۞ ADM Sleipnir
CAPÍTULO LXIV:
BAJIE ESGOTA SUAS ENERGIAS NA CORDILHEIRA DOS ESPINHEIROS. SANZANG DISCUTE POESIA NO SANTUÁRIO DOS IMORTAIS DA FLORESTA


Em agradecimento por terem derrotado os monstros e recuperado as relíquias budistas, o soberano da Cidade do Reino do Sacrifício quis recompensar Sanzang e seus companheiros com uma grande quantidade de ouro e jade. Eles, porém, recusaram com cortesia. Percebendo que insistir seria inútil, o rei presenteou cada um com um par de túnicas iguais às que já usavam, duas faixas de seda, além de dois pares de sapatos e meias. Também providenciou comida seca em abundância e, com lágrimas nos olhos, selou o documento que autorizava a continuação de sua viagem.
Cercado por seus oficiais civis e militares, pelos monges do Monastério do Dragão Derrotado e por grande parte da população da capital, acompanhou-os até os arredores da cidade em meio a uma algazarra de vozes e música. Juntos, percorreram cerca de cinquenta quilômetros. Queriam segui-los ainda mais longe, mas os peregrinos recusaram firmemente. Apenas os monges do Monastério do Dragão Derrotado insistiram em continuar a viagem ao lado deles por mais cento e cinquenta ou cento e sessenta quilômetros. Alguns estavam determinados a seguí-los até o Paraíso Ocidental; outros já haviam decidido tornar-se discípulos deles e adotar uma vida de severo ascetismo.
Percebendo que não havia como dissuadi-los, o Peregrino decidiu recorrer à magia. Arrancou trinta pelos, soprou sobre eles um fôlego sagrado, lançou-os ao ar e gritou:
— Transformem-se!
No mesmo instante, os pelos se transformaram em uma matilha de tigres ferozes, que bloquearam o caminho, rugindo e golpeando o ar com as garras. Só então os monges desistiram de seguir adiante. O mestre pôde esporear livremente o cavalo, e em pouco tempo todos desapareceram no horizonte.
Ao perceberem que, por mais que corressem, não conseguiriam alcançá-los, os monges começaram a gritar, entristecidos:
— Por que não nos levam com vocês? Será que nos consideram tão indignos de sua companhia?
O mestre e seus discípulos prosseguiram com sua viagem rumo ao Oeste, sem dar a menor atenção aos gritos dos monges. Só depois de percorrerem uma boa distância o Peregrino resolveu recuperar os pelos que havia lançado ao vento. O inverno estava prestes a terminar, e a primavera começava a dar sinais de sua chegada. Era a melhor época para caminhar: o frio havia perdido a força e ainda faltava muito para que o calor se tornasse sufocante. Ao longe, avistaram os picos de uma cordilheira altíssima, por onde o caminho que seguiam serpenteava com dificuldade. Sanzang puxou as rédeas do cavalo e, surpreso, percebeu que toda a trilha estava tomada por um manto de espinheiros, trepadeiras e vinhas. Quanto mais avançavam, mais difícil se tornava a marcha, pois os espinheiros cravavam-se sem piedade nas pernas dos viajantes.
— Não tem como continuarmos por aqui! — exclamou, desanimado, o monge Tang.
— Por que não? — perguntou o Peregrino, surpreso.
— Não está vendo? — retrucou o monge Tang. — Está tudo tomado pelos espinheiros. Aposto que no meio deles se escondem legiões de bichos venenosos. Além disso, são tão apertados que nem abaixando conseguiríamos passar. Imagine então a cavalo, como eu estou!
— Não se preocupe — apressou-se em dizer Bajie. — Vou abrir um caminho tão largo com meu ancinho, que daria até para passar sem se machucar, mesmo se estivesse em uma carruagem.
— Embora eu saiba que sua força é extraordinária — retrucou Sanzang —, não creio que consiga dar conta de uma tarefa dessas. Nem sabemos qual é a extensão dessa cordilheira.
— Então, para que ficar discutindo? — interrompeu o Peregrino. — É melhor eu subir e dar uma olhada.
