5 de junho de 2023

A Jornada ao Oeste: Capítulo V

۞ ADM Sleipnir

Arte de Moyi Zhang


CAPÍTULO V:

O GRANDE SÁBIO ROUBA O ELIXIR DA IMORTALIDADE E ATRAPALHA A CELEBRAÇÃO DO FESTIVAL DO PÊSSEGO. OS DEUSES LIDERAM UMA CAMPANHA PARA CAPTURAR O MONSTRO REBELDE DO CÉU

 Apesar de sua alta posição, o Grande Sábio ainda era um macaco selvagem. Ele não se importava com a classificação de seu grande título, ou com o tamanho de seu salário. Ele estava satisfeito por ter seu nome inscrito no Livro dos Altos Ofícios Imperiais. Em sua residência oficial não lhe faltava absolutamente nada, desfrutando do atendimento que seus servos lhe prestavam. Suas únicas preocupações eram comer três refeições por dia e dormir profundamente à noite. Desprovido de deveres e responsabilidades, passava o tempo visitando seus amigos em seus esplêndidos palácios, expandindo continuamente seu círculo de amizades e estabelecendo incessantemente novas alianças com seus iguais. 

Quando ele se encontrava com os Três Puros (1), dirigia-se a eles com um respeitoso "Vossa Reverência"; quando ele se deparava com os Quatro Imperadores (2), ele o fazia com um submisso "Vossa Majestade". Quanto aos Nove Planetas (3), os Generais dos Cinco Pontos Cardeais (4), as Vinte e Oito Constelações (5), os Quatro Guardiões do Mundo (6), as Doze Divisões Horárias (7), os Cinco Anciãos das Cinco Regiões (8), os Espíritos Estelares de Todo o Universo e os incontáveis ​​deuses da Via Láctea, ele os chamava de irmãos e os tratava de maneira fraterna. Às vezes visitava os que viviam na zona leste, para no dia seguinte visitar os que moravam na zona oeste. Quando se cansava de festas e conversas, caminhava sem rumo pelas nuvens, sem seguir um itinerário específico.

Certa manhã, quando o Imperador de Jade realizava sua audiência habitual, o imortal taoísta Hsü Ching-Yang se apresentou diante dele e, após tocar repetidamente a testa no chão em sinal de reverência, disse visivelmente preocupado:

— O Grande Sábio, Sósia do Céu, não possui nenhuma responsabilidade e desperdiça lamentavelmente seu tempo. Ele fez amizade com todas as estrelas e constelações no céu, os quais ele chama de amigos, independentemente de sua posição ou cargo. Isso é francamente preocupante, pois a única coisa que pode resultar de tanta ociosidade é desordem e travessuras sem fim. Não seria prudente, para evitar tão infeliz possibilidade, atribuir-lhe algum tipo de responsabilidade?

O Imperador de Jade assentiu silenciosamente e imediatamente mandou chamar o Rei dos Macacos.

— Que promoção ou recompensa pensa em me dar, para me fazer chegar tão apressadamente à vossa presença, Majestade? — perguntou Wukong com cortesia.

— Nós percebemos respondeu o Imperador de Jade - que, como você não tem nada para fazer, sua vida tem sido um tanto preguiçosa, então decidimos confiar a você uma pequena responsabilidade. A partir de hoje você será responsável, em caráter puramente temporário, pelo cuidado do Jardim dos Pêssegos Imortais. Cuide deles dia e noite e que sua diligência não vacile por um único segundo. É o que todos nós esperamos de você.

O Grande Sábio curvou-se respeitosamente e, após agradecer, pediu permissão para partir. Ele estava tão animado que não conseguiu controlar sua impaciência e correu para dar uma primeira olhada no Jardim dos Pêssegos Imortais. Mas, para sua surpresa, o espírito da terra (9) responsável pelo jardim o deteve, perguntando-lhe:

— Posso saber para onde vai o Grande Sábio?

— O Imperador de Jade me confiou os cuidados deste local — respondeu Wukong — e vim inspecionar o estado em que se encontra. 

O espírito imediatamente abandonou sua atitude desconfiada e o cumprimentou com o respeito que merecia uma figura tão única quanto Wukong. Então ele chamou todos os servos encarregados de arar a terra, regar as árvores, cuidar dos pêssegos, limpar o solo, e eles entraram juntos no jardim, mas não antes de se prostraram diante do Grande Sábio.

Ao entrar no jardim, Wukong ficou surpreso com o que seus olhos viram. Todos os galhos estavam cheios de flores delicadas e frutos atraentes, cujo peso os fazia dobrar perigosamente. Pareciam atraentes bolas de ouro que competiam em beleza com o carmesim sensual dos botões. As árvores que os sustentavam estavam sempre floridas e constantemente dando frutos. Levaram mil anos para amadurecer e perduraram por mais dez mil. As que atingiram a maturidade primeiro tinham a vivacidade graciosa dos rostos avermelhados pelo vinho, enquanto as demais escondiam a promessa de frutos doces no verde opalino de sua pelagem, que brilhava sem parar sob o feitiço do sol.

Ao pé das árvores viam-se flores raras e ervas exóticas, às quais o fluxo constante das estações não removera a sua cor original. À direita e à esquerda viam-se também construções caprichosas de tal altura que seus picos se perdiam no próprio seio das nuvens. Aquele era, na verdade, um jardim plantado não por mãos humanas, mas pela Rainha Mãe do Lago de Jaspe (10). Depois de desfrutar por muito tempo de tão esplêndido espetáculo, o Grande Sábio voltou-se para o espírito e perguntou:

Você sabe o número exato de árvores que há aqui?

— Três mil e seiscentas respondeu o espírito. — Na parte frontal há um total de mil e duzentas árvores, mas suas flores são muito pequenas e seus frutos ainda não estão maduros. Esses pêssegos amadurecem uma vez a cada três mil anos, e aquele que tem a sorte de saboreá-los torna-se instantaneamente um imortal iluminado pelo Tao; seus membros ficam belos e seu corpo é fortalecido. Na parte central há outras mil e duzentas árvores com flores maiores e frutos mais doces, que amadurecem uma vez a cada seis mil anos. Aquele que os comer ascenderá ao céu com a névoa e nunca envelhecerá. Ao fundo, finalmente, crescem outras mil e duzentas árvores, com frutos de cor púrpura e caroços amarelos pálidos. São tão especiais que só amadurecem uma vez a cada nove mil anos e aquele que os comer poderá facilmente atingir a idade do céu, da terra, do sol e da lua.

