19 de setembro de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo LXV

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO LXV:

COM A INTENÇÃO DE ENGANÁ-LOS, OS DEMÔNIOS CRIAM O PEQUENO MONASTÉRIO DO TROVÃO. OS QUATRO PEREGRINOS ENFRENTAM UMA PROVA TERRÍVEL.


Este capítulo tem como objetivo incentivar quem o lê a agir sempre para o bem e renunciar às obras do mal. Nunca se deve esquecer que os deuses conhecem até os pensamentos mais íntimos. Astúcia e inteligência de nada servem, pois a salvação está em renunciar à mente. Enquanto se vive, é necessário cultivar o Tao sem desânimo. É preciso buscar a raiz de todos os males e renunciar a ela com firmeza. Não há outro caminho para alcançar a longevidade. Quem deseja atingir a Iluminação deve se deixar ungir pelo óleo sagrado. Quando nada mais impedir a passagem da luz pelos três caminhos e o oceano de sombras tiver sido drenado por completo, o homem virtuoso poderá cavalgar sobre fênices e garças. Nesse momento, alcançará a misericórdia e sua felicidade será completa.

Dizia-se que não existia homem mais piedoso nem mais sincero que Tang Sanzang. Por isso, era protegido a todo momento pelos deuses. Até mesmo os espíritos das plantas e das árvores se ofereciam, de bom grado, para guardar sua jornada. Após uma noite de discussão poética, conseguiu escapar da ameaça dos espinhos e do emaranhado mortal das trepadeiras e cipós. Fortalecidos por essa experiência extraordinária, continuaram seu caminho em direção ao Oeste.

Logo o inverno chegou ao fim, e a primavera voltou a se fazer sentir em toda parte. Onde quer que se olhasse, podia-se apreciar a força da vida. Não poderia ser diferente, já que a vara da carruagem da Ursa Maior apontava para a direção do yin (1). A terra estava coberta por um manto verde, realçado pelos salgueiros-chorões nas margens dos rios. Nas encostas, os botões vermelhos dos pessegueiros lembravam bordados feitos por imortais. Todos os riachos pareciam tingidos do tom esverdeado do jade. Às vezes, a chuva e o vento traziam uma nota melancólica à paisagem, mas logo o sol fazia renascer a beleza das flores, e as andorinhas voltavam a carregar em seus bicos pequenos tufos de musgo.Toda a montanha se perdia em um jogo de luz e sombra que lembrava as pinturas de Wang Wei (2). No topo das árvores, os pássaros conversavam entre si com a mesma delicadeza de Jizi (3). Ainda assim, ninguém se detinha a contemplar tanta beleza, exceto as borboletas e as incansáveis abelhas. O mestre e seus discípulos preferiam o aroma suave das flores e o macio descanso dos prados. Não demorou até que avistassem, ao longe, uma montanha tão alta que parecia tocar o céu.

— Alguém sabe que altura tem essa montanha? — perguntou Sanzang a Wukong, apontando para ela com o chicote. — Nunca vi nada parecido. É como se perfurasse o azul do céu.

— Agora que o mestre tocou nesse assunto — respondeu o Peregrino —, lembrei-me de um antigo poema que diz: “O céu cobre tudo, e nenhuma montanha consegue igualar sua altura”. Esses versos tentam descrever a altura extrema de uma montanha específica, tão elevada que nenhuma outra poderia ser comparada. Mas, como uma montanha poderia tocar o céu?

— Então, por que o Monte Kunlun é chamado de pilar do céu?  retrucou Bajie 

— Nunca ouviram dizer que o Céu tem um grande vazio no noroeste? — explicou o Peregrino. — O Monte Kunlun se ergue justamente nesse ponto, e por isso muitos acreditam que ele preenche esse espaço. Daí a fama de que seria o sustentáculo do céu.

— Não precisa dar tantas explicações — interrompeu o Monge Sha, soltando uma gargalhada. — Ele só vai usar isso depois para se gabar diante dos outros. Vamos em frente. Quando escalarmos essa montanha, aí sim vamos descobrir qual é a verdadeira altura dela.

Furioso, Bajie tentou avançar contra o Monge Sha para lhe dar um tapa, e os dois começaram a se atracar enquanto continuavam o caminho, mas o mestre não lhe deu a menor atenção. Esporeou o cavalo e, em pouco tempo, alcançaram as primeiras encostas da montanha. À medida que subiam, a vegetação se tornava mais densa, e o vento arrancava dos galhos um murmúrio de folhas que deixava a mente suspensa. Como pano de fundo, ouvia-se o estrondo das águas torrenciais. Longe de acalmar o espírito, aquele som provocava inquietação. Talvez contribuísse para isso o fato de não se ver ave alguma, algo estranho até mesmo para os imortais. A subida era tão perigosa que se podia afirmar com segurança que ninguém jamais tinha se atrevido a pisar naquele lugar. As rochas, de formas estranhas, despertavam apreensão no coração. Só as nuvens, com seu brilho translúcido, traziam um sopro de serenidade à paisagem, logo rompido pelos gritos ásperos de pássaros invisíveis. De tempos em tempos, surgiam cervos com folhas de agárico na boca, macacos carregando pêssegos, raposas e texugos agachados à beira dos precipícios, enquanto antílopes saltavam de rochedo em rochedo.

De repente, o rugido de um tigre ecoou, tão aterrador que deixou os viajantes arrepiados. Uma matilha de lobos e leopardos surgiu no caminho. Ao vê-los, Sanzang sentiu as forças se esvaírem. Apenas o Peregrino manteve a calma. Levantou levemente o bastão de ferro e soltou um grito tão poderoso que, no mesmo instante, os animais selvagens fugiram em pânico. Para evitar outro encontro como este, ele abriu uma nova trilha que os levou diretamente até o cume.

