5 de setembro de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo LXIII

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang

CAPÍTULO LXIII:

OS DOIS MONGES MERGULHAM O PALÁCIO DO DRAGÃO EM COMPLETO DESARRANJO. OS SÁBIOS RECUPERARAM AS CINZAS E DERROTARAM OS PERVERSOS.


Ao verem o Grande Sábio e Bajie montarem no vento e desaparecerem entre as nuvens junto com os dois demônios, tanto o Senhor do Reino do Sacrifício quanto seus súditos, de todas as classes e posições, inclinaram-se diante do céu e exclamaram, maravilhados:

— Até hoje não acreditávamos de verdade que pudessem existir tais imortais! São, de fato, budas vivos!

Meus olhos são mortais e só conseguem ver o que está diante deles — confessou o rei a Sanzang e ao Monge Sha, assim que Bajie e o Peregrino desapareceram. — Sabíamos que os seus discípulos tinham força para capturar demônios, mas jamais imaginamos que pudessem voar sobre as nuvens montados no vento.

— Este humilde servo — disse Sanzang, com gesto modesto — não possui nenhum poder mágico. Durante toda a jornada, dependi inteiramente das habilidades de meus discípulos.

— Para ser sincero, senhor acrescentou o Monge Sha , o meu irmão mais velho não é outro senão o Grande Sábio, Sósia do Céu, aquele que um dia mergulhou o Reino Superior em total desordem apenas com seu bastão de ferro com extremidades douradas. Nenhum dos guerreiros celestes conseguiu enfrentá-lo. Nem mesmo o Imperador de Jade ou o próprio Lao-Tzu tiveram forças contra ele, e tremiam de medo ao ouvir seu nome. Quanto ao meu segundo irmão, trata-se do Marechal dos Juncos Celestes, que se arrependeu de seus antigos erros e abraçou o caminho da Verdade. Em seu auge, chegou a comandar oitenta mil marinheiros que patrulhavam sem descanso o Rio Celeste. Comparados a eles, meus poderes são, na verdade, insignificantes. Ainda assim, devo esclarecer que sou o Marechal que Levanta a Cortina e que abracei, de bom grado, os princípios da religião. Embora nenhum de nós valha grande coisa, somos mestres em capturar monstros e aprisionar demônios, deter ladrões e alcançar fugitivos, domar tigres e subjugar dragões, revirar os Céus e conter a fúria destrutiva das águas. Para nós não há mistério em montar nas nuvens, cavalgar o vento, provocar chuva, acalmar tempestades, mover as estrelas de lugar, carregar montanhas nos ombros e até perseguir a lua, entre muitas outras façanhas.

Tal discurso fez crescer ainda mais o respeito que o rei nutria pelo monge Tang. Ele sempre o convidava para ocupar o lugar de honra e tratava-o pelo título de “Respeitável Buda”, enquanto o Monge Sha e seus irmãos eram chamados simplesmente de “bodhisattvas”. Mas, se o respeito que despertavam entre todos os funcionários, civis e militares, já era grande, não era menor a alegria que todos sentiam por ter entre eles seres tão extraordinários. De todos os cantos do país, pessoas vinham prestar homenagens, e, por isso, por ora não falaremos mais deles.

Falaremos, no entanto, do Grande Sábio e de Bajie, que, montados num vento impetuoso, logo chegaram com os dois demônios às proximidades do Lago da Onda Esverdeada, no coração da Montanha das Rochas Espalhadas. Parando no ar, o Grande Sábio soprou seu fôlego mágico sobre seu bastão de ferro com extremidades douradas, e bradou com uma voz potente:

— Transforme-se! 

No mesmo instante, o bastão se transformou em uma faca ritual, com a qual ele decepou as orelhas do espírito do peixe preto e o lábio inferior do espírito do peixe-cascudo. 

Em seguida, lançou-os à água e disse, em tom de escárnio:

— Voltem e informem ao Rei Dragão de Todos os Espíritos o que aconteceu. Digam que o Grande Sábio, Sósia do Céu, chegou e exige a devolução imediata do tesouro ao Monastério da Luz Dourada, no Reino do Sacrifício. Se atender ao pedido, salvará a própria vida e a de toda a sua família. Mas, se recusar, irei secar este lago completamente, e passarei a fio de espada todos os seus habitantes.

Apesar da dor e das correntes que lhes dilaceravam mãos e pés, os dois demônios ficaram aliviados por escaparem com vida. Assim que mergulharam na água, foram rapidamente cercados por espíritos de peixes, camarões, caranguejos, tartarugas, lagartos aquáticos e toda sorte de criaturas fluviais, que os interrogaram, espantados:

— Por que voltaram acorrentados, como se fossem criminosos?

Nenhum dos dois ousava responder. Um balançava a cauda nervosamente e mexia a cabeça envergonhado, enquanto o outro batia no peito com as barbatanas. Percebendo que algo terrível havia acontecido, os curiosos os acompanharam em multidão até o palácio do Rei Dragão.

— Que desgraça! — gritaram desesperados ao entrar.

Naquele momento, o Rei Dragão de Todos os Espíritos bebia algumas taças de vinho com o seu genro, Nove Cabeças. Ao ouvir o alvoroço, deixou a jarra de lado e saiu apressadamente para ver o que estava acontecendo.

— Ontem à noite — contou um dos demônios, com lágrimas nos olhos —, enquanto fazíamos a ronda, tivemos o azar de encontrar o monge Tang e o Peregrino Sun, que varriam os degraus da pagoda. Fomos presos, acorrentados, e esta manhã levados diante do rei, que nos tratou ainda pior que os monges. E, como se não bastasse, o Peregrino e aquele tal de Bajie cortaram nossas orelhas e lábios. Ainda assim, sobrevivemos. Só nos deixaram ir para exigir a devolução das relíquias ao monastério de onde foram roubadas.