Muito satisfeito com essas explicações, o Grande Sábio realizou naquele mesmo dia um inventário detalhado de todas as árvores, bem como dos templos e edifícios que existiam naquele jardim paradisíaco. Só quando havia completamente terminado, decidiu retirar-se para descansar nos seus aposentos. Porém, Wukong ficou tão extasiado com o que tinha visto que a partir daquele dia passou a ficar mais tempo naquele local do que no conforto do seu palácio, reduzindo consideravelmente as visitas aos seus amigos e suprimindo quase por completo suas viagens.

Um dia, ele ficou encantado ao ver que mais da metade dos pêssegos nas árvores mais velhas havia amadurecido, e ficou irreprimivelmente tentado a colher um e prová-lo. Mas o espírito do jardim e seus próprios servos nunca se separavam dele, e ele considerava inconveniente fazê-lo na frente deles. Então, ele  rapidamente elaborou um plano e, voltando-se para seus seguidores, perguntou-lhes:

— Por que vocês não me esperam lá fora, e me deixam descansar aqui um pouco?

Os imortais acataram seu pedido e deixaram o jardim. Com uma velocidade incrível, o Rei dos Macacos tirou seu barrete e sua túnica e subiu no topo da maior árvore que encontrou. Ele escolheu os maiores pêssegos maduros e, sentando-se e, um dos galhos, começou a comê-los com toda a calma. Somente quando já estava saciado, Wukong saltou de volta ao chão, vestiu suas roupas e ordenou que seus companheiros voltassem com ele para sua luxuosa mansão. Depois de dois ou três dias, ele repetiu a operação, novamente empanturrando-se de pêssegos.

Um dia, a Rainha Mãe decidiu abrir a câmara de seus incontáveis tesouros e oferecer um banquete por ocasião do Grande Festival dos Pêssegos Imortais, que seria realizado no Palácio do Lago de Jaspe. Muito animada com a iminência da data, ela ordenou que suas Donzelas do Manto Vermelho, Manto Azul, Manto Branco, Manto Preto, Manto Roxo, Manto Amarelo e Manto Verde pegassem uma cesta cada uma e fossem ao Jardim do Pêssego Imortal para colher pêssegos para o festival. As Sete Donzelas foram até o portão do pomar e, vendo ali o espírito , os servos e os oficiais do Sósia do Céu, disseram:

— Viemos à mando da Rainha Mãe colher alguns pêssegos para a festa.

— Esperem um momento, por favor - pediu-lhes o espírito. - Este ano as coisas mudaram um pouco. Para começar, o Imperador de Jade confiou o cuidado do jardim ao Grande Sábio, Sósia do Céu, e devemos informá-lo de sua chegada, antes de deixá-las passar.

— E onde está o Grande Sábio? — perguntaram as donzelas.

— No jardim, descansando - respondeu o espírito. - Estava se sentindo um pouco indisposto e deitou-se para dormir um pouco sob o frescor das árvores.

— Nesse caso, vamos procurá-lo o quanto antes concluíram as donzelas. — Estamos muito ocupadas e não podemos perder tempo.

O espírito entrou no jardim com ela mas, por mais que tentasse, não conseguia encontrar o Grande Sábio. No local onde se despedira dele, havia apenas um barrete e uma túnica jogados no chão. Embora olhasse para o topo dos pessegueiros, não conseguia ver ninguém, pois depois de empanturrar-se, Wukong se transformou em uma figura de alguns centímetros de altura e, ocultado pela folhagem, adormecia profundamente em um galho.

— Mesmo que não encontremos o Grande Sábio, não podemos voltar de mãos vazias afirmaram decididamente as donzelas imortais. — Estamos aqui por vontade imperial e, com muito pesar, não queremos decepcioná-la.

— Elas tem razão - disse um dos servos. — Seria faltar com a etiqueta e o respeito. Além disso, o Grande Sábio gosta de se movimentar e provavelmente foi visitar alguns amigos. Então o melhor é que vocês entrem agora para colher os pêssegos. Diremos a ele que vocês estiveram aqui quando o virmos.

As donzelas apreciaram tal gesto de confiança e foram ao bosque colher os frutos. Encheram dois grandes cestos com pêssegos das árvores plantadas na parte frontal do pomar e mais três com pêssegos da parte central, mas quando foram até os pessegueiros do fundo do pomar, descobriram que quase não haviam frutos neles, e a maior parte de suas flores jaziam lamentavelmente no chão. Os poucos pêssegos que ainda restavam eram tão verdes que estavam completamente cobertos de penugem e tinham um tamanho absolutamente ridículo. Os maduros haviam sido todos comidos pelo Rei dos Macacos. Apesar disso, as Sete Donzelas não desanimaram e continuaram sua busca. Por fim, em um galho que crescia na direção sul, encontraram um único pêssego, cuja cor era meio esbranquiçada e meio avermelhada.

Alvoroçadas com uma descoberta tão inesperada, a Donzela de Manto Azul puxou cuidadosamente o galho para baixo, e a Donzela de Manto Vermelho arrancou a fruta, deixando o galho retornar ao seu lugar. Mas aquele era exatamente o galho no qual o Grande Sábio descansava e, assustado com o movimento brusco, recuperou instantaneamente a sua forma habitual e rapidamente empunhou o seu bastão, que num abrir e fechar de olhos adquiriu a espessura de uma tigela de arroz.

— Posso saber de onde vieram, seus monstros infames?  perguntou Wukong, brandindo seu bastão mortal no ar. — Quem lhes deu permissão para vir e roubar meus pêssegos?

Aterrorizadas, as Sete Donzelas imediatamente se ajoelharam e tentaram explicar-lhe, com as vozes trêmulas:

— Acalme-se, Grande Sábio, por favor! Não somos monstros, mas as Sete Donzelas Imortais. Se ousamos entrar em seus domínios, é porque a Rainha Mãe nos enviou para colher as frutas que ela precisa para o Grande Festival dos Pêssegos Imortais, ocasião que ela aproveita para escancarar a câmara de seus inúmeros tesouros. Mas não pense que entramos sem consultar ninguém. Assim que chegamos, fomos ver o espírito do jardim, que nos informou de sua promoção e com quem tentamos em vão encontrá-lo. Com medo de que a Rainha Mãe não entendesse o motivo do nosso atraso, decidimos não esperar mais por você e começamos a colher os pêssegos. Sabemos que erramos e, por isso, agora humildemente pedimos seu perdão.

Tal explicação satisfez profundamente o Grande Sábio, que imediatamente transformou sua raiva em delicadeza e suplicou gentilmente:

— Por favor, levantem-se do chão, donzelas divinas. Quem a Rainha do Céu costuma convidar para seu banquete, quando abre a câmara de seus inúmeros tesouros?