Após transpô-lo, começaram a descer em direção ao oeste, até chegar a um pequeno planalto banhado por uma luz espiritual que cintilava em diversas cores. Numa das extremidades erguia-se um edifício esplêndido, de onde fluía uma música de sinos tão harmoniosa quanto a que ressoava no palácio do Senhor de Jade.

— O que será aquele edifício? — perguntou Sanzang.

O Peregrino ergueu a cabeça e percebeu que se tratava de um lugar verdadeiramente excepcional. Apesar de toda a imponência, notava-se que era um monastério. O local em que estava erguido não poderia ser mais belo, nem mais adequado para a vida de contemplação. Ao lado das torres que o ladeavam erguia-se um grupo de pinheiros majestosos, cujo verde parecia rivalizar com o dos bambus na entrada do salão de ensinamentos. Uma aura espiritual envolvia todo o conjunto, fazendo-o parecer tanto o palácio de um dragão quanto a morada de um santo budista. Suas colunas, balaustradas e vigas, todas cobertas de relevos, eram pintadas de vermelho, em contraste com o jade dos arcos. Uma vez concluída a recitação dos sutras, o incenso espalhava-se por todos os salões, enquanto a lua iluminava suavemente os biombos que dividiam os ambientes. Em seu esplêndido jardim, flores formavam tapetes multicoloridos, por onde passavam garças a caminho dos lagos para beber água. Os pássaros davam o tom alegre àquele ambiente selado pelo silêncio e pela meditação. Ao fundo, os sinos sagrados ecoavam sem cessar, espalhando seu som melancólico pelas encostas da montanha onde o monastério se erguia. Uma brisa suave penetrava por todas as janelas, balançando levemente as cortinas e dissipando as volutas caprichosas do incenso. Era um verdadeiro paraíso para o ascetismo dos monges, um oásis de paz intocado pelas realidades profanas e  pelas inquietações do mundo. Na serenidade daquele monastério, cultivava-se com cuidado a frágil planta da Verdade.

— Como eu suspeitava — disse o Peregrino a Sanzang, depois de observar com atenção aquele lugar extraordinário —, trata-se mesmo de um monastério. Mas, além da aura de santidade que cerca todos os centros onde se cultiva o Zen, percebo também uma atmosfera de hostilidade. O mais estranho é que me lembra o Monastério do Trovão, embora o caminho até aqui seja completamente diferente. Acho melhor não pararmos neste lugar. Sinto algo sinistro que pode se voltar contra nós a qualquer momento.

— Será que esta é a Montanha do Espírito? — perguntou o monge Tang, entusiasmado. — Não seria justo brincar com a minha ansiedade e atrasar de propósito o fim da nossa jornada.

— Claro que não! — exclamou o Peregrino. — Já visitei a Montanha do Espírito muitas vezes e posso garantir que este lugar não é ela.

— Nesse caso — concluiu Bajie —, deve ser a morada de alguém verdadeiramente virtuoso.

— E pra que tanta desconfiança? — disse, por sua vez, o Monge Sha. — Querendo ou não, o caminho passa bem diante do portão. Que diferença faz se não for o Monastério do Trovão? O melhor é darmos uma olhada.

— O que Wujing acabou de dizer faz sentindo — opinou o Peregrino.

O mestre esporeou o cavalo e logo chegou às portas do edifício. No dintel da entrada principal havia uma placa monumental com três palavras: “Monastério do Trovão”. A impressão foi tão forte que ele quase caiu do cavalo.

— Maldito macaco! — exclamou, ofendido. — Quase morro por sua causa! Por que tentou me enganar, sabendo perfeitamente que este era o Monastério do Trovão?

— Não se irrite comigo, por favor — suplicou o Peregrino, tentando acalmá-lo com um sorriso. — Se olhar com mais atenção, verá que, na porta interior, há outra placa, com quatro caracteres em vez dos três que se leem aqui.


Sem conseguir conter a emoção, o mestre voltou os olhos para onde ele indicava e percebeu que, de fato, pendia dali outra placa, com um caractere a mais, que dizia: “Pequeno Monastério do Trovão”.

— Se for apenas o Pequeno Monastério do Trovão  suspirou Sanzang, desapontado. — então deve haver algum patriarca budista em seu interior. Os sutras dizem que existem mais de três mil budas, e não dá pra imaginar que todos habitem o mesmo lugar. A própria Guanyin, por exemplo, mora nos Mares do Sul; Visvabhadra tem sua morada no Monte Emei, e Manjusri vive na Montanha dos Cinco Estrados. Fico pensando qual será o buda que transmite seus ensinamentos dentro deste monastério. Os antigos diziam que onde há budas, há escrituras, e que sem templos não existem tesouros. Vamos entrar para ver quais tesouros este guarda.

— Não deveríamos fazer isso — aconselhou o Peregrino. — Acredite ou não, este lugar esconde mais maldade que bondade. Se encontrar algo desagradável, não venha me culpar depois.


— Mesmo que aqui não viva um buda — respondeu Sanzang —, ao menos haverá uma imagem sua. Lembre que, ao começar esta jornada, prometi prestar meus respeitos a todos os budas que encontrasse. Como poderia jogar sobre você a culpa de algo que é unicamente minha responsabilidade?