Com um salto imenso, elevou-se aos céus e contemplou o espetáculo. O manto de espinheiros e trepadeiras, verde como o mais puro jade, perdia-se entre as nuvens, bloqueando por completo a rota marcada pelos ventos. Não havia um único palmo de terra livre. Para onde quer que se olhasse, via-se uma massa infinita de folhagem, que o vento fazia murmurar como um mar verde e que cintilava ao sol como uma imensa pedra preciosa. Escondidos em meio a tanto verde, surgiam grupos de pinheiros, cedros, bambuzais, ameixeiras, salgueiros e bordos. As trepadeiras subiam pelos troncos, dando a impressão de cortinas de jade vistas de longe. Mas, apesar de dominarem toda a paisagem, os espinheiros não abafavam o perfume fresco das flores que brotavam sob o manto espinhoso. Eram invisíveis, mas tão numerosas que formavam no chão um tapete de cores vivas. Quem nunca, ao longo da vida, havia se deparado com espinheiros fechados e ciumentos? Ainda assim, jamais alguém havia visto tantos como os que o Peregrino contemplava naquele momento.
Desanimado, o Peregrino desceu da nuvem e disse ao mestre:
— Receio que essa cordilheira seja imensa.
— E qual seria o tamanho? — perguntou Sanzang.
— Não sei ao certo, pois não consegui ver até o fim — respondeu o Peregrino. — Mas, pelo que calculei, deve ter uns dois mil e quinhentos quilômetros.
— O que vamos fazer então? — exclamou Sanzang, apavorado.
— Não há motivo para tanto medo, mestre — disse o Monge Sha, sorrindo. — Por que não botamos fogo em todos esses espinheiros? Assim poderíamos seguir nosso caminho sem mais preocupação. Os camponeses costumam fazer isso em muitas regiões.
— Pare de dizer bobagens — aconselhou Bajie. — Isso só poderia ser feito por volta do décimo mês, quando tudo fica completamente seco. Como é que essas plantas iam pegar fogo agora, se o verde tomou conta de tudo? Já esqueceu que a umidade e a exuberância são barreiras naturais contra as chamas?
— Além disso — acrescentou o Peregrino —, não teríamos como controlar o incêndio.
— Então como vamos continuar? — insistiu Sanzang.
— Não há nada mais fácil — respondeu Bajie, rindo. — Vejam só o que vou fazer.
Ele torceu os dedos de um jeito impressionante, recitou um feitiço, bateu o punho contra o peito e gritou:
— Cresça!
No mesmo instante, seu corpo atingiu uma altura de quase sessenta metros. Logo depois, ergueu o ancinho e ordenou:
— Transforme-se!
Surpreendentemente, o ancinho se alongou como uma enorme serpente, e logo alcançou um comprimento que ultrapassava noventa metros de comprimento. Segurando-o com firmeza, Bajie cravou-o no chão e puxou como se fosse um boi arando a terra. Assim, abriu um caminho totalmente livre de espinheiros, largo o bastante para a passagem de um exército inteiro.
— Vamos, o que estão esperando? — gritou, voltando-se para o mestre. — Sigam-me!
Sorrindo, Sanzang esporeou o cavalo e entrou pela estrada recém-aberta, seguido pelo Monge Sha e pelo Peregrino, que, vez ou outra, ajudava com seu bastão de ferro. Não pararam para descansar em nenhum momento do dia, percorrendo mais de trezentos quilômetros. Ao cair da noite, chegaram a uma clareira onde se erguia um monumento de pedra. No alto estava gravado: “Cordilheira dos Espinheiros”. Mais abaixo, em duas linhas menores, lia-se: “Um caminho de dois mil quilômetros de espinheiros densos, raramente atravessado desde os tempos antigos.”
— Acho que estamos abusando demais de você — disse Sanzang, descendo do cavalo. — Este parece um bom lugar para passarmos a noite. Continuaremos nossa viagem assim que amanhecer.
— Para quê parar agora? — retrucou Bajie. — Ainda há bastante luz, e eu me sinto ótimo. Pra mim não há problema em caminhar pela noite inteira.