— No ano passado responderam as donzelas, ainda trêmulas os convidados foram: Buda, os Bodhisattvas, os santos monges, os patriarcas do Céu Ocidental, Guanyin do Pólo Sul, o Santo Imperador da Grande Misericórdia do Oriente, os Imortais dos Dez Continentes e das Três Ilhas, o Espírito das Trevas do Pólo Norte, o Grande Imortal da Cornucópia Amarela do Centro Imperial e os Anciãos dos Cinco Pontos Cardeais. Estes foram os convidados mais ilustres, pois também participaram do banquete os Espíritos Estelares dos Cinco Polos, os Três Puros, os Quatro Devarajas, o Deva Celestial da Grande Mônada e os demais habitantes das Oito Cavernas Superiores. Das Oito Cavernas do Meio compareceram o Imperador de Jade, os Nove Heróis e os Imortais das Montanhas e Mares, enquanto das Oito Cavernas Inferiores o Senhor das Trevas e os Imortais da Terra fizeram uma aparição. Tomamos como certo, então, que este ano todos os deuses e devas participarão do Festival dos Pêssegos Imortais, qualquer que seja sua posição ou onde vivam.

— Vocês sabem se eu fui convidado? — perguntou o Grande Sábio, sorrindo encantado.

— A verdade é que não ouvimos nenhuma menção ao seu nome responderam as donzelas, encolhendo os ombros.

— Eu sou o Grande Sábio, Sósia do Céu! protestou Wukong, irritado. Como é possível que tenham esquecido de mim numa ocasião tão importante como esta?

— Bem responderam as donzelas, tremendo da cabeça aos pés. — Contamos apenas os convidados do ano passado. Este ano não sabemos o que vai acontecer. Talvez sejam os mesmos, ou talvez não.

— Vocês estão certas respondeu o Grande Sábio, mais calmo. Não as culpo por nada. Vocês podem ficar aqui o tempo que quiser, enquanto eu verifico se fui convidado ou não.

Assim que terminou de dizer isso, Wukong fez um gesto mágico destinado a imobilizar as pessoas e recitou um encantamento que transformava os seres vivos em estátuas. Instantaneamente, as Sete Donzelas Imortais ficaram paralisadas, com seus olhos arregalados de surpresa e tão imóveis quanto os troncos dos pessegueiros entre os quais estavam. Sem perder tempo, o Grande Sábio deixou o jardim, montou em sua nuvem sagrada e tomou o caminho do Lago de Jaspe.

Do alto, ele viu o véu cintilante da névoa sagrada e o desfile silencioso de nuvens de cinco cores. Os grasnidos dos grous, imaculadamente brancos, ressoavam pelos Nove Céus, enquanto ao longe se via, entre o bater trêmulo de mil folhas, a delicadeza de asfódelos vermelhos. Em meio a tudo isso, surgiu a figura de um imortal. Ele possuía um rosto e feições tão atraentes que lembravam o brilho sempre surpreendente de um arco-íris suspenso no ar. Era Liu Cao, o Imortal dos Pés Descalços (10) e, ao que tudo indicava, ele também estava indo para o Festival dos Pêssegos Imortais.

Ao vê-lo aproximar-se, o Grande Sábio abaixou a cabeça e imediatamente pensou em um plano para enganá-lo e ir ao Festival em seu lugar.

— Para onde você está indo, venerável Sábio? — perguntou-lhe Wukong.

— Para o Festival dos Pêssegos Imortais respondeu o Grande Imortal. —  Recebi o convite da Rainha Mãe e estou indo em direção ao seu palácio.

— Tem algo que o Venerável Imortal precisa saber respondeu o Grande Sábio. — Sabendo que não há nada mais rápido do que meu salto nas nuvens, o Imperador de Jade solicitou que eu fosse em todas as direções informando a todos os convidados de seu desejo de se reunir primeiro no Salão da Luz Perfeita, a fim de ensaiar as cerimônias que devem necessariamente anteceder o banquete.

O Imortal dos Pés Descalços era extremamente honesto e sincero, e não duvidou da veracidade do que ouvia. No entanto, ele não pôde evitar sua surpresa e exclamou:

— Que estranho! Nos outros anos ensaiamos no Lago de Jaspe e foi lá mesmo que demos as graças. Por que neste ano temos que passar pelo Salão da Luz Perfeita antes de comparecermos ao banquete? 

No entanto, ele não teve escolha a não ser mudar de direção e ir até o palácio do Imperador de Jade. Muito feliz com seu triunfo, o Grande Sábio recitou um encantamento e, com um simples movimento de seu corpo, assumiu a aparência do Grande Imortal dos Pés Descalços. 

Sob esse disfarce, não demorou muito para que ele finalmente chegasse à câmara do tesouro. Depois de estacionar sua nuvem, ele adentrou o recinto com passos suaves. Wukong sentiu de imediato o aroma inebriante de ondas de perfume e contemplou o arabesco caprichoso que a névoa celestial desenhava em um terraço de jade ricamente decorado. 


Aquela era uma câmara na qual convergiam todas as forças vitais. Formas etéreas de fênixes se aglomeravam e subiam sem cessar, agitando com seus vôos flores infinitas com pétalas douradas e talos de jade. Dentro da câmara havia uma tela esplêndida representando nove fênixes ao pôr do sol, um vaso de jade verde com mais de mil flores e uma mesa incrustada de ouro de cinco cores, sobre a qual repousavam fígados de dragão, tutano de fênix, patas de urso e lábios de macaco, juntamente com todo o tipo de iguarias requintadas e frutas das mais variadas e tentadoras cores.

Tudo estava em perfeita ordem, mas nenhuma das divindades convidadas havia chegado para o banquete. O Grande Sábio não conseguia parar de contemplar a beleza que se estendia diante de seus olhos, quando de repente sentiu o aroma avassalador do vinho. Virando a cabeça, ele viu, no longo corredor à direita, vários oficiais divinos produtores de vinho e especialistas em fermentação de cereais. Aparentemente, já tinham acabado de preparar o vinho e davam as últimas instruções aos encarregados de trazerem a água e aos criados que a aqueciam, para que limpassem os barris e as jarras com ela. O ambiente estava carregado de um aroma tão denso e antigo quanto a própria essência do jade, e o Grande Sábio não conseguia evitar que a saliva pingasse dos cantos da boca. Ele sentiu a irresistível tentação de provar tão generoso sumo, mas não se atreveu a fazê-lo com tanta gente ao redor dos barris. Desesperado, ele decidiu usar sua magia. Então ele arrancou alguns fios de cabelo, colocou-os na boca e, depois de triturá-los pacientemente, cuspiu-os, dizendo:

— Transformem-se!

