31 de outubro de 2025

A Jornada ao Oeste: Capítulo LXVIII

۞ ADM Sleipnir



CAPÍTULO LXVIII:

O MONGE TANG CONVERSA SOBRE ÉPOCAS PASSADAS NO CORAÇÃO DO REINO PÚRPURA. O PEREGRINO AGE COMO ALGUÉM QUE QUEBROU O BRAÇO EM TRÊS PARTES DIFERENTES (1).

"Quando alcançar a verdadeira virtude  e todas as causas chegarem ao fim, sua fama se espalhará pelos quatro cantos do mundo. 
Então, tornar-se-á um sábio iluminado e subirá aos céus, envolto por um manto de nuvens radiantes que nem os ventos mais furiosos conseguirão dispersar.
Todos os Budas virão ao seu encontro, e habitarás para sempre no Palácio de Jade.
Não dê valor ao que não tem importância, nem se prenda a sonhos tão frágeis quanto o corpo de uma borboleta. 
Quando as paixões são dominadas, a desgraça se dissolve como espuma no vasto mar do nada".

Após purificarem o desfiladeiro de todas as impurezas, Sanzang e seus discípulos seguiram sua viagem, leves como o voo dos pássaros. O tempo passou depressa, e logo o calor sufocante do verão estava de volta. As romãzeiras exibiam orgulhosamente a firmeza de seus frutos, enquanto os lótus se abriam em grandes pratos verdes. Nos salgueiros à beira do caminho, jovens andorinhas se escondiam, enquanto os viajantes abanavam seus leques de seda para aliviar o calor.

Enquanto o grupo se distraía admirando a beleza da paisagem, avistaram ao longe uma cidade murada, cercada por um fosso. 


Puxando as rédeas do cavalo, Sanzang exclamou:

— Vejam! Que tipo de lugar é aquele?

— Mestre — exclamou o Macaco —, então o senhor é analfabeto? Como conseguiu que o imperador Tang o enviasse nessa missão?

— Tornei-me monge ainda criança, e estudei milhares de clássicos e escrituras — retrucou Sanzang.   Como pode dizer que eu sou analfabeto?

— Se sabe ler — retrucou o Peregrino —, como não conseguiu ler aqueles caracteres  enormes escritos naqueles estandartes? Do contrário, não estaria perguntando que lugar é aquele.

— Macaco insolente! — bradou o Monge Tang. — Deixe de falar bobagens! Aqueles estardantes não pararam de tremular de um lado para o outro graças a força do vento. Pode até ter algo escrito neles, mas não consigo vê-los direito!

— Então por que eu consigo enxergar perfeitamente? — insistiu o Peregrino.

— Não dê ouvidos a ele, mestre — disseram, quase em coro, Bajie e o Monge Sha. — Daqui mal dá para ver se é uma cidade mesmo. Como alguém poderia ler algo a essa distância?

— Pois eu consigo ler claramente — insistiu o Peregrino. — Em todos os estandartes está escrito: "Reino Púrpura".

— Esse reino deve fazer parte da região ocidental — exclamou Sanzang, empolgado. — Acho melhor entrarmos e pedir que carimbem nossos salvo-condutos.

— Boa ideia — concordou o Peregrino.

Não demoraram a chegar aos portões da cidade. Sanzang desmontou do cavalo e todos atravessaram um belo portão ornamentado com um telhado triplo. Foi então que perceberam que se tratava de uma capital realmente magnífica. Seus quatro portões eram protegidos por torres imponentes, interligadas por muralhas altíssimas. Apesar das fortificações, a água corria livremente por toda a cidade, compondo, na verdade, um de seus meios de defesa. Outro elemento protetor eram as imponentes montanhas que se elevava, ao norte e ao sul. A julgar pelas mercadorias das mais variadas origens expostas nos mercados, devia ser um centro comercial muito próspero. Em todas as casas se notava um ar de prosperidade, que deixava claro o caráter empreendedor de seus moradores. Não havia dúvida de que aquela era a capital de um reino tão poderoso, que mais parecia habitado por seres celestiais. Navios vindos de terras distantes chegavam carregados de jade e pedras preciosas, o que havia feito a cidade crescer tanto que seu perímetro se perdia no horizonte. Seus palácios e edifícios exibiam uma nobreza que refletia os longos períodos de paz desfrutados por uma terra tão privilegiada.

O mestre e seus discípulos passeavam pelas ruas, maravilhados, admirando a elegância das pessoas, a beleza das construções e a sonoridade peculiar da língua local. De certa forma, aquele lugar lembrava o longínquo reino dos Tang. Mas, ao notarem a feiura de Bajie, a altura descomunal do Monge Sha e o corpo completamente coberto de pelos do Peregrino, as pessoas nas ruas interromperam suas atividades e se aglomeraram, curiosas, em volta dos recém-chegados. Percebendo que a prudência era o melhor caminho para evitar problemas, Sanzang pressionou seus discípulos a continuarem andando, dizendo:

— Mantenham a cabeça baixa e não façam comentários. Afinal, estamos em uma terra que não é a nossa.

Bajie imediatamente baixou o focinho até o peito, tentando esconder sua enorme boca que lembrava uma raiz de lótus. O Monge Sha, por sua vez, baixou o olhar e continuou andando como se não houvesse mais ninguém no mundo. Apenas o Peregrino seguia de cabeça erguida, encarando os curiosos sem se afastar do monge Tang.

Logo, aqueles que tinham algo a fazer voltaram aos próprios afazeres. Mas os ociosos, principalmente jovens e arruaceiros, cercaram Bajie, e começaram a atirar pedras e cacos de telha nele, em meio a risadas e insultos.


O nervosismo tomou conta do monge Tang, que começou a suar, como se tivesse acabado de fazer um grande esforço físico. A única coisa que conseguia dizer era:

— Não respondam aos insultos. Continuem andando!

Isso bastou para que Bajie nem ousasse levantar a cabeça. Ao dobrarem uma esquina, depararam-se de repente com uma mansão de tamanha importância que era cercada por um pequeno muro. Acima do portão, havia uma placa com grandes caracteres que diziam: “Pavilhão dos Tradutores (2).

— Acho que deveríamos entrar nesse palácio — disse Sanzang.

— Pode-se saber para quê? — perguntou o Peregrino.