O entusiasmo era tanto que o mestre não teve outra escolha senão continuar adiante. Sem soltar as rédeas em nenhum momento, o monge Tang disparou numa corrida desenfreada que atravessou a noite inteira e avançou pelas horas de sol do dia seguinte. A lua voltou a surgir no céu, mas a paisagem era a mesma da tarde anterior. O vento fazia os bambuzais gemerem com um som triste, parecido com o choro de uma criança, enquanto os pinheiros sacudiam suas copas como se quisessem se livrar das folhas mortas. Nada parecia ter mudado.Chegaram, então, a uma nova clareira onde se erguia um antigo santuário. Em sua entrada, pinheiros e cedros competiam em vigor, enquanto pessegueiros e ameixeiras disputavam em beleza. Sanzang desmontou do cavalo e ficou maravilhado diante daquela visão. O santuário erguia-se sobre um promontório, ao lado de um riacho de águas geladas. Depois de tantos quilômetros de espinheiros, era um verdadeiro alívio para os olhos contemplar tamanha frescura. As árvores nas margens do riacho mostravam uma velhice comparável à do musgo que recobria as pedras da fundação do edifício. Balançados pelo vento, os bambus pareciam conversar entre si com a mesma linguagem do jade. O eco do canto de um pássaro trazia uma nota melancólica à quietude do entardecer. Não havia sinal de humanos ou feras. A vegetação era tão vigorosa que as paredes do santuário estavam cobertas por uma espessa camada de trepadeiras.
O Peregrino observou atentamente cada canto daquele lugar inesperado e disse:
— Tenho a impressão de que aqui se esconde algo maligno. Se quiserem ouvir meu conselho, seria melhor seguirmos viagem o quanto antes.
— Mas por que tanta desconfiança? — retrucou o Monge Sha. — Não há rastro de seres humanos nem de feras. Desde quando o silêncio mete medo em você?
Mal havia acabado de falar, quando um vento frio se levantou, e pela porta do santuário surgiu um ancião com um turbante na cabeça. Usava uma túnica simples, sandálias de palha e apoiava-se em um bastão áspero. Atrás dele vinha uma criatura demoníaca, de corpo arroxeado, barba avermelhada e rosto esverdeado, no qual se destacavam colmilhos retorcidos como os de um elefante. Sobre a cabeça, carregava uma bandeja de bolinhos de trigo.
Aproximando-se dos peregrinos, o ancião ajoelhou-se e disse:
— Este humilde servo, Grande Sábio, é o espírito da Cordilheira dos Espinheiros. A chegada de vocês foi tão inesperada que só tive tempo de preparar esta bandeja de bolinhos no vapor. Aceitem-nos como sinal de boa vontade e convidem seus companheiros a saborear este simples presente. Ele certamente irá ajudar a aliviar a fome, já que, como bem sabem, não há uma única casa num raio de dois mil quilômetros.
Bajie correu até ele e estendeu a mão para pegar um bolinho, mas o Peregrino, que analisava a cena com seus olhos de fogo diamantinos, impediu-o, dizendo:
— Não faça isso! Não percebe que é um ser maligno? Que tipo de espírito é você — acrescentou, voltando-se para o ancião — para tentar me enganar?
Sem esperar resposta, o Peregrino lançou-se contra ele, brandindo o seu bastão de ferro. Ao ver o golpe se aproximar, o ancião girou de maneira estranha e se transformou em um vento gelado, que arrebatou o monge Tang, fazendo-o desaparecer num piscar de olhos.
O Grande Sábio ficou tão atônito que não soube por onde começar a procurar seu mestre. Tomados pelo pânico, Bajie e o Monge Sha olhavam ao redor como quem perde algo de valor inestimável. Até o cavalo branco relinchava, apavorado. Parecia que os quatro haviam caído em transe ao mesmo tempo. Seus olhos arregalados lembravam espíritos vagando, mas nenhum deles sabia para onde olhar na esperança de encontrar uma pista do mestre. Por ora, não falaremos mais desses três. Falaremos sim, do ancião e da criatura demoníaca que o acompanhava. Depois de arrebatar o monge Tang, seguiram em direção a uma rocha de formas estranhas, envolta em névoa. Desceram suavemente por ela e, tomando a mão do mestre com inesperada delicadeza, o ancião disse:
— Não tenha medo. Não vamos lhe fazer mal algum. Na verdade, eu sou o Senhor Oito-e-Dez (1) desta Cordilheira dos Espinheiros. Se me permiti trazê-lo até aqui, foi apenas para apresentá-lo a alguns amigos. A noite está esplêndida, e pensei que seria agradável passarmos o tempo conversando sobre poesia.