Instantaneamente, os pêlos se tornaram um enxame de insetos indutores do sono, atacando os desavisados ​​viticultores e carregadores de água, e fazendo-os caírem em um profundo torpor. A força fugiu de seus braços, suas cabeças caíram pesadamente, suas pálpebras fecharam e todos os vestígios de vigor foram drenados de seus corpos. Sem perder tempo, o Grande Sábio agarrou as iguarias que pôde e correu para o largo corredor ladeado de tonéis e jarras, onde começou a beber com inimitável dedicação. 

Não demorou muito para ele ficar completamente bêbado, mas permaneceu lúcido o suficiente para se recriminar pelo que acabara de fazer, dizendo:

— Isso é ruim, muito ruim! Os convidados vão chegar daqui a pouco, e se me virem aqui, com certeza ficarão com raiva de mim. O que acontecerá se eles me pegarem em flagrante? É melhor eu voltar para casa o mais rápido possível e descansar lá o máximo que puder.

Mas o Grande Sábio ficou completamente à mercê do vinho e, entre cambaleios e tombos, acabou se perdendo. Ao invés de retornar à Mansão do Sósia do Céu, ele acabou indo até o Palácio Tushita. 

No momento em que viu o palácio, percebeu seu erro e disse para si mesmo, surpreso e temeroso:

— O Palácio Tushita se encontra na parte mais alta dos trinta e três céus, especificamente no Paraíso Imutável, onde reside ninguém menos que o próprio Lao-Tzu. Como é possível que eu tenha chegado aqui? Não importa. Sempre quis me encontrar com aquele ancião, mas a oportunidade nunca apareceu. Não vou desperdiçá-la agora que estou em sua casa.

Ele ajeitou suas roupas da melhor maneira possível e entrou no palácio pela porta da frente, porém Lao-tzu não estava em casa naquele momento. O palácio estava, de fato, vazio, pois Lao-tzu, acompanhado do Buda Dipamkara, estava naquele momento dando uma palestra na Plataforma de Elixir do Mais Alto Monte Vermelho, que contava com a presença de muitos jovens, oficiais e funcionários celestiais ao seu redor. 

O Grande Sábio vagou livremente pela mansão até, finalmente, chegar ao laboratório de alquimia. Ali também não encontrou ninguém, mas não tardou a descobrir chamas acesas num forno junto à lareira, e, ao seu lado, cinco cabaças que armazenavam elixir dourado (11).

— Que sorte a minha! - disse a si mesmo, exultante, o Grande Sábio. Este é o maior tesouro dos imortais. Desde que compreendi os segredos do Tao e dominei o grande mistério da identidade absoluta do interno e do externo, sempre quis fabricar ou pouco de elixir de ouro para aliviar o sofrimento das pessoas, mas nunca foi possível. Sempre estive muito ocupado com outras coisas, mas hoje a sorte finalmente sorriu para mim e colocou este maravilhoso presente em minhas mãos. Como Lao-tzu não está em casa, vou provar um pouco e descobrir o gosto dele. 

Sem pensar duas vezes, ele consumiu todo o elixir das cabaças, e em um instante, o efeito do elixir dissipou a embriaguez causada pelo vinho. Sóbrio novamente, Wukong pensou consigo mesmo: 

— Isso é ruim, muito ruim! Eu trouxe sobre mim uma calamidade maior que o Céu! Se o Imperador de Jade souber disso, será difícil preservar minha vida! Devo fugir o mais rápido possível e voltar sem demora para as Regiões Inferiores. Lá, pelo menos, eu sou um rei.

Sem pensar duas vezes, Wukong saiu correndo do Palácio Tushita, e  para não levantar suspeitas, tornou-se invisível graças a magia de ocultação do corpo e ele deixou o Céu pelo Portão Oeste.

Ele acelerou a descida de sua nuvem e logo alcançou a Montanha das Flores e Frutos. Do alto, ele viu o tremular de lanças e estandartes e entendeu que seus quatro tenentes e os setenta e dois reis das outras cavernas estavam realizando seus exercícios militares habituais. Quando seus pés tocaram o chão, ele levantou a voz e os chamou, dizendo:

— Meus pequeninos, eu retornei! 

Os monstros largaram imediatamente suas armas e, prostrando-se perante Wukong, exclamaram:

— Que desapego do seu coração, Grande Sábio! O senhor nos deixou por todo esse tempo, e nem sequer uma vez nos visitou para ver como estávamos!

— Do que estão falando? — os repreendeu o Grande Sábio. — Não faz tanto tempo desde que estive ao lado de vocês.

Sem parar de falar, eles entraram na caverna, onde prepararam um esplêndido banquete de boas-vindas que contou com a presença de todos os macacos. Na hora dos brindes, os quatro comandantes prostraram-se com o rosto no chão, em sinal de obediência, e voltaram a perguntar-lhe:

— Qual cargo o senhor desempenhou desta vez? Suponhamos que tenha sido muito importante, pois, caso contrário, não teria passado mais de um século no Céu.

— Como assim um século? respondeu o Grande Sábio, rindo. — Fiquei lá por meio ano, no máximo. Vocês todos ficaram loucos?

— Um dia no céu é como um ano na terra afirmaram os quatro comandantes.

— Se vocês dizem... — concluiu o Grande Sábio, para acrescentar em tom mais animado: — Tenho o prazer de informar que o Imperador de Jade desta vez foi mais favorável a mim do que na vez anterior, e ele realmente me nomeou Grande Sábio, Sósia do Céu. Ele também mandou construir para mim uma esplêndida mansão, composta por dois salões esplêndidos, um chamado Paz e Silêncio e outro conhecido como Serenidade do Espírito, e a qual ele forneceu com guardiões e todos os criados necessários para o bom funcionamento de um lugar tão luxuoso. Então, quando ele descobriu que eu levava uma vida de completo lazer e total relaxamento, ele me confiou os cuidados do Jardim dos Pêssegos Imortais, e foi aí que meus problemas começaram. Recentemente, a Rainha Mãe realizou o Grande Festival do Pêssego, e ela foi rude o suficiente para não me convidar. Sem esperar seu convite, fui secretamente até o Lago de Jaspe e consumi toda a comida e o vinho que eles haviam preparado. Então saí de lá e acabei indo parar por engano na mansão de Lao-tzu, onde também acabei com todo o elixir dourado que o mesmo guardava em cinco cabaças. Eu fiquei com medo de que minhas ações possam ter ofendido o Imperador de Jade, então decidi deixar o Céu e voltar para cá.

Os monstros ficaram encantados com sua história e ofereceram-lhe um novo banquete à base de frutas e licor. Eles rapidamente encheram uma tigela de pedra com vinho de coco e a ofereceram ao Grande Sábio. Mas ele imediatamente cuspiu e exclamou com uma careta de nojo:

— Que gosto ruim! Isso tem um gosto horrível!