— Em todas as cidades abertas ao mundo exterior — explicou Sanzang —, o Pavilhão dos Tradutores é o lugar onde se reúnem pessoas vindas de outros reinos. Nós também nos enquadramos nessa categoria. Seria bom entrarmos para descansar um pouco. Assim que recuperarmos as forças, iremos ver o rei e pediremos que carimbe nossos documentos de viagem. Dessa forma, poderemos continuar nossa jornada.

Sem se importar com as dezenas de curiosos que os seguiam, Bajie esticou seu enorme focinho e comentou:

— Acho que o mestre está certo. Quanto antes nós entrarmos, mais rápido nos livraremos desses moscardos que grudaram na gente como se fôssemos feitos de mel.

Ao vê-lo, muitos dos curiosos recuaram, apavorados. Outros permaneceram à porta do pavilhão, mas pouco a pouco foram se dispersando. Os funcionários responsáveis pelo bom funcionamento da mansão — um ministro e um vice-ministro — aguardavam no salão principal a chegada de uma delegação estrangeira quando avistaram o monge Tang e seus companheiros.O espanto foi tamanho que só conseguiram balbuciar:

— Quem são vocês? Podemos saber para onde se dirigem?

— Este humilde servo — respondeu Sanzang, juntando as mãos à altura do peito e inclinando levemente o corpo — é um enviado do Grande Imperador dos Tang, das Terras do Leste, em missão para obter as escrituras do Paraíso Ocidental. Ao chegar a este respeitável reino, não quisemos atravessá-lo sem a devida autorização, por isso buscamos abrigo nesta distinta mansão, que parece estar sob sua administração. Assim que recuperarmos as forças, solicitaremos que carimbem nosso salvo-conduto e, dessa forma, poderemos seguir nosso caminho.

Ao ouvirem isso, os dois ministros ordenaram que os criados se alinhassem dos dois lados do salão e correram para dar as boas-vindas aos recém-chegados, não sem antes ajustarem seus chapéus e cintos oficiais. Sem perder tempo, disponibilizaram alguns aposentos e encarregaram os cozinheiros do pavilhão de preparar uma refeição vegetariana. Quando tudo ficou pronto, despediram-se de Sanzang e seus companheiros e deixaram a mansão, mantendo apenas um grupo de criados para atender às necessidades dos ilustres visitantes. Somente o Peregrino pareceu insatisfeito com o tratamento e, assim que os ministros se foram, exclamou:

— Que canalhas são aqueles dois! Por que não nos ofereceram os melhores aposentos?

— É preciso considerar — disse Sanzang, tentando acalmá-lo — que este reino não está sob o domínio do Grande Tang e nem mantém relações diplomáticas conosco. Além disso, esta mansão costuma ser ocupada por convidados importantes e altos oficiais Isso explica por que nos trataram dessa forma.

— Se é assim — disse o Peregrino —, aí é que eu queria mesmo que nos recebessem na suíte principal.

Enquanto conversavam, um criado apareceu trazendo uma tigela grande de arroz branco, uma panela de farinha de trigo, dois maços de verduras frescas, quatro pedaços de tofu, um prato cheio de brotos de bambu secos e uma bandeja de cogumelos-orelha-de-pau. Sanzang pediu a seus discípulos que cuidassem de tudo, e o criado aproveitou o momento para dizer:

— Podem encontrar panelas e frigideiras limpas no pavilhão voltado para o oeste. Lá tem tudo o que precisam Se quiserem comer algo, preparem vocês mesmos.

— Se não for incômodo — disse Sanzang rapidamente —, gostaria de saber se o rei ainda está no salão do trono.

— Para ser sincero — respondeu o criado —, fazia muito tempo que ele não se reunia com os seus conselheiros, mas hoje é um dia favorável, e ele convocou todos para discutir assuntos importantes do reino. Se desejam que o seu documento de viagem seja carimbado, é melhor se apressarem, pois é muito provável que ele não os receba depois. Só o céu sabe quando haverá outro dia propício.


— Nesse caso — concluiu Sanzang —, o melhor é ir vê-lo o quanto antes. Virou-se então para os discípulos e acrescentou: — Fiquem aqui e preparem algo para comer. Quando eu voltar, comeremos algo e seguiremos viagem.

Sem perder tempo, Bajie abriu uma das bolsas e retirou dela a túnica bordada e o salvo-conduto. Depois de se vestir com a solenidade que a ocasião exigia, Sanzang ordenou aos discípulos que não saíssem do pavilhão nem causassem problemas, e então dirigiu-se à corte.

O palácio não ficava longe, e ele chegou à Torre dos Cinco Fênices antes do esperado. O luxo dos salões e a magnitude das construções eram eram tais que não podem ser descritos com palavras. Assim que atravessou o portão principal, o monge Tang pediu para ser recebido na Corte Celestial a fim de carimbar seu documento de viagem. 


O Guardião do Portão Amarelo então dirigiu-se aos degraus de jade branco e anunciou sua chegada, dizendo:

— Às portas do palácio encontra-se um monge do Grande Império Tang, nas Terras do Leste, que se dirige ao Monastério do Trovão, no Paraíso Ocidental, em busca das escrituras budistas, por expresso desejo do imperador. Ele solicita que seu salvo-conduto seja carimbado e aguarda vossa decisão com o rosto prostrado no chão.

— Fazia muito tempo que não me sentava no trono, por causa da terrível doença que me manteve acamado — disse o rei, animado com a notícia. — É uma coincidência incrível que, justamente quando eu me preparava para convocar os melhores médicos do mundo, apareça um monge de tanta nobreza. Tragam-no imediatamente!

Em sinal de respeito e submissão, Sanzang prostrou-se com o rosto no chão. O rei ordenou que o acomodassem no Salão Dourado e mandou preparar, em sua homenagem, um magnífico banquete vegetariano. Após agradecer ao rei por tanta atenção, Sanzang entregou-lhe o documento de viagem. 


Assim que terminou de lê-lo, o rei perguntou, curioso:

— Mestre da Lei, poderia me dizer quantos soberanos já ocuparam o trono dos Grandes Tang e quantos ministros eles tiveram ao todo? E quanto ao atual imperador... como conseguiu voltar à vida depois da morte e pedir que atravessassem tantos rios e montanhas em busca das escrituras?