O mestre logo recuperou a calma e olhou ao redor, curioso. Oculta pela neblina, surgia uma cabana simples e acolhedora, que convidava naturalmente à reflexão interior. Não havia lugar mais adequado para meditar, cultivar flores em silêncio ou caminhar com serenidade pelos bosques de bambu. Nos penhascos, pares de garças fitavam o verde dos lagos como se buscassem desvendar o mistério contido no coaxar das rãs. Um ar de recolhimento dominava o ambiente, superando até o de Tian-Tai ou do Monte Hua. Ali, não fazia sentido falar das preocupações que agitam o coração das pessoas comuns. Aquele era um paraíso de contemplação, onde, apenas ao se sentar, a mente se aquietava e brilhava tranquila como a luz da lua. Embriagado por aquela atmosfera, Sanzang chegou a sentir que os astros espalhados pelo céu reluziam com uma luminosidade próxima à do sol.
— Que alegria! — exclamou uma voz atrás dele. — O Senhor Oito-e-Dez conseguiu trazer o monge sábio até aqui!
O mestre levantou os olhos e viu três anciãos. O primeiro tinha feições que lembravam a geada; o segundo possuía cabelos esverdeados e uma longa barba da mesma cor, que balançava desordenada ao sabor do vento; o terceiro exibia gestos de grande serenidade, contrastando com o tom escuro de sua pele. Cada um deles se vestia de maneira diferente.
Com inesperado respeito, os três saudaram Sanzang, que respondeu inclinando a cabeça e disse:
— Quem sou eu para merecer tamanha consideração de imortais tão veneráveis?
— Ouvimos dizer — respondeu o Senhor Oito-e-Dez, sorrindo — que o senhor é um mestre do Tao. Esperamos por sua vinda durante tanto tempo que, na verdade, somos nós que deveríamos agradecer por ter aceitado nosso convite. Não imagina o quanto desejávamos ouvir as pérolas e o jade da sua sabedoria! Sente-se e converse conosco, para que possamos compreender os verdadeiros mistérios do Zen.
— Posso perguntar como se chamam? — voltou a perguntar Sanzang, inclinando a cabeça com respeito.
— Aquele com traços que lembram a geada — respondeu o Senhor Oito-e-Dez — chama-se Senhor da Integridade Solitária (2). O de cabelos esverdeados atende pelo nome de Mestre Superador do Vazio (3). E este outro, de aparência humilde, é conhecido como Mestre Limpador de Nuvens (4). Quanto a mim, sou chamado de Virtude Emaranhada (1).
— Posso perguntar as idades de vocês, se não for incômodo? — insistiu Sanzang.
— Eu — respondeu o Senhor da Integridade Solitária — já ultrapassei os mil anos. Minha vida se assemelha a uma árvore de copa densa, que ergue ao céu sua folhagem sempre verde. Meus ramos, endurecidos pela neve e pela geada, se retorcem como serpentes ou dragões, mas nunca deixam de oferecer sombra. Por ser praticante das artes mágicas, o tempo não conseguiu roubar meu vigor, e continuo firme e ereto como no primeiro dia. Fênices, amantes da exuberância e da grandeza, encontram refúgio em mim quando querem escapar da corrupção deste mundo de sombras.
— Em meus mais de mil anos de existência — disse, por sua vez, o Mestre Superador do Vazio — enfrentei a geada e o vento com a força espiritual de meus ramos altíssimos. Minha voz lembra as gotas de chuva numa noite tranquila. Minha sombra é tão fresca que muitos já me confundiram com uma nuvem de outono. Minhas raízes carregam a aspereza da longevidade, pois fui iniciado nos segredos da juventude eterna. Em meus ramos repousam não seres comuns deste mundo, mas garças e dragões sedentos pelo verde da serenidade. Não é por acaso que moro tão perto do reino dos deuses.
— Mais de mil outonos passaram pelo meu tronco — afirmou, por sua vez, o Mestre Limpador de Nuvens. — A idade não conseguiu arrancar de mim a alegria nem a pureza, embora alguns me considerem frio e calculista. Enfrentei a neve e a geada, mas ainda assim sou amigo próximo dos imortais e dos poetas, que compuseram à minha sombra seus melhores versos. Ao meu lado, os Sete Veneráveis encontraram o consolo do Tao, e os seis membros da Irmandade dos Eremitas (5) descobriram inspiração para suas poesias.