— O Grande Sábio disseram os comandantes Beng e Ba , se acostumou com o sabor do vinho e da comida divina servida no Céu. Não é de admirar que o vinho de coco agora pareça tão detestável. Mas o ditado diz: 'Saborosa ou não, é água da sua casa! 

— E todos vocês, parentes ou não, são gente da minha casa! disse o Grande Sábio. —  Quando eu estava me divertindo esta manhã no Lago de Jaspe, vi muitos potes e jarros no corredor cheios de vinho de jade, o qual vocês nunca saborearam. Deixe-me voltar lá e roubar algumas garrafas para trazer até vocês. Basta beber meio copo e cada um de vocês viverá muito tempo sem envelhecer.

Ao ouvir isso, os vários macacos não conseguiam conter sua alegria. O Grande Sábio imediatamente deixou a caverna e, com uma cambalhota, voltou diretamente para o Festival dos Pêssegos Imortais, novamente usando a magia de ocultação do corpo. Ao entrar pela porta do palácio do Lago de Jaspe, ele viu que os viticultores, os espremedores de grãos, os carregadores de água e os demais criados ainda estavam dormindo e roncando. Ele pegou quatro garrafas grandes de vinho de jade, carregando duas debaixo dos braços, e duas nas mãos, e então retornou num instante para a Montanha das Flores e Frutos. Desta forma, também eles puderam celebrar seu próprio Festival do Vinho Imortal, o qual, pelos seus excessos, não relataremos mais nada aqui.

Voltaremos a falar sobre as Sete Donzelas Imortais, que foram submetidas à magia imobilizadora do Wukong por um dia inteiro. Quando finalmente se livraram de sua magia, elas pegaram as cestas de frutas e correram para informar a Rainha Mãe de tudo o que havia acontecido.

— Perdoe-nos por chegar tão tarde — disseram elas, constrangidas — , mas o fato é que o Grande Sábio, Sósia do Céu, nos manteve no jardim usando suas artes mágicas.

— Quantas cestas de pêssegos vocês trouxeram? perguntou a Rainha Mãe, ignorando o incidente.

— Apenas duas dos menores e três dos médios — responderam. — Não havia nenhum dos grandes no jardim, e presumimos que o Grande Sábio tenha comido todos. Enquanto procurávamos por ele, ele surgiu de repente diante de nós, ameaçando bater em nós. Após se acalmar, nos perguntou sobre quem a senhora havia convidado para o banquete deste ano, e nós lhe fornecemos os nomes dos convidados do ano passado. Foi então que ele nos imobilizou com uma magia, sem saber para onde ele foi ou o que fez a seguir. O que podemos afirmar é que fomos libertadas de sua magia há pouco tempo, de modo que não foi possível informá-la imediatamente.

Após ouvir tudo isso, a Rainha Mãe foi imediatamente até a presença do Imperador de Jade e apresentou-lhe um relatório completo de tudo o que havia ocorrido. 

Ela não havia acabado de fazê-lo, quando o grupo de viticultores, junto de vários oficiais divinos apareceram e relataram, escandalizados:

— Não sabemos quem fez isso, mas o fato é que todos os preparativos para o Festival dos Pêssegos Imortais foram destruídos. Lamentamos informar que todo o vinho de jade, oito iguarias requintadas e cem pratos especiais foram roubados ou comidos por alguém.

Ninguém teve tempo de reagir a um relatório tão grave, porque nesse mesmo momento quatro preceptores reais apareceram, anunciando com um gesto solene:

— O Patriarca Supremo do Tao acaba de chegar.

O Imperador de Jade e a Rainha Mãe imediatamente se levantaram e saíram para cumprimentá-lo. Depois de prestar seu respeito a eles, Lao-tzu disse:

— Em sua humilde casa, este ancião taoísta guardava uma quantidade indeterminada do Elixir Dourado das Nove Mudanças, o qual desejava oferecer à Vossa Majestade no próximo Festival de Mercúrio. Estranhamente, ele foi roubado por um desconhecido, e julguei na obrigação de vir informá-lo pessoalmente sobre tão lamentável fato.

As palavras de Lao-Tzu comoveram profundamente o Imperador de Jade, que, no entanto, teve que receber os servos e colaboradores do Sósia do Céu, que após  se prostrarem e baterem com suas testas repetidamente no chão, disseram:

— O Grande Sábio Sun Wukong não apareceu o dia todo em sua residência oficial. Ele saiu ontem de manhã e ainda não voltou. O mais perturbador, porém, é que não sabemos para onde ele pode ter ido.

Essas palavras adicionaram ainda mais lenha à fogueira de preocupações Imperador de Jade, que viu sua profunda preocupação aumentar ao ver o o Grande Imortal dos Pés Descalços chegar e relatar:

— Atendendo ao convite da Rainha Mãe, dirigia-me ao local da festa, quando me deparei com o Grande Sábio, Sósia do Céu, o qual me informou que Vossa Majestade lhe tinha ordenado que saísse pelas estradas dizendo a todos os convidados para irem ao Salão da Luz Perfeita para ensaiar as cerimônias que precediam a celebração do banquete. Seguindo suas instruções, fui até aquele lugar, mas não vi a carruagem de dragões ou a carruagem de fênix de Vossa Majestade, então me apressei para encontrá-lo aqui.

Esse último relato acabou transbordando a paciência do Imperador de Jade, que não pôde deixar de exclamar atônito:

— Esse sujeito é absolutamente incrível! Ele não apenas falsifica minhas ordens, mas ainda por cima engana meus colaboradores mais próximos! Que o Ministro da Detecção localize seu paradeiro o mais rápido possível!

O oficial deixou imediatamente o palácio e iniciou uma investigação exaustiva, que o levou à seguinte conclusão, que ele mesmo se encarregou de transmitir a Sua Majestade:

— Aquele que tão profundamente perturbou a ordem e a paz celestes não é outro senão o Grande Sábio, Sósia do Céu - e ele forneceu todas as provas que o levaram a tão grave acusação.

O Imperador de Jade ficou furioso e, voltando-se para os Quatro Devarajas, ordenou-lhes que reforçassem os efetivos de Li Jing e do príncipe Nezha. Sem perder tempo, convocaram as Vinte e Oito Constelações, os Nove Planetas, as Doze Divisões Horárias, os Intrépidos Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais, os Quatro Guardiões do Tempo (12), as Estrelas do Leste e do Oeste, os Deuses do Norte e o Sul, as Divindades das Cinco Montanhas (13) e dos Quatro Rios (14), os Espíritos Estelares de Todo o Universo e mais de cem mil soldados celestiais. Todos foram ordenados a confeccionar dezoito redes cósmicas, ir com elas para as Regiões Inferiores, cercar completamente a Montanha das Flores e Frutos, capturar o rebelde Sun Wukong e submetê-lo à decisão final da justiça. 