O mestre juntou as mãos à altura do peito e, inclinando levemente a cabeça, respondeu:

— Na terra de onde venho, governaram três grandes reis, seguidos por outros cinco (3) que consolidaram o trono e a ordem do mundo. Yao e Shun trouxeram prosperidade ao povo, enquanto Yu e Tang (4) inauguraram um longo período de paz — uma paz que só seria rompida pelos descendentes de Chang e Zhou (5). Movidos por uma ambição desmedida, esses herdeiros voltaram-se contra os mais fracos, conquistando e subjugando inúmeros reinos. Ao todo, houveram dezoito soberanos que só pensavam em guerra e expansão, cada um tentando ampliar suas fronteiras sem limites. Depois deles vieram doze reis que, a princípio, buscaram a paz, mas logo sucumbiram ao som das carruagens e dos cavalos de guerra, lutando entre si como feras famintas. Dessa longa disputa restaram apenas sete Estados, que acabaram reconhecendo a supremacia do mais forte entre eles: o reino de Qin. Então o Céu determinou o surgimento do Estado de Lu, no distrito de Bei (6), que mais tarde daria origem ao glorioso Império Han. Esse império criou leis para todos os seus domínios, mas não conseguiu evitar a decadência diante da ascensão da família Sima (7), que fundou o reino de Jin. Com o passar do tempo, o império se fragmentou novamente, e entre o Norte e o Sul surgiram doze novos Estados — entre eles Song, Qi, Liang e Chen. O poder mudou de mãos muitas vezes, até que o grande Império Sui restaurou, ainda que por pouco tempo, a unidade do mundo. Infelizmente, um de seus herdeiros tornou-se um tirano e mergulhou o povo em sofrimento. Foi então que a família Li — à qual pertence o senhor que hoje nos governa — se ergueu para derrubá-lo, fundando o grandioso Império Tang. Após a morte de Gaozu, o trono passou a Shimin, nosso atual soberano, a quem o Céu concedeu virtudes tão elevadas que os rios correm límpidos e os mares permanecem serenos. Sua sabedoria e benevolência são exaltadas por todos os súditos. Quanto à morte e ao posterior retorno à vida do imperador, tudo começou com um dragão que vivia ao norte de nossa capital, Chang’an. Ele era responsável por controlar as chuvas, mas se recusou a fornecer a quantidade de água combinada com a terra, desobedecendo às ordens divinas. Por essa insolência, foi condenado à morte. Desesperado, o dragão apareceu em sonhos ao nosso soberano, implorando por clemência. O imperador prometeu interceder em seu favor e buscar o perdão celestial. No dia marcado para a execução, mandou chamar ao palácio o funcionário encarregado de cumprir a sentença. Seu plano era simples: distraí-lo com uma longa partida de xadrez, fazendo com que perdesse a hora da execução. No entanto, quando o sol chegou ao ponto mais alto do céu, o funcionário adormeceu — e, enquanto dormia, sonhou que empunhava a espada e decapitava o dragão, o que acabou acontecendo no mundo real.

— De onde era esse funcionário de que fala? — perguntou o rei, franzindo a testa em sinal de reprovação.

— Do nosso próprio reino — respondeu Sanzang. — Na verdade, ele ocupava o cargo de primeiro-ministro. Pertencia à família Wei e chamava-se Zheng. Era um homem de vasto conhecimento em astronomia e geografia, capaz de distinguir perfeitamente o yin do yang. Por mais incrível que pareça, era um ministro competente, que manteve o império unido e conduziu os assuntos de Estado com retidão. Caso contrário, como teria conseguido matar o dragão do rio Jing enquanto dormia? O mesmo sentiu-se enganado e, assim que chegou à região das sombras, acusou nosso imperador de ter faltado à sua promessa de poupar-lhe a vida.  Isso foi o que causou a morte de nosso nobilíssimo soberano. Antes de partir para o além, Wei Zheng escreveu uma carta ao juiz Cui Jue, que habita a Cidade da Morte. Graças a essa recomendação, o Imperador Tang conseguiu voltar à vida três dias depois, pois, em consideração à amizade que o unia a Wei Zheng, o juiz Cui Jue teve a bondade de acrescentar vinte anos à idade recém-completada do imperador. Em gratidão, o imperador celebrou uma grande cerimônia em memória de todos os mortos e encarregou este humilde monge de atravessar quantas nações fossem necessárias para obter, junto ao Patriarca Budista, as três cestas de escrituras Mahayana. Só esses ensinamentos, como bem sabemos por experiência, são capazes de libertar do sofrimento os espíritos que habitam o Reino das Sombras.

— Verdadeiramente, o reino de onde vem é um reflexo do que existe além das nuvens! — exclamou o rei, suspirando. — Que soberano virtuoso e que ministros competentes! Entre eles e nós não há nem comparação. Vejam só: estou doente há uma eternidade, e nenhum de meus funcionários conseguiu encontrar a cura para meus males.

O mestre lançou um olhar furtivo ao rei e percebeu que, de fato, seu rosto apresentava uma alarmante coloração amarelada e o seu corpo se mostrava extremamente fraco. Era a imagem de alguém prestes a atravessar os portões da morte. Quando Sanzang pensou em perguntar ao rei sobre a natureza de sua enfermidade, o mestre de cerimônias da corte entrou e convidou-o a sentar-se à mesa. O rei fez um gesto com a mão e ordenou:

— Sirvam o banquete no Salão das Nuvens Aromáticas. Desejo comer com o Mestre da Lei.

Com grandes demonstrações de respeito, Sanzang agradeceu a delicadeza e retirou-se com Sua Majestade. Por ora, não falaremos mais dele. 


Falaremos, sim, do Peregrino, que pediu ao Monge Sha, em seu alojamento no Pavilhão dos Tradutores, que preparasse o chá e alguns pratos vegetarianos para acompanhar o arroz.

— Não há problema em cozinhar o arroz e preparar o chá — respondeu o Monge Sha —, mas temo não saber como preparar uma refeição vegetariana com tudo isso.

— Como pode dizer isso? repreendeu-o o Peregrino.

— Porque não temos óleo, nem sal, nem vinagre, nem molho de soja — explicou o Monge Sha.

— Isso é fácil de resolver— replicou o Peregrino. — Pegue algumas moedas e mande Bajie ir comprar.

— Não, não — disse Bajie imediatamente, mais por não querer se incomodar do que por medo do que pudesse acontecer. — É melhor que eu não vá. Sou feio demais para andar por aí sozinho. Se acontecer alguma coisa, o mestre irá me culpar, e não quero que isso aconteça.

— Não está exagerando um pouco? — repreendeu-o Peregrino. — Por que haveria algum problema, se você não vai mendigar nem roubar?