— Também ultrapassei, e muito, os mil anos — declarou, por fim, Virtude Emaranhada—, mas ainda conservo o frescor da infância. Devo minha força à chuva e ao orvalho, que carregam em si o mistério das forças criadoras. Por isso, sou parte de qualquer paisagem, crescendo viçoso mesmo sob as condições mais extremas. Quando desejam discutir o Tao, tocar instrumentos ou jogar xadrez, os imortais sempre procuram a sombra fresca do meu dossel.
— Todos vocês desfrutaram, de fato, de uma vida longa — comentou Sanzang, agradecendo as palavras. — É difícil acreditar que Virtude Emaranhada tenha mais de mil anos. Depois de tanto tempo dedicado ao cultivo do Tao, não me surpreende que tenham modos tão suaves e rostos tão singulares. Não seriam, por acaso, os Quatro dos Cabelos Brancos (6) dos tempos do imperador Han?
— Tanto respeito nos honra — responderam os quatro anciãos em uníssono —. Não somos os dos Cabelos Brancos, mas sim os Quatro Disciplinados que vivem no fundo da montanha. Poderia nos dizer sua idade?
— Faz quarenta anos que deixei o ventre de minha mãe — respondeu Sanzang, inclinando a cabeça e juntando as mãos diante do peito. — A desgraça me perseguiu antes mesmo de nascer. As ondas salvaram minha vida, conduzindo-me com cuidado até a Montanha de Ouro. Lá, entreguei-me com fervor à leitura dos sutras e jamais hesitei em prestar reverência a Buda. Isso contribuiu muito para que o rei me enviasse ao Oeste e, assim, me desse a oportunidade de conhecê-los.
Os quatro anciãos se juntaram em elogios a ele, e um deles exclamou, admirado:
— Que sorte poder ouvir, desde o ventre materno, os ensinamentos de Buda! Ter se tornado um monge superior e um respeitado mestre do Tao se deve à vida ascética que levou desde a infância. Para nós é uma grande honra recebê-lo nesta humilde morada, pois isso nos dá a oportunidade de assimilar seus ensinamentos. Por favor, ensine-nos os princípios do Zen; assim poderemos cumprir um de nossos maiores desejos.
Sanzang não se sentiu intimidado pelo pedido inesperado. Então sentou-se e começou a falar para os quatro, dizendo:
— O Zen é repouso e a Lei, salvação, mas nenhum dos dois se alcança sem a Iluminação. Para isso, é necessário limpar a mente de todo desejo e renunciar aos caminhos errados deste mundo de sombras. Três coisas ajudam muito a atingir esse objetivo: reencarnar num corpo humano, nascer no País do Centro do Mundo (7) e conhecer profundamente as doutrinas de Buda. Não existe felicidade maior do que essa. Embora os caminhos que conduzem à virtude suprema não possam ser vistos ou ouvidos, exigem a renúncia completa aos seis sentidos e às seis formas de percepção. A sabedoria absoluta não tem princípio nem fim; abrange, ao mesmo tempo, o ser e o nada, e se manifesta tanto aos sábios quanto aos ignorantes. Para alcançar a Verdade, é preciso cumprir o que ordena o Primeiro Princípio e renunciar ao que ele proíbe; da mesma forma, para compreender a realidade autêntica, é necessário seguir os ensinamentos de Sakyamuni e, para entrar no nirvana, entender o poder da negação da mente. Só despertando o que está adormecido e iluminando o que já está iluminado se chega ao domínio da Verdade. Basta uma fagulha de luz espiritual para conquistar o reino do dharma. Chamas não atravessam o muro da escuridão. Isso só se consegue fortalecendo o forte e enfraquecendo o fraco. Quem poderá dominar tamanho mistério? Só aquele que, como eu, se entrega à prática do Zen sem jamais desistir.
Ao ouvir essas palavras, os quatro anciãos não conseguiram conter a alegria. O entusiasmo era tanto que inclinavam a cabeça repetidamente, exclamando:
— Em verdade, é um mestre dos princípios do Zen!
— Embora o Zen seja repouso e a Lei, salvação — replicou o Mestre Limpador de Nuvens —, todos devem agir conforme seu próprio modo de ser e os princípios que aprenderam. Não é segredo que existe grande diferença entre o sistema doutrinário que vocês seguem e o nosso. Por mais que tentássemos, e apesar de sermos imortais, jamais conseguiríamos nos tornar mestres da escola que o senhor pratica.