Todos os deuses revisaram suas tropas e deixaram o Palácio Celestial. Uma expedição tão seleta constituiu um espetáculo francamente impressionante. A poeira que levantavam escurecia o céu, imitando o poder de difusão da névoa. Com o único propósito de punir o comportamento ímpio de um macaco que ousara ofender o Altíssimo dos Senhores, os guerreiros celestes desceram a esta terra mortal. 

Os Quatro Grandes Devarajas compunham o comando principal, enquanto os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais eram responsáveis por movimentar inúmeras tropas. Li Jing dava ordens sem cessar direto do coração do exército, sabendo que seu bravo filho Nezha liderava as forças de vanguarda. A Estrela de Rahu era responsável pelas patrulhas de reconhecimento, e a Estrela de Ketu cobria os pontos fracos na retaguarda. Soma, a Lua, estava ansioso para a batalha, assim como Aditya, o Sol, estava radiante de bravura e equilíbrio. As Estrelas das Cinco Fases eram heróis de talentos especiais, os destemidos Nove Planetas apreciavam uma boa batalha e as Divisões Horárias Dhzu, Wu, Mao e Yao, eram famosos por sua enorme força. As Cinco Pragas (15) foram vistas cavalgando no leste, e as Divindades das Cinco Montanhas no oeste. Os Seis Deuses das Trevas cobriram o flanco esquerdo, enquanto o direito era protegido pela coragem dos Seis Deuses da Luz. Para não serem superados, os Deuses Dragões cuidavam dos inimigos nas alturas, e os Quatro Rios cuidavam daqueles nas Regiões Inferiores. As Vinte e Oito Constelações cavalgaram juntas em formação cerrada. 

Embora difíceis de identificar entre a nuvem de poeira, era fácil sentir a presença dos capitães Citra, Svati, Visakha e Anuradha, dos intrépidos Revati, Asvini, Apabharani e Krttika, e dos altamente capazes guerreiros Uttara - Asadha, Abhijit, Sravana, Sravistha, Satabhisa, Purva - Prosthapada, Uttara-Prosthapada, Rohini, Mulabarhani, Purva - Asadha, Punarvasu, Tisya, Aslesa, Magha, Purva - Phalguni, Uttara - Phalguni e Hasta. Todos eles brandiam espadas e lanças, como prova de sua ânsia por entrar em combate. 

Cada um parando a nuvem na qual viajou, os deuses colocaram seu pé sagrado neste mundo mortal e acamparam um pouco antes da Montanha das Flores e Frutos.

Que grave erro cometeu o mutável Rei dos Macacos, quando se apoderou do vinho dos deuses, roubou o elixir e se rebelou em seu covil! Por ter arruinado o Grande Festival dos Pêssegos Imortais, cem mil soldados celestiais se preparavam para estender a rede divina sobre ele.


Li Jing ordenou a interrupção da marcha, posicionando todas as suas tropas ao redor da montanha. O cerco era tão apertado que nem uma gota d'água escapava, sem ser vista, da Montanha das Flores e Frutos. No entanto, como medida de precaução, toda a região foi coberta com as dezoito redes cósmicas, após o que os Nove Planetas lançaram seu ataque. Liderando suas tropas, eles seguiram direto para a entrada da caverna, onde foram recebidos por um destacamento de macacos de todas as idades e tamanhos, saltitando e pulando..

— Ei vocês! — gritaram os Espíritos Celestiais com um gesto autoritário. — Vocês podem nos dizer onde está o Grande Sábio? Somos deuses das Regiões Superiores e viemos prendê-lo. Então digam a ele para desistir e sair imediatamente. Caso contrário, todos vocês serão aniquilados!

Aterrorizados, os macacos correram para dentro da caverna e relataram tais palavras ao seu rei, enquanto gritavam como loucos:

— Que desgraça, Grande Sábio! Que destino tenebroso se abateu sobre nós! Existem nove deuses de aparência marcial lá fora que afirmam vir das Regiões Superiores com o único propósito de prendê-lo!

O Grande Sábio estava bebendo uma das garrafas que trouxera do céu, acompanhado por seus quatro comandantes e pelos reis das setenta e duas cavernas, e erguendo seu copo, disse em um tom surpreendentemente calmo:

— Se você tem vinho hoje, embriague-se hoje. Não se preocupe com os problemas na frente de sua porta!”

Ele mal terminou de pronunciar essas palavras quando outro grupo de demônios entrou e anunciou, com um irreprimível nervosismo:

— Esses nove deuses estão tentando nos provocar com palavras ofensivas e linguagem obscena.

— Não dêem atenção a eles - aconselhou o Grande Sábio, deixando escapar uma gargalhada. — Rendamo-nos hoje aos prazeres da poesia e do vinho, e não nos importemos com o que nos pode dar glória e fama.

Essas palavras ainda estavam em seus lábios, quando surgiu um novo grupo de demônios, que lhe comunicaram com manifesta preocupação:

— Aqueles nove deuses acabaram de arrombar a porta e estão prestes a entrar em nosso reino.

— Malditos deuses imprudentes e estúpidos! — gritou o Grande Sábio, furioso. — Eles não tem boas maneiras? O que quer que acontecesse, eu estava determinado a não enfrentá-los. Por que eles me provocam e zombam de mim bem debaixo do meu nariz?

Imediatamente, Wukong se voltou para o Rei Demônio de um Chifre Só e ordenou que atacasse os invasores ao lado dos reis das setenta e duas cavernas, enquanto ele próprio e seus quatro comandantes ficariam encarregados de proteger a retaguarda. Sem perder tempo, o Rei Demônio liderou seu exército de ogros e monstros para a batalha, mas eles foram emboscados pelos Nove Planetas e não conseguiram avançar além da cabeçeira da ponte de ferro. 

Quando a situação parecia desesperadora, o Grande Sábio apareceu, brandindo seu bastão de ferro e gritando imperiosamente:

— Afaste-se e deixe-me passar!

Seu bastão adquiriu a espessura de uma tigela de arroz e atingiu um comprimento de mais de 3,6 metros. Balançando-a para a esquerda e para a direita, o Grande Sábio avançou para o centro da batalha com tanta determinação que nenhum dos Nove Planetas ousou enfrentá-lo, deixando-os sem escolha a não ser recuarem em desordem. 

Quando, finalmente, conseguiram reagrupar suas tropas, voltaram-se para Wukong e o recriminaram com voz raivosa:

— Maldito pi-ma-wen! Você perdeu totalmente a cabeça? Você não entende que quebrou as dez regras (16)?. Você se fartou primeiro de pêssegos e depois de vinho, impedindo assim a celebração do Grande Festival dos Pêssegos Imortais. Não satisfeito, você roubou o elixir da imortalidade de Lao-Tzu e teve a audácia de saquear os armazéns imperiais para entretenimento puramente pessoal. Você não percebe que tudo o que você fez foi acumular pecado sobre pecado?