Ao ouvir o nome do Grande Sábio, Sósia do Céu, o Rei Dragão sentiu um pavor tão grande que sua alma quase deixou o corpo, como se tivesse ascendido ao nono céu. Tremendo como uma folha de bambu ao vento, voltou-se para Nove Cabeças e murmurou:

— Ah, genro, em que enrascada nos metemos! Eu não temeria enfrentar um exército dez vezes maior que o meu. Mas esse adversário é forte demais para nós.

— Acalme-se — respondeu o genro, sorrindo. — Desde jovem me dediquei às artes marciais e adquiri grande maestria no manejo das armas. Já enfrentei guerreiros valentes dos Quatro Mares. Por que teria medo de um simples macaco? Garanto que, depois de três embates, ele baixará a cabeça, derrotado, e não ousará sequer olhar nos meus olhos.

Os criados o ajudaram a vestir a armadura, enquanto ele empunhava a arma que lhe dera fama: um cajado com ponta em forma de meia-lua. Em dois passos, deixou o palácio e, abrindo caminho pelas águas, emergiu na superfície com ar imponente.

— Quem é esse tal Grande Sábio, Sósia do Céu, que dizem ter chegado? — gritou, em tom de arrogância. — Que venha aqui agora mesmo para que eu possa ensiná-lo a controlar a língua!

Da margem do lago, o Peregrino e Bajie o observavam, curiosos. O monstro usava um elmo tão reluzente quanto a neve sob o sol, uma armadura de aço que refletia o frio de um outono rigoroso e uma túnica de damasco estampada com nuvens coloridas e adornada de peças de jade. Na cintura, ostentava um cinto de couro de rinoceronte, semelhante a uma píton salpicada de manchas douradas. Empunhava um cajado com ponta em forma de meia-lua, da qual saíam raios cintilantes que brincavam sobre suas botas lustrosas de couro de javali próprias para abrir as águas e caminhar sobre as ondas. De longe, parecia ter cabeças sobrepostas no lugar do rosto, mas, ao se aproximar, revelava feições humanas multiplicadas como reflexos em um espelho. Para enxergar tudo ao redor, possuía olhos na frente e atrás. Tinha nove bocas ao todo, duas de cada lado, que lhe davam uma voz tão potente que até os astros pareciam ouvi-la, como se fosse o lamento de uma garça perdida no céu. Mesmo assim, estranhou que ninguém respondesse à sua provocação.

— Quem é esse Grande Sábio, Sósia do Céu? — repetiu, irritado.

Tocando a tiara dourada em sua cabeça e, segurando seu bastão de ferro, o Peregrino respondeu:

— Sou eu! O Rei Macaco em pessoa!

— Onde você mora? De onde veio? — voltou a perguntar o demônio. — E com que autoridade se coloca como defensor do Monastério do Reino do Sacrifício e de seu rei corrompido? Como ousa capturar e mutilar dois dos meus oficiais e ainda me desafiar diante dos portões de meu palácio?

— Ladrão miserável! — retrucou o Peregrino. — Não sabe quem é seu avô Sun? Então aproxime-se pois irei lhe contar. Minha primeira morada foi a Caverna da Cortina de Água, no coração da Montanha das Flores e Frutos. Desde jovem me dediquei ao aperfeiçoamento do corpo e do espírito, até que o Imperador de Jade me concedeu o título de Grande Sábio, Sósia do Céu. Não satisfeito, causei tamanha confusão no Reino Celestial que nenhum de seus guerreiros conseguiu conter minhas investidas. Incapazes de me punir como eu merecia, recorreram ao próprio Buda. Ele, com sua sabedoria profunda, me desafiou a dar o maior salto da minha vida, e me prendeu sob sua mão sagrada, transformada em montanha, onde permaneci preso por quinhentos anos. Eu ainda estaria lá, se não fosse pela compaixão da Bodhisattva Guanyin. O irmão do Grande Imperador dos Tang, o virtuoso monge Sanzang, partia rumo à Montanha do Espírito em busca das escrituras sagradas de Buda. Para acompanhá-lo nessa jornada, ofereceram-me a liberdade sob a condição de protegê-lo no caminho. Aceitei a missão de bom grado e me dediquei com tamanho empenho que não apenas alcancei minha própria perfeição, como também exterminei inúmeros monstros e demônios, servindo de exemplo para que outros seguissem o mesmo caminho. Ao chegar ao Reino do Sacrifício, soubemos da terrível injustiça cometida contra nossos irmãos monges, dois terços dois quais haviam sido mortos pelas mãos do carrasco. Comovidos por tamanha desgraça, decidimos restaurar a honra perdida. Foi então que descobrimos que o monastério havia sido privado da aura que outrora lhe conferia glória. Para esclarecer o mistério, meu mestre se ofereceu para varrer, degrau por degrau, todos os lances da pagoda. Na terceira vigília da noite, quando o silêncio era absoluto, pude ouvir a conversa de dois demônios. Eles confessaram que o Rei Dragão de Todos os Espíritos, junto do marido da princesa de mesmo nome, haviam roubado as relíquias sagradas. Disseram ainda que, enquanto ela se apoderava de outro tesouro valiosíssimo nos Céus, o bando de vocês apagava a luz do monastério, fazendo chover sangue sobre ele. No dia seguinte, repetiram a confissão diante do rei, que nos encarregou de prender todos vocês. O mundo inteiro conhece Sun Wukong. Se devolverem as relíquias imediatamente aos legítimos donos, pouparei a vida de todos. Mas, se forem insensatos a ponto de querer medir forças comigo, saibam que secarei este lago, lançarei esta montanha sobre ele e todos vocês perecerão esmagados sob o seu peso!

