiyang foi construído ao noroeste da cidade de Luoyang pelo imperador Xiao He, da dinastia Tang;
  6. cāiquán (划拳 ), também chamado de “jogo dos chineses” continua presente até hoje, assim como era na antiguidade, embora atualmente se usem os dedos no lugar de moedas;
  7. As cinzas resultantes da cremação de um Buda ou de um homem santo eram chamadas de sarira e geralmente guardadas em recipientes com formato de ovo ou pérola;
  8. Assim como o Palácio Weiyang, o Palácio Jianzhang  foi construído a oeste de Luoyang, mas sua edificação ocorreu durante a dinastia Han.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:

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