— O Tao é praticamente inabarcável — sentenciou Sanzang. — Como poderia haver diferença entre nossos sistemas de pensamento, se possuem a mesma substância e função?
— Apenas na aparência — respondeu o Mestre Limpador de Nuvens. — Compare sua força com a nossa, sem ir mais longe. Devemos nossa existência à perfeita harmonia entre Céu e Terra; por isso dependemos do orvalho e da chuva para sobreviver. Desprezamos a tirania do vento e a geada não nos assusta, pois nunca nos dobra. Ao contrário: nossas folhas permanecem viçosas e nossos ramos se fortalecem a cada dia. O senhor, por outro lado, em vez de consultar o Liezu, dedica-se a recitar textos em sânscrito, esquecendo que o Tao se originou em sua própria terra (8). Não faz sentido gastar um único par de sandálias para buscar a Iluminação no Oeste. O que realmente está procurando? Parece como se um leão de pedra tivesse arrancado seu coração e uma matilha de raposas triturado seus ossos. Renuncia às suas raízes para servir a Buda e por em prática os princípios do Zen. Para mim, é como esta Cordilheira dos Espinheiros: um enigma impossível de desvendar. Como poderia um homem assim guiar e ensinar os outros? Jamais conseguirá transmitir a alguém os pontos centrais da verdadeira doutrina. É preciso submeter o mundo mutante das aparências a um exame rigoroso. Não percebe que a vida também se manifesta na quietude? Chegará o momento em que a água brotará de uma cesta de bambu sem fundo e flores cobrirão a árvore de ferro sem raízes. Plante seus pés no cume do Ling-Pao! Se o fizer, ao retornar poderá sentar-se na seleta reunião de Maitreya.
Sanzang se prostrou com o rosto no chão, batendo a testa contra o solo em sinal de profundo agradecimento. O Senhor Oito-e-Dez correu para ajudá-lo a se levantar, acompanhado pelo Senhor da Integridade Solitária.
— O que o Mestre Limpador de Nuvens acabou de dizer não faz sentido algum — apressou-se a dizer o Mestre Superador do Vazio, suspirando, entristecido. — Levante-se e não dê atenção às suas palavras. Em noites de lua tão clara como esta, raramente discutimos sobre as vias da perfeição. Por que, em vez de falar tanto, não compomos alguns poemas?
— Se é isso que desejam — respondeu o Mestre Limpador de Nuvens, sorrindo —, o melhor será entrarmos no santuário e tomarmos um pouco de chá, não acham?
O mestre ergueu os olhos e viu que, sobre o lintel da morada dos anciãos, havia uma laje de pedra com a inscrição: “Santuário dos Imortais da Floresta”. Entraram juntos e se sentaram ao redor de uma mesa. A criatura demoníaca de corpo roxo serviu uma bandeja de gelatina de raízes e cinco taças de uma bebida aromática. Com deferência, os anciãos recusaram-se a provar antes que Sanzang o fizesse. O mestre hesitou, temendo que pudessem envenená-lo. Só quando percebeu que cada um deles já havia separado sua porção, decidiu experimentar duas colheres da gelatina. A bebida estava deliciosa, e não demorou até que o criado retirasse as taças.
Sanzang olhou ao redor, curioso, e percebeu que o interior do santuário estava iluminado como se fossem banhados pela luz da lua. Pelas janelas abertas, filtrava-se o som da água saltando entre as pedras, junto ao perfume suave das flores noturnas. Tudo isso reforçava a elegância simples do lugar, impecável em cada detalhe. Animado por aquela atmosfera de serena espiritualidade, o mestre começou a cantar com inesperado entusiasmo:
— "A mente do Zen lembra, pela pureza, a luz da lua".
Sorrindo satisfeito, o ancião Virtude Emaranhada deu continuidade ao canto:
— "A inspiração brilha sobre nós com mais força que o sol do meio-dia".
— "Criar um verso belo é tão difícil quanto bordar sobre seda" — entoou o Senhor da Integridade Solitária.
— "Versos inspirados são tão valiosos quanto os mais raros tesouros" — acrescentou o Mestre Superador do Vazio.
— "Os poemas das Seis Dinastias (9) desprenderam-se de suas frases inúteis, e assim encontraram um novo compilador do Livro das Odes (10)" — prosseguiu o Mestre Limpador de Nuvens.