— Como é que se mete nos assuntos dos outros, se, como acabou de dizer, não passa de um monge à procura de escrituras? — retrucou o genro do dragão, sorrindo com desdém. — Que diferença faz se eu roubo tesouros ou não? Cuide da sua vida. Qual o sentido de querer lutar comigo?

— Que mente pequena têm ladrões como você! — exclamou o Peregrino. — Acha que estou atrás de favores do rei? Não vivo do sustento dele, nem jurei lealdade ao seu trono. Mas, ao roubar as relíquias sagradas, não apenas tirou do Monastério da Luz Dourada a sua aura, como também trouxe desgraça aos monges que lá servem. Eles são nossos irmãos. Como poderia eu ficar parado diante do sofrimento que sua conduta vergonhosa causou?

— Então você está mesmo disposto a lutar, não é? — replicou o genro do dragão. — Como diz o provérbio, “nada é mais cruel que a guerra”. Em combate não existe piedade. Não espere que eu pegue leve com você. Se eu tirar sua vida, sua missão de conseguir as escrituras sagradas estará perdida.

— Maldito ladrão! — gritou o Peregrino, já sem paciência. — Não tem direito de me dar lições de moral! Venha aqui e prove o gosto do bastão do seu avôzinho!

O genro do dragão não recuou. Pelo contrário, ergueu o cajado com ponta em forma de meia-lua e aparou com firmeza o golpe do bastão que vinha em sua direção. Assim teve início uma batalha extraordinária no coração da Montanha das Rochas Espalhadas. Tudo começou quando o monastério perdeu sua aura. O Peregrino capturou dois demônios envolvidos no roubo do tesouro e informou o ocorrido ao rei. Depois, os ladrões foram devolvidos às águas, o Rei Dragão consultou seus conselheiros e Nove Cabeças, tomado por um desejo incontrolável, decidiu exibir sua maestria na arte da guerra. Cego de orgulho, empunhou suas armas e ousou desafiar o Grande Sábio, Sósia do Céu, cujo bastão de ferro jamais conheceu a derrota. O monstro confiava em suas nove cabeças e dezoito olhos, que brilhavam como brasas incandescentes. Mas não contava com a força dos braços do Peregrino, capazes de suportar mais de mil quilos de pressão. Além disso, a razão estava do lado do Rei Macaco. Ainda assim, o cajado do inimigo, com sua ponta em forma de meia-lua, carregava todo o poder do yang (1), e poderia ter superado o bastão, não fosse ele uma manifestação do yin. Ambas as armas estavam decididas a conquistar a vitória.

Após mais de trinta embates, golpe após golpe, nenhum dos dois conseguiu obter uma vantagem significativa. Bajie, até então, observava de braços cruzados, esperando que a luta chegasse ao auge. Quando julgou que o momento havia chegado, ergueu seu ancinho sobre a cabeça e o lançou com força contra as costas do monstroMas os olhos que ele possuía atrás do corpo viram o golpe chegando e, movendo-se rapidamente, Nove Cabeças conseguiu aparar com seu magnífico cajado tanto os golpes do ancinho quanto do bastão. 

O combate ficou ainda mais intenso, mas após seis ou sete embates, o monstro percebeu que não conseguiria resistir a um ataque tão implacável. De repente, saltou para trás e revelou sua verdadeira forma: um inseto de nove cabeças, de aspecto grotesco e feroz. Qualquer mortal teria morrido de pavor ao vê-lo. Tinha uma crista semelhante às penas eriçadas de uma ave e um corpo robusto como aço, coberto de pelos encaracolados. Media quase três metros e meio, lembrando ora uma tartaruga alongada, ora um lagarto corpulento. Em contraste, suas patas terminavam em garras de aço, afiadas como as de uma águia. Suas nove cabeças estavam unidas como flores num mesmo talo, e as asas lhe davam mais majestade no voo do que a de um falcão. De sua garganta saía um som estridente, poderoso como o canto de um grou, que ecoava até os confins do Céu. Seus olhos lançavam raios dourados, reflexo evidente do orgulho daquela criatura alada, única em todo o universo.

Horrorizado com a visão, Bajie exclamou:

— Nunca vi nada tão nojento! Que tipo de animal consegue gerar uma criatura tão repugnante assim?

— É realmente asqueroso — admitiu o Peregrino —, mas isso não vai livrá-lo dos golpes do meu bastão.

Com um salto espetacular, o Grande Sábio elevou-se às nuvens e desferiu um golpe terrível contra as cabeças do monstro. Este, por sua vez, abriu suas asas com majestade, e desviou-se. Em seguida, deslizou pela encosta da montanha e, soltando um grito ensurdecedor, fez brotar do peito uma nova cabeça, com uma boca tão grande quanto os caldeirões usados pelos açougueiros. Com ela, agarrou o desprevenido Bajie e mergulhou com ele nas águas do Lago da Onda Verde.

Assim que entrou no palácio do dragão, retomou a forma anterior e, arremessando Bajie em um canto, gritou com voz estrondosa:

— Onde todos vocês se meteram?

De imediato, surgiu um enxame de cavalas, carpas e percas, acompanhadas de uma tartaruga, um lagarto marinho e outras criaturas aquáticas, que responderam em coro:

— Aqui estamos, senhor!

— Agarrem esse monge e amarrem-no ali — ordenou o genro do dragão. — Vingarei nele os ultrajes sofridos pelos dois guardas que enviei em patrulha.

Os espíritos aquáticos agarraram Bajie e o arrastaram pelo palácio como se fosse um troféu. Nesse instante, surgiu o Rei Dragão, que exclamou, satisfeito:

— O que acabou de fazer merece a maior das recompensas. Como conseguiu capturá-lo?