— Como assim? — protestou Bajie. — Não viram o que aconteceu quando deixei o focinho à mostra? Todo mundo fugiu apavorado. Se eu for ao mercado, podem apostar que mais de um desmaiará de susto.

— Não precisa ir ao mais movimentado — sugeriu o Peregrino. — Por que não tenta naquele outro que há por aqui perto?

— Desculpe, mas não o vi — respondeu Bajie. — Como o mestre pediu para não causarmos alvoroço, andei o tempo todo com os olhos grudados no chão.

— Pois deveria ter reparado na quantidade de armazéns, lojas de arroz, moinhos e teares ao longo da rua — explicou o Peregrino —. Isso sem contar os estabelecimentos menores, como casas de chá, barracas de macarrão e bancas de bolos e pães no vapor. Há centenas de restaurantes, todos orgulhosos de suas sopas de arroz, especiarias finas e verduras frescas. E ainda há milhares de bandejas com pastéis exóticos, pratos ao vapor, rolinhos, frituras e docinhos de mel, entre outras guloseimas. Que tal se, em troca desse pequeno favor que pedimos, deixarmos você provar algumas dessas maravilhas?

Ao ouvir isso, Bajie ficou com água na boca e começou a babar como uma criança. Incapaz de se conter, deu um salto e respondeu:

— De acordo, mas que fique combinado: da próxima vez que eu precisar de algo, tem que me ajudar e não fazer corpo mole.

— Monge Sha — disse o Peregrino, escondendo o riso —, cozinhe o arroz enquanto eu saio para comprar alguns temperos.

Percebendo que ele só queria zombar de Bajie, o Monge Sha entrou na brincadeira e disse:

— Vão logo. Comprem bastante e comam bem.

Bajie pegou uma vasilha e dirigiu-se à porta, acompanhado pelo Peregrino. Ao vê-los sair, os dois funcionários perguntaram:

— Pode-se saber para onde vão?

— Estamos indo comprar alguns temperos — respondeu o Peregrino.

— Então sigam pela esquerda e dobrem à direita ao avistarem uma torre de vigilância — aconselhou um deles. — Lá fica a loja dos Cheng, que tem absolutamente de tudo: óleo, sal, molho de soja, vinagre, gengibre, pimenta, chá…

Sem esperar o fim da explicação, os dois irmãos deram as mãos e seguiram as instruções. Passaram por vários restaurantes e casas de chá, mas o Peregrino não entrou em nenhum deles.

— Para que tanta frescura? — protestou Bajie. — Pode-se saber por que nenhum desses lugares te agrada? Vamos sentar e comer alguma coisa, de uma vez.

— Não é bom desperdiçar dinheiro — respondeu o Peregrino, disposto a fazê-lo caminhar mais um pouco. Além disso, tenho certeza de há coisas bem melhores um pouco mais adiante.

Sem que percebessem, grupos cada vez maiores de curiosos começaram a acompanhá-los. Ao contornar a torre de vigilância, a multidão era tão densa que mal podiam dar um passo. Parecia até que o caminho tinha sido bloqueado de propósito.

— Acho melhor não continuarmos — disse Bajie. — Não está vendo toda essa gente? Pode ser que não gostem de monges estrangeiros e acabem nos prendendo. O que será de nós se isso acontecer?

— Não diga bobagens! — repreendeu o Peregrino. — Monges não quebram a lei. Por que iriam querer nos prender? Além disso, a loja dos Zheng está logo adiante. Vamos passar pelo meio da multidão e pronto.

— De jeito nenhum! — exclamou Bajie. — Não vou me meter em confusão. Se eu tentar passar por essa multidão e minhas orelhas se abrirem no meio do povo, todos cairão no chão assustados. Se alguns morrerem pisoteados, eu estarei perdido!

— Se é assim — concluiu o Peregrino —, o melhor é você ficar aqui de costas para a parede e permanecer quieto, enquanto eu vou comprar o que precisamos. Na volta, pegamos o macarrão e os pãezinhos, combinado?


Sem dizer uma palavra, Bajie entregou a vasilha ao Peregrino e encostou o focinho na parede, ficando tão imóvel quanto o tronco de uma árvore centenária. O Peregrino abriu caminho entre a multidão como pôde e percebeu que as pessoas reunidas ao pé da torre não estavam ali para bloquear a passagem, mas para ler uma proclamação que alguém havia afixado na parede.

Arregalando seus olhos flamejantes  o máximo que pôde, o Peregrino fixou suas pupilas de diamante no documento e leu o seguinte:

"Desde o momento em que subiu ao trono o senhor do Reino Púrpura, situado no coração do Continente de Aparagodaniya, a paz estendeu-se a cada recanto do império e todos os habitantes começaram a desfrutar de uma prosperidade jamais vista nestas terras. Os assuntos de Estado, no entanto, tomaram um rumo inesperado quando nosso governante adoeceu gravemente, e sua recuperação prolongou-se por muito mais tempo que o inicialmente previsto. O conselho de médicos de nossa digníssima nação encarregou-se a todo momento de sua cura, mas os valiosíssimos remédios que lhe foram administrados mostraram-se com o tempo totalmente ineficazes. Vimo-nos, portanto, obrigados a publicar esta proclamação, convocando todos os que possuam conhecimentos médicos, independentemente de origem ou condição social, para que pratiquem suas artes curativas e livrem nosso senhor da prostração em que tão estranha doença o lançou. Nosso soberano promete entregar metade de seu reino a quem conseguir devolver-lhe a saúde. Eis o motivo da presente proclamação pública."

— Como diziam os antigos, “só quem se move alcança a glória” murmurou o Peregrino, empolgado— Não há motivo para ficarmos naquele sombrio Pavilhão dos Tradutores. E quem se importa com comidas saborosas? Até mesmo a questão de obter as escrituras pode muito bem esperar dois ou três dias. Acho que chegou a hora de pôr em prática meus conhecimentos médicos.

Deixando a vasilha no chão, o Peregrino pegou um punhado de pó e o lançou para o alto, recitando um feitiço de invisibilidade. Num instante, seu corpo desapareceu, podendo assim arrancar com facilidade o papel contendo a proclamação. Em seguida, virou-se para o sudoeste, abaixou a cabeça e, enchendo os pulmões, soprou com força. Num piscar de olhos, um vento furioso se levantou, dispersando a multidão de curiosos. 