Em seguida, voltou-se para Bajie e pediu que lhe trouxesse a túnica bordada. Assim que terminou de amarrar as fitas e ajustar o chapéu monástico, dirigiu-se à porta. Mal pôs o pé no monastério, ouviu-se uma voz que dizia:

— Monge Tang, você veio das Terras do Leste com o propósito de ter uma audiência com nosso Buda. Como podem mostrar tão pouco respeito, depois de terem feito um sacrifício tão grande?

Ao ouvir aquilo, Sanzang lançou-se imediatamente ao chão, Bajie começou a bater a testa contra o solo e o Monge Sha se ajoelhou em sinal de reverência. Apenas o Grande Sábio permaneceu de pé, segurando o cavalo e a bagagem.
 

Depois de manifestarem dessa forma sua submissão respeitosa, atravessaram uma segunda porta e entraram no grande salão de Tathagata. Ali, diante do trono sagrado, viam-se os Quinhentos Arhats, os Três Mil Protetores da Fé, os Quatro Reis Diamantinos, as monjas mendicantes, os upasakas e incontáveis legiões de monges sábios. No ar pairava um perfume intenso de flores. A aura de santidade era tão forte que os peregrinos caminhavam de cabeça baixa. Impressionados com aquele espetáculo magnífico, Sanzang, Bajie e o Monge Sha não davam um passo sem se prostrarem, encostando a testa no chão. Apenas o Peregrino continuava ereto, observando os irmãos se aproximarem, pouco a pouco, do estrado espiritual.

Do alto do trono de lótus surgiu uma voz furiosa, que disse:

— Como se atreve a não se prostrar diante de Tathagata, Sun Wukong?

Mas o Peregrino não se intimidou. Fitou diretamente os olhos de quem falava e logo percebeu que se tratava de um falso buda. Deixando o cavalo e a bagagem de lado, agarrou o bastão de ferro com as duas mãos e gritou, tomado por uma fúria incontrolável:

— Malditas bestas! São vocês que deveriam respeitar o nome de Buda, em vez de profanar a santidade inatingível de Tathagata! Não fujam e provem o gosto do meu bastão!


Sem esperar resposta, lançou-se ao combate. No mesmo instante, ouviu-se um som metálico e dois címbalos de ouro caíram sobre o Peregrino, formando uma espécie de caixa hermética da qual ele não podia sair. Bajie e o Monge Sha tentaram empunhar suas armas, mas logo foram atacados pelos falsos arhats, protetores e monges sábios. Até Sanzang foi capturado e acorrentado como um criminoso. Ficou claro, então, que aquele que se fazia passar por Buda era um monstro, e todos os demais não passavam de demônios ao seu serviço. 


Assim que prenderam os viajantes, revelaram suas formas reais e os trancaram sem piedade nos fundos do monastério. O Peregrino permaneceu aprisionado entre os címbalos de ouro, dos quais jamais poderia sair. Depois de três dias e três noites, seu corpo se transformaria em uma massa disforme de sangue e pus. Quanto ao mestre e aos outros dois discípulos, seriam cozidos no vapor antes de serem servidos em um banquete esplêndido.

Como diz um antigo poema:
"Embora o Macaco de olhos verdes tenha distinguido o falso do verdadeiro,
o Espírito do Zen prostrou-se diante de uma simples figura dourada.
O mesmo fizeram a Mãe Madeira e seu companheiro,
cegados pelo brilho humilde do falso ouro.
Assim, o monstro tornou-se poderoso,
e o virtuoso, frágil.
Com que facilidade o demônio enganou o homem de bem!
Seu triunfo fez o Tao parecer inútil,
e a maldade, tão forte quanto um ser celestial.
Mas não se deve esquecer:
quando se cai no erro, desaparece todo o bem acumulado até então."
 

Nem mesmo o cavalo escapou do triste destino dos peregrinos, sendo amarrado junto ao monge Tang e a seus discípulos. Os demônios celebraram a vitória com grandes demonstrações de alegria. Estavam tão eufóricos que nem repararam no valor da túnica bordada que o mestre usava. Arrancaram-na do corpo dele e a guardaram com o resto da bagagem em um quarto sem janelas. Por ora, não falaremos mais sobre eles. Falaremos, no entanto, do Peregrino, que continuava preso entre os címbalos de ouro. A escuridão era total e o calor tão sufocante que o suor logo cobriu todo o seu corpo. Tentou separar os címbalos empurrando-os com seus braços fortíssimos, mas não conseguiu movê-los nem um milímetro. Intrigado, pegou o bastão de ferro e golpeou-os furiosamente, mas nem sequer conseguiu arranhar o metal. Decidiu, então, recorrer à magia. Recitou um encantamento e, instantaneamente alcançou mais de quarenta metros de altura. Porém, os címbalos cresceram com ele e não deixaram passar um único raio de luz. Fez outro sinal mágico e encolheu até ficar menor que um grão de mostarda. Novamente, os címbalos o acompanharam, tornando impossível qualquer tentativa de fuga.

O Peregrino pegou o bastão de  ferro outra vez, soprou nele um hálito sagrado e gritou:

— Transforme-se!

No mesmo instante, o bastão se transformou em uma haste que se encaixou entre as extremidades dos címbalos. Em seguida, arrancou dois fios de cabelo e, repetindo o mesmo encantamento, transformou-os em um estranho instrumento de cinco pontas, parecido com uma flor de ameixeira. Com ele, tentou perfurar exatamente o ponto onde a haste se apoiava. Mas, depois de mil tentativas seguidas, não conseguiu fazer nem um arranhão no ouro.