— Admito que o que diz é verdade reconheceu o Grande Sábio. — Mas vocês querem me explicar o que pretendem com tal exibição bélica?

— O Imperador de Jade ordenou que conduzissemos nossas tropas contra você e o levemos prisioneiro à presença dele. Renda-se e pouparemos a vida de todos esses estranhos seres que o acompanham. Caso contrário, destruiremos sua caverna e nivelaremos completamente a montanha em que ela está localizada.

— Que fanfarrões vocês são! — berrou o Grande Sábio, furioso. — O quão grande é o poder mágico de vocês, para ousarem dizer palavras tão absurdas como essas? Eu lhes ensinarei uma lição. Não vão embora! Quero que experimentem o sabor do meu bastão!

Os Nove Planetas organizaram um ataque conjunto, mas o Belo Rei dos Macacos não recuou. Ele agarrou seu bastão de ferro com força e, golpeando à esquerda e à direita, lutou arduamente com os Nove Planetas, até que eles, tomados de exaustão, se viraram e fugiram, deixando suas armas no campo de batalha. No limite de suas forças, eles conseguiram retornar sãos e salvos ao acampamento, onde informaram Li Jing do ocorrido, dizendo:

— Aquele maldito Rei Macaco é realmente um lutador de primeira categoria! Embora tenhamos feito tudo que podíamos com nossa arte, não pudemos fazer frente à ele e fomos forçados a aceitar nossa derrota.

Li Jing então ordenou que os Quatro Devarajas e as Vinte e Oito Constelações entrassem em ação. O Grande Sábio não perdeu a calma por isso, ordenando, por sua vez, o Rei Demônio de Um Chifre Só, os Reis Monstros das setenta e duas cavernas e seus quatro tenentes a colocarem suas tropas em formação de batalha bem na porta de sua caverna. A batalha que se seguiu foi uma das mais ferozes que os séculos já testemunharam. Era como se eles estivessem lidando com um vento frio e forte, e uma névoa escura e densa. Aqui foi visto o agitar de bandeiras e estandartes; havia a reverberação ofuscante de lanças e alabardas. Fileira após fileira de armaduras que brilhavam como chamas sob os raios implacáveis ​​do sol, e de capacetes de guerreiros que pareciam sinos de prata, cujo som ressoava alto nos céus. 

Aquele fluxo interminável de soldados ferozes em suas impressionantes cotas de malha lembrava o avanço implacável das geleiras esmagando a terra. Por toda parte haviam cimitarras gigantescas, rápidas e luminosas como relâmpagos; lanças tão afiadas que podiam perfurar as nuvens ou perfurar o quente véu da névoa; machados de batalha em forma de cruz; chicotes inquietos e sempre alertas como os cílios de um tigre, seus cabos eretos como fileiras de plantas de cânhamo; espadas e pontas de lança de bronze esverdeado, tão abundantes que se assemelhavam a uma densa floresta mortal; arcos e bestas de desenho curvo; flechas velozes com penas de águia em uma das pontas; uma infinidade de aparelhos de guerra e armas de arremesso, tão mortíferas quanto picadas de cobras, capazes de matar e infligir feridas que nem o tempo curaria. Acima de todos eles se destacava, porém, o complacente bastão de ferro do Grande Sábio, que se movia em todas as direções, quebrando ossos e destruindo corpos.

A batalha durou até que os pássaros pararam de esvoaçar no ar, os tigres e lobos correram para se esconder dentro das selvas e todo o planeta foi obscurecido pela enorme quantidade de poeira, pedras e sujeira que flutuavam no ar. O barulho foi tal que até o Céu e a Terra tremeram, e deuses e demônios ficaram profundamente alarmados.

A batalha começou ao amanhecer e durou até o sol se pôr atrás das colinas ocidentais. O Rei Demônio de Um Chifre Só e os reis das setenta e duas cavernas foram capturados pelas forças celestiais. Apenas os quatro comandantes e o batalhão de macacos travessos conseguiram escapar, se escondendo nas profundezas da Caverna da Cortina de Água. O Grande Sábio, por sua vez, manteve os Quatro Devarajas, Li Jing e o Príncipe Nezha sob controle por muito tempo, com a ajuda exclusiva de seu bastão de ferro.

 Vendo que a noite se aproximava, Wukong arrancou alguns fios de cabelo do corpo, colocou-os na boca e, depois de esmagá-los com os dentes, cuspiu-os, gritando:

— Transformem-se! — e instantaneamente eles se tornaram vários milhares de Grandes Sábios, tão iguais a ele e todos carregavam bastões de ferro idênticos ao dele.Em um piscar de olhos, eles repeliram o príncipe Nezha e derrotaram os Quatro Devarajas. 



Vitorioso, o Grande Sábio recuperou todos os fios e correu para o interior da caverna. Ele não havia chegado à cabeceira da ponte de ferro quando seus quatro comandantes saíram ao seu encontro, seguidos por todo o contingente de macacos. Todos se prostraram com os rostos no chão, e enquanto alguns se rendiam as lágrimas, outros se entregaram ao riso.

— É possível saber por que, ao me verem, vocês começaram a rir e a chorar? — perguntou, surpreso, o Grande Sábio.

— Quando enfrentamos os Devarajas esta manhã responderam os quatro comandantes , o Rei Demônio de Um Chifre Só e os Reis das setenta e duas cavernas foram capturados pelos deuses. Apenas nós conseguimos escapar, e por isso choramos. Mas ao vê-lo voltar triunfante e sem um único arranhão, uma alegria tão grande se apoderou de nós que não pudemos deixar de cair na gargalhada.

— Vitória e derrota são experiências comuns para um soldado — declarou o Grande Sábio. — Um antigo provérbio diz: "Você pode matar dez mil de seus inimigos, mas também perderá três mil de seus próprios aliados." Além disso, foram os tigres, leopardos, lobos, insetos, texugos, raposas e semelhantes que foram feitos prisioneiros, não os macacos. Na verdade, nenhum de nós foi ferido. Por que se importar? Com isso não conseguiremos absolutamente nada. Embora nossos adversários tenham sido repelidos por minha magia de divisão corporal, eles ainda estão acampados no sopé de nossa montanha. Sejamos muito vigilantes, portanto, em nossa defesa. A melhor coisa a fazer neste momento é comer o quanto quiser e descansar o quanto pudermos. Assim manteremos intacta toda a sua energia. Amanhã, assim que amanhecer, irei capturar, com a ajuda de minha magia, alguns desses generais celestiais, e  assim  daremos oportuna vingança aos nossos companheiros de armas.