Somente Bajie permaneceu ali, com o focinho encostado na parede. O Peregrino aproximou-se e percebeu que ele havia adormecido. Dobrando cuidadosamente a proclamação, colocou-a dentro de sua túnica sem que ele percebesse. 


Depois, deu meia-volta e, com duas passadas largas, chegou ao Pavilhão dos TradutoresPor ora, deixaremos o Peregrino de lado e voltaremos à multidão reunida ao pé da torre de vigilância.

Quando o vendaval os atingiu, todos cobriram a cabeça com os braços e fecharam os olhos, assustados. Estranharam que a tempestade tivesse passado tão rápido — mas ficaram ainda mais surpresos ao perceber que a proclamação imperial havia desaparecido. A guarda da proclamação era formada por doze eunucos e doze guardas reais, os mesmos que a haviam recebido das mãos do imperador menos de três horas antes. Temendo serem castigados por sua falha, começaram a procurá-la em pânico. Um suor frio cobria seus corpos quando finalmente avistaram um rolo de papel saindo da túnica de Bajie. Num só impulso, lançaram-se sobre ele, gritando furiosos:

— Quer nos explicar por que arrancou essa proclamação?

Bajie levantou a cabeça, confuso. Ao fazer isso, soltou o focinho, e os guardas imperiais recuaram, tremendo como se tivessem visto um fantasma. Bajie tentou aproveitar a confusão para fugir, mas os mais corajosos o cercaram, dizendo:

— Para onde pensa que vai, se não ao próprio palácio real? Você arrancou a proclamação real convocando os médicos! Pois então será você quem irá curar Sua Majestade!

— Eu não arranquei nada! — protestou Bajie, cada vez mais nervoso. — Se alguém fez isso, deve ter sido o filho de vocês, não eu. Além disso, não sei nada sobre curar ninguém. Por que não pedem a um dos netos de vocês?

— Chega de histórias! — gritou um dos guardas. — Quer nos explicar o que é esse papel no seu peito?

Bajie então baixou os olhos e viu que, de fato, tinha um rolo de papel saindo do peito de sua túnica. Ele o esticou e, ao ler o seu conteúdo, rangeu os dentes de raiva e exclamou, furioso:

— Isso só pode ser coisa daquele maldito macaco!

Sua ira era tanta que teria rasgado o documento em pedaços na frente de todos, se não o tivessem impedido

Ele ficou tão furioso que teria rasgado o documento, se os guardas não o tivessem impedido.

— Você está acabado! — gritaram, furiosos. — Essa é uma proclamação emitida por Sua Majestade! Como se atreve a tentar rasgá-la? Só pode haver uma explicação. Você deve ser um médico excepcional, tão seguro de si que confia em seus conhecimentos para devolver a saúde ao nosso rei. Venha conosco, depressa!


— Vocês não entendem! — gritou Bajie, tentando se defender. — Não fui eu quem arrancou essa proclamação! Foi meu irmão, Sun Wukong! Ele resolveu pregar uma peça em mim colando esse papel em meu peito sem que eu percebesse! Se quiserem exclarecer essa história,  precisam ir atrás dele!

— Do que está falando? — gritaram os guardas, avançando sobre ele. — Nós não largamos um trabalho pela metade! Foi você quem arrancou a proclamação! Por que deveríamos prender outro, alguém que nem conhecemos? Gostando ou não, venha conosco ver o nosso senhor!

Sem pensar duas vezes, os guardas começaram a empurrá-lo e a puxá-lo, mas Bajie não se moveu. Parecia que tinha criado raízes no chão. Nem mesmo doze camponeses robustos conseguiram tirá-lo do lugar.

— Será que vocês não têm nada melhor para fazer? — zombou Bajie. — Devo avisá-los: se não pararem de me empurrar, vão me fazer perder a paciência e não irei responder pelo que pode acontecer.

Longe de acalmá-los, suas palavras só enfureceram ainda mais a multidão, que redobrou os empurrões e puxões contra o pobre Bajie. Entre os menos exaltados, estavam dois eunucos mais velhos, que comentaram:

— Por estranho que pareça, seu rosto e sua voz nos são familiares. Pode nos dizer de onde vem e por que tem a cabeça tão dura?

— Viemos das Terras do Leste — respondeu Bajie — e estamos a caminho do Paraíso Ocidental em busca das escrituras sagradas. Nosso mestre é o Monge Tang Sanzang, o Mestre da Lei, que firmou um pacto de irmandade com o Imperador dos Tang. Neste momento, ele está no palácio do governante deste reino, onde solicita que nosso documento de viagem seja carimbado. Eu vim até aqui porque faltavam alguns ingredientes para a nossa comida, e saí para comprá-los com meu irmão mais velho. Quando vimos a multidão reunida em volta da torre de vigilância, meu irmão mandou que eu ficasse aqui. Depois disso, não sei exatamente o que aconteceu, mas aposto que ele levantou um vendaval, arrancou a proclamação e a colou no meu peito sem que eu percebesse.

— Há menos de uma hora, vi entrar no palácio um monge de aparência saudável e rosto muito pálido — comentou um dos eunucos. — Suponho que seja o seu mestre.

— Isso mesmo — confirmou Bajie rapidamente.

— E para onde foi seu irmão mais velho? — perguntou o outro eunuco.

— Somos quatro ao todo — explicou Bajie. — Como disse, o mestre foi cuidar do carimbo em nosso documento. O resto de nós ficou no Pavilhão dos Tradutores cuidando do nosso cavalo e da nossa bagagem. Imagino que, depois de pregar essa peça em mim, meu irmão tenha voltado para lá.

— Parem de incomodá-lo! — ordenaram os eunucos aos guardas imperiais. — Vamos com ele até a mansão dos dignitários estrangeiros e verificaremos se tudo o que nos contou é verdade.

— Ufa! — exclamou Bajie, aliviado. — Ainda bem que essas duas senhoras são mais compreensivas que os demais.

— Este monge não tem respeito por nada! — gritaram os guardas, furiosos. — Não sente vergonha de chamar duas pessoas tão respeitáveis de “senhoras”? Pelo menos podia tê-los chamado de pais!

— São vocês que não sabem com quem estão lidando — retrucou Bajie, em tom de gozação. — Não acham mais apropriado chamá-los de senhoras do que de pais? Que eu saiba, eunucos não têm filhos.