— Agora percebo o grande equívoco que cometi — disse Sanzang. — Sem perceber, comecei a cantar, movido por este ar de serena espiritualidade que aqui se respira. Foi como brandir um machado diante do Deus Lenhador, pois, ao ouvir a delicadeza e a elegância de seus versos, compreendi que são autênticos mestres da arte poética.
— Para que tantas desculpas? — retrucou Virtude Emaranhada. — Quem deixou a vida em família não deve abandonar nada pela metade. Se começou um poema, não tem como evitar terminá-lo. Esperamos que não nos decepcione e o conclua.
— Como pode ser tão severo conosco? — exclamou Virtude Emaranhada. — A nós cabe o primeiro verso do poema que todos fomos tecendo. Não há escapatória. Cabe a você encerrá-lo. Guardar para si os talentos que se possui vai contra a prática da virtude.
— Extraordinário! Que verso mais refinado! — exclamou o Senhor Oito-e-Dez, entusiasmado. — “A alegria de suas canções enche meu coração de primavera!”
— Ama tanto a poesia que não hesita em retornar, vez após vez, a cada verso — disse o Senhor da Integridade Solitária a Virtude Emaranhada. — Por que não inicia outro poema?
— Está bem — respondeu imediatamente o Senhor Oito-e-Dez. — Começarei um, no estilo de “passar a agulha” (11). Eis aqui: "A primavera não me faz crescer, nem o inverno consegue secar-me. Para mim são como se não existissem, embora as nuvens continuem a flutuar sobre minha cabeça".
— Vou ligar meus versos aos seus, seguindo o mesmo estilo — disse o Mestre Superador do Vazio. — "Embora não sopre vento, sempre se forma ao meu redor um círculo de sombra cinética. Não encontro maior prazer em meu entorno. Comparada a ele, a vida longeva não é nada".
— "Virtuoso como o coração sem ambições do Senhor das Terras do Sul" — acrescentou o Mestre Limpador de Nuvens —, "estendo meus galhos nos domínios do nobre soberano da Montanha Ocidental".
— Vocês possuem uma capacidade poética tão extraordinária que até o Céu se alegra com seus versos — comentou Sanzang, admirado. — Embora certamente não possa me comparar com vocês, tomarei a liberdade de recitar mais dois versos.
— O senhor é uma pessoa muito versada nos princípios e na prática do Tao — disse o Senhor da Integridade Solitária. — Seu espírito possui uma sensibilidade maior até que os limites do mar. Por que perder tempo com versos encadeados? Presenteie-nos com um poema completo. Cada um de nós tentará responder na mesma medida (12), embora estejamos certos de que não conseguiremos igualar o brilho de sua inspiração.
Sanzang não teve alternativa a não ser improvisar um poema no estilo de verso regulado.
— "Em busca do dharma imperial, um monge segue para o Oeste — recitou, com o rosto iluminado pela emoção. — De terras distantes trará escrituras maravilhosas. Em seu caminho floresce o que só existe na mente do poeta. Por ele, árvores em pleno vigor exalam perfumes tão serenos quanto os do próprio Buda (13). Como poderia negar-se a atravessar cumes inacessíveis e pisar em terras que ninguém ousou alcançar? Quando seu espírito adquirir a nobreza do jade, a Verdade baterá com força às portas do nirvana".
Os quatro anciãos se desmancharam em elogios. Emocionado, o Senhor Oito-e-Dez disse:
— Todos sabem que não possuo mais virtude que audácia. Tentarei, portanto, responder a este belíssimo poema com outro: "Conhecido como Virtude Emaranhada, desprezo o rei da floresta. Minha fama supera a das criaturas mais longevas que nela crescem (14). Minha sombra segue a linha descendente dos montes, como se fosse uma serpente. De mim, os riachos bebem um aroma milenar que supera em doçura o âmbar. Apesar de seus esforços incansáveis, a chuva e o vento não conseguem impedir que meus galhos abracem o universo. Quando minha força se apagar, minha tumba será marcada pelas barbas milenares dos líquenes.
— A que devemos a honra desta visita, Imortal do Damasco? — perguntaram os anciãos, levantando-se para saudá-la.
— É aquele ali — respondeu o Senhor Oito-e-Dez, apontando para o monge Tang. — Não é preciso pedir permissão para falar com ele.