O monstro não poupou detalhes: com sua língua traiçoeira, contou tudo que havia acontecido. Contente, o Rei Dragão ordenou que preparassem um banquete para celebrar tão estrondosa vitória. Por enquanto, não falaremos mais deles.

Falemos do Peregrino que, ao perceber a facilidade com que Bajie caíra nas garras do inimigo, refletiu consigo mesmo:

— Esse monstro é realmente extraordinário. Eu deveria informar ao mestre sobre tudo o que aconteceu, mas se eu voltar à corte agora, o rei provavelmente irá rir de mim. Se eu provocar outra batalha, terei de enfrentá-los sozinho. Além disso, não estou acostumado a lutar na água. Só me resta me transformar em algum animal aquático e mergulhar para descobrir o que aquele demônio irá fazer com aquele porco idiota. Se houver uma chance, irei libertá-lo para que ele possa me ajudar.

O Grande Sábio mal havia acabado de pensar, quando fez um gesto mágico e transformou-se instantaneamente em um caranguejo. Sem hesitar, mergulhou nas águas e logo chegou à entrada dos palácios submersos. Ele conhecia bem o caminho , já que aquele era o local onde ele havia roubado a montaria de olhos dourados do Rei Touro. 

Andando sempre de lado, o Peregrino atravessou por um arco majestoso e logo avistou o Rei Dragão bebendo despreocupadamente com o inseto de nove cabeças e outros membros de sua família.

O Peregrino não ousou se aproximar. Seguiu por um dos corredores e encontrou um grupo de espíritos camarões e caranguejos, que também comemoravam a vitória. Ficou ouvindo a conversa deles por um tempo e, imitando seu jeito de falar, perguntou:

— Aquele monge de focinho comprido que o genro do nosso senhor capturou já morreu?

— Não, ainda não — respondeu um dos espíritos. — Está amarrado no corredor voltado para o oeste. Não ouve os gritos dele?

O Peregrino rastejou até o local indicado e logo encontrou Bajie amarrado a uma coluna, onde chorava como se sua pele tivesse sido arrancada. Aproximando-se dele, sussurrou:

— Sabe quem eu sou, Bajie?

— O que podemos fazer? — respondeu Bajie, reconhecendo de imediato a voz do Peregrino. — Em vez de capturar aquela criatura, fui eu quem acabou sendo capturado por ela.

O Peregrino olhou ao redor e, ao não ver ninguém, desamarrou-o rapidamente com suas pinças. Assim que se viu livre, Bajie voltou a perguntar:

— E agora, o que faremos? Aquele monstro ficou com a minha arma.

— Sabe onde ele a guardou? — perguntou o Peregrino.

— Deve ter levado para o salão principal do palácio — respondeu Bajie.

— Espere por mim debaixo do arco da entrada — ordenou o Peregrino.

Ainda receoso, Bajie deslizou silenciosamente para fora do palácio. O Peregrino, por sua vez, rastejou novamente até o salão principal, onde logo avistou a arma de Bajie, reluzindo como uma joia. Usando a magia da invisibilidade, recuperou a arma sem dificuldade e correu, radiante, para fora do palácio. Quando chegou de volta ao arco, chamou Bajie e disse:

— Aqui está sua arma! Não a perca de novo.

— Acho melhor voltar lá e medir forças contra aquele inseto. Se conseguir vencer, capturarei toda a família do dragão. No entanto, se eu perder, fugirei para a margem do lago, onde você estará me esperando com seu bastão de ferro. 

Satisfeito com a ideia, o Peregrino apenas o aconselhou a ter cuidado, ao que Bajie lhe respondeu:

— Não se preocupe comigo. Eu me viro bem na água.

Mais tranquilo, o Peregrino deixou o palácio e nadou até a margem. Enquanto isso, Bajie ajeitou sua túnica negra de algodão, agarrou seu precioso ancinho com as duas mãos e, com um grito, invadiu o palácio desferindo golpes por todos os lados.

Os seres aquáticos que faziam a guarda correram desesperados para o salão principal e informaram ao seu senhor:

— Que grande desastre caiu sobre nós! Aquele monge de focinho comprido se libertou das cordas e está nos atacando!

O dragão, o inseto de nove cabeças e toda a família real foram pegos de surpresa. Abandonaram a mesa em pânico e correram para se esconder. Bajie não se importava se suas vítimas eram jovens ou idosas. Ele as golpeava sem piedade e avançava cada vez mais. Assim, entrou no salão principal, derrubando mesas e cadeiras, estilhaçando biombos e reduzindo pratos e vasos a pó.

Sobre esse momento espetacular, há um poema que diz:

"A Mãe Madeira caiu nas garras de um monstro aquático,
mas o Macaco da Mente não a abandonou.
Com um truque engenhoso, libertou-a das correntes
e deixou que extravasasse a fúria guardada no cativeiro.
Ao vê-la, o Rei Dragão emudeceu de pavor,
e a princesa, junto do marido, correu para se esconder.
Arcos e janelas do palácio ruíam sobre os convidados,
enquanto filhos e netos do dragão provaram um medo
como jamais haviam sentido".

Nem os biombos de casco de tartaruga nem as esplêndidas plantas de coral escaparam à fúria de Bajie. Seu ancinho arrasava tudo à sua frente, como um ciclone. Até o inseto de nove cabeças correu para se esconder dentro do palácio. Assim que deixou sua esposa em um local seguro, o monstro recuperou a calma e, empunhando seu cajado com a ponta em formato de meia-lua, voltou ao salão e gritou:

— Como ousa atacar os meus, porco insolente?

O ousado aqui é você, ladrão miserável! — retrucou Bajie com desprezo. — Tudo isso é culpa sua. Se não tivesse me capturado, jamais teria levantado a mão contra a sua gente. Entregue-me imediatamente o tesouro sagrado, para que eu o leve ao rei, e prometo que toda essa destruição terá fim. Caso contrário, continuarei golpeando até acabar com toda a sua família.