— Chega de discussão! Vão logo procurar o irmão mais velho dele! — gritou a multidão, que já ultrapassava quinhentas pessoas.

Juntos, dirigiram-se ao pavilhão em meio a uma algazarra de vozes e gritos. Ao chegarem, Bajie parou de repente e advertiu:

— Esperem aqui e não façam tanto barulho. Meu irmão não é tranquilo como eu. Tem um temperamento bem explosivo. Quando o virem, o melhor é cumprimentá-lo com respeito e chamá-lo de “Honorável Sun”. Só assim será possível, não digo convencê-lo, mas ao menos trocar algumas palavras com ele.

— Se o seu irmão for capaz de curar nosso rei — disseram os eunucos — herdará metade do reino, e todos lhe mostrarão respeito.

Ignorando o aviso de Bajie, a multidão ficou do lado de fora, fazendo barulho, enquanto os eunucos e guardas reais entravam silenciosamente no pavilhão. Naquele momento, o Peregrino contava ao Monge Sha a peça que havia pregado em Bajie, e suas gargalhadas ecoavam por todo o palácio. Bajie avançou sobre ele furioso e, agarrando sua roupa, gritou:

— Que falta de vergonha! Primeiro me engana com essa história de macarrão, bolos e pãezinhos para eu comer, e depois levanta um vendaval para arrancar a proclamação real e escondê-la dentro da minha túnica. Acha que isso é justo? Isso não é maneira de tratar um irmão!

— Seu idiota, deve ter pegado o caminho errado e ido parar em outro lugar! — respondeu o Peregrino, sem conter o riso. — Depois de comprar o que precisávamos, passei pela torre e não consegui te achar, então vim na frente. Como pode me acusar de arrancar alguma proclamação?

— Não finja que não sabe — advertiu Bajie. — Os guardas encarregados de protegê-la estão aqui.

Mal havia terminado de falar, quando surgiram os militares e eunucos, que se inclinaram respeitosamente e disseram:

— Honorável Sun,  Sua Majestade teve muita sorte hoje, pois o Céu o enviou até nós.  Tenha a bondade de nos acompanhar até o palácio. Temos certeza de que mostrará sua grande habilidade e usará seu notável conhecimento médico para ajudar o nosso soberano a reestabelecer sua saúde. Saiba que, se conseguir curá-lo, receberá metade de todo este reino.

O Peregrino assumiu uma postura mais séria e, pegando o documento real nas mãos, perguntou:

— São vocês os responsáveis por guardar esta proclamação?

— Sim — responderam os eunucos, prostrando-se e batendo a cabeça no chão repetidamente. — Nós pertencemos ao Departamento de Protocolo, enquanto estes que nos acompanham são membros da guarda pessoal do rei.

— Reconheço que fui eu quem arrancou esta proclamação que convoca os melhores médicos do mundo — admitiu o Peregrino. — Fiz isso para que meu irmão os trouxesse até aqui. Não nego que seu senhor esteja doente, mas, como diz o provérbio, “ninguém valoriza remédios baratos nem estima médicos que não procurou”. Voltem ao palácio e, se ele quiser que eu o cure, que venha me pedir pessoalmente. Garanto que, com um estalar de dedos, ele ficará completamente curado.

Ao ouvir isso, todos os eunucos ficaram boquiabertos.

— Uma afirmação como essa só pode ser feita por alguém que realmente sabe o que está fazendo — disse um dos guardas do palácio. — Enquanto metade de nós vai informar o rei sobre o ocorrido, o restante ficará aqui para que ninguém volte atrás no que acabamos de combinar.

Quatro eunucos e seis guardas seguiram para o palácio. Sem esperar para serem anunciados, ajoelharam-se diante dos degraus de jade e disseram:

— Felicitamos Vossa Majestade pela imensa sorte que está prestes a receber!

O rei havia acabado de comer e conversava com o monge Tang. Ao ouvir a inesperada felicitação, ergueu a cabeça e perguntou:

— Pode-se saber do que estão falando?

— Nesta manhã, seus humildes servidores respondeu um dos eunucos — saíram para divulgar sua convocação por médicos competentes e dignos. Ao afixarmos a proclamação na torre de vigilância, tivemos a enorme sorte de encontrar o Honorável Sábio Sun, um monge das distantes Terras do Leste que segue em busca das escrituras sagradas. Atualmente, ele está hospedado no Pavilhão dos Tradutores e exige que, em troca de devolver-lhe a saúde, Vossa Majestade vá pessoalmente pedir que ele o cure. Ele nos garantiu que, com um simples passar de mãos pelo corpo, o senhor ficará completamente livre de sua doença.

O rei saltou de alegria e, voltando-se para o monge Tang, perguntou:

— Quantos nobres discípulos possui, Mestre da Lei?

— Este humilde monge — respondeu Sanzang, juntando respeitosamente as mãos à altura do peito — possui três discípulos bastante travessos.

— E qual deles possui conhecimento das artes da cura?? — insistiu o rei.

— Para ser sincero — respondeu Sanzang —, meus discípulos são apenas homens rudes das montanhas. Tudo o que sabem fazer é guiar o cavalo, carregar a bagagem, atravessar rios e conduzir este pobre monge pelas montanhas. Às vezes, quando cruzamos regiões perigosas, conseguem subjugar demônios e monstros, e até domar dragões e tigres. Mas, que eu saiba, nenhum deles entende nada de medicina.

— Como pode ser tão modesto, Mestre da Lei? — exclamou o rei, admirado. — Foi desígnio do Céu que entrassem em meus domínios justamente no dia da audiência pública. Se, como diz, nenhum deles possui conhecimentos médicos, como explica que tenham arrancado minha proclamação e exigido que eu vá encontrá-los pessoalmente?

Sem esperar pela resposta, o rei ditou a seguinte ordem:

— Que os funcionários de maior patente, tanto civis quanto militares, roguem em meu nome ao Sábio Sun que venha à corte e cure minha doença. Eu gostaria muito de ir pessoalmente, mas meu corpo está tão debilitado e minhas forças tão esgotadas que não posso sair do palácio. É meu desejo que o tratem com a máxima cortesia e que a todo momento se dirijam a ele como "Honorável Sun". Saúdem-no com a cerimônia reservada aos monarcas.