Desesperado, o Peregrino repetiu o sinal mágico e recitou o seguinte encantamento:

— Que Oṁ e Ram purifiquem o reino do dharma. Chien (4): Recepção Primária, Benéfica para a Determinação.

Com essas palavras, convocou os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais, os Seis Deuses da Luz, os Seis Deuses das Trevas e os Dezoito Protetores dos Monastérios. Eles apareceram imediatamente do lado de fora dos címbalos e disseram:

— Para que nos chamou? Não vê que estamos protegendo seu mestre, para que esses monstros não lhe façam nenhum mal?


— Meu mestre não quis me ouvir e agora está colhendo as consequências de sua própria teimosia! — exclamou o Peregrino. — Não me importo se ele morre ou se continua vivo. O que me importa agora é que separem esses címbalos para que eu possa sair. Depois cuidaremos do resto. Aqui dentro não entra luz alguma e o calor é tão forte que estou quase sufocando!

Os deuses tentaram separar os címbalos, mas eles estavam tão unidos que todos os esforços foram inúteis. Parecia até que haviam se fundido ainda mais.

— Não sabemos que tipo de magia possuem esses címbalos — disse o Guardião de Cabeça Dourada. — Estão unidos de tal forma que parecem uma peça única. Receio que nossas forças não sejam suficientes para separá-los.

— Eu também não consigo separá-los — confessou o Peregrino —, mesmo usando todo o conhecimento mágico que possuo.

Ao ouvir isso, o Guardião ordenou que os Seis Deuses da Luz retornassem para junto do monge Tang, enquanto os Seis Deuses das Trevas ficaram encarregados de montar guarda em torno dos címbalos. Para evitar surpresas, Os Protetores dos Mosteiros foram orientados a patrulhar os céus até o retorno do Guardião, que partiu às pressas rumo ao Portão Sul dos Céus.

Sem perder tempo, o Guardião correu para o Palácio da Névoa Divina e, prostrando-se diante do Imperador de Jade, explicou:

— Este humilde servo é um dos Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais.  Venho interceder pelo Grande Sábio, Sósia do Céu, que acompanha o monge Tang ao Paraíso Ocidental. Ao passarem por uma montanha, encontraram um monastério chamado Pequeno Trovão. O mestre pensou que havia chegado à Montanha do Espírito e , tomado de entusiasmo, correu a prestar respeito a Buda, mas tudo não passava de uma armadilha criada por um monstro. O Grande Sábio está neste momento preso entre címbalos de ouro, dos quais não há como sair. Sua vida corre sério perigo, e por isso, imploro por vossa ajuda.

Sem hesitar, o Imperador de Jade emitiu a seguinte ordem:

— Que as Vinte e Oito Constelações partam imediatamente para a morada dos monstros e libertem os peregrinos.

As Constelações não demoraram a partir. Acompanhadas pelo Guardião, deixaram os céus e dirigiram-se ao monastério, onde chegaram por volta da segunda vigília. Os demônios, que haviam recebido a recompensa por capturar o monge Tang, começavam a recolher-se. Sem se preocupar com eles, as Constelações concentraram-se ao redor dos címbalos e anunciaram sua chegada ao Grande Sábio, dizendo:

— Somos as Vinte e Oito Constelações e viemos libertá-lo por ordem expressa do Imperador de Jade.

— Rompam logo esta prisão com suas armas — pediu o Peregrino, cheio de esperança. — Mal posso esperar para sair daqui.

— Não podemos fazer isso — responderam as Constelações. — Esta coisa é feita de metal. Assim que nós a golpearmos, ela fará barulho e o monstro irá acordar, comprometendo a missão. Vamos usar nossas armas para tentar abrir um buraco nela. Assim que perceber o menor raio de luz, escape por ele.

— Está bem —
respondeu o Peregrino.

As Constelações empunharam então suas lanças, espadas, cimitarras e machados e começaram a tentar abrir os címbalos, cravando e puxando de um lado para o outro. Soou a terceira vigília e eles ainda continuavam a tentar abri-los, mas os címbalos de ouro permaneciam unidos, como se sempre tivessem sido uma peça única. 


Do lado de dentro, o Peregrino examinava as paredes repetidas vezes, mas não conseguia distinguir o menor raio de luz. Impaciente, chegou a procurar com as mãos alguma fenda, mas o resultado não foi melhor.

— Não perca a confiança, Grande Sábio — aconselhou o Dragão de Ouro (5). — Cheguei à conclusão de que estes címbalos possuem uma grande capacidade de adaptação e dominam com perfeição a difícil arte da metamorfose. Tente localizar com as mãos a linha de união. Se a encontrarmos, farei força com meu corpo para abri-la, e você poderá sair pela fresta que surgir. Por menor que seja, seus poderes de transformação permitirão que você a atravesse sem dificuldade.

O Peregrino pôs-se imediatamente em ação. Enquanto procurava com extremo cuidado as bordas das duas peças, o Dragão de Ouro reduziu o seu corpo até que seu chifre fosse um pouco maior que a ponta de uma agulha. O Peregrino não demorou a descobrir que o ponto de união ficava na parte superior da esfera que o mantinha aprisionado. Reunindo toda a sua força, o Dragão de Ouro conseguiu encaixar o chifre e gritou, pronto para recuperar o seu tamanho normal:

— Cresça!

O chifre adquiriu a grossura de uma tigela de arroz, mas os címbalos, em vez de se comportarem como um objeto metálico, agiram como se fossem feitos de pele e carne. O chifre do Dragão de Ouro parecida estar preso numa massa gelatinosa onde era impossível exercer qualquer pressão. 