Mais calmos, os quatro comandantes e o corpo principal do exército de macacos beberam alguns copos de vinho de coco e se retiraram para descansar, então não falaremos mais deles por enquanto.

Uma vez que os Quatro Devarajas retiraram suas tropas e interromperam o combate, cada um dos comandantes celestiais retornou para suas tendas para informá-los dos resultados obtidos. Assim, descobriram que haviam capturado um grande número de leões, elefantes, lobos, raposas e todos os tipos de animais rastejantes; no entanto, eles descobriram também, para sua consternação, que não havia nenhum macaco entre eles. O acampamento foi então protegido, uma grande tenda foi armada e e os oficiais que mais se destacaram no primeiro dia de batalhas foram recompensados. Os soldados encarregados das redes cósmicas receberam ordens de carregar sinos e exigir senhas de todos que se aproximassem deles. Enquanto aguardavam o combate do dia seguinte, eles cercaram a Montanha das Flores e Frutos e mantiveram diligentemente sua vigília. A situação permanecia, então, como no início: com sua rebelião, o macaco desrespeitoso havia alterado os princípios harmônicos que regiam os céus e a terra, mas a rede cósmica estava estendida dia e noite sobre sua cabeça.

No momento, não sabemos o que aconteceu na manhã seguinte. Quem quiser descobri-lo, deve ouvir com especial atenção o que é narrado no próximo capítulo.



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    Notas do Capítulo V:

    1. Os Três Puros são as divindades supremas do taoísmo popular. Seus nomes eram: Yuanshi Tianzun, o "Honorável Jade Divino Puro das Origens";  Lingbao Tianzun, o "Glorioso Divino Puro dos Tesouros Espirituais" e Taishang Laojun, o "Exaltado Divino Puro da Virtude Moral". Este último foi identificado com Lao-Tzu;
    2. Segundo a crença popular, havia quatro imperadores celestiais, aos quais foram atribuídas uma cor e um ponto cardeal para cada um. Assim, o Imperador Verde correspondia ao leste, o Branco, ao oeste, o Vermelho, ao sul, e o Negro, ao norte. Mais tarde foi adicionado o Amarelo, que cuidava do centro, fazendo assim seu número coincidir com o dos principais Reis Deva;
    3. Os Nove Planetas eram: Aditya (personificação do sol), Soma (personificação da lua), Angaraka (personificação de Marte, associado ao fogo), Buda (personificação de Mercúrio, associado à água), Brhas-pati (personificação de Júpiter , associado à madeira), Sanaiscara (personificação de Saturno, associado à terra), Sukra (personificação de Vênus, associado ao metal, particularmente ouro), Rahu (o espírito encarregado de produzir eclipses) e Ketu (um cometa);
    4. Os Generais dos Cinco Pontos Cardeais eram bodhisattvas encarregados de proteger o centro e as quatro direções espaciais. Devido ao seu trabalho protetor, eles também eram conhecidos como os Guardiões dos Cinco Pontos Cardeais;
    5. As Vinte e Oito Constelações eram agrupadas em quatro mansões de sete membros cada, as quais correspondiam às estações e aos pontos cardeais, à saber: primavera-leste, verão-sul, outono-oeste e inverno-norte;
    6. Os Quatro Devarajas, eternos defensores do mundo contra os ataques de espíritos malignos, habitavam com Indra em cada uma das encostas do Monte Sumeru. Seus nomes eram: Dhrtarastra, Protetor do Reino; Virudhaka, Senhor do Crescimento; Virupaksa, Rei Deva de Olhos Esbugalhados e Vaisravana, Senhor da Doutrina Suprema. Kubera, Senhor da Riqueza, às vezes é associado a eles;
    7. As Doze Divisões Horárias, associadas aos animais zodiacais, são: Dhzu, o Rato, que vai das onze horas da noite até uma hora da manhã; Chou, o Boi, de uma às três da manhã; Yin, o Tigre, das três às cinco da manhã; Mao, o Coelho, das cinco às sete da manhã; Chen, o Dragão, de sete às nove da manhã; Si, a Cobra, de nove às onze da manhã; Wu, o Cavalo, das onze da manhã à uma da tarde; Wei, o Carneiro, da uma às três da tarde; Shen, o Macaco, das três às cinco da tarde; You, o Galo, de cinco da tarde às sete da noite; Hsü, o Cachorro, das sete às nove da noite; Hai, o Porco, das nove às onze da noite;
    8. Os Anciãos das Cinco Regiões são divindades taoístas, personificações dos cinco elementos básicos;
    9. A Rainha Mãe do Lago de Jaspe, também conhecida como Xi Wangmu, Wang-Mu-Niang-Niang, ou Rainha Mãe do Ocidente, é a divindade feminina suprema do taoísmo popular. Como tal, ele mora no Palácio do Lago de Jaspe, localizado no Monte Kun-Lun;
    10. O Imortal dos Pés Descalços foi o nome dado ao Imperador Ren-Chung em sua juventude, devido ao seu costume de tirar os sapatos e as meias sempre que lhe apetecia. Há quem acredite, porém, que essa era outra forma de designar Lao-Tzu;
    11. Como explicado nas notas do capítulo II, o elixir dourado é o verdadeiro remédio da imortalidade. Como seu último estágio de refinamento acontecia dentro da pessoa que o bebia, também era chamado de elixir interno;
    12. Os Quatro Guardiões do Tempo encarregavam-se, respectivamente, da guarda da hora (Liu Hong), do dia (Zhou Deng), do mês (Huang Chengyi) e do ano (Li Bing);
    13. As Cinco Montanhas são: o Monte Tai, no leste; o Monte Hua, no oeste; o Monte Heng, no sul; o Mount Hang, no norte, e o Mount Sung, no centro;
    14. Os Quatro Rios são: o Rio Yangtze, o Rio Amarelo, o Rio Huai e o Rio Chi;
    15. As Cinco Pragas referem-se aos flagelos aos quais a população de Vaisali foi submetida na época de Buda, e que consistiam em hemorragias oculares, sangramentos nasais, secreção nos ouvidos, contraturas da mandíbula e sabor alterado dos alimentos;
    16. O budismo proíbe expressamente matar, roubar, mentir, quebrar a palavra, trapacear, o uso de linguagem obscena, ganância, raiva e maus pensamentos;


    • Tradução em pt-br por Rodrigo Viany (Sleipnir). Favor não utilizar sem permissão.
    • Tradução baseada na tradução do chinês para o espanhol feitas por Enrique P. Gatón e Imelda Huang-Wang, e do chinês para o inglês feita por Collinson Fair.
    fontes consultadas para a pesquisa:
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