Como era de se esperar, o monstro não cedeu. Rangendo os dentes de raiva, lançou-se contra Bajie. Somente então o Rei Dragão se atreveu a contra-atacar, à frente de seus filhos e netos, brandindo seu arsenal de cimitarras e lanças. 

Vendo que a sorte virava contra ele, Bajie deu meia-volta e fugiu rapidamente, enquanto era perseguido pelos soldados aquáticos. Todos eram excelentes nadadores e logo alcançaram a superfície do lago, precedidos por uma torrente de bolhas que chamaram a atenção do Peregrino.

Ao ver Bajie emergir cercado de inimigos, o Peregrino montou em uma nuvem, ergueu o seu bastão e começou a golpear a água, gritando enfurecido:

— Não fujam, covardes!

Um dos golpes atingiu em cheio a cabeça do dragão, reduzindo-a a uma massa informe de carne e ossos quebrados. 

O sangue se espalhou pelo lago inteiro, tingindo-o completamente de vermelho. Seu corpo ficou boiando de barriga para cima nas ondas, como um tronco escamoso. Seus filhos e netos sentiram as forças os abandonarem e fugiram em pânico. Apenas seu genro, Nove Cabeças, teve coragem suficiente para recolher o cadáver e levá-lo de volta ao palácio.

O Peregrino e Bajie não acharam oportuno persegui-los naquele momento, sentando-se à margem do lago para avaliar a situação.

— Esse monstro não vai querer continuar lutando — disse Bajie. — Entrei correndo com meu ancinho e deixei tudo em pedaços. Eles ficaram apavorados, mas logo o príncipe recuperou a calma e o velho dragão tentou me pegar. Ainda bem que você deu fim nele, porque agora vão estar ocupados com o luto e o funeral, sem pensar em sair de novo. Além disso, já está ficando tarde. O que vamos fazer?

— Quem se importa com a hora? — replicou o Peregrino. — Devíamos aproveitar a oportunidade e continuar pressionando-os. Assim recuperaríamos o tesouro mais rápido e poderíamos voltar à corte.

Bajie estava cansado e, tomado pela preguiça, começou a inventar todo tipo de desculpas para não seguir o plano do Peregrino, que disse com firmeza:

— Está bem. Se não quiser continuar lutando, não lute. Só peço que tire os monstros da água. Eu mesmo me encarrego de acabar com eles.

Assim que terminou de falar, uma extensa massa de nuvens negras surgiu, carregada por um vento fortíssimo em direção ao sudeste. Surpreso, o Peregrino aguçou a visão ao máximo e percebeu que se tratava do Honrado Sábio Erlang, acompanhado dos outros seis membros da Irmandade da Montanha das Ameixeiras. Com eles vinham uma matilha de mastins, uma revoada de falcões e vários criados carregando, em longas varas, os corpos de raposas, cervos, antílopes e outras caças. Todos tinham um arco preso à cintura e empunhavam espadas de lâminas afiadas.

— Bajie — disse o Peregrino, apontando para as figuras que se moviam à velocidade do vento —aqueles sete sábios são meus irmãos juramentados. Acho que deveríamos pedir sua ajuda para derrotar os monstros lá embaixo. Uma oportunidade como essa não surge duas vezes.

— Não vejo motivo para não fazermos isso, se realmente são seus irmãos — respondeu Bajie.

— O problema é que o mais velho deles, o Honrado Sábio Erlang, já me derrotou no passado, e não quero parecer rude com ele — confessou o Peregrino. — Por isso, acho melhor você ir e se ajoelhe no meio do caminho de nuvens, dizendo: “Detenham-se, imortais! O Grande Sábio, Sósia do Céu, deseja cumprimentá-los”. Tenho certeza de que não ousaram seguir adiante. Assim, não será difícil convencê-los a unir suas forças às nossas.

Sem perder tempo, Bajie subiu rapidamente em uma nuvem e, do alto da montanha, gritou com voz potente:

— Por favor, reduzam a marcha de seus corcéis e carruagens! O Grande Sábio, Sósia do Céu, deseja vê-los!

— Onde está o Grande Sábio, Sósia do Céu? — perguntou Erlang, sinalizando para que seus acompanhantes parassem.

— Ele os espera na encosta desta montanha — respondeu Bajie, inclinando-se em sinal de respeito.

— Convidem-no a vir até aqui — ordenou Erlang, voltando-se para seus seis irmãos, que atendiam pelos nomes de Kang, Zhang, Yao, Li, Guo Shen e Zhi Jian.

— Sun Wukong! — gritaram os seis, descendo a montanha —, nosso irmão mais velho deseja vê-lo!

O Peregrino correu até eles e, após cumprimentá-los com o devido respeito, dirigiu-se à cume, onde foi recebido pelo imortal Erlang de braços abertos.

— Ouvi dizer — disse Erlang, após os cumprimentos — que sua punição foi suspensa e que aceitou a disciplina budista na própria Porta das Cinzas. Eu o parabenizo pela decisão, pois não tenho dúvidas de que um dia você se sentará sobre um lótus.

— Espero que sim — respondeu o Peregrino. — Recebi de vocês muitas provas de amizade e desejo retribuir da mesma forma no futuro. Embora minha punição tenha sido suspensa e eu esteja agora a caminho do Oeste, não sei se alcançarei a perfeição necessária para me sentar sobre um lótus. As dificuldades são muitas e os perigos, constantes. Na verdade, estou aqui neste momento para capturar alguns monstros que roubaram um tesouro sagrado pertencente aos monges do Reino do Sacrifício. Por coincidência, vimos vocês passando e pensei que talvez pudessem nos ajudar. Isso se, claro, não tiverem nada mais importante para fazer e se suas obrigações permitirem.