Desesperado, o Peregrino apalpou o chifre com as mãos e disse:

— É inútil. Não há nenhuma fenda. Se realmente deseja me tirar daqui, terá de suportar um pouco de dor.

Com a ajuda do seu bastão de ferro, o Peregrino fez um pequeno furo na ponta do chifre. e, transformando-se num grão de mostarda, entrou em seu interior e gritou com todas as forças:

— Agora! Puxe o chifre!


O Dragão de Ouro se esforçou ao máximo e, com enorme dificuldade, conseguiu alcançar o objetivo. Exausto, caiu no chão, ofegante como um animal de carga. O Peregrino então saiu do chifre, retomou o tamanho normal e desferiu contra os címbalos um tremendo golpe com o seu bastão de ferro. 

Foi como se uma montanha de cobre tivesse desabado ou uma mina de ouro tivesse explodido. O que antes era uma das relíquias mais preciosas de Buda se reduziu, num instante, a minúsculos fragmentos dourados. As Vinte e Oito Constelações e os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais ficaram tão assustados que os pelos de seus corpos se eriçaram. O estrondo despertou também os demônios, que abriram os olhos assustados. Até o próprio monstro foi arrancado do seu sono tranquilo. Levantou-se da cama, vestiu-se às pressas e, em meio a uma barulheira de gritos e tambores incessantes, ordenou que todos empunhassem as armas. Já estava perto do amanhecer quando correram para o salão onde haviam deixado o Peregrino aprisionado.

Ao verem as Constelações e os restos dos címbalos destruídos, um pavor mortal tomou conta deles. Apenas o monstro manteve a calma suficiente para ordenar ao seus servos:

— Fechem imediatamente as portas! Que ninguém saia!

O Peregrino e as Constelações montaram às pressas em suas nuvens e subiram aos céus. Enquanto isso, o monstro, com surpreendente paciência, recolheu todos os fragmentos de ouro e mandou alinhar suas tropas na esplanada diante da porta do monastério. Vestiu sua armadura e, empunhando uma maça cravejada com fileiras de dentes de lobo, saiu para arengar seus servos, dizendo:

— O Peregrino Sun mostrou que é um covarde! Se não fosse, teria me enfrentado, mesmo sabendo que não aguentaria três assaltos contra mim!

O Peregrino não resistiu ao desafio. Freou a corrida de sua nuvem e voltou, acompanhado das Constelações. Logo perceberam que o monstro tinha os cabelos crespos e emaranhados como ondas do mar, presos por uma tiara de ouro. Sob sobrancelhas espessas, seus olhos brilhavam como brasas incandescentes. A fúria que o dominava fazia vibrar suas narinas, lembrando uma criatura aquática. Sua boca larga e quadrada nunca se fechava por completo, deixando à mostra dentes pontiagudos e afiados como facas.Vestia uma couraça de ferro, e trazia a cintura cingida por uma faixa de seda não tingida. Seis pés eram protegidos por botas de couro de bezerro, dando à sua figura um ar de fera selvagem, que acentuava ainda mais sua maça de dentes de lobo. 


No entanto, havia nele algo que desmentia esse aspecto bestial, como se fosse, ao mesmo tempo, homem e fera. Isso aumentou a curiosidade do Peregrino, que gritou:

— Que tipo de monstro é você, que ousa se passar por Patriarca Budista, dominar esta montanha e chamar este lugar de Pequeno Monastério do Trovão?

— Então não sabe como me chamo, hein, macaco idiota? — respondeu o monstro. — Isso explica por que ousou atravessar meus domínios sem permissão. Pois fique sabendo que este é o Pequeno Paraíso Ocidental. Durante anos, me dediquei a  ascese e à meditação, até alcançar um grau de perfeição tão elevado que o Céu me concedeu a graça de habitar num lugar tão extraordinário como esse. Não é à toa que sou chamado de Buda das Sobrancelhas Amarelas, embora os ignorantes desta região me chamem de Grande Rei ou até de Santo das Sobrancelhas Amarelas. Eu sabia de viagem para o Oeste e que seus poderes superam os de muitos imortais. Por isso, preparei a cena que quase enganou você. Era a única forma de atrair seu mestre. Mas isso já passou. Agora direi o que pretendo: se conseguir resistir aos meus ataques, perdoarei a todos e permitirei que alcancem a perfeição. Caso contrário, destruirei suas vidas, me apresentarei diante de Tathagata e levarei as escrituras de volta à terra de onde partiram, para que só eu desfrute de todo o mérito.


— Para que ficar se fingindo de valente? — retrucou o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Se quer lutar, chegue mais perto que eu faço você provar o gosto do meu bastão!


O monstro ergueu a maça de dentes de lobo, e assim começou uma das batalhas mais fantásticas já vistas. Suas armas eram muito diferentes entre si. A maça era curta e feita sob medida para a mão do buda que a empunhava. O bastão, arrancado do fundo dos mares, era mais duro, embora menos flexível. Ambas, porém, tinham o dom de se metamorfosear à vontade e raramente cediam terreno. A maça reluzia com incontáveis dentes de lobo incrustados como jóias, enquanto o bastão de extremidades douradas estava ligada à força dos dragões. Com incrível facilidade, elas se alongavam e se encolhiam, tornando-se grossas como troncos ou finas como agulhas. Armados dessas maravilhas, o demônio e o macaco se lançaram em uma luta feroz. Também havia grandes diferenças entre eles: um havia abraçado a fé, enquanto o outro zombava dos Céus, assumindo uma identidade que não lhe pertencia. Mas em violência eram iguais, e ambos lutavam como quem estava decidido a vencer a qualquer custo. Por isso, desferiam golpes terríveis na cabeça e nos flancos do inimigo, sem a menor piedade. Nenhum deles estava disposto a ceder um palmo sequer. A poeira levantada escurecia o sol e cobria a montanha inteira como um véu de névoa. O bastão e a maça dançavam uma dança mortal, da qual dependia o destino de Sanzang. Mais de cinquenta vezes mediram forças, sem que nenhum deles conseguisse vantagem sobre o outro.