Sanzang inclinou-se respeitosamente, sem ousar dizer nenhuma palavra.
— Que sensibilidade a sua! — exclamaram os quatro anciãos, cheios de elogios. — Seus versos estão impregnados de nostalgia, especialmente este: “Não existem botões mais ternos e encantadores que os meus, quando a chuva os umedece.”
— Onde está, mestre? Ouvimos suas palavras, mas não conseguimos vê-lo.
— Estou aqui, Wukong! Venha me salvar desses loucos!
CAPÍTULO LXV EM BREVE
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- Em chinês 勁節十八公, Jinjie Shiba Gong. A tradução do nome é um trocadilho com Gong (Senhor), Shi/Shr (dez) e Ba (oito). Já Jinjie remete à "virtude" ou "retidão", rementedo ao seu segundo nome, "Virtude Emaranhada";
- Em chinês 孤直公, Guzhi Gong;
- Em chinês 凌空子, Lingkongzi;
- Em chinês 拂雲叟, Fuyun Sou;
- Os seis membros da Irmandade dos Eremitas, entre os quais estava o poeta Li Bai (ou Li Po), formavam um grupo de amigos que se reunia regularmente para beber e compor versos. Os Sete Dignos, por sua vez, eram imortais que se tornaram tema predileto de muitos pintores;
- Quatro famosos reclusos do período do imperador Han Gaozu, de quem se dizia possuir cabelo e barba tão brancos quanto a neve;
- A China possui dois nomes muito similares: Zhongguo, “País do Centro (do Mundo)”, e Zhongtu, “Terra do Centro”. A primeira denominação ainda hoje é a mais usada;
- Alusão à obra Sheng-Tan Wen, do filósofo Feng Zunshi;
- As Seis Dinastias referem-se às que governaram os destinos da China entre os séculos III e VI, ou seja, Wu, Jin Oriental, Song, Chi, Liang e Chen — um período marcado por um estilo literário de forte barroquismo;
- Tradicionalmente, Confúcio é considerado o compilador do Livro das Odes;
- Termo utilizado para a anadiplose ou concatenação de versos, em que a última palavra de um verso se torna a primeira do seguinte;
- Esse estilo, conhecido como he, consistia em responder com um poema de estrutura diferente, mas de composição rítmica idêntica;
- Alusão a um poema de Yuan Haowen (1190-1257), da dinastia Song;
- Referência às árvores extremamente longevas mencionadas por Zhuangzi em seus escritos;
- O Palácio da Suprema Pureza constitui, junto com o Palácio da Pureza Superior e o Palácio da Pureza de Jade, o paraíso taoísta;
- Ziyou é, na verdade, o nome de dois rios citados no Livro das Odes, embora aqui seja usado como referência a uma região rica em bosques de bambu;
- O Wei é um rio da província de Shensi, cujo curso dizia-se ser ladeado por intermináveis fileiras de bambus exuberantes;
- Tse-Yu foi um dos filhos de Wang Xizhi, da dinastia Xin, conhecido por sua paixão pelos bambus, que se tornava indispensável à sua vida. A obsessão de pintores, calígrafos e literatos por essas plantas explica-se pela semelhança entre os traços do pincel e a delicadeza dos ramos.
- A donzela do monte Tiantai é uma imortal protagonista de relatos populares, alguns compilados por Pu Songling no século XVII;
- Tang Zhi foi a concubina favorita do Senhor de Zhou, tirano da dinastia Shang;
- Segundo Zhongzi, Confúcio costumava dar suas lições sobre um estrado de madeira de damasco;
- Dung Xian é, na realidade, Dung Feng, lendário médico do período dos Três Reinos, que cobrava seus honorários em damascos, permitindo-lhe reunir rapidamente um verdadeiro bosque desses frutos;
- Sun Zhou foi um funcionário da dinastia Jin, muito celebrado por seus conhecimentos literários. Apesar do que se afirma no texto, sua ligação com o Festival da Comida Fria não é clara. A festividade, celebrada no início de abril, durante o quinto período solar, está relacionada à morte de Chie Tui pelas mãos do Senhor de Wen, a quem havia servido por cerca de dezenove anos. Durante os três dias da festa, os fogões permanecem apagados e consome-se apenas comida fria.

- Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
- Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
A Jornada ao Oeste: Capítulo LXIV



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