— Claro que sim — respondeu Erlang, sorrindo. — Se saí para caçar foi apenas porque estava entediado. É um grande gesto de amizade terem pedido nossa ajuda nesta missão. Sinto-me honrado por terem interrompido nossa caçada. Mas poderiam me explicar que tipo de monstros vivem nesta região?

— Deve ter se esquecido, irmão mais velho — disse um dos sábios que o acompanhava que esta é a Montanha das Rochas Espalhadas. Nela fica o Lago da Onda Verde, onde mora o Rei Dragão de Todos os Espíritos.

— Pelo que sei — replicou Erlang, surpreso —, esse dragão nunca causou nenhum problema. Como é possível que tenha roubado as relíquias de um monastério?


— Ele recentemente ganhou um genro — explicou o Peregrino —, um inseto de nove cabeças que se transformou em um espírito. Juntos, lançaram uma chuva de sangue sobre o Reino do Sacrifício e depois roubaram o tesouro sagrado do Monastério da Luz Dourada. Sem perceber a verdade, o rei acabou perseguindo e torturando cruelmente os monges do templo. Meu mestre, movido pela compaixão, foi até a pagoda durante a noite para varrê-la. Lá capturei dois demônios que estavam de guarda no alto. Levados à corte pela manhã, eles confessaram tudo. Então o rei pediu a nosso mestre que derrotasse os demônios, e foi assim que viemos parar aqui. No primeiro confronto, Bajie foi arrastado pelo inseto de nove cabeças, quando uma nova cabeça surgiu de seu corpo. Felizmente, consegui entrar na água transformado e resgatá-lo. antes que fosse esfolado. Depois, travamos outra batalha feroz, durante a qual matei o velho dragão, mas o seu corpo foi levado pelo inseto e seus cúmplices. Estávamos justamente discutindo se era melhor prosseguir ou adiar nosso ataque, quando vocês e seu nobre grupo chegaram. Por isso ousamos pedir a ajuda de todos.

— Creio que este é o melhor momento para atacar — respondeu Erlang —. Eles estão desorientados, e podemos acabar com todos de uma vez.

— Pode ser — reconheceu Bajie —, mas já está ficando tarde demais para isso.

— Por que se preocupar com a hora? — retrucou Erlang. — Como diz um estrategista: “um exército não deve deixar escapar a menor chance de vitória”.

— Pensando bem disse o sábio Kang —, não precisamos nos apressar. Toda a família desse inseto está aqui, por isso é improvável que ele tente fugir. Na minha opinião, já que nosso irmão Sun e Zhu Ganglier (2) decidiram corrigir seus erros e seguir o caminho da perfeição, devíamos oferecer um banquete de reconciliação. Trouxemos tudo que é preciso; não falta nem vinho, nem comida. Os criados podem acender uma fogueira e assar uma ou duas das caças que pegamos. Não vejo melhor maneira de passar a noite. Amanhã teremos tempo mais que suficiente para lutar.


— Como sempre — comentou Erlang, satisfeito —, nosso irmão tem razão — e ordenou aos servos que preparassem o banquete.

— É uma honra para nós — respondeu o Peregrino —, mas não esqueçam que agora somos monges e seguimos uma dieta vegetariana. Espero que isso não lhes cause problemas.

— De forma alguma — disse Erlang. Também trouxemos frutas e bebidas vegetarianas. Entre os imortais, muitos seguem essa mesma dieta.

Assim, os irmãos brindaram à amizade sob a luz suave da lua e o brilho tímido das estrelas, tendo o Céu como tenda e a Terra como leito. Embora as vigílias possam às vezes ser longas demais, aquela noite passou mais rápido do que esperavam. Logo, o horizonte a oeste começou a se tingir com uma tímida luz dourada.

O vinho havia despertado a coragem de Bajie, que, levantando-se de imediato, disse:

— Está quase amanhecendo. Acho que vou mergulhar no lago e desafiar aquele monstro.

— Não se arrisque demais — aconselhou Erlang. — Faça-o sair da água e nós cuidaremos do resto.

— Está bem — respondeu Bajie, rindo. Ele então ajustou as roupas, pegou o ancinho e lançou-se ao lago, recitando um encantamento que abria caminho entre as águas.

Então, chegou sem dificuldade ao arco de entrada do palácio e, soltando um grito feroz,  invadiu o palácio, desferindo golpes por todos os lados. Lá dentro, o filho do dragão velava o corpo do pai, vestido de luto e chorando como uma carpideira, enquanto o genro e um dos netos preparavam o caixão nos fundos. Sem qualquer respeito pela dor da família, Bajie entrou como um vendaval na sala onde jazia o cadáver e, sem parar de proferir insultos, desferiu um golpe terrível contra o herdeiro do trono. No mesmo instante, nove jatos de sangue brotaram de sua cabeça, tantos quanto os dentes do ancinho de Bajie.

Ao ver a cena, a viúva correu em pânico para dentro do palácio, gritando:

— Aquele monge de focinho comprido acabou matou o meu filho!

Ao ouvir os gritos, o inseto empunhou o cajado com a ponta em forma de meia-lua e avançou furioso, seguido pelo neto do dragão. Bajie os enfrentou com o seu ancinho, mas foi recuando pouco a pouco, até emergir na superfície do lago.

Nesse momento, o Grande Sábio, Sósia do Céu, e seus sete irmãos investiram de imediato contra os inimigos. O neto do dragão logo foi reduzido a um amontoado de carne macerada.

Percebendo que  a luta se tornava cada vez mais desfavorável, o genro deixou-se cair no chão e reassumiu sua forma habitual. Em seguida, abriu suas asas e alçou voo. Erlang sacou seu arco de ouro, colocou nele uma pequena esfera de prata e a atirou contra o monstro. 