À porta do monastério, os demônios gritavam palavras de incentivo, acompanhados do rufar dos tambores, do som estridente dos gongos e do balançar colorido dos estandartes. Do outro lado, as Vinte e Oito Constelações, os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais e os demais sábios decidiram agir. Com um grito de guerra, ergueram as armas e cercaram o monstro. O ataque foi tão inesperado que, de imediato, tambores e gongos se calaram. O monstro, porém, não demonstrou nervosismo. Pelo contrário, segurou a maça de dentes de lobo com uma mão e enfrentou os inimigos, enquanto com a outra soltava uma tira de tecido branco que trazia presa à cintura. Lançou-a para o alto e, após um assobio penetrante, prendeu nela o Grande Sábio, as Constelações e os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais. 


Com espantosa facilidade, carregou todos às costas como se fossem um simples fardo e retornou ao monastério. A vitória encorajou os demônios, que não paravam de gritar de alegria. O monstro ordenou que trouxessem dezenas de cordas, enrolando-as repetidas vezes ao redor do tecido. Apertou-as tanto que os deuses mal conseguiam respirar. Estavam todos atordoados, enfraquecidos e abatidos. Para piorar, os demônios os arrastaram para os fundos do monastério e os jogaram no chão sem demonstrarem qualquer respeito. Para celebrar a vitória retumbante, o monstro ofereceu aos súditos um banquete esplêndido que durou até altas horas da noite. Deixemos de lado, por enquanto, o que se passou com eles. Falemos, sim, do Grande Sábio, que ficou preso entre as tiras do tecido branco, assim como os demais deuses.

Por volta da meia-noite, pareceu-lhe ouvir alguém chorando. Prestando atenção, percebeu que se tratava de Sanzang, que se lamentava amargamente, dizendo:

— Oh, Wukong, se soubesse como me desprezo por não ter dado ouvidos aos seus conselhos e trazer sobre nós uma desgraça tão irreparável! Ninguém sabe que estamos presos aqui. O pior é que, com minha atitude inconsequente, desperdicei os mais de três mil méritos que acumulamos. Quem poderá nos libertar destas amarras, para que possamos continuar nossa jornada rumo ao Oeste?

Comovido por aquelas palavras, o Peregrino não pôde deixar de pensar:

— Mesmo sem acreditar em mim, e nos colocado nessa enrascada, o mestre, nos momentos difíceis, sempre pensa em mim. Já que o monstro está descansando e tudo parece tranquilo, o melhor é aproveitar a chance e libertar todo mundo.

Usando a magia da invisibilidade, encolheu o corpo de tal forma que conseguiu passar pelos nós das cordas com a mesma facilidade com que o sol entra pelas janelas. Aproximou-se então do monge Tang e sussurrou em seu ouvido:

— Mestre!


— Como conseguiu entrar aqui? — exclamou Sanzang, reconhecendo de imediato a sua voz.

O Peregrino contou-lhe então tudo o que havia acontecido.

— Me liberte logo dessas amarras! — pediu o mestre, cheio de entusiasmo. — Prometo que, de agora em diante, vou ouvir tudo o que disser e não me deixarei enganar pelas aparências.


O Peregrino não teve dificuldade em soltá-lo. Depois libertou Bajie, o Monge Sha, as Vinte e Oito Constelações e os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais. Pegou o cavalo pelas rédeas e, em silêncio, seguiu em direção à porta. Antes de alcançá-la, lembrou-se da bagagem e voltou às pressas. Ao vê-lo, o Dragão de Ouro exclamou com desdém:

— Como pode dar mais valor às coisas do que às pessoas? Não foi suficiente ter libertado seu mestre? Não entendo como pode ter tanta consideração por uma simples bagagem!


— Claro que as pessoas são importantes — respondeu o Peregrino. — Mas a túnica e a tigela de esmolas são ainda mais. Não percebe que, além de serem de ouro e terem bordados lindíssimos, são presentes do próprio Buda? Sem falar que, em uma daquelas bolsas, está o documento de viagem que o imperador nos entregou.

— Não dê atenção e vá buscá-la de uma vez — aconselhou Bajie. — Vamos esperar no caminho.


As Constelações cercaram o monge Tang e, usando a magia da onipresença, levantaram um redemoinho de vento que os transportou para o outro lado do muro. Assim que chegaram ao caminho, desceram a montanha às pressas e só pararam quando alcançaram a planície. Exaustos pelo esforço, sentaram-se para esperar o Peregrino.

Era por volta da terceira vigília quando o Grande Sábio voltou ao monastério, mas todas as portas estavam trancadas e bem fechadas. Determinado a não fazer o menor ruído, subiu a uma das torres para ver se havia alguma janela aberta. Todas estavam com as persianas baixadas e bem presas. Não teve escolha a não ser fazer um sinal mágico com os dedos e sacudir o corpo levemente, transformando-se de imediato em um morcego, com a cabeça pontiaguda como a de um rato e os olhos brilhando como brasas. Era a cópia perfeita daquelas criaturas que passam o dia dormindo, escondidas entre as telhas, e saem ao anoitecer em busca de mosquitos para se alimentar. São, em suma, mais amigas da luz da lua do que dos raios do sol, mas possuem tamanha habilidade com as asas que nenhuma ave voa melhor do que elas. Foi uma sorte para o Peregrino que entre as telhas e as vigas houvesse uma pequena abertura, por onde não lhe foi difícil se infiltrar. Depois de passar por várias portas, chegou à parte central do edifício, onde viu algo que brilhava de forma extraordinária.