Sem perder tempo, todos os funcionários imperiais dirigiram-se ao Pavilhão dos Tradutores, acompanhados pelos eunucos e guardas do palácio. Ao chegarem à mansão dos dignitários estrangeiros, formaram filas, seguindo rigorosamente a ordem de suas patentes, e prestaram suas reverências ao Peregrino. Desconcertado, Bajie correu para dentro do palácio, enquanto o Monge Sha saiu para um dos pátios e se encostou literalmente à parede. O Grande Sábio, por sua vez, permaneceu impassível no centro do salão.

— Maldito macaco! — resmungou Bajie para si mesmo, depois de recuperar a compostura. — Como  é possível que ele não retribua a saudação de tantos funcionários ilustres? Está claro que a fama subiu à cabeça dele, caso contrário, como explicar que nem mesmo se levante do lugar?

Assim que a cerimônia terminou, os funcionários se organizaram em duas filas e apresentaram ao Peregrino o seguinte comunicado:

— Comunicamos, Honorável Sun, que somos oficiais de confiança do soberano do Reino Púrpura. Por decreto real, viemos prestar-lhe as devidas homenagens e convidá-lo ao palácio para que possa atender Sua Majestade e curá-lo.

— Por que ele mesmo não veio pessoalmente? — perguntou o Peregrino, finalmente se pondo de pé.

— Porque ele está tão debilitado que não tem forças nem para cavalgar ou usar sua carruagem — respondeu um dos funcionários. — Por isso, ele nos ordenou prestar-lhe homenagens, como se fosse nosso próprio soberano, curvar-nos diante de você e convidá-lo a dirigir-se até o palácio, para que possa atender Sua Majestade e curá-lo.

— Nesse caso — concluiu o Peregrino —, os acompanharei com muito prazer.

Os funcionários se dividiram em grupos, respeitando rigorosamente sua hierarquia, e iniciaram o retorno ao palácio. O Peregrino os seguiu com passos calmos, ajeitando suas vestes antes de caminhar.

— Em que confusão você pretende nos meter agora? — perguntou Bajie, preocupado.

— Em nenhuma — respondeu o Peregrino. — Apenas quero que fiquem aqui e recebam os remédios.

— Que remédios? — exclamou o Monge Sha.

— Os que nos enviarão em breve — respondeu o Peregrino. — Aceitem-nos sem questionar e guardem-nos até que eu volte para buscá-los.

Os dois fizeram um gesto de assentimento e retornaram ao interior do pavilhão. Por enquanto, não falaremos mais deles. Falaremos, sim, do Peregrino, que, ao chegar à corte acompanhado de todos aqueles soldados e funcionários, foi imediatamente conduzido à presença do rei.

A cortina de pérolas não tardou a se erguer e, abrindo seus olhos de fênix, Sua Majestade escrutinou todos os recém-chegados com suas pupilas de dragão e perguntou com sua boca de ouro:

— Qual de vocês é o Grande Sábio Sun?

— Sou eu!  respondeu o Peregrino, dando um passo à frente.

Ao ouvir sua voz rouca, quase como a de um espírito, e ver sua aparência inconfundível de deus do trovão, o rei levou um susto tão grande que quase caiu do trono. Felizmente, suas esposas e concubinas conseguiram segurá-lo a tempo e conduzi-lo rapidamente aos aposentos internos. O rei ficou tão perturbado que só conseguia murmurar:

— Que susto ! Que susto!

— Como esse monge pôde demonstrar tão pouco respeito? — comentaram entre si os funcionários, escandalizados. — É inconcebível que, além de arrancar a proclamação, tenha assustado nosso monarca dessa forma.

— Vocês não sabem o que dizem — repreendeu-os o Peregrino, voltando para eles seu rosto sorridente. — Se é assim que tratam as pessoas, garanto que seu rei continuará doente por mais mil anos, no mínimo.

— Está completamente louco! — exclamaram os funcionários em coro. — Como ele poderia continuar doente por mil anos, se a vida de um homem nem chega a tanto?

— Vossa Majestade é hoje um homem enfermo — explicou o Peregrino —, mas, quando morrer, se tornará um espírito doente e continuará assim na próxima reencarnação. Agora compreendem que o que disse é verdade?

— Que macaco mais mal-educado! — exclamaram novamente os funcionários, ainda mais irritados. — Como ousa falar tantas bobagens sobre alguém tão importante como nosso senhor?

— Quem disse que são bobagens? — repetiu o Peregrino, soltando uma gargalhada. — Escutem bem: não existe arte mais difícil do que a medicina. É preciso ter uma mente ágil e um senso aguçado de observação. Quatro qualidades são indispensáveis a qualquer médico: saber analisar o pulso, ouvir com atenção, fazer as perguntas certas e interpretar corretamente os dados observados. Se faltar uma só delas, qualquer tratamento estará condenado ao fracasso. Os que praticam medicina devem, de imediato, compreender a constituição do paciente: se é gordo ou magro, se a pele é seca ou úmida, se dorme bem ou não. É preciso também avaliar seu estado emocional, tanto pelo que diz quanto pelo tom de voz. Além disso, é necessário identificar a causa e a duração da doença, considerando o que ingere, como se alimenta e como elimina. Por fim, deve-se calibrar os canais vitais pelo tipo de pulso apresentado — superficial, profundo, interno ou externo (8). Sem essas quatro qualidades, é praticamente impossível livrar alguém da enfermidade que o aflige.

Entre os funcionários, estava o médico real, que exclamou admirado ao ouvir tal dissertação:

— O que esse monge disse é absolutamente verdadeiro. Até mesmo os imortais, ao examinar um paciente, precisam analisar o pulso, ouvir atentamente, fazer as perguntas certas e interpretar os sinais. A posse dessas quatro qualidades é o que distingue deuses e sábios dos mortais comuns.

Essas palavras convenceram imediatamente os demais funcionários de que o Peregrino não era um charlatão qualquer. Animados, enviaram ao rei a seguinte mensagem:

— Antes de determinar a natureza da doença e prescrever o remédio adequado, o mestre deseja aplicar os princípios da análise do pulso, da escuta, da pergunta e da interpretação.

O rei jazia em seu leito, tão exausto que só conseguiu sussurrar:

— Ordenem que ele se retire. Não suporto ver rostos desconhecidos ao meu redor.

Desanimado, o funcionário que recebeu o recado voltou de cabeça baixa e anunciou ao Peregrino:

— Nosso senhor ordena que saia imediatamente do palácio, pois não suporta ver nenhum rosto desconhecido perto dele.

— Nesse caso — concluiu o Peregrino —, terei que recorrer à técnica do fio esticado para tomar seu pulso.