Este se virou, furioso, pronto para abocanhá-lo. No exato momento em que uma nova cabeça começava a surgir em seu peito, o esguio mastim de Erlang deu um salto e a arrancou com uma dentada. Tomado pela dor, o monstro voou rumo aos mares do norte.

Bajie se preparava para persegui-lo, mas foi impedido pelo Peregrino, que disse:

— Melhor deixá-lo ir. Como diz o provérbio: “não se deve perseguir o fugitivo desesperado”. Duvido que sobreviva por muito tempo sem a cabeça que o mastim arrancou. Vou assumir a forma dele e abrir caminho pelas águas. Quero que você abra caminho nas águas e me persiga até o palácio. Lá, enganaremos a princesa e recuperaremos o tesouro.

— Concordo em deixá-lo em paz — respondeu Erlang. — Mas temo que, enquanto existirem criaturas como essa, muitas pessoas ainda sofrerão por causa delas.

Suas palavras não poderiam ser mais verdadeiras. Até hoje, em certos lugares, dizem que ainda se vê um inseto de nove cabeças que jorra sangue, descendente direto do monstro cuja sorte acabamos de relatar (3).

Enquanto isso, o Peregrino abriu um caminho pelas águas, seguido por Bajie, que que gritava e praguejava como um louco. À porta do palácio, surgiu a Princesa de Todos os Espíritos. Assustada, saiu ao encontro do falso marido e perguntou:

— O que houve com você? Por que está nesse estado?

— Aquele tal de Bajie me derrotou e agora está me perseguindo respondeu o Peregrino.Não sou páreo para ele. Vá depressa e esconda os tesouros em um lugar seguro.

A princesa não conseguia distinguir o verdadeiro do falso. Atordoada, correu para dentro do palácio e voltou com uma caixa de ouro, entregando-a ao Peregrino, dizendo:

— Estas são as cinzas budistas — e em seguida tirou outra caixa, de jade branco, e acrescentou: 

— Aqui está o agário de nove folhas. É melhor que você os guarde. Enquanto isso, tentarei deter o avanço de Bajie. Quando os tesouros estiverem protegidos, venha e entre na luta. Tenho certeza de que, se lutarmos lado a lado, poderemos derrotá-lo.

Assim que teve as caixas em seu poder, o Peregrino passou a mão pelo rosto e, recuperando sua forma habitual, disse em tom de escárnio:

— Tem certeza de que sou mesmo o seu marido?

Dando um grito de susto, a princesa tentou recuperar as caixas, mas naquele instante Bajie irrompeu no salão e desferiu-lhe um golpe no ombro, derrubando-a ao chão como uma maça podre. 

Apenas a esposa do Rei Dragão ainda estava viva. Ao perceber o perigo, tentou escapar por uma janela, mas não conseguiu fugir das mãos de Bajie, que ergueu seu ancinho pronto para matá-la. O Peregrino, no entanto, segurou seu braço, dizendo:

— Espere. É melhor não matá-la. Devemos levar alguém vivo de volta à capital para anunciar nossos feitos.

Sem qualquer consideração, Bajie a agarrou pelos cabelos e a arrastou até a superfície do lago, seguido pelo Peregrino, que carregava as duas caixas.

— Não sei como agradecer tudo o que fizeram por nós — disse o Peregrino à Erlang, assim que chegaram à margem.— Não só recuperamos as relíquias, como também acabamos com todos os monstros.

— Não seja tão humilde — respondeu Erlang.— O mérito é todo de vocês. Se não tivessem derrotado o rei e usado seus dons de transformação, ainda estaríamos lutando.

— Já que nosso irmão obteve um vitória retumbante — acrescentaram os imortais que o acompanhavam —, não há mais nada para fazermos aqui.

O Peregrino não se cansava de agradecê-los. Gostaria que o acompanhassem para ver o rei, mas compreendeu que não podia exigir tanto. Os sábios seguiram então seu caminho rumo ao Rio das Libações, enquanto o Peregrino pegava as caixas dos tesouros e Bajie arrastava a viúva do dragão. Movendo-se entre as nuvens, logo alcançaram o Reino do Sacrifício.

Desde o momento de sua libertação, os monges do Monastério da Luz Dourada esperavam ansiosos por seu retorno, postados nos arredores da cidade. Ao vê-los descer da nuvem, correram para recebê-los com grande alegria e os acompanharam até o interior da capital.

O monge Tang encontrava-se naquele momento conversando com o rei. Enchendo-se de coragem, um dos monges do Monastério da Luz Dourada correu para informar ao rei, dizendo:

— Majestade, os Honoráveis Sun e Zhu acabam de retornar com as relíquias, e também trazem consigo um dos ladrões.

O rei deixou o salão às pressas, seguido por Sanzang e pelo Monge Sha. Juntos, correram para dar as boas-vindas os recém-chegados heróis, elogiando-os pela façanha. Em sinal de gratidão, Sua Majestade ordenou que fosse preparado um esplêndido banquete em sua honra.

— Na minha opinião, majestade — disse Sanzang, com a humildade que lhe era característica , antes de nos sentarmos à mesa, deveríamos devolver as cinzas sagradas à pagoda. 

Em seguida, Sanzang voltou-se para o Peregrino e perguntou por que só haviam retornado naquele momento, se haviam saído no dia anterior. O Peregrino então relatou como haviam enfrentado o Rei Dragão e seu genro, como se encontraram com o grupo de imortais, como conseguiram derrotar os monstros e finalmente recuperar os tesouros. Ao ouvir a façanha realizada em tão pouco tempo, Sanzang, o rei e os funcionários, civis e militares, ficaram boquiabertos.