A luz não vinha de lâmpadas nem de vagalumes e superava até o brilho de um relâmpago. Atraído por aquele fulgor, suspendeu o voo e aproximou-se para ver do que se tratava. Surpreendeu-se ao descobrir que eram as bolsas da bagagem. Logo entendeu que, depois de retirar a túnica do monge Tang, o monstro a havia colocado sem dobrar em uma das bolsas, e era por isso que brilhava com tanta intensidade. Observando melhor, percebeu que a túnica havia sido confeccionada com pérolas que reluzem à noite, pedras preciosas que obedecem à vontade de seus donos, pérolas Mani, contas de cornalina, fragmentos de coral vermelho e relíquias sagradas. O que mais se poderia esperar de um tesouro que pertenceu ao próprio Buda?

Louco de alegria, o Peregrino retomou sua forma habitual e pegou a bagagem. Sem se preocupar em verificar se as bolsas ainda estavam amarradas à coluna de madeira, lançou-as sobre o ombro e dirigiu-se à porta. Fez isso com tanta força que a coluna desabou, produzindo um estrondo enorme que acabou despertando o monstro, que dormia no aposento abaixo.

— Quem está aí? — perguntou o monstro, assustado. — Verifiquem imediatamente!


Os demônios pularam de suas camas e correram pelo monastério com tochas acesas. Não demorou para que um deles voltasse com a notícia:

— O monge Tang desapareceu!

— O Peregrino e os outros também fugiram! — acrescentou outro antes que o primeiro terminasse.

— Fechem imediatamente todas as portas! — ordenou o monstro.

Ao ouvir isso, o Peregrino temeu ser capturado novamente. Abandonando a bagagem à própria sorte, subiu numa nuvem e desapareceu por uma das janelas. O monstro revirou cada canto do monastério, mas não encontrou vestígios do monge Tang nem de seus companheiros. Vendo que já era quase dia, pegou sua maça e partiu em perseguição aos fugitivos, seguido por seu exército de demônios. Logo avistou, nas últimas encostas da montanha e protegidos por uma nuvem luminosa, as Vinte e Oito Constelações, os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais e os demais deuses, e gritou:

— Para onde pensam que vão? Não é tão fácil escapar das minhas garras!


— Depressa, irmãos! — exclamou o Dragão de Madeira. — O monstro e seus servos estão se aproximando!


Sem perder tempo, o Dragão de Ouro, o Morcego da Terra, a Lebre do Sol, a Raposa da Lua, o Tigre de Fogo, o Leopardo de Água, o Unicórnio de Madeira, o Touro de Ouro, o Texugo da Terra, o Rato do Sol, a Andorinha da Lua, o Porco de Fogo, o Porco-espinho de Água, o Lobo de Madeira, o Mastim de Ouro, o Javali da Terra, o Galo de Ouro, o Corvo da Lua, o Macaco de Fogo, o Símio de Água, o Cão de Madeira, o Carneiro de Ouro, o Veado da Terra, o Cavalo do Sol, o Cervo da Lua, a Serpente de Fogo e a Minhoca de Água colocaram-se à frente dos Deuses da Luz e das Trevas, dos Protetores dos Monastérios, de Bajie e do Monge Sha, e saíram ao encontro de seus perseguidores, abandonando à própria sorte o monge Tang e o cavalo branco. Todos se prepararam para lutar com bravura, brandindo suas mortíferas armas. Ao vê-los, o monstro soltou uma gargalhada desdenhosa e silvou com a força de uma serpente gigante. Imediatamente, quatro ou cinco mil demônios, fortes e valentes, lançaram-se à luta, dando início a uma batalha feroz nas encostas ocidentais da montanha.


Foi, verdadeiramente, um combate extraordinário. O exército dos demônios ergueu-se contra a autêntica Consciência, tão doce e serena que se horrorizava por ter de lutar. De nada serviram os milhares de planos e de estratégias idealizadas para escapar do sofrimento. No final, teve de se submeter aos horrores da guerra.

Felizmente, os deuses prestaram sua proteção, e os sábios colocaram suas armas à disposição. É possível que a Mãe Madeira ainda conservasse sua doçura primitiva, mas a decisão já estava tomada. O fragor da batalha fez tremer Céu e Terra. O número de combatentes aumentava a cada momento, como se fosse uma rede estendida por mãos invisíveis. De um lado, os soldados gritavam e agitavam seus estandartes; do outro, batiam nos tambores e gongos sem cessar. Lanças, espadas e machados formavam uma floresta de ferro, reluzente com fulgores de morte. As hostes de demônios demonstravam tamanha ferocidade e coragem que os guerreiros celestes tiveram enormes dificuldades para contê-los. A nuvem de poeira tornou-se tão densa que sol e lua foram encobertos, e os riachos da montanha transformaram-se em cursos de lama. Se o monge Tang tivesse desistido da intenção de apresentar seus respeitos a Buda, jamais teria ocorrido um combate tão sangrento.