— Todos já ouvimos falar dessa técnica, mas nunca vimos ninguém praticá-la —  comentaram entre si os funcionários, maravilhados. — Precisamos comunicar isso imediatamente a Sua Majestade.

O responsável por transmitir a mensagem voltou aos aposentos internos e disse:

— Senhor, já que não deseja ver o mestre, ele solicita poder tomar vosso pulso com fios de ouro.

— Estou doente há três anos e, nesse tempo, ninguém usou uma técnica tão surpreendente — disse o imperador para si mesmo. — Está bem — acrescentou em voz alta —, deixem-no entrar.

— Nosso soberano concede permissão para que lhe tome o pulso, aplicando a técnica do fio esticado. É necessário, portanto, Honrado Sun, que se dirija aos aposentos privados de Sua Majestade — comunicou o funcionário, aproximando-se do Peregrino.

O Peregrino partiu imediatamente e, pouco depois, encontrou o monge Tang, que o repreendeu, dizendo:

— Maldito macaco! Acabou me colocando em apuros!


— Como pode dizer isso? — respondeu o Peregrino, sorrindo— O que fiz foi trazer mais prestígio para nós. 

— E desde quando consegue curar alguém? — gritou Sanzang. — Em todos esses anos ao meu lado, eu nunca o vi curar uma só pessoa! Você desconhece o nome dos remédios, e que eu saiba, nunca estudou nenhum livro de medicina. Como pode ser tão imprudente e nos meter nessa confusão?

— Parece que o senhor desconhece os conhecimentos que possuo — respondeu o Peregrino, ainda sorrindo.  Acredite ou não, eu conheço certas ervas capazes de curarem as doenças mais graves. O importante agora é que eu o cure. Mas, mesmo que ele morra, o máximo que podem me acusar é de homicídio culposo por erro médico. Este não é um crime capital! Então, pra que tanto medo? Acalme-se e sente-se, enquanto testo minha habilidade em tomar o pulso de Sua Majestade.

— Como pode falar tanta bobagem retrucou Sanzang — se nunca leu o Livro das Questões Fundamentais, o Clássico dos Problemas Médicos, a Farmacopeia ou o Mistério dos Pulsos (9)? Já leu alguns dos comentários que foram feitos sobre eles? Como se atreve, então, a falar de técnicas tão complexas quanto a do fio esticado? 

— Não se preocupe — insistiu o Peregrino. — Sempre levo comigo alguns fios de ouro. Verá como tudo irá correr bem.

Em seguida, arrancou três pelos de sua cauda e exclamou:

— Transformem-se!

Instantaneamente, os pelos se transformaram em três fios de vinte e quatro nós de comprimento, número que correspondia perfeitamente aos períodos solares. Sem perder o sorriso, mostrou-os ao mestre e perguntou:

— O que acha dos meus fios de ouro?

— Se não se importam — disse um dos eunucos —, seria melhor que encerrassem a conversa e entrassem para tomar o pulso de Sua Majestade.


O Peregrino despediu-se do monge Tang e entrou nos aposentos reais, acompanhado pelo eunuco. Cumpriu-se, assim, o ditado:

"A fórmula secreta da mente pode curar um reino;
Seu método misterioso assegura longa vida".

Por enquanto, não sabemos se o Peregrino conseguiu descobrir qual a enfermidade que afligia o rei ou se encontrou o remédio adequado. Quem desejar saber o que aconteceu terá que escutar atentamente as explicações que serão oferecidas no próximo capítulo.


CAPÍTULO LXIX EM BREVE


CLIQUE NO BANNER ABAIXO PARA RETORNAR AO



Notas do Capítulo LXVIII

  1. Expressão usada para designar médicos de grande renome, que se destacavam pela maestria em sua arte. Segundo o Zuo Zhuan (左传), essa expressão tem origem em um comentário feito por Gao Jiang (高姜), senhor do estado de Qi;
  2. O Pavilhão dos Tradutores (chamado Huidong Guan — 会同馆) estava subordinado diretamente ao Ministério da Guerra. Conforme se depreende do próprio texto, tratava-se de um local de hospedagem destinado a enviados estrangeiros;
  3. Referência aos lendários Três Augustos e Cinco Imperadores (三皇五帝, Sān Huáng Wǔ Dì), os soberanos míticos que, segundo a tradição chinesa, trouxeram à humanidade as artes, as leis e a sabedoria que fundaram a civilização;
  4. Yu, o Grande (大禹), que começou a reinar por volta de 2205 a.C., foi o fundador da Dinastia Xia. Já Cheng Tang (成汤), que ascendeu ao trono em torno de 1766 a.C., foi o fundador da Dinastia Shang;
  5. O rei Cheng (周成王, Zhou Cheng Wang, 1116–1080 a.C.) e seu tio, o Duque de Zhou (周公旦, Zhou Gong Dan), viveram na época da lendária Dinastia Zhou;
  6. Antigamente, o distrito de Bei, localizado na atual província de Jiangsu, fazia parte do Reino de Lu, terra natal de Liu Bang (刘邦), o homem que se rebelou contra o estado de Chu e fundou a Dinastia Han;
  7. Sima (司马) era o sobrenome da família que fundou a Dinastia Jin, também chamada Jin Wen, no ano 265 d.C;
  8. Chen (沉, profundo), Fu (浮, superficial), Biao (表, interno) e Li (里, externo) são quatro dos muitos termos utilizados pela medicina tradicional chinesa para classificar os diferentes tipos de pulso humano, permitindo assim avaliar o estado geral de saúde de uma pessoa;
  9. Os livros clássicos da medicina tradicional chinesa mencionados são obras fundamentais do pensamento médico antigo. O primeiro foi escrito durante a Dinastia Han e é atribuído a Bian Que (扁鹊, 255 a.C.); o segundo, provavelmente, é uma obra de Li Shizhen (李时珍, 1518–1593), da Dinastia Ming; já o último pode ser um texto da Dinastia Song, ou uma compilação realizada no século IX por Wang Shuhe (王叔和).


  • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
  • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
fontes consultadas para a pesquisa:

PARTICIPE! Deixe seu comentário, elogio, crítica nas publicações. Sua interação é importante e ajuda a manter o blog ativo! Para mais conteúdo, inclusive postagens exclusivas, siga o Portal dos Mitos no seu novo Instagram: @portaldosmitosblog
Ruby