— A esposa do dragão consegue falar a língua humana? — perguntou o rei.

— Claro que sim — respondeu Bajie. — Ela foi casada com um dragão e teve muitos filhos e netos dragões.

— Nesse caso concluiu o rei —, é melhor que nos conte como se deu o roubo de nossos preciosos tesouros.

— Eu não sei absolutamente nada sobre isso — respondeu a viúva, com dignidade. — Essa ação reprovável foi planejada e executada pelo meu falecido marido e pelo nosso genro, Nove Cabeças. Ao que parece, quando souberam que na pagoda de um de vossos mosteiros existia uma relíquia budista capaz de emitir uma luz ofuscante, lançaram sobre ela, há aproximadamente três anos, uma chuva de sangue e se apropriaram das cinzas sagradas.

— E quanto ao roubo da planta de agárico? — tornou a perguntar o rei.

— Isso — respondeu a viúva com firmeza — foi obra de minha filha, a Princesa de Todos os Espíritos, que se esgueirou sem ser vista pelos Céus e arrancou a planta de agárico de nove folhas, que a própria Wang-Mu Niang-Niang havia plantado em frente ao Salão da Névoa Divina. Ela fez isso para que as cinzas sagradas permanecessem intactas e continuassem a emitir sua luz por mais de mil anos. Se a planta for agitada, é capaz de lançar milhares de raios coloridos mais brilhantes que o sol. Agora esses tesouros estão em vosso poder e, por causa deles, perderam a vida meu esposo, meus filhos e meu genro. Tenham compaixão de mim e concedam-me a graça de continuar vivendo.

— De maneira nenhuma! — exclamou Bajie imediatamente.

— A culpa não pode recair sobre toda uma família — disse o Peregrino. — Pouparemos sua vida com uma condição: que aceite, de bom grado, tornar-se guardiã do Monastério.

— Uma vida miserável ainda é melhor do que uma boa morte — replicou a viúva. — Poupem minha vida, e comprometerei-me a cumprir o que for necessário.

O Peregrino então solicitou uma corrente de ferro, e se preparou para passá-la pelo  esterno da viúva. Antes, porém, voltou-se para o Monge Sha e disse:

— Comunique ao rei que vá ao monastério presenciar como pretendemos proteger o tesouro que sempre esteve guardado ali.

A liteira real não demorou a deixar a corte, transportando em seu interior o senhor da cidade e o próprio Sanzang, cuja mão o rei não largava em nenhum momento. Todos os funcionários, civis e militares já se encontravam presentes no Monastério da Luz Dourada. As relíquias sagradas foram colocadas em um nicho no décimo terceiro patamar. A viúva do dragão, por sua vez, foi acorrentada a uma coluna no centro do salão. O Peregrino recitou um encantamento, e de imediato surgiram diante dele o espírito da cidade e o espírito protetor do monastério, aos quais incumbiu a tarefa de alimentá-la a cada três dias e vigiá-la constantemente. Caso contrário, seriam executados sem piedade. Os deuses assentiram em silêncio. Em seguida, o Peregrino usou a planta de agárico para limpar cada um dos treze andares da pagoda, antes de colocá-la com cuidado ao lado da urna das relíquias. Só então a pagoda voltou a brilhar com luzes coloridas e um resplendor auspicioso, visível de todas as direções e admirado por todos os reinos bárbaros ao redor.

Ao saírem da torre, o rei agradeceu, dizendo:

— Se não tivessem passado por nosso reino, jamais teríamos descoberto o que realmente aconteceu.

— Na minha opinião, majestade — respondeu o Peregrino —, o nome "Luz Dourada" não faz jus à relevância deste monastério. O ouro é uma substância volúvel, mas a luz possui uma estabilidade que até o ar faz vibrar. Já que recuperaram seu precioso tesouro graças a nós, permito-me sugerir que, de agora em diante, o chamem de "Monastério do Dragão Derrotado". Dou minha palavra de que esse nome durará para sempre, e sua fama alcançará todos os cantos do mundo.

O rei ordenou que assim fosse feito, e então, os pedreiros reais lavraram uma placa com a seguinte inscrição:

"Monastério do Dragão Derrotado. Construído por expresso desejo de Sua Majestade."

Após pendurá-la na porta principal, deu-se início a um esplêndido banquete de agradecimento, que se prolongou até altas horas da noite. Antes de prosseguirem viagem, o rei mandou fazer o retrato dos quatro peregrinos e inscrever seus nomes na Torre das Cinco Fênices. Não satisfeito, saiu para despedir-se deles nos arredores da cidade e ofereceu-lhes grandes quantidades de jade e ouro como recompensa, as quais foram recusadas com cortesia. Para eles, bastava saber que os monstros haviam sido exterminados e a justiça, feita. Que prêmio maior do que ver a aura brilhando ao redor do monastério e sentir a luz espalhar-se por toda a terra?

Por ora, não sabemos que perigos ainda os aguardavam na estrada.  Quem desejar descobri-los, terá que ouvir atentamente as explicações oferecidas no próximo capítulo.


CAPÍTULO LXIV EM BREVE


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Notas do Capítulo LXIII

  1. Os alquimistas Ching-Fan (77–37 a.C.) e Yü-Fan (164–233) estabeleceram uma relação entre as fases da lua e os oito trigramas do I Ching, associando as linhas quebradas ao yin e as linhas contínuas ao yang. Daí vinha tanto o poder da arma do monstro quanto o caráter mutável do bastão empunhado por Sun Wukong;
  2. Esse é outro nome de Bajie, usado por ele mesmo no capítulo XIX;
  3. A essa criatura peculiar foi tradicionalmente dado o nome de “tsang-kang”, embora nunca tenha sido possível determinar com precisão sua identidade.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:
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