Ambos os lados tinham plena consciência disso e lutavam apenas com o objetivo de vencer. O monstro lançava suas tropas repetidas vezes contra as forças celestes, mas não conseguia obter uma vantagem significativa. Quando o resultado parecia mais incerto para ambos os lados, ouviu-se a voz do Peregrino, dizendo:

— Afastem-se, que aí vem o Macaco!

— Onde está a bagagem? — perguntou Bajie, aproximando-se.

— Agora não é hora de falar em bagagens! — respondeu o Peregrino. — Quase perdi a vida por causa delas.

— Chega de conversa e vamos unir nossas forças para acabar com esse monstro! — urgiu o Monge Sha.


As Constelações e os Deuses da Luz e das Trevas estavam cercados por um destacamento de monstros e passando por um momento crítico. O próprio monstro enfrentava três deles com sua terrível maça. O Peregrino, Bajie e o Monge Sha conseguiram romper o cerco, obrigando a besta a recuar, desferindo golpes poderosos com seu bastão, ancinho e cajado. Lutaram sem esmorecer, até que o Céu e Terra ficaram mergulhados na escuridão, mas não conseguiram derrotar o demônio. Ainda assim, continuavam lutando quando o sol se punha no oeste e a lua surgia no leste. 


Ao perceber que a noite se aproximava, o monstro soltou um silvo penetrante, e todas as suas tropas reagruparam-se imediatamente. Em seguida, sacou a tira de pano branco e, quando se preparava para agitá-la, o Peregrino a viu e gritou aterrorizado:

— Cuidado! Cada um fuja por onde puder!

Sem se preocupar com a sorte de Bajie, do Monge Sha e dos outros deuses, o Peregrino deu um salto tão espetacular que foi parar diretamente no Nono Céu. Os demais não entenderam as razões para uma fuga tão precipitada e foram capturados mais uma vez pelo monstro. Apenas o Peregrino conseguiu escapar do suplício das cordas.


Assim que retornou ao monastério, o monstro ordenou aos seus súditos que preparassem novamente as cordas e tornou a amarrar os prisioneiros com a mesma brutalidade de antes. O monge Tang, Bajie e o Monge Sha foram pendurados nas vigas, enquanto o cavalo branco foi conduzido para os fundos. Como se não bastasse, mandou trancar os deuses numa masmorra, cujas portas foram cuidadosamente seladas. Os demônios cumpriram imediatamente suas ordens, e, por enquanto, não falaremos mais deles.

Falaremos, sim, do Peregrino, que salvou a vida graças ao salto formidável que o levou direto ao Nono Céu. Assim que viu os demônios abandonarem o campo com os estandartes abaixados, compreendeu que seus companheiros haviam sido capturados novamente. Então, desceu da nuvem e deixou-se cair, desanimado, na encosta oriental da montanha. Sentia um ódio tão intenso pelo monstro que seus dentes rangiam sem controle. Ao mesmo tempo, a lembrança do mestre o fazia verter um torrente de lágrimas. Preocupado, ergueu os olhos para o céu e exclamou com voz triste:

— Oh Mestre! Que falta grave cometeu em sua vida anterior para que, nesta, tenha que enfrentar espíritos malignos a cada passo? Suas provações parecem não ter fim. O que podemos fazer?


Após lamentar-se por muito tempo, sentiu a luz da serenidade voltar ao seu espírito e, valendo-se da mente para enfrentar a realidade, ponderou:

— Me pergunto que tipo de tecido será esse, capaz de conter tantas coisas. Prendeu até mesmo todos os guerreiros celestes. Acho que o melhor será informar o ocorrido ao Imperador de Jade, antes que a notícia chegue por outro caminho e ele se irrite comigo. Agora que me lembro, no Continente Austral de Jambudvipa, mais precisamente no Monte Wudang (6), vive um certo Zhenwu (7) do Norte, também conhecido como Honorável Conquistador de Demônios. Acho que irei visitá-lo e pedir sua ajuda para libertar o mestre.

De fato:

"Com o Caminho ainda incompleto, macaco e cavalo se dispersaram;
Quando a mente ficou sem mestre, os Cinco Elementos perderam a vida".

Por enquanto, desconhecemos o resultado das novas providências do Peregrino. Quem quiser descobrir terá que ouvir atentamente as explicações oferecidas no próximo capítulo.


CAPÍTULO LXVI EM BREVE


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Notas do Capítulo LXV

  1. Referência à afirmação do I Ching de que, quando a Ursa Maior está orientada para o leste, posição tradicional do yin, marca o início da primavera;
  2. Wang Wei (701-761), pintor e poeta da dinastia Tang, famoso pelo forte caráter bucólico de suas obras;
  3. Jizi foi um estrategista do período dos Estados Guerreiros;
  4. “Chien” é o primeiro hexagrama do I Ching, e as palavras que o seguem correspondem aos quatro caracteres iniciais do “Tuan-tse”, trecho do texto tradicionalmente atribuído ao rei Wen, da dinastia Zhou;
  5. O Dragão de Ouro é uma das vinte e oito constelações ou mansões lunares;
  6. O Monte Wudang, uma das montanhas sagradas do taoísmo, está localizado na província de Hebei e teve seu auge durante o reinado do imperador Cheng Tzu (1402-1424), pois acreditava-se que Zhenwu havia alcançado a imortalidade em suas encostas;
  7. Zhenwu é um imortal que, às vezes, se manifesta na forma de uma tartaruga branca; outras vezes, como uma serpente de proporções gigantescas; em algumas ocasiões, apresenta um pé gigantesco; e, finalmente, aparece como um ser de estatura extraordinária, cabelos despenteados e vestes negras.


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:

